Edemas Cacifo

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189 MECANISMOS DE FORMA˙ˆO DE EDEMAS MECHANISMS OF EDEMA FORMATION Eduardo Barbosa Coelho Docente. Disciplina de Nefrologia. Departamento de Clnica MØdica. Faculdade de Medicina de Ribeirªo Preto USP. CORRESPOND˚NCIA: Av Bandeirantes, 3900, CEP 14048-900 - Ribeirªo Preto - SP - email: [email protected] - Fone: 16-602-2543 / Fax: 16- 633-6695 COELHO EB. Mecanismos de formaªo de edemas. Medicina, Ribeirªo Preto, 37: 189-198, jul./dez. 2004 RESUMO: Edema Ø definido como acœmulo de fluido no espao intersticial. Nesta revisªo, discutem-se os mecanismos formadores de edemas localizados e dos grandes edemas (gene- ralizados), assim como aspectos semiolgicos, empregados em seu diagnstico diferencial. Sªo detalhados os mecanismos patofisiolgicos dos edemas cardaco, cirrtico e renal (sndromes nefrtica e nefrtica) com destaque para as alteraıes dos mecanismos de controle do volume arterial efetivo. UNITERMOS: Edema; fisiopatologia. Fibrose. Nefrite. Sndrome. Sndrome Nefrtica. Insufi- ciŒncia Cardaca. 1- INTRODU˙ˆO Edema Ø definido como acœmulo de lquido no espao intersticial. Na prÆtica clnica, nos deparamo- nos com pacientes com edemas de pequenas dimen- sıes, localizados, por exemplo, em uma extremidade de um membro. Em outras situaıes, somos apresen- tados a pacientes com grandes edemas, envolvendo, inclusive, cavidades. Para que o edema ocorra, deve haver uma quebra dos mecanismos que controlam a distribuiªo do volume de lquido no espao intersti- cial. Essa desregulaªo pode ser localizada e envolver apenas os fatores que influenciam o fluxo de fluido ao longo do leito capilar, ou, ainda, pode ser secundÆria a alteraıes dos mecanismos de controle do volume do compartimento extracelular e do lquido corporal total, o que, na maioria das vezes, ocasiona edema genera- lizado. A compreensªo dos mecanismos formadores de edema Ø complexa e, em muitas situaıes, incom- pleta. Entretanto, o conhecimento dos mecanismos fi- siopatolgicos, envolvidos na formaªo do edema per- mite uma racionalizaªo terapŒutica na busca dos melhores resultados possveis. Esta revisªo pretende discutir os principais mecanismos locais, responsÆveis pela formaªo do edema, ou seja, rever e discutir o equilbrio capilar de Starling, assim como conhecer os mecanismos envolvidos na instalaªo e manutenªo dos grandes edemas, levando identificaªo dos mes- mos atravØs de conhecimentos semiolgicos. 2- ASPECTOS FISIOPATOLGICOS - EQUI- L˝BRIO DE STARLING Em 1896, Starling descreveu as foras fisiol- gicas que controlam o movimento de fluidos ao longo do leito capilar, e que, quando alteradas, podem gerar o edema (1). Em resumo, o fluxo dos fluidos, no nvel capilar, depende da permeabilidade da parede capilar, definida pela constante Kf, e pela diferena entre as variaıes das pressªo hidrostÆtica ( Pc) e da pres- sªo onctica ( c) ao longo do leito capilar. Assim: Fluxo = Kf . ( Pc - c) Medicina, Ribeirªo Preto, Simpsio: SEMIOLOGIA 37: 189-198, jul./dez. 2004 Captulo I

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MECANISMOS DE FORMAÇÃO DE EDEMAS

MECHANISMS OF EDEMA FORMATION

Eduardo Barbosa Coelho

Docente. Disciplina de Nefrologia. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto � USP.CORRESPONDÊNCIA: Av Bandeirantes, 3900, CEP 14048-900 - Ribeirão Preto - SP - email: [email protected] - Fone: 16-602-2543 /Fax: 16- 633-6695

COELHO EB. Mecanismos de formação de edemas. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 189-198, jul./dez. 2004

RESUMO: Edema é definido como acúmulo de fluido no espaço intersticial. Nesta revisão,discutem-se os mecanismos formadores de edemas localizados e dos grandes edemas (gene-ralizados), assim como aspectos semiológicos, empregados em seu diagnóstico diferencial.São detalhados os mecanismos patofisiológicos dos edemas cardíaco, cirrótico e renal(síndromes nefrítica e nefrótica) com destaque para as alterações dos mecanismos de controledo volume arterial efetivo.

UNITERMOS: Edema; fisiopatologia. Fibrose. Nefrite. Síndrome. Síndrome Nefrótica. Insufi-ciência Cardíaca.

1- INTRODUÇÃO

Edema é definido como acúmulo de líquido noespaço intersticial. Na prática clínica, nos deparamo-nos com pacientes com edemas de pequenas dimen-sões, localizados, por exemplo, em uma extremidadede um membro. Em outras situações, somos apresen-tados a pacientes com grandes edemas, envolvendo,inclusive, cavidades. Para que o edema ocorra, devehaver uma quebra dos mecanismos que controlam adistribuição do volume de líquido no espaço intersti-cial. Essa desregulação pode ser localizada e envolverapenas os fatores que influenciam o fluxo de fluido aolongo do leito capilar, ou, ainda, pode ser secundária aalterações dos mecanismos de controle do volume docompartimento extracelular e do líquido corporal total,o que, na maioria das vezes, ocasiona edema genera-lizado. A compreensão dos mecanismos formadoresde edema é complexa e, em muitas situações, incom-pleta. Entretanto, o conhecimento dos mecanismos fi-siopatológicos, envolvidos na formação do edema per-mite uma racionalização terapêutica na busca dos

melhores resultados possíveis. Esta revisão pretendediscutir os principais mecanismos locais, responsáveispela formação do edema, ou seja, rever e discutir oequilíbrio capilar de Starling, assim como conhecer osmecanismos envolvidos na instalação e manutençãodos grandes edemas, levando à identificação dos mes-mos através de conhecimentos semiológicos.

2- ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS - EQUI-LÍBRIO DE STARLING

Em 1896, Starling descreveu as forças fisioló-gicas que controlam o movimento de fluidos ao longodo leito capilar, e que, quando alteradas, podem geraro edema(1). Em resumo, o fluxo dos fluidos, no nívelcapilar, depende da permeabilidade da parede capilar,definida pela constante Kf, e pela diferença entre asvariações das pressão hidrostática (�Pc) e da pres-são oncótica (��c) ao longo do leito capilar.

Assim: Fluxo = Kf . (�Pc - ��c)

Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: SEMIOLOGIA37: 189-198, jul./dez. 2004 Capítulo I

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A Figura 1 esquematiza o equilíbrio de Starlingno nível do leito capilar. Em condições fisiológicas,espera-se que a pressão hidrostática, na extremidadearteriolar do leito capilar, seja maior que a pressãooncótica do plasma. Esse gradiente de pressão fazcom que haja fluxo de fluido do compartimento intra-vascular para o interstício. Ao longo do capilar, a pres-são hidrostática se reduz de forma significativa. Emadição, a saída do fluido intravascular faz com que aconcentração de proteínas intracapilares se eleve, oque acarretará um discreto aumento da pressão on-cótica. Assim, somados esses fatores, ocorrerá inver-são do gradiente de pressão na extremidade venosada rede capilar, ou seja, a pressão oncótica tornar-se-á maior que a pressão hidrostática. O eventual exces-so de líquido no espaço intersticial será drenado atra-vés dos vasos linfáticos.

Perturbações nas variáveis que regem o equilí-brio de Starling poderão ocasionar edema. Caso ocor-ram em um território capilar restrito, haverá formaçãode edema localizado. Os grandes edemas envolvem,geralmente, alterações sistêmicas mais complexas,sendo ocasionados, na maioria das vezes, por pertur-

bações nos mecanismos de controle do volume extra-celular. Nesse caso, haverá aumento do volume ex-tracelular e do peso corpóreo. O aparecimento de ede-ma é conseqüência de alterações na homeostase dosódio e da água(2,3). Como só acontece em Biologia e,portanto, também na patofisiologia das doenças, osprocessos (mórbidos) são multifatoriais, ou seja, váriosfatores atuam simultânea e conjuntamente para de-sencadear um determinado quadro patológico. O ede-ma não foge à regra. Assim, cada caso de edema re-sulta da composição de um ou vários fatores daquelesmostrados na Figura 1 e na 2. Na dependência de taisfatores, ficam caracterizados os edemas como: cardí-aco, renal, cirrótico ou nutricional - grupados nessesnomes, porque, além das características patofisiológicaspróprias de cada grupo, apresentam também etiologiaespecífica, daí a denominação.

Na Figura 2, encontram-se resumidas as prin-cipais alças fisiológicas de controle do volume extra-celular, que atuam no sentido da retenção de sódio.Apenas para não tornar a figura muito complexa, es-tão omitidas algumas alças natriuréticas, como o fatornatriurético atrial (FAN), as prostaglandinas, as cininas

Figura 1- Forças que controlam o fluxo de fluído no leito capilar. Pc=pressão hidrostática capilar;��c=pressão oncótica capilar;Kf=coeficiente de filtração;�p e ��=diferença artériovenosa da pressão hidrostática e oncótica.

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Mecanismos de formação de edemas

e o óxido nítrico, assim como o hormônio antidiurético(HAD). Observe que os principais sistemas de regu-lação, ou seja, o sistema nervoso autônomo simpático(SNAS) e o sistema reninangiotensina-aldosterona(SRAA) atuam ou dependem do envolvimento renal.Os rins são, dessa forma, não só o principal efetor nobalanço de água e sódio, mas, também, um importantesensor, levando ao SNC informações sobre o volumeextracelular através das aferências nervosas. Em adi-ção aos sensores de volume e pressão, localizados nasarteríolas aferentes, a mácula densa também é umimportante sensor da concentração de sódio no inte-rior dos túbulos renais e, em conjunto com o SNAS,controla a liberação de renina do aparelho justaglo-merular renal. A Figura 2 introduz, ainda um impor-tante conceito no entendimento da formação dosedemas generalizados. Trata-se do volume de sanguearterial efetivo (VSAE), um parâmetro de difícil men-suração, que representa o volume de sangue neces-sário para manter o retorno venoso, a perfusão teciduale o débito cardíaco dentro dos valores normais. OVSAE depende do volume de sangue ejetado pelocoração (volume sistólico), que é diretamente influen-ciado pelo retorno venoso ao átrio direito (lei de Frank-

Starling), que, por sua vez, depende do tônus das gran-des veias e, principalmente, do volume de sangue in-travascular. A redução do VSAE ativará os mecanis-mos de controle de volume no sentido da retençãorenal de água e sódio. Conforme detalharemos emseguida, as síndromes dos grandes edemas são acom-panhadas de alterações do VSAE ou do seu principalórgão regulador, os rins.

3- ASPECTOS SEMIOTÉCNICOS

Uma história clínica e um exame físico cuida-doso são suficientes, na maioria dos casos, para o es-clarecimento diagnóstico em pacientes com edema.O primeiro passo a ser dado visa à busca de pistasdiagnósticas para a identificação de edemas localiza-dos ou generalizados. As Tabelas I, II e III resumemos principais pontos a serem explorados para se atin-gir esse objetivo. Em adição, as Figuras 4 e 5 ilustramexemplos de edemas localizados. Entretanto, dois as-pectos são passíveis de comentários mais detalhados.O primeiro relaciona-se à importância da aferição se-qüencial do peso corporal. Edemas generalizados sãoacompanhados do aumento do peso e esse é um im-

Figura 2 - Vias relacionadas com a retenção de sódio para o controle do volume arterial efetivo

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portante parâmetro para avaliação da eficácia tera-pêutica. Estima-se que sejam necessários cerca de 4a 5% de aumento do peso corpóreo para que o edemaseja clinicamente detectável. O segundo comentáriorefere-se ao sinal do cacifo ou de Godet (Figura 3).Esse sinal é realizado, comprimindo-se a região pré-tibial com o polegar por cerca de 10 seg e observan-do-se se há formação de depressão. A profundidadeda depressão pode ser comparada com escala de cru-zes, variando de + a ++++. Para efeito de compara-

ção, a intensidade máxima (++++) é atribuída a edemasque formam depressões maiores ou iguais a uma pol-pa digital. Uma segunda informação pode ser obtida,observando-se o tempo necessário para o desapareci-mento da depressão após a remoção da compressãodigital. Caso a depressão desapareça em um tempomenor que 15 seg, suspeita-se de baixa pressão oncó-tica, ou seja, hipoalbuminemia. Tempos maiores queesse sugerem edema secundário ao aumento da pres-são hidrostática (4).

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Mecanismos de formação de edemas

Figura 3: Sinal de Godet ou do cacifo. A- Modo de execução; B- presença do cacifo.

Figura 4: Edema localizado em trombose venosa, profunda, de membro inferior esquerdo. Note a assimetria doedema e a alteração da coloração da pele (cianose).

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4- SÍNDROMES DOS GRANDES EDEMAS

4-1 Edema Renal

Edema NefríticoNas síndromes nefríticas agudas, das glomeru-

lonefrites agudas, por exemplo, que se manifestam comedema, hematúria, hipertensão - sem proteinúria im-portante (acima de 3,5 g/dia) - a causa fundamentaldo edema é a redução da taxa de filtração glomerular(TFG). Essa queda da filtração pode ser discreta emalguns pacientes (com creatinina sérica normal), maspode ser mais grave em outros, sendo que alguns fi-cam até anúricos (necessitando diálise). O edema étão mais grave quanto maior for a redução da TFG,pois, como conseqüência desta, ocorrerá uma dimi-nuição muito acentuada da carga filtrada de sódio

(solutos) que será ainda mais reduzida após a maiorreabsorção tubular desse íon. Assim, a pequena ofer-ta distal de sódio permitirá a reabsorção quase total doNa+ tubular no nefro distal. Cai a excreção renal desódio e acontece, desse modo, retenção de Na+ (e água,de equilíbrio osmótica). Essencialmente, é um rim comcapacidade muito pequena de excreção de Na+. Sefizermos restrição dietética de NaCl (rigorosa), podenão se formar edema - pois equilibrar-se-ia a ingestãocom a baixa excreção, sem retenção. Mas se o con-sumo de sódio for liberal, ocorrerá retenção de Na+ eexpansão do volume do extracelular (VEC), como mos-tra a Figura 6. Nessas condições, haverá edema e hi-pertensão arterial. Nos casos de insuficiência renal agu-da (necrose tubular aguda) pode haver ou não a for-mação de edema. Essa doença cursa com destruiçãodas células tubulares e pode evoluir desde oligoanúriaaté poliúria. Assim, a presença de edema dependeráda associação entre a redução da TFG, a redução nacarga excretada de sódio e o aporte de sódio na dieta.Cabe lembrar que a presença de IRA é comum empacientes críticos, sujeitos a grande aporte de líquidospor infusão parenteral, ricos em sódio, fator que podelevar a expansão do volume extracelular, aumento dapressão hidrostática capilar e edema(5).

Figura 5: Exemplos de edema localizado: A- Angioedema em lábiosuperior; B � Erisipela em membro inferior (note o eritema, indicandoinflamação).

Figura 6: Mecanismos formadores de edema na SíndromeNefrítica e na Insuficiência Renal Aguda.

Edema NefróticoSempre que uma doença renal tiver a presença

de lesões específicas da membrana basal glomerulare/ou dos pedicelos das células epiteliais glomerulares,haverá um aumento da permeabilidade glomerular àsmacromoléculas. Nessas condições, as proteínas

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Mecanismos de formação de edemas

plasmáticas são filtradas em grandes quantidades e aperda urinária (proteinúria) ultrapassa 3,5 g/24 h. Cli-nicamente, manifesta-se por urina espumosa (protei-núria) e edemas. Esse é um quadro que pode estarpresente nas manifestações de várias doenças, por-tanto é chamado de Síndrome Nefrótica. O edemareflete a redução na pressão oncótica do plasma, oque irá acarretar uma menor reabsorção do fluido in-tersticial, na extremidade venosa do leito capilar. AFigura 7 mostra, esquematicamente, as alterações pre-sentes na síndrome nefrótica, responsáveis pelo ede-ma. A hipoproteinemia, resultante da perda urináriade proteínas, é agravada pelo catabolismo aumentadoda albumina, que acontece na síndrome nefrótica. Aredução da pressão oncótica do plasma, resultante dahipoproteinemia, por si só, leva ao aparecimento deedema. Além disso, pode provocar contração do vo-lume intravascular, que pode acarretar redução dodébito cardíaco (redução da pré-carga) e conseqüen-te redução da perfusão renal. Esta, por sua vez, leva àativação do SRAA, reduzindo a excreção renal desódio. A queda da pressão arterial ou do volumeplasmático pode, ainda, estimular a liberação de hor-mônio antidiurético, que irá provocar retenção de águae hiponatremia. Nessas condições, haverá maior re-absorção de Na+ e de água pelos túbulos renais, comretenção de sódio e água. Quando houver maior ativi-dade antidiurética, poderá ocorrer retenção de água(livre de solutos), que promoverá diluição do extrace-lular, causando hiponatremia. Esse fluido retido repre-

Figura 7: Mecanismos formadores de edema na Síndrome Nefrótica.

senta um efeito diluidor das proteínas plasmáticas,agravando a redução da pressão oncótica do plasmae reciclando o estímulo à formação de edema.

Clinicamente, o edema renal caracteriza-se pelalocalização facial, particularmente com a presença deedema palpebral - é um edema matinal, que tende adissipar-se com o correr do dia - além do inchaço demembros inferiores, que (ao contrário) se exacerbacom o passar das horas, constituindo um edema ves-pertino. Pacientes nefróticos com albumina plasmáti-ca muito baixa podem apresentar edema generaliza-do, intenso e extenso (anasarca), inclusive com derra-mes cavitários (serosites: ascite, derrames pleural e/ou pericárdico).

4.2- Edema CardíacoFundamentalmente, o que leva à formação desse

edema é a queda do débito cardíaco, em conseqüênciada falência do miocárdio. Como resultado, eleva-se apressão venosa sistêmica ao mesmo tempo em que sereduz o volume arterial efetivo de sangue (VAES). Ovolume de sangue, que banha os átrios cardíacos, oventrículo esquerdo (VE), o arco aórtico, o seio caro-tídeo e a arteríola aferente renal, é crítico para o con-trole da volemia, pois esses são segmentos providosde receptores de volume e pressorreceptores que acu-sam um maior ou menor enchimento do lado arterialda circulação. Desse modo, fala-se em repleção vas-cular, overfilling, ou depleção vascular arterial,underfilling(6). Assim, neste texto, quando se fala em

redução do volume arte-rial efetivo de sangue(VAES), entende-se umenchimento deficiente doleito vascular arterial; ex-pansão do VAES corres-ponderá a um enchimen-to supérfluo do leito car-diovascular arterial.

A Figura 8 mostraque a queda do débito car-díaco (DC) na insuficiên-cia cardíaca congestiva(ICC) acarreta uma ele-vação da pressão venosasistêmica e distúrbio doequilíbrio das forças deStarling nos capilares pe-riféricos. Prevalecendo apressão hidráulica intra-

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Coelho, EB

vascular na extremidadevenosa do capilar, fica di-ficultado o retorno do lí-quido intersticial para ocapilar, e água acumula-se no interstício. Essa re-distribuição do fluido ex-tracelular concorre para aformação de edemas. Afigura mostra, ainda, queoutra conseqüência daqueda no DC é a diminui-ção do VAES, ou seja,ocorrerá um enchimentodeficiente do leito vascu-lar arterial, com sensibili-zação de volumerrecepto-res e/ou pressorreceptores(Figuras 2 e 8). Essas fi-guras, apesar de comple-xas no seu aspecto (devi-do ao caráter multifatorialda patofisiologia do edema), ajudam a entender a inter-relação existente entre os vários fatores envolvidosno mecanismo de formação dos edemas. A Figura 2mostra a importante participação do sistema reninan-giotensinaldosterona, levando à retenção renal de sódio.Além disso, a retenção de água, desacompanhada desoluto (água-livre) - por ação do HAD - pode levar àdiluição do sódio plasmático (hiponatremia).

Clinicamente, é um edema gravitário por ex-celência, por causa da pressão venosa elevada nasextremidades e, portanto, acentua-se com a ortostase,no correr do dia (edema vespertino). Apesar da patofi-siologia complexa, o reconhecimento da insuficiênciacardíaca é relativamente simples devido à pletora deachados físicos e a sua evolução clínica. Assim, emum paciente com edema generalizado, o diagnósticode insuficiência cardíaca é realizado na presença dehistória de dispnéia progressiva, que se inicia aos gran-des esforços e culmina com ortopnéia; a presença deepisódios de dispnéia paroxística noturna; as queixasde nictúria, hemoptise, tosse ou cianose; os antece-dentes pessoais de doenças cardíacas (Chagas, doen-ça isquêmica do miocárdio, miocardiopatias, hiperten-são arterial e febre reumática entre muitas outras) eaos achados do exame físico (taquicardia com ritmode galope, 3° bulha, desvio do ictus cordis, estase ju-gular, estertores pulmonares crepitantes, derramepleural e hepatomegalia).

4.3- Edema Cirrótico

Assim como comentado para a insuficiênciacardíaca congestiva, a cirrose hepática também seráacompanhada de uma série de achados clínicos quefacilitam seu diagnóstico diferencial (Tabela IV). Oprocesso cirrótico - resposta hepática a vários tiposde agressão que leva à fibrose e regeneração nodulardo fígado - afeta a função hepática em conseqüênciado que descrevemos a seguir:a) Alterações do funcionamento dos hepatócitos por

causa das lesões celulares (necrose, proliferação),comprometendo, assim, a síntese de albumina.

b) Destruição da arquitetura lobular, canalicular e vas-cular, levando a distorções estruturais, que dificul-tam o livre fluxo de sangue e linfa nos sinusóideshepáticos - resultado disto é o aumento da pressãono território venoso (portal) e linfático (intra-hepá-tico), que se conhece por hipertensão portal. Essadificuldade de trânsito venoso através do fígadofaz com que o sangue busque vias alternativas detráfego, forçando o aparecimento de circulaçãocolateral venosa, que promoverá um aumento dacapacitância (venosa) esplâncnica, acarretando�aprisionamento� de sangue no território mesenté-rico. Esse sangue, seqüestrado no leito venoso �am-pliado�, irá prejudicar o enchimento vascular arte-rial underfilling, causando redução do volume efe-

Figura 8: Mecanismos formadores de edema na Insuficiência Cardíaca Congestiva.

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Mecanismos de formação de edemas

tivo de sangue com todas as conseqüências mos-tradas na Figura 2. Além disso, como ilustra a Fi-gura 9, a hipoalbuminemia provocada pela defici-ente síntese de albumina reduz a pressão oncóticado plasma e concorre para a formação do edema.

c) Formação de shunts arteriovenosos. A insuficiên-cia hepática é acompanhada de um tônus vascular,deslocado para uma condição de relaxamento de-vido à redução do metabolismo de várias substân-cias vasodilatadoras e ao aumento da produção deóxido nítrico. Assim, com a redução da resistência

vascular periférica, há redução do VAES e ativa-ção dos mecanismos de controle de volume extra-celular (Figura 2) no sentido de retenção renal deágua e sódio. Nesse sentido, são sólidas as evidên-cias que mostram uma hiperatividade simpática e aativação do SRAA, com conseqüente hiperaldos-teronismo secundário, em pacientes cirróticos comascite(7).

A existência de hipertensão portal torna o terri-tório esplâncnico mais vulnerável na presença de hi-poalbuminemia, daí a ocorrência de transudação líqui-da para a cavidade peritonial, formando ascite commaior exuberância nos pacientes cirróticos - que é umadas características clínicas desse tipo de edema.

5- CONCLUSÕES

Essencialmente, a análise dos mecanismos for-madores de edema é um estudo da regulação dos vo-lumes líquidos do corpo e de seu controle pela excre-ção renal de Na+ (e água) (7). Assim, necessariamen-te, a patofisiologia dos edemas é complexa e multifa-torial, como já foi dito. É fundamental que o médicoconheça bem esses mecanismos para saber atuar ade-quadamente no tratamento dos vários tipos de edema,em que o único ponto comum é o uso de diuréticos (8).Fogem a essa regra duas doenças não abordadas nes-sa revisão, o hipotireoidismo e a desnutrição protéicaconhecida como Kuashiorkor. No hipotiroidismo há a

formação de um edema duro,denominado de mixedema, se-cundário as alterações das gli-cosaminaglicanas do compar-timento intersticial. Pacientescom hipotireoidismo, apresen-tam uma gama de sinais e sin-tomas sistêmicos, que possi-bilitam o diagnóstico diferen-cial. O tratamento, nesse caso,deverá ser feito com a repo-sição dos hormônios tireoidea-nos. A desnutrição protéicacausa edema por hipoalbumi-nemia e vem acompanhada deuma série de outros sinais esintomas, incluindo alteraçãoda coloração dos cabelos, défi-cit de crescimento e associa-ção com outras deficiênciasde vitaminas e oligoelementos

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Figura 9: Mecanismos formadores de edema na Cirrose Hepática

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Coelho, EB

com quadro clínico variável. O tratamento - uma nu-trição adequada � ultrapassa as barreiras da Medici-na e, infelizmente, parece ser de difícil resolução.

Se o estudo dos edemas constitui-se num exer-cício de fisiologia da excreção renal de Na+ e da regula-ção do volume dos líquidos do corpo, o estudo das de-

sidratações é também um exercício em fisiologia, ago-ra da regulação da concentração osmótica do extra-celular, com menor participação da regulação do volu-me. Desidratações e edemas estão entre as manifes-tações mais freqüentes dos desequilíbrios hidroeletro-líticos e são, portanto, de grande importância clínica.

COELHO EB. Mechanisms of edema formation. Medicina, Ribeirão Preto, 37: 189-198, july/dec. 2004.

ABSTRACT: Edema is defined as liquid accumulation in the interstitial space. In this review,the mechanisms of localized and generalized edema formation were discussed as well assemiologic aspects used in approach to its differential diagnosis. The pathophysiologicmechanisms of the cardiac, cirrhotic and renal (nephritic and nephrotic syndromes) edemaswere detailed highlighting the alterations of the mechanisms of control of the effective arterialvolume.

UNITERMS: Edema; physiopathology. Fibrosis. Nephritis. Syndrome. Nephrotic Syndrome.Heart Failure.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - STARLING, EH. Physiologic forces involved in the causationof dropsy. Lancet 1: 1267-1270, 1896.

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