Ed. 157 - Revista Caros Amigos

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Agrocombustível ano XIV número 157 abril 2010 R$ 9,90 Novo sítio: www.carosamigos.com.br URUGUAI Esquerda ou mais do mesmo? Juca Ferreira ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FABÍOLA MUNHOZ FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MARIA LUÍSA MENDONÇA MC LEONARDO OTÁVIO NAGOYA PATRÍCIA AGUSTI PEDRO ALEXANDRE SANCHES PEDRO RIBEIRO RENATO POMPEU Quem diria, já tem 13 anos no monopólio da terra Paulo Lins Samba, cinema e violência “A qualidade da TV brasileira é muito baixa” Ministro da Cultura André Dahmer Provocação em quadrinhos Reserva da Jureia Vítima da destruição consentida Caros Amigos ENTREVISTAS

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Capa Juca Ferreira

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Agrocombustível

ano XIV número 157 abril 2010R$ 9,90

ano XIV ano XIV ano número 157 número 157 número abril 2010abril 2010abrilR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

URUGUAI Esquerda ou mais do mesmo?

Juca Ferreira

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FABÍOLA MUNHOZ FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. JULIANA SADA LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MARIA LUÍSA MENDONÇA MC LEONARDO OTÁVIO NAGOYA PATRÍCIA AGUSTI PEDRO ALEXANDRE SANCHES PEDRO RIBEIRO RENATO POMPEU

Quem diria, já tem 13 anos

no monopólio da terra

Paulo LinsSamba, cinema e violência

“A qualidade da TV brasileira é muito baixa”

Ministro da Cultura

André DahmerProvocação em quadrinhos

Reserva da JureiaVítima da destruição consentidaQuem diria, já tem 13 anos

Caros Amigos

ENTREVISTAS

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veja para Onde Os recursOs fOram repassadOs.

nO anO em que O planO de desenvOlvimentO da educaçãO (pde) cOmpleta três anOs, Os investimentOs triplicaram.

· construção de creches;· compra de ônibus escolares;· reforma e modernização de escolas municipais e estaduais;· implementação do piso salarial do professor;· ampliação da rede federal de educação profissional;· modernização e equipamento das universidades federais;· e muitas outras ações.

a educaçãO brasileira nO caminhO da qualidade.

O plano de desenvolvimento da educação (pde) reúne as ações do governo federal que mudaram o retrato da educação brasileira. seu maior desafio é assegurar educação de qualidade para 60 milhões de crianças e jovens que frequentam nossas escolas e universidades.

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2010a melhoria da educação pública só se faz com o compromisso

e a participação de todos. acesse: www.mec.gov.br

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nO anO em que O planO de desenvOlvimentO da educaçãO (pde) cOmpleta três anOs, Os investimentOs triplicaram.

· construção de creches;· compra de ônibus escolares;· reforma e modernização de escolas municipais e estaduais;· implementação do piso salarial do professor;· ampliação da rede federal de educação profissional;· modernização e equipamento das universidades federais;· e muitas outras ações.

a educaçãO brasileira nO caminhO da qualidade.

O plano de desenvolvimento da educação (pde) reúne as ações do governo federal que mudaram o retrato da educação brasileira. seu maior desafio é assegurar educação de qualidade para 60 milhões de crianças e jovens que frequentam nossas escolas e universidades.

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5setembro 2009 caros amigos

CAROS AMIGOS ANO XIV 157 AbRIl 2010

EDITORA CASA AMARELA ­Revistas­•­LivRos­•­seRviços­editoRiaisfundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter Firmo REPÓRTEREs: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro) e anelise sanchez (Roma) sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves REvIsORa: Luiza Delamare DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann CIRCuLaÇÃO: Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Priscila nunes COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves LIvROs Casa aMaRELa: Clarice alvon síTIO: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau assEssORIa DE IMPREnsa: Kyra Piscitelli aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: antonio Carlos, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO

CaROs aMIGOs, ano XIv, nº 157, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP

sumárioFoto de capa Marcello casal Jr

04 Guto Lacaz.

06 Caros Leitores

07 José Arbex Jr. alerta a esquerda sobre os ataques preventivos da direita.

08 Joel Rufino dos Santos considera instrutivo remexer nos livros antigos.

Guilherme Scalzilli critica a hipocrisia legalista das patentes culturais.

09 Ferréz analisa com precisão a melhor idade para começar a trabalhar.

10 Glauco Mattoso Porca Miséria: uma análise erótica da prisão do governador.

Eduardo Matarazzo Suplicy defende greve de fome e liberdade em cuba.

11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: tributo ao partideiro Bezerra da silva.

12 entrevista com o ministro da cultura Juca Ferreira.

18 Frei Betto bate na ditadura do pensamento unipolar disseminado pela mídia.

Fidel Castro relata o seu último encontro com o presidente lula.

19 João Pedro Stedile fala das prioridades ambientais para cochabamba.

Gilberto Felisberto Vasconcellos apresenta as exigências para votar em Dilma.

20 Maria Luísa Mendonça mostra como está o monopólio da terra no Brasil.

24 entrevista com Paulo Lins: samba, cinema, literatura e violência no rJ.

29 Gershon Knispel aponta o que gera mais insegurança para o estado de Israel.

30 Pedro Ribeiro e Otávio Nagoya apresentam os quadrinhos de andré Dahmer.

33 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.

Ana Miranda apresenta em versos uma prece para ser feita antes do almoço.

34 Fabíola Munhoz mostra como e por que a reserva da Jureia está sendo destruída.

36 Renato Pompeu lembra os 13 anos da caros amigos na luta por informação.

38 Anelise Sanchez relata a experiência de cooperativas nas terras da máfia italiana.

40 Juliana Sada e Patrícia Agusti analisam o cenário do novo governo do Uruguai.

42 Emir Sader registra que o mundo mudou muito nesses 13 anos de caros amigos.

Cesar Cardoso lança a revista caras... amigas com projeto editorial inovador.

43 Marcos Bagno analisa a ideologia impregnada na maioria dos livros didáticos.

Mc Leonardo defende a arte como força transformadora de “pacificação”.

44 Renato Pompeu Ideias de Botequim: artes belas e judeus contra o sionismo.

45 Claudius.

A presente edição está bem servida de matérias sobre a cultura brasileira. Um prato especial para quem prefere leitura nesse cam-po da criação, da arte e da manifestação mais pura do povo. O mi-nistro da Cultura, Juca Ferreira, em entrevista exclusiva para Caros Amigos, apresenta um panorama das atividades de sua pasta, ana-lisa as políticas de incentivo e preservação das culturas regionais, fala da diversidade e defende igualdade de condições para a cultu-ra nacional nos principais veículos de comunicação social.

O escritor Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, fala sobre o cinema, a literatura e a violência no Rio de Janeiro. O cartunis-ta André Dahmer – referência na nova safra de quadrinistas que ampliam seu público a cada dia com conteúdo ácido, crítico e provocativo – revela o que pensa de sua arte na atual realida-de. Essas matérias tratam de questões diferentes, mas se colo-cam na mesma trincheira de afirmação da identidade nacional e da cultura brasileira.

Sobre outro tipo de cultura, a da cana-de-açúcar para a pro-dução de biocombustíveis, a reportagem de Maria Luísa Men-donça mostra o que está acontecendo no interior do Brasil com a chegada do capital estrangeiro nas usinas de etanol: mais concentração da terra e mais exploração do trabalho no cam-po. Além disso, há boas matérias sobre a contínua destruição ambiental da Jureia, uma das poucas reservas de mata atlân-tica ainda existentes; as cooperativas de jovens lavradores nas terras expropriadas da máfia italiana; as perspectivas do novo governo uruguaio, comandado pelo ex-Tupamaro José “Pepe” Mujica, e todo o time de articulistas e colunistas da revista.

Agora em abril a Caros Amigos completa 13 anos de vida. Para marcar a data, vai realizar, no dia 22, no auditório do Te-atro Aliança Francesa, em São Paulo, o seminário sobre o tema “Que desenvolvimento queremos para o Brasil”, que contará com a participação de Maria Victória Benevides, Sérgio Haddad, Ra-quel Rolnick, Márcio Pochmann e o ministro Sérgio Rezende.

Enfim, ao longo desses anos a revista procurou fazer um jorna-lismo de boa qualidade, com compromisso social, voltado para a construção de um Brasil mais justo, mais igualitário, mais sobera-no e mais democrático. Essa tem sido a nossa missão.

Brasil da cultura e da monocultura

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PIXAÇÃO E ARTEParabenizo Juliana Sada pela matéria de alta

qualidade “Pixação e Arte” (edição 155). Fiquei tentado a comentar o seguinte: os pixadores pau-listanos praticam sua ‘arte’ como forma de trans-gressão nos espaços públicos da cidade, inclusive, pixando a ‘arte’ dos grafiteiros. Porém, se sen-tem “seriamente agredidos e ofendidos” quando “apagam ou atropelam” suas obras, e se esquecem de reconhecer que isso também não deixa de ser mais uma manifestação de transgressão. Assim, novas transgressões podem vir na sequência em efeito dominó, tendendo ao infinito. Torço para que isso gere novas manifestações de arte de rua interessantes e nunca violência.André Góes.

ELEIÇÕES 2010Tatiana Merlino, gostaria de parabenizá-la

pela excelente matéria da Caros Amigos de feve-reiro (edição 155) sobre as eleições de 2010. Fi-cou claro que, apesar das muitas controvérsias e problemas dentro da esquerda brasileira, ain-da existe um único rumo a guiar a esquerda para as eleições 2010. Mesmo tendo uma esquerda ra-chada, os leitores puderam enxergar um parâme-tro. Só não entendi uma coisa: mesmo sabendo de toda a história envolvendo os partidos de es-querda: por que o PPS não foi ouvido!? Sou in-tegrante do PC do B, mas gostaria de saber qual é a visão de um partido de esquerda que fazia par-te da base do governo Lula e hoje apoia a direita e os seus ideais neoliberais (PPS). Mais uma vez, parabéns pelo belíssimo trabalho.Hayran Henrique

ANIVERSÁRIONa edição 153, gostei muito da matéria do

Marcelo Salles, “Do céu ao inferno”, assim como da entrevista com o ministro dos Direitos Huma-nos, Paulo Vannuchi. O cartum de Claudius, na última página, poderia muito bem ilustrar o tex-to do Salles e a entrevista do ministro também!

Até quando, na história deste país, teremos po-líticos covardes, medíocres e que sempre lavam as mãos (melhor dizendo: se omitem) quando o bicho realmente pega? Os políticos deste imen-so país tropical deveriam ler a Caros Amigos, há treze anos sem roer a corda, sem amarelar e sem se omitir! Vamos lá, caros/amigos/amigas! Dese-jo um ano muito bom para vocês! Estamos pron-tos para mais 13 anos de história!Antonio Marcio Melo da Silva

CAROS AMIGOSDesde janeiro estou comprando dois exempla-

res da revista Caros Amigos: uma para minha lei-tura e outra para doar à Biblioteca Popular de Casa Amarela (órgão Municipal). O fato é que a prefeitura (articulação de esquerda) só tem assi-natura das seguintes revistas: Veja, Istoé e Época, dando continuidade à política de alienação im-posta pelos ex-prefeitos de direita. Para amenizar a minha indignação, assim procedo. Givaldo Gualberto, Recife (PE)

FóRUM SOCIAL MUNDIALNão fosse a curtíssima coluna, embora não me-

nos lúcida, do articulista Emir Sader, o Fórum So-cial Mundial 2010 passaria despercebido por esta conceituada revista. Esperei com ansiedade pela cobertura, uma vez que já foram produzidas até edições especiais sobre o evento, e me senti tal como o Vitor Gianotti descreveu uma vez em um de seus cursos sobre a sua busca por notícias na revista Veja quando o Fórum realizava ainda as suas primeiras edições. Que aconteceu? “Um ou-tro mundo” não é mais necessário? Aqui na Bahia, apesar de todas as tentativas da “mídia gorda” de descaracterizá-lo, apequená-lo ou até mesmo no-meá-lo como “Fórum Chapa Branca”, realizamos importantes debates e ricos momentos de inter-câmbios. Sugiro inclusive a realização de uma re-portagem para mostrar um outro lado da cultu-ra baiana, que não é apenas carnaval, e suas “365

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igrejas”, como divulga a propaganda oficial para turista ver. Uma outra cultura é possível, urgente e necessária. E ela se constrói aqui na Bahia.Adriano Pereira.

IMPRENSA BRASILEIRASou assinante e leitor compulsivo de Caros

Amigos e sempre o faço com raro prazer. Acabo de ler na edição 156 de março a excelente matéria do jornalista Emir Sader “A crise da imprensa é ética”. Realmente, como diria o presidente Lula, o signa-tário matou a cobra e a exibiu. A nossa imprensa (jornalões e revistonas) vem perdendo público por-que vendeu sua independência a interesses outros que não os de seus leitores. E pior: jornais e revis-tas são atualmente movidos a ódio e preconceito. O que comanda os nossos jornais, revistas e jorna-listas, repito, é o ódio e o preconceito. E esses ja-mais funcionam como bons conselheiros. Elisabeto Ribeiro Gonçalves, Belo Horizonte(MG).

Morre István Jancsó (1938 – 2010)

O Brasil perde um de seus grandes intelectuais e historiadores com a morte do professor István Janc-só, no dia 23 de março, aos 71 anos, em decorrên-cia de uma complicação renal. Nascido na Bahia, de pai húngaro, apaixonado pelo Brasil e pesquisador da formação do estado e da nação brasileiros, era professor titular do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e foi um dos arquitetos e coordenador--geral do Projeto Brasiliana – que inclui a digitali-zação dos 40 mil volumes que integravam a coleção de José Mindlin (morto em 28 de fevereiro).

Militante na luta contra a ditadura, defensor até o último segundo da liberdade e dos direitos humanos, conhecido por sua postura íntegra em defesa das reivindicações da comunidade uspia-na, István coordenou a coleção Rebeldes Brasilei-ros da Casa Amarela. Leva a nossa gratidão, dei-xa saudades e um lugar vazio.Redação da Caros Amigos

redação

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José Arbex Jr.

Existem centenas de prisioneiros políti-cos em Cuba. Eles são torturados, humilhados, des-truídos como seres humanos. E ainda pior: muitos nem sabem por que estão presos. A localização do presídio é bem conhecida, mas são proibidas – ou restritas e vigiadas ao máximo – as visitas ao local de organizações que defendem os direitos huma-nos. Os prisioneiros não podem se comunicar com o mundo exterior, não têm acesso à internet nem a telefones celulares. Não sabem por quanto tempo ainda ficarão detidos nem mesmo se e quando serão levados a julgamento. Em resumo: eles apenas vege-tam na prisão. Vagam como fantasmas, num espa-ço cercado por arames farpados, câmeras de vigilân-cia e soldados fortemente armados. E o mais incrível vem agora: o maior responsável por essa situação foi contemplado, em 2009, com o Prêmio Nobel da Paz. Seu nome: Barack Obama, presidente dos Esta-dos Unidos; a prisão fica em Guantánamo, base mi-litar estadunidense na ilha.

É verdade que, de vez em quando, a situação dos presos de Guantánamo é objeto de alguma reporta-gem na mídia dos patrões. Mas nada que se possa comparar, sequer remotamente, ao tremendo baru-lho provocado pela morte do cubano Orlando Zapa-ta, em 23 de fevereiro, por greve de fome. Aparente-mente Zapata participava de um grupo de oposição ao regime castrista, embora, segundo o governo de Havana, se tratava de um prisioneiro comum. No Brasil, o assunto virou eixo de campanha da mídia. Se um marciano pousasse aqui no mês de março e se informasse sobre os fatos do mundo pelo Jornal Nacional e outros veículos semelhantes, teria a im-pressão de que não apenas os direitos humanos são levados muito a sério em nosso país, como, em con-trapartida, o regime cubano é uma ditadura sangui-nária. Mas o nosso ET pouco ou nada saberia, é cla-ro, sobre Guantánamo.

Não se trata, obviamente, de fechar os olhos para o fato de que um prisioneiro – não importa se “co-mum” ou “político” – morreu por greve de fome: o caso é grave, e deve mesmo ser esclarecido. O preocupante é a agressividade hipócrita e asquerosa da direita que

só é comparável ao silêncio envergonhado da esquer-da, especialmente no Brasil, que, com raras exceções, preferiu se calar ou colocar-se na defensiva.

Em todo o mundo, a direita ergueu um brado in-dignado contra o regime cubano. Em 11 de março, o Parlamento Europeu aprovou, em tempo recorde, uma resolução que, literalmente, encosta Havana na parede. Curiosamente, o mesmo parlamento nada fez de concreto quando se comprovaram as denún-cias de que a CIA (serviço secreto dos Estados Uni-dos) utilizou, inúmera vezes, o espaço aéreo europeu para transportar ilegalmente presos políticos acusa-dos de “terrorismo”. Tampouco o Parlamento Euro-peu adotou qualquer medida contra detenções arbi-trárias e racistas de imigrantes, ou mesmo contra a legalização de tropas fascistas que se especializam em “caçar” estrangeiros clandestinos, como já acon-tece na Itália de Berlusconi.

Os mesmos “defensores dos direitos huma-nos” que bradam contra Cuba pouco ou nada disse-ram sobre o fato de que, em total contradição com tudo o que disse e prometeu durante a campanha, Ba-rack Obama não apenas mantém a prisão de Guantá-namo em funcionamento, como admite mudar as leis dos Estados Unidos para legalizar as detenções ile-gais. Exagero? De jeito nenhum. Ao discursar, no dia 21 de maio de 2009, diante do prédio em Washing-ton que abriga os documentos originais da constitui-ção dos Estados Unidos, Obama declarou:

“Finalmente, resta a questão dos detidos em Guan-tánamo que não podem ser processados, mas que co-locam um claro risco ao povo americano.(...) É possí-vel que haja vários que não podem ser processados por crimes cometidos no passado, mas que ainda assim re-presentam uma ameaça à segurança dos Estados Uni-dos. Exemplos incluem pessoas que receberam treino extensivo com explosivos em campos da Al Qaeda, co-mandaram tropas do Talibã em batalhas, expressaram seu apoio a Osama Bin Laden, ou, por qualquer outro meio, expressaram o seu desejo de matar americanos. Essas pessoas, de fato, estão em guerra com os Estados Unidos. Como eu disse, não vou libertar esses indivídu-os que colocam em risco o povo americano.”

Obama reproduz, aqui, um conceito fundamental da “doutrina Bush”, e que, de fato, é a “doutrina Hitler”: a ideia de “guerra preventiva”, em que alguém que declara sua mera intenção de ata-car os Estados Unidos é igualado a alguém que re-cebeu treinos em algum campo, que é por sua vez igualado a alguém que de fato praticou um ataque. Isto é, qualquer um pode ser detido como “suspei-to”. É fácil imaginar o barulho que a mídia faria se o autor do discurso fosse Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales ou qualquer outro “maldito”.

No caso brasileiro, a situação é ainda mais grave pelo fato óbvio de que a campanha contra Cuba se inscreve no quadro mais amplo da ofensiva da di-reita contra a candidatura de Dilma Rousseff, des-crita como “terrorista” pela Folha de S. Paulo e afins. A já famosa reunião promovida pelo Instituto Mil-lenium, os ataques furibundos de militares, latifun-diários, bispos e outros assemelhados ao Plano Na-cional dos Direitos Humanos – 3 (que impuseram recuos e mais recuos ao governo Lula) e a CPMI con-tra o MST e a reforma agrária não deixam margem a dúvidas. Há uma articulação da direita, e a men-sagem é clara: não vamos tolerar o avanço dos mo-vimentos sociais no Brasil.

A direita assume a ofensiva, não tanto por temer que Dilma, se eleita, mude substancial-mente a política econômica. O problema é outro: a direita prepara as condições para preservar o con-trole da situação política e social do país após a sa-ída do grande bombeiro Luiz Inácio Lula da Silva, o único com autoridade e carisma suficiente para “acalmar” as bases sindicais, sociais e partidárias da esquerda. Dilma não tem cacife para isso, e muito menos seu principal adversário, José Serra. A direita já sente o cheiro dos incêndios no ar (basta contar o número de greves e manifestações nos últimos seis meses, em todo o país, incluindo algumas das prin-cipais categorias de trabalhadores).

Mas a esquerda ainda dorme em ber-ço esplêndido.

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José Arbex Jr. é jornalista.

Cuba e a esquerda

brasileira

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caros amigos abri l 20108

Guilherme Scalzilli

Um dos males do Brasil é a exploração im-piedosa do trabalho pelo grande capital. Um dos males do mundo é a exploração das na-ções pelo capital financeiro, apátrida. O futuro do Brasil virá da integração trabalho/capital, economia/cultura. Aqui, os partidos políticos nunca representaram a sociedade.

Esse diagnóstico, que muitos de nós assina-ríamos, foi feito há 80 anos. Sabe o leitor de quem é? De Plínio Salgado, fundador do Inte-gralismo. O Integralismo, como sabemos, é da família do nazismo, do fascismo, do franquis-mo, do salazarismo. Tenebrosa família.

Plínio, que tinha talento literário, publi-cou três romances interessantes, O estrangei-ro (1926), O esperado (1931) e O cavaleiro de Itararé (1933). Se o leitor não usa o critério “não li e não gostei”, os dois primeiros lhe tra-riam prazer. São, nas palavras do próprio Plí-nio, crônicas da vida brasileira contemporâ-nea. De fato, a revolução brasileira dos anos 1930 – o nascimento da metrópole, da classe operária e da classe média, a industrialização, o estado nacional, o conflito da terra, os dile-mas étnicos – estão refratados ali. Refratados, não retratados. Não são mera ilustração da-queles fatos sociais, caso em que não seriam boa literatura, mas fatos imateriais eles mes-mos. Na ótica, é claro, de um conservador ini-migo, ao mesmo tempo, do liberalismo e do comunismo.

O personagem central de O estrangeiro é o emigrante russo Ivan, que ascende do campo para cidade, se torna grande industrial e no fi-nal se mata. “Este país nasceu velho como a nossa Rússia; e tudo quanto aqui fizerem não será mais que acelerar a construção de novas barreiras e novos impossíveis”, sentencia an-tes de fechar os olhos. O alter ego de Plínio é o mestre-escola Juvêncio, que costuma recitar os versos do hino fascista: “Giovinezza, Gio-vinezza, primavera di belleza!”. Para ele, a pá-tria “é um misterioso idioma que se conversa com a terra e com as estrelas”.

O tema de O esperado é mais político, o cli-ma, mais tenso. Alguns capítulos foram escri-tos numa viagem de Plínio à Europa, após a revolução que pusera Vargas no poder. Ressal-ta a crítica radical à República Velha, a mes-ma que lhe faziam os comunistas. A trama gira em torno de um projeto de lei que daria a um truste inglês o controle da nossa exportação

de café. Um senador ao estilo Sarney, Avelino Prazeres, é o dono da máquina. Avelino repe-te que qualquer ação “se pode enquadrar den-tro dos bons princípios democráticos”. A ne-gociata encontra resistência de trabalhadores, intelectuais e estudantes organizados, enquan-to governo e oposição se aliam num consen-so de classe. “Todo o empenho de Becca [líder da oposição] consistia em provar que Aveli-no não praticava os princípios republicanos. E Avelino fazia soar as tubas de sua eloquên-cia para demonstrar que o dr. Becca punha em perigo o regime.”

Como solução para tantas mazelas – im-perialismo, oligarquias, corrupção, alienação, mediocridade, angústias, pessimismo – o ro-mance anuncia o Esperado: “E até que chegue o Desejado, serão multiplicadas as angústias, e a Pátria terá, como nos dolorosos ritos, o seu Ofício de Trevas”!

Instrutivo este hobby de remexer livros antigos.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Um país de corsários

Joel Rufino é historiador e escritor.

O termo genérico “pirataria” envolve um leque imenso de atividades. A repressão pa-liativa de suas manifestações isoladas dissimula a força e a abrangência do fenômeno. Mas é ab-surdo assemelhar o comércio ilegal de bens cul-turais ao de quaisquer outros produtos gerados por contrabando ou falsificação. Reproduzindo as engrenagens do tráfico, chega-se ao cúmulo de criminalizar a busca por informação, margi-nalizando seu “usuário”. E, também nesse caso, criando instrumentos segregacionistas: a defe-sa do copyright equivale à tentativa de preser-var desigualdades.

Mas todas as classes sociais se locupletam co-tidianamente da informalidade, sob tolerância ge-neralizada. Comércio, indústria e residências estão repletos de computadores e outros equipamentos irregulares. Jogos, músicas e filmes clandestinos entretêm milhões de famílias por todo o país, sem contar o furto de sinais da TV a cabo. A cópia inte-gral de livros impede o colapso do ensino universi-tário, em especial nas instituições públicas, cujas bibliotecas possuem acervos ridículos.

O camelô virou bode expiatório do fa-risaísmo pequeno-burguês. Os preços irrisórios cobrados pela pirataria não justificam os custos exorbitantes do mercado regular, antes iluminam sua face gananciosa e excludente. Produtos cul-turais de grande circulação independem do vare-jo, pois se viabilizam previamente com publicida-de, renúncia fiscal e eventos associados. Autores recebem migalhas, enquanto os lucros enrique-cem uma rede de intermediários ociosos e insen-síveis à produção artística.

A hipocrisia legalista faz parte de uma estratégia para impedir a disseminação da cultura regular, oficial, legítima. O exclusivismo cria nichos, eleva preços, alimenta ilusões de su-perioridade. Mas a vitória inevitável da pirataria revelará que é impossível barrar a demanda po-pular pelo conhecimento.

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Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

- Vai comprar mistura. - Tô indo, mas antes vou passar no bar para

falar com o Marcão.- Vai, mas só 10 minutinhos, esse negócio de bo-

teco num é bom, não.- E aí, comprou a mistura?- Comprei, sim, mas que cabeça a mi-

nha... esqueci meu isqueiro lá no bar, vou lá bus-car e já volto.

Trinta e cinco anos, dia e noite trabalhando, al-moçando no intervalo, tomando café no início, uma cerveja toda sexta. Domingo, futebol com o time da empresa.

Quando chega o dia de receber a aposentado-ria, parece que foi libertado de uma prisão, mas não quer sair.

Tudo se aprende quando se está sozi-nho, enquanto eles não encontram saída para algo que nem sabe como entraram.

Agora tem tempo livre, pode acordar a qualquer hora, dormir mais tarde, viajar, assistir a um teatro, caminhar no parque Ibirapuera, mas não ensinaram ele a viver assim.

- Vida de marajá hein?Vida de marajá... pegando fila no INSS,

sendo olhado com nojo quando pega fila preferen-cial no banco, sendo humilhado quando entra no ônibus, chamado de lerdo quando anda na calçada, visto com descaso quando chega na farmácia, pare-ce que tá pedindo esmola o tempo todo.

Então levanta no mesmo horário, fica na porta das casas, espera o resto da população acordar.

As mulheres levam as crianças para a es-cola, a padaria abriu.

Um jovem caminha e compra pães, o filho tem que comer quando acordar, e ele fica na calçada vendo tudo isso.

Melhor idade para voltar a trabalhar

Procura se sentir mais útil. Arruma chuveiro, torneira pingando, dá palpite na marcação da avenida, chama a atenção das crianças correndo no meio da rua, reclama que brincar de polícia e la-drão não é certo, reza para alguém parar e pergun-tar algo, mas as pessoas o evitam.

Fica mais invisível a cada ano, cada vez mais velho, parece que ficou doente.

Esses dias ficou nervoso, o sr. Antônio arrumou uma carroça para pegar papelão, chamou ele pra ir junto.

- Trabalhei a vida toda pra ir pegar papelão, tá de brincadeira comigo? Num sô muleque, não.

Tido como inválido, não serve mais para tra-balhar, parece que lhe arrancaram algo, e a pia-da o faz chorar.

- Eta vida boa, queria ter uma vida assim!- Pega isso, vai comprar cigarro pra mim. Era moleque, cresceu, trabalhou muito, se apo-

sentou, virou moleque de novo.Quando para alguém para falar, é sobre do-

ença. – Tá me doendo desde ontem essa per-na aqui ó!

- Eu tô com tudo que é com ite, dias que sofro com sinusite, ontem começou uma amidalite.

- Vá tomar um chá de boldo, é tiro e queda.- Boldo serve pra isso também?- Pra que comprá remédio, se num arruma nada?

Eu tô tomando chá de quebra-pedra, tô com uma dor no rim que é triste.

Ele sai, olha para ela do outro lado da rua, vê que também está só, mas, como todo homem aqui, não tem coragem de pegar na sua mão, de olhar no seu olho, de dizer que ama ser casado com ela.

Ela por sua vez só sai da casa para ir à feira, à televisão é a melhor companheira, ninguém fala com ela, passou muito tempo, aprendeu muito e hoje só vê a rua pela janela.

Tem até uma horta, planta esperança para co-lher um pouco de sorriso no futuro. Mas a maioria não tem o que fazer, não joga futebol de domingo no time dos veteranos, não fica no bar. Dona do lar não combina com isso, não joga sinuca, não fica em rodinha de baralho, fica em casa esperando o tem-po da vida passar.

O bar prepara tudo para ele não sair mais de dentro. Tem desde linguiça até vassoura.

O filho vem correndo, pede, ele dá. Se precisa comprar mistura, lá tem ovos para o

almoço, frango para o jantar, doces para o neto, tem banheiro para usar, o bar fica sendo a sala dele, só que fora de casa.

Ela fica esperando ele voltar, desde que ele se aposentou, passa o mesmo tempo que passa-va na empresa dentro do bar.

Como aprender a viver sem o serviço? Sem o em-prego?

Se a aposentadoria não for descontada de em-préstimos, netos e filhos que acabam vivendo à cus-ta desse salário, mesmo assim seria pouco dinhei-ro.

A pessoa de idade como ele acaba ten-do que trabalhar fora para ganhar outro dinheiro, já que o da aposentadoria está condenado.

Naquela segunda-feira ele decide mudar tudo, toma o café quente numa golada só, arruma o cola-rinho da camiseta, pega sua sacola cheia, se despe-de da mulher e dá inicio a outra vida.

Teria que ser menos apertada, menos cheia de horários, compromissos, humilha-ções, mas é onde na verdade para ele uma jornada nova começa, vai começar tudo de novo vendendo bala no farol.

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Dez annos atraz, fiz varios sonetos nos quaes o personagem que falla na primeira pessoa (aquelle que uns theoricos da littera-tura chamam de “voz poetica”, outros de “eu lyrico”) celebrava a morte de cada politico que apparecesse no noticiario. Hoje, porem, ja não sou tão punk nem tão nefasto. Quan-do fiquei sabendo do passamento de Sergio Naya, Celso Pitta, Armando Falcão ou Erasmo Dias, minha reacção não foi aquella do torce-dor que solta rojões quando sae o gol do seu proprio time. Agora, fosse o Malvadeza, fos-se o Engenheiro o fallecido, eu não me com-moveria em nenhum sentido, para a commi-seração nem para a commemoração. Minha attitude deante da chronica politica, ultima-mente, tem sido a mesma do torcedor quando o rival soffre um gol: sempre grito “Chupa!” si um politico cae do palanque ou nas pes-quisas, si vae parar no hospital ou na cadeia. Desde que soffra, o melhor é que continue vivo. Mesmo quando morre agonizando len-tamente, como o dictador Franco, ou numa

execução summaria, como Saddam, não tem a mesma graça que estar vivo e sendo desmora-lizado. Pena que, no Brasil, a torta na cara não seja uma practica mais frequente. Parece que o grupo Confeiteiros sem Fronteiras não vin-gou, nem nos vingou. Pessoalmente, eu (que sou, como poeta, uma especie de carnavales-co litterario) preferiria, é claro, cada politico repudiado sem guilhotina nem paredão, ape-nas malhado em effigie, encarnado num bo-neco do sabbado de Halleluia, mas, em com-pensação, teria que haver malhação do Judas todo sabbado, e não apenas na Semana Sanc-ta, para que todos os politicos mais antipathi-cos tivessem, sendo festivamente lynchados, opportunidade de nos agradar ao menos uma vez na vida... alem da derrota nas urnas e nos tribunaes, bem entendido.

porca miséria!Glauco Mattoso

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

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Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Ouvindo que, hoje, até governadorvae preso no exercicio do mandatoe passa o carnaval sem ter contactocom rabulas, eu acho animador!

Mais fico estimulado quando forouvir que inda está preso. Então desatoa rir, abro a braguilha e, erecto,batto punheta, em logar delle a me suppor...

Me vejo agora, longe do confortodo chique gabinete, numa cellaminuscula, às escuras, triste e absorpto.

Sou quem, de novo, aqui se refestelana bronha: um eleitor que, quasi mortode gozo, esporra delle na goela.

Justiça e liberdade em Cuba

Phantasia masturbatoria [soneto 3151] Em 1998, em visita a Cuba, o Papa João Pau-

lo II falou para multidões o quão importante seria o fim do bloqueio dos EUA ao país como forma de acabar com qualquer cerceamento de vínculos com outros povos; bem como da importância de Cuba propiciar maior liber-dade, inclusive religiosa, e pluralismo ao seu povo.

Justamente por ser tão amigo de Raúl e Fidel Cas-tro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em con-dições excepcionais para transmitir com franqueza o quão bom será para Cuba ampliar as liberdades e inclu-sive não ter mais prisioneiros de consciência. É natu-ral que o presidente recomende para não se fazer greve de fome, mas cabe lembrar que ele próprio tantas ve-zes demonstrou respeito por algumas pessoas que, na história da humanidade, dela se utilizaram como for-ma de alcançar objetivos importantes.

Mahatma Gandhi foi o grande propugna-dor de que as transformações na sociedade devem ser realizadas de forma pacífica, por ações assertivas, como as marchas, por vezes, a desobediência civil e até a greve de fome que contribuiu para que alcan-çasse a independência da Índia. Em 1981, o líder do Exército Republicano Irlandês -, Bobby Sands, como-veu o mundo ao morrer após 66 dias de greve de fome para que se reconhecesse a sua condição de preso po-lítico. Inspirado nele, Nelson Mandela fez greve de fome por seis dias até que as autoridades da África do Sul permitissem que o seu filho de três anos pu-desse visitá-lo na prisão. O presidente da Bolívia, Evo Morales, em 2009, fez greve de fome por cinco dias até que o Congresso Nacional resolvesse votar emen-da à Constituição que permitisse inúmeros avanços sociais e o direito à sua reeleição. No tempo do regi-me militar, no Brasil, foram muitos os hoje membros do PT, inclusive o presidente Lula, que, em ocasiões, recorreram à greve de fome para verem seus direitos assegurados.

Por isso, será bom que o presidente Lula diga aos cubanos: “Ah! Como será bom se também em Cuba não houver mais prisioneiros de consciência, prisionei-ros de natureza política. Vamos abrir as fronteiras, va-mos colaborar para que logo o presidente Barack Oba-ma acabe com o bloqueio a Cuba, de forma a permitir o comércio com os EUA e que americanos possam ir e sair de Cuba a qualquer hora, bem como os cubanos possam visitar quaisquer países das Américas”.

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Nasceu em Recife, Pernambuco. Aos 15 anos fugiu para o Rio de Janeiro, clandes-tino num navio, e foi morar no morro do Can-tagalo. Aprendeu, desde então, que a favela é um problema social. Trabalhou como ajudan-te de pedreiro e pintor. A favela nunca foi re-duto de marginais.

Em Recife, tocava zabumba e cantava coco. No Rio, encontrou-se no samba. Tocou pistom e percussão, trabalhou por oito anos na orques-tra da Rede Globo. De 1975 em diante, ganhou existência artística sob a alcunha de Bezerra da Silva, primeiro como “o rei do coco”, em segui-da como sambista, partideiro, bamba do parti-do alto. Ganhou adesão, fama e dinheiro inter-pretando os sentimentos e aflições de milhões de cidadãos iguais a ele.

Alguém – de cor de pele bem diferen-te da dele, provavelmente –apelidou o estilo que praticava de “sambandido”. As coisas não eram exatamente assim, mas foi assim que fi-cou rotulado. Embora tenha sido um eterno operário – na construção civil, na Rede Globo ou na indústria fonográfica multinacional –, a identidade de “malandro” foi a que se colou em Bezerra para sempre, até a morte em 2005, aos quase 78 anos.

O documentário Bezerra da Silva – Onde a Coruja Dorme, de Márcia Derraik e Simplício Neto, vem à tona neste 2010 com o propósito sutil de recolocar algumas coisas em seus devi-dos lugares. Bezerra é menos protagonista que chamariz – na verdade não é sobre ele o filme, e sim sobre o círculo de compositores que o nu-triram em três décadas de gravação de discos. Concede microfone irrestrito a eles, e essa é a delícia. “Os autores do morro dizem cantando aquilo que queriam dizer falando. E eu sou o porta-voz”, assinala Bezerra logo na primeira cena. E, a partir daí, o filme vai descortinando aos poucos o sólido alicerce e o extraordinário imaginário que produziu Bezerra da Silva.

Exemplos? Pedro Butina é coautor de sambas como “Candidato Caô Caô” (1988), de crítica ao oportunismo de políticos que só so-bem o moro em tempo de eleição, “O Bom Pas-tor” (1989), sobre um mercenário travestido de

religioso, e “Aqueles Morros” (1982), “Saudação às Favelas” (1985) e “As Favelas Que Não Exaltei” (1987), todas dedicadas a celebrar o habitat de Be-zerra e seus compositores. Pedro Butina é bombei-ro, com larga experiência em ARC, Autorremoção de Cadáver, atividade que “desprende muito oxigê-nio do homem”, segundo ele. “Já delirei de terror, mas aprendi a conviver com ele”, completa.

Cláudio Inspiração assina sucessos be-zerreanos como “Maloca o Flagrante” (1986), “Transação de Malandro” (1988), “Ele Cague-ta com o Dedão do Pé” (1996). Apesar de versar sobre malandragem, caguetagem, violência e re-pressão policial, Cláudio Inspiração é trabalha-dor: nas “horas vagas” entre um samba e outro, dá duro numa bicicleta, como carteiro.

A marca do espirituoso Tião Miranda está im-pressa no primeiro sucesso arrasa-quarteirão de Bezerra, a satírica “Minha Sogra Parece Sapatão” (1983), e em “Língua de Tamanduá” (1986), outro samba sobre a difícil posição intermediária de um cidadão comum espremido entre os estereótipos de “polícia” e “bandido”. Tião Miranda trabalha numa oficina de instalação e conserto de refrigeradores.

Wilsinho Saravá participa de composições humoradas, como “Garrafada do Norte” (1992), so-bre uma certa “erva proibida”, e a autoexplicativa “Fofoqueiro É a Imagem do Cão” (1987). Wilsinho Saravá é pai de santo – a propósito, Bezerra sem-pre foi afeito aos temas da macumba, mas termi-nou a vida convertido à Igreja Universal do Reino de Deus e lançando um CD de sambagospel.

“Malandragem Dá um Tempo” (1986) é, talvez, a canção de Bezerra que mais possui conhecedores e admiradores fora das favelas e da Baixada Flumi-nense. “Vou apertar, mas não vou acender agora/ se segura, malandro, pra fazer a cabeça tem hora”, diz a letra que bole no flerte entre asfalto e morro, entre favelados que vendem drogas e playboys que as compram. Um dos autores, Adelzonilton, apa-rece no documentário com uma pá de pedreiro na mão. Outro, não creditado no samba nem no filme, é camelô, foi flagrado pela câmera na rua, venden-do discos de vinil de Olodum, Agepê, Agnaldo Ti-móteo, Roberto Carlos, Fagner e Egberto Gismonti. Outros dois são “malucos aposentados”, nas pala-vras de Bezerra: Popular P e Moacyr Bombeiro.

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Bezerra da Silva,o partideiro indigestO

Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

Em “Desabafo de Juarez da Boca do Mato” (1996), Bezerra cutuca a “elite selvagem marginal” que possivelmente se identificou com “Malandragem Dá um Tempo”: “Seu doutor só combate o morro/ não combate o asfalto tam-bém/ como transportar escopeta, fuzil, AR-15?, o morro não tem/ navio não sobe morro, doutor/ aeroporto no morro não tem”. “Vítimas da Socie-dade”, de 1985, já fora direto ao ponto: “Se há um assalto a banco/ como não podem prender o poderoso-chefão/ aí os jornais vêm logo dizendo/ que aqui no morro só mora ladrão/ se vocês es-tão a fim de prender o ladrão/ podem voltar pelo mesmo caminho/ o ladrão está escondido lá em-baixo/ atrás da gravata e do colarinho”.

O conflito ali estacionado foi sempre a ques-tão de honra, crucial para Bezerra da Silva. Por-ta-voz e porta-bandeira de um microcosmo que o senso comum preconceituoso e autocondescen-dente associa somente a tráfico e violência, ele teve de amargar o tal rótulo de “sambandido”. Longe disso, os que desfilam pelo filme são com-positores anônimos, às vezes não nomeados, que são também pedreiros, carpinteiros, encanadores, lixeiros, camelôs, feirantes.

Em seus depoimentos, Bezerra adota tom sarcástico contra gente de gravadoras e dos meios de comunicação. De fato, a mídia branca sempre se relacionou de modo, digamos, esquisi-to com sua obra – jornalista musical há 16 anos, sou prova disso: nunca havia escrito a sério sobre Bezerra até conhecer Onde a Coruja Dorme. Hoje eu apostaria que, por trás de espessa cortina de fumaça (e de exceções do tipo “vou apertar, mas não vou acender agora”), o que afastou Bezerra da sociedade que não suporta olhar suas favelas de frente foram títulos como “Legítima Defesa” (1984), “Vida de Operário e Violência Gera Vio-lência” (1988), “Negro de Verdade” (1996), “Par-tideiro Indigesto” e “Preconceito de Cor” (1987). Como já dizia a letra do clássico “Eu Sou Fave-la” (1992), “sim, mas a favela nunca foi reduto de marginal/ ela só tem gente humilde, margina-lizada/ e essa verdade não sai no jornal/ a fave-la é um problema social”.

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ex-presidente da União Brasileira de Es-tudantes Secundaristas, ex-militante do MR-8 no tempo da luta armada contra a

ditadura militar, o atual ministro da Cultura, João Luiz Silva Ferreira, mais conhecido como Juca Fer-reira, baiano de Salvador, chegou ao ministério pelas mãos de seu amigo Gilberto Gil. Assumiu o cargo com a saída do ex-ministro e tem dado con-tinuidade ao trabalho de valorizar as manifestações culturais criadas pela comunidade, respeitando a diversidade dos mais diferentes pontos do territó-rio nacional. Os Pontos de Cultura cadastrados pelo ministério animam cerca de quatro mil grupos de produção cultural. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, Juca Ferreira fala da atuação do mi-nistério, das atividades culturais e dos meios de co-municação. Ele considera a televisão um “meio in-crível”, e admite que “a qualidade da TV brasileira é muito baixa”.

Caros Amigos - Fale sobre a sua trajetória de vida e política. Como foi a chegada até o ministério da Cultura?Juca Ferreira - Sou filho de uma família de clas-se media baiana. Meu pai era engenheiro construtor de estradas e minha mãe professora. A gente acom-panhava meu pai, e ia morando onde a estrada ia abrindo e a estrada ia atrás. A partir de uma cer-ta idade a gente era internado. Morei no interior da Bahia, do Sergipe, de Alagoas, Espírito Santo e de-pois fui interno no Rio de Janeiro. Estudei dos oito aos dez anos no Rio de Janeiro.

Por que interno?Porque minha família estava no interior cons-

truindo estrada e minha mãe era professora. Éramos cinco e todos passaram pela experiência do interna-to. Aí, depois como a perspectiva era sempre voltar para Salvador, voltei para lá, fiz exame de admis-são para o colégio militar, estudei sete anos no co-légio militar. Fiz curso de formação de reservista e fui para o colégio central público para fazer políti-ca estudar para arquitetura. Em 67, estava no movi-mento estudantil, quando houve as grandes movi-mentações estudantis secundaristas na Bahia. Eram manifestações de manhã, de tarde e de noite, e eu acabei virando líder estudantil. Em 68, ao invés de

entrevista MINISTRO JUCA FERREIRA

eu ir fazer vestibular eu fui para a escola técnica, liderei uma greve, abri o grêmio, e no dia do Ato 5 eu fui eleito presidente da União Brasileira dos Es-tudantes Secundaristas.

O senhor fazia política estudantil já no movimento secundarista?

Sim, em 68 eu tinha 18 anos.

E qual a sua formação superior?No dia do Ato 5, além de eu ser eleito presiden-

te da União Brasileira dos Estudantes Secundaris-tas, eu fui expulso da escola técnica. Aí eu fiz ves-tibular e passei para História, estudei dois anos, na Universidade Federal da Bahia. E aí eu já estava or-ganizado na resistência clandestina.

O senhor participava de qual organização?No final de 67 eu entrei para o Partido Comunis-

ta, em 68 eu saí com a Dissidência da Bahia e depois juntamos com o Rio de Janeiro e virou o MR-8.

O senhor participou da luta armada ou ficou só na resistência?

Eu participei depois. Fui preso, fiquei três meses e meio preso, fui solto e eles queriam me pegar de novo. Fui para o Rio, onde já estava mais barra pe-sada, com aqueles cartazes todos de ‘procura-se’ e depois em 71 eu fui para o exílio.

O senhor foi torturado?A rigor fui torturado, mas diante das torturas não

fui. Tomei umas ‘cachações’, fiquei dois dias sem comer, soltaram um cachorro na minha cela....

Foi para o pau de arara?Não, eles estavam atrás de uma outra turma.

Além do mais, o cara que comandava a tortura na Bahia tinha sido professor no colégio militar, e acho que isso ajudou a livrar a barra. Ele não era o tortu-rador, era o que dirigia a repressão. A primeira ação política que eu fiz foi em 64, quando queimaram uma porção de livros. E aí a gente criou um grupo

“A qualidade da TV

Juca Ferreira avalia a experiência dos Pontos de Cultura, principal iniciativa do ministério da Cultura.

brasileira é muito baixaPor Lúcia Rodrigues. Fotos: Marcello Casal Jr

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de leitura e íamos repondo os livros na biblioteca. No grupo de leitura tinha o filho do comandante do maior quartel do nordeste. Eu li Caio Prado, Nel-son Werneck Sodré. Minha família era de esquerda, meus irmãos também, os mais velhos.

E a vida no exílio foi a partir de 71?Eu fui para o Chile, pois comecei a defender a

saída da luta armada porque estava fadada ao fra-casso, ao isolamento. Já tinha morrido muita gente e sentíamos o cerco. Acabei secretário político do MR-8 e organizando a saída das pessoas. Eu fican-do por último, mas fomos tirando todo mundo que estava em cartaz. Chegou minha vez de sair. Peguei o golpe de Pinochet. Morei um ano no Chile.

Como foi enfrentar um golpe de Estado no estrangeiro?

A insegurança era imensa, não só por ser exi-lado, mas no meu bairro a polícia matou muito jo-vem da juventude comunista, socialista, e eu fui salvo pelo vizinho. Nós morávamos numa ‘pobla-cion’, uma favela de lá, e éramos cinco, dois casais e um solteiro. Nossa casa era visitada por todos os meninos da favela, mas quando houve o golpe, a mãe de um deles disse ‘vocês tem que sair daqui’.Aí encontramos o escritório das Nações Unidas. Fo-mos parar no primeiro refúgio das Nações Unidas. Não tinha bandeira das Nações Unidas lá e de vez em quando o Pinochet entrava lá. Um dia a mu-lher mais bonita do refúgio, uma peruana, me dis-se “não sou peruana, sou cubana e Pinochet já sabe que eu estou aqui’. Ela disse que sabia quem eu era, sabia tudo. Aí eu liguei para o inglês que falou com o embaixador da Suécia, que estava cuidando dos negócios cubanos, um nobre socialista. Ele pegou a cubana e perguntou se ela queria ir para a Sué-cia, e aí fizemos um grupo de pessoas que foi todo para a Suécia.

Seu exílio todo foi na Suécia?Sete anos na Suécia e quando eu vi que ia sair a

anistia, fui para a França terminar meu curso uni-versitário. Na Suécia eu estudei português, eu ia ser professor de português e cultura brasileira na Su-écia. Na França, terminei meu curso num departa-mento da Sorbonne onde Fernando Henrique era professor, Bresser Pereira, Alain Tourraine.

Da luta armada, da resistência à ditadura militar ao ministério da Cultura, como foi essa trajetória?

Na Suécia eu fui trabalhador braçal, auxiliar de cozinha de um hospital, pelava as batatas, lavava os pratos. Depois eu fui auxiliar de trânsito, estiva-dor, baby sitter, depois eu trabalhei no maior jor-nal da Suécia.

Como jornalista?Não, como faxineiro. Tomei curso de passar sin-

teco e foi legal para mim porque aqui no Brasil a classe média só quer saber do pescoço para cima, e lá eu fui trabalhador braçal, só queriam saber do pescoço para baixo. Foi quando eu tive a oportu-nidade de juntar as duas coisas. Foi positivo para mim. Eu vivi lá, estava havendo uma mudança cul-tural grande, os punks aparecendo.

Na Suécia o senhor tinha contato com o Gabeira?

Tinha sim, eu já tinha antes da clandestinida-de, a gente se encontrou no Chile e na Suécia. Ele é meu amigo. Hoje a gente está pensando um pou-co diferente nesse momento, mas é uma pessoa que eu gosto, que eu convivi muito, é uma pessoa inte-ligente. Outro dia ele disse que a minha divergên-cia com o PV era para manter o ‘empreguinho’, e eu achei deselegante da parte dele. As paixões po-líticas passam por essas coisas...

O senhor suspendeu a sua filiação ao PV?Sim, por um ano. Eu acho que o PV está fican-

do careta, abandonando o seu programa. Ele sur-giu no Brasil com uma coragem imensa de colocar questões comportamentais na política, defendendo com muita ousadia uma política de drogas para a redução de danos, defendendo os direitos dos ho-mossexuais. E agora está todo mundo meio aderin-do a um comportamento tradicional de se apresen-tar como ursinho de pelúcia da política brasileira, todos fofinhos, sem arestas, sem levantar nenhuma questão polêmica. Estão caretas, com uma escoliose para a direita, só querem alianças com o DEM. No Rio, o Gabeira está fazendo altos elogios e só quer aliança com o DEM, César Maia. Em São Paulo, há muito tempo tem alianças com DEM e PSDB e as-sim já em muitos Estados convivendo com o fisio-logismo tradicional da política brasileira.

Como o ministério está atuando na sua gestão para preservar a cultura brasileira?

A cultura brasileira não precisa de uma políti-ca de preservação nesse sentido. Claro que há uma política de patrimômio, que é uma política de pre-servação em última instância, mas a estratégia é de desenvolvimento cultural. Eu penso mais em ex-pansão e desenvolvimento do que proteção. A nos-sa cultura é de boa cepa e tem condições de se de-senvolver nesse ambiente de contato e signos e conteúdos vindos de outros países. Acredito que se criarmos igualdade de condições a cultura brasilei-ra se desenvolve.

Como o senhor define a TV brasileira hoje?A gente incorporou a TV como parte da políti-

ca cultural. Não só a TV pública como a TV priva-da também. A convergência digital, dos diversos suportes e mídias tem permitido que a gente pense para além da produção do cinema, que a gente pen-se a produção do audiovisual. Esses conteúdos mi-

gram de uma tela para outra, então é do nosso in-teresse, é talvez o meio mais popular, um dos mais importantes. Mas a qualidade da televisão brasilei-ra é muito baixa. A nossa tradição é mais da TV de entretenimento, e não satisfaz as necessidades da população. Então é preciso contribuir para a ele-vação do padrão, seja através da TV pública seja através de estimular que as TVs privadas avancem sua programação, sua grade para coisas mais qua-lificadas.

Além do entretenimento, que o senhor ressalta, a gente observa o emburrecimento, o Big Brother é um programa que...

É, mas o mundo inteiro gosta. A humanida-de tem vínculos com esse tipo de produção. É um voyeurismo. A banalidade exerce um fascínio enor-me sobre as pessoas.

O senhor acha que é uma coisa a ficar, ou dá para reverter e entregar para a população um produto de qualidade?

É, mas eu sou a favor da liberdade de escolha por parte da população. Quem quer ver Big Brother que veja. Eu sou uma pessoa que gosta do meio te-levisão. Às vezes eu assisto coisas absolutamente banais, mas assisto me distanciando, como acredi-to que a maioria das pessoas faz. Ali é um pretexto para uma série de observações. Eu gosto desses pro-gramas de auditório. Se você me perguntar, eu diria que o padrão é baixo, mas tem alguma coisa que me interessa ali. Desde Chacrinha eu gostava.

O senhor assiste Silvio Santos, Faustão?Eu zapeio muito, mas assisto, sim. Vejo Ratinho,

tenho curiosidade. Acho a TV um meio incrível.

Mas o senhor não acha que são programas de baixa qualidade de conteúdo, que contribuem para um conservadorismo, como o caso do programa do Ratinho, que achincalhava as pessoas?

Achicalhando as pessoas, usando as aberrações.. É verdade isso. Mas os circos medievais faziam isso. A humanidade tem uma atração.

O senhor considera que a produção regional ainda está muito aquém do que poderia ser? O eixo Rio São Paulo concentra o maior número de emissoras A regionalização do conteúdo da comunicação não é uma saída?

Nenhum país democrático do mundo permite que os radiodifusores transmitam em cadeia nacio-nal o tempo todo. A Suécia é um pouco maior do que Sergipe, tem três regiões culturais, e na épo-ca que eu morava lá se não me engano só podia transmitir em rede nacional 25% do total do tem-po. O resto tinha que regionalizar para dar empre-go, para permitir que a cultura nacional apareces-se. Isso num país de dimensões continentais como o Brasil é um absurdo funcionar o tempo inteiro em rede nacional. Nos Estados Unidos também tem li-mites, na Europa toda, aqui é que o regime militar achava que tinha que uniformizar culturalmente. Havia uma desconfiança com a diversidade cultu-ral brasileira, que ela pudesse produzir uma disper-

brasileira é muito baixa

“O cinema brasileiro é quase estrangeiro nas salas de exibição do país”

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são, uma fragmentação do país, por isso que ela in-centivou essa homogeneização.

E o que se pode fazer para conseguir avançar nesse sentido, se produzir mais regionalmente?

Acho que a regulação tem que avançar. O PL 29 que está tramitando vai regulamentar a TV a cabo, vai obrigar o percentual de produção brasileira, vai obrigar a produção independente. O Minc tem en-trado aos poucos, mas cada vez mais como um fa-tor de estímulo à melhoria tanto na regulamenta-ção, como na área de estímulo à produção.

Tem um outro problema que é o conteúdo que vem de fora. Mesmo nas TVs a cabo, acontece um bombardeamento de programas e filmes que vem de fora. Como fazer para reverter essa situação?

Tem que ter percentuais mínimos para conteú-dos brasileiros. Isso eu defendo, é necessário. O ci-nema brasileiro é quase estrangeiro nas salas de exibição e isso tem que mudar, tem que avançar. A gente faz o filme para quem vê, e se nas salas de exibição brasileira o cinema americano é soberano e na televisão também. A gente tem que ter um pou-co de soberania no audiovisual brasileiro.

Como daria para fazer incentivo ao cinema nacional?

Uma parte a gente já tratou, que é abrir as salas de exibição para o conteúdo nacional. Temos que ter percentuais garantidos, de que quando um filme brasileiro esteja com um nível de público acima da média, o exibidor não tire para passar um filme es-trangeiro, que muitas vezes tem um público menor do que aquele filme. Volta e meia acontece isso. O filme do Daniel Filho “Se eu fosse você” saiu antes de realizar sua missão comercial. O “Besouro” tam-bém estava acima da média de público quando foi tirado. Isso é um crime contra o cinema brasileiro. Os filmes que substituem essas produções brasilei-ras compram pacotes, é dumping, é proibido pela legislação brasileira.

A gente percebe que tem muito enlatado de péssima qualidade que vem para cá e fica aí...

Se fosse de péssima qualidade mas alta aceita-ção de público é um fato. Mas se é de péssima qua-lidade, baixo público e menor que o público brasi-leiro. Isso é o máximo do escândalo.

Mas o senhor não considera por exemplo, que tem uma aceitação do público porque é aquilo que é oferecido. Se você começa a oferecer um filme de qualidade nacional essa aceitação vem naturalmente?

Historicamente, o público do cinema brasileiro são as classes C, D e E. Com esse encolhimento des-sa rede de exibição, o cinema brasileiro ficou sem seu público. Nas salas de shopping center que tem como seu público principal a classe média, a dis-puta é braba porque há um deslumbramento pelo cinema americano. Há toda uma indústria por de-trás que promove esses filmes. Então, pelo nosso lado temos que aumentar o interesse aumentando a qualidade do cinema brasileiro, fazendo filmes que

conquistem o público. Tem um problema de produ-ção também. A gente saiu de pouco mais de 20 fil-mes ao ano, quando entramos no ministério, e esta-mos com quase cem filmes ano. Mas muitos desses filmes nem contribuem para o desenvolvimento da linguagem e nem para o aumento de público, que seriam os dois grandes critérios.

O que o Ministério da Cultura pode fazer? Aumentar o padrão dos roteiristas, desenvolver

linguagens cativantes e atraentes para um número cada vez maior de público. O papel do ministério é estimular isso, criar critérios na disponibilização dos recursos que levem à melhoria do padrão da lin-guagem e para a conquista de parcelas do público.

E a Embrafilme não seria uma saída para isso?A gente está disponibilizando mais dinheiro que

a Embrafilme. É mais complexo do que a Embrafil-me. Precisamos recuperar o cinema popular no Bra-sil. Está começando aí. Tem vários filmes que tem bombado. Temos que aumentar a cota de filmes que tem capacidade de bombar e por outro lado finan-ciar os filmes que mesmo com pouco público con-tribuam para o desenvolvimento da linguagem ci-nematográfica. Existe o problema da distribuição. Precisamos estimular a distribuição brasileira para que possa atuar também no exterior. O ministério tem investido nisso, em apoiar a venda do cine-ma brasileiro e dos conteúdos audiovisuais brasi-leiros no exterior. É um processo mais global. Uma distribuidora estatal poderia contribuir assim como o crescimento das distribuidoras privadas. Eu não me fixaria como única alternativa uma distribui-dora pública.

Quanto que o ministério investe dos recursos em cinema nacional?

Eu não lembro, mas é mais do que da época da Embrafilme. Quando chegamos ao ministério, os re-cursos orçamentários eram em média 280 e poucos milhões, correspondiam a 0,2 do total do orçamen-to do governo federal. Passamos esse ano de 2010 de 1% que é o mínimo recomendado pelas Nações Unidas, que corresponde a 2,5 bilhões. Além disso, quando chegamos, a renúncia fiscal era menos de 300 milhões, e agora está em 1 bilhão e meio. E es-tamos avançando nas regras de disponibilização de recursos. Criamos o fundo setorial do audiovisu-al, estamos lançando linhas de financiamento junto com o BNDES para financiar a ampliação das salas de exibição, estamos lançando o Vale Cultura, que vai injetar 7 bilhões da economia da cultura. São várias ações convergindo no Estado apoiar e incen-tivar o crescimento da arte e da cultura no país.

Como funciona o Vale Cultura?É muito parecido com o Vale Refeição, mas um

é para alimentar o estômago e outro para alimen-tar o espírito. É um cartão magnético que é dispo-nibilizado para o trabalhador com um valor no-

minal de 50 reais para ele comprar livro, comprar CD, assistir espetáculo de dança, de música, para consumo cultural. Percebemos que não adianta-va estimular a produção se o índice de acesso é muito pequeno. O Vale Cultura vai produzir efei-tos colaterais muito positivos. Como o contro-le do uso vai ser muito grande. Vai estimular o consumo do CD legal. Vai estimular abertura de negócios culturais perto de onde os trabalhado-res moram. É uma novidade que está sendo estu-dada até por outros países. Vai incluir 14 milhões de pessoas no consumo cultural.

Em que pé estão as discussões em torno da Lei Rouanet?

Eu rodei o Brasil defendendo a mudança da Lei Rouanet. As estatísticas provam que a lei esgotou o que podia dar de positivo e houve muitas distor-ções. 80% do dinheiro da lei vai para os Estados de Rio e São Paulo e 60% do dinheiro fica em duas ci-dades, Rio e São Paulo. 3% dos proponentes ficam com mais da metade desse dinheiro. São sempre os mesmos. Tem estados que não recebem nem 0,0%, então a gente vai democratizar o acesso, disponi-bilizar o benefício da renúncia fiscal para todas as áreas da cultura, demandar de que os empresários entendam que essa é uma parceria público priva-da e que não pode ser 100% de renúncias. Se fosse assim, não precisaria de empresas. Nesses 19 anos de Lei Rouanet, foi só 5% de dinheiro privado, en-tão a gente está exigindo um mínimo de 20% de di-nheiro privado.

A crítica dos opositores da Lei é de que haverá muita centralização, como o senhor vê isso?

Isso é uma bobagem. Hoje, o ministério avalia as propostas, emite um parecer favorável ou contrário demandando o aperfeiçoamento, vai para a Comis-são Nacional de Incentivo à Cultura, que é biparti-te. Eles sacralizam ou não o parecer. E vai continu-ar a mesma coisa. E mais, a gente vai fortalecer o Fundo Nacional de Cultura, Fundo Setorial da Mú-sica, da Dança, do Patrimônio.

Os recursos vão todos para esses fundos?80% vão para os Fundos. Hoje 80% vai para re-

núncia sem critério o que dificulta muito o desen-volvimento cultural e reduz muito o papel do Esta-do no apoio à produção cultural brasileira. Permite essas distorções de concentração. Os ingleses es-tão visitando o Brasil são responsáveis pela políti-ca cultural do Reino Unido, disseram que Lei Roua-net jamais poderia acontecer na Inglaterra.

Por que?Porque segundo eles, e eu concordo, cada cen-

tavo que é renunciado, é um centavo a menos a ser disponibilizado para a produção cultural. A vi-são deles é que mecenato é quando mecenas colo-ca a mão no próprio bolso para fazer uma benesse cultural. Não é meter a mão no bolso do Estado. O

“A TV brasileira informa, desinforma, é um circo”

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Estado tem a sua responsabilidade muitas vezes de estimular, financiar uma atividade que não é lucra-tiva e portanto não é atraente para a iniciativa pri-vada. Nem retorno de imagem dá.

A cultura popular vai se beneficiar dessa mudança na legislação?

Bastante, porque quase não tem acesso. Os úni-cos na cultura popular que tem acesso são os que furaram o bloqueio midiático e fazem parte do mundo da cultura de massa. 99% da produção cul-tural popular não tem acesso porque não dão retor-no de imagem para a empresa. Vai ser muito positi-vo também para a área de arqueologia, de museus, boa parte da cultura brasileira que não tem acesso hoje, vão passar a ter.

As artes cênicas também vão ser bastante privilegiadas com a alteração?

Esse ano já possivelmente a gente chega a 100 milhões no Fundo Setorial das Artes Cênicas, que é um recorde histórico incomparável a tudo que já aconteceu nessa área.

Qual é a reação da classe teatral nesse sentido?Muito dividida, porque tem teatro, teatro e te-

atro. Tem o teatrão das companhias, o teatro das cooperativas, o teatro de rua, teatro de segmentos culturais. As reações são as mais diversas em todos esses setores.

Qual é o papel da Ancine hoje?É uma agencia que cuida da fiscalização do fi-

nanciamento da regulação, da economia do setor. Está avançando muito. É quem gere junto com a comissão gestora, que é bipartite, gera o Fun-do Setorial do Audiovisual. Encontramos uma agência quase sem atividade e demos um impul-so enorme à ela.

Tivemos recentemente a Conferência de Cultura. O que foi aprovado de importante, o que o senhor destacaria como as principais resoluções?

A Conferência aprovou uma série de resoluções e destacou 36 principais resoluções. Indicou a ne-cessidade de superar o divórcio entre educação e cultura. Desde a década de 60, bem antes de se criar o ministério da Cultura, as artes e a cultura saíram de dentro da sala de aula e dos currículos porque se passou a ter uma visão muito funcional da edu-cação voltada para o mercado de trabalho. Esta-mos fazendo um esforço, mas é preciso aprofun-dar esse esforço.

Queria retomar a questão do Vale Cultura, como esse dinheiro vai chegar ao trabalhador?

É parecido com Vale Refeição. Primeiro vão ter as operadoras, que vão atuar como benefício. As empresas irão se cadastrar para beneficiar seus fun-cionários. A área de funcionário público quer par-ticipar também.

Qual é o recorte para receber esse benefício e por que 50 reais?

O presidente Lula me autorizou a dizer que acha

que 50 reais é pouco e se o Congresso aprovar uma ampliação desse recurso para 100 que ele sancio-nará essa lei com alegria. Eu disse a ele ‘não va-mos propor rever esse total, se não teríamos come-çar tudo de novo’. Sou favorável a aprovar como está e ir aperfeiçoando. Certamente isso vai aumen-tar. Isso é investimento. De 1 a 5 salários mínimos é a área prioritária.

Qual a sua avaliação da experiência dos Pontos de Cultura?

Essa é uma experiência inédita no Brasil. O Es-tado brasileiro nunca considerou a existência des-sas atividades culturais, desses projetos que existem nos ambientes sociais mais degradados, convivem com a miséria, com a violência, com equipamentos urbanos precários, padrão habitacional baixo, mas no meio de ambientes tão precários existem ativi-dades culturais que disponibilizam deleite estético, sentimento de pertencimento, qualificação das re-lações humanas, são mais de 100 mil grupos cultu-rais que existem no país, nós somos o primeiro não só a reconhecer a sua existência, como dizer que eles têm direito a recursos públicos e que o Estado pode jogar um papel de incentivo para ampliar os beneficiários. Hoje os pontos de cultura beneficiam oito milhões de pessoas, estamos chegando a qua-tro mil grupos beneficiados nos pontos de cultura. A gente já está fazendo pontinhos de cultura dedi-cados à infância, pontos de leitura para comunida-des que precisam de estímulo à leitura. Estamos di-versificando os editais para cobrir universos mais abrangentes da realidade.

Que tipos de atividades culturais são

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desenvolvidas nos Pontos de Cultura?As mais variadas possíveis. Às vezes é capoei-

ra, às vezes manifestação tradicional como conga-da, bumba-meu-boi, às vezes são comunidades de migrantes que querem preservar suas tradições dos países de origem, grupos de teatro e de dança, mú-sica erudita, às vezes é uma biblioteca em cima de uma palafita.

Como é que o ministério da Cultura identifica esses pontos?

Tem que fazer editais, nacionais e junto com os governos estaduais, por segmentos, aí eles se apre-sentam, formulam suas propostas e se candidatam a receber um recurso por um tempo mínimo de dois anos, recebem computadores, banda larga, treina-mento para operar na rede e saírem do gueto e dia-logarem com assemelhados e com diferentes no Brasil e no mundo.

A televisão brasileira não está muito presa na produção de conteúdo de péssima qualidade?

É o seguinte: a televisão é basicamente entrete-nimento. Eu, por exemplo, gosto de televisão para dormir, adoro ligar e ver aquelas porqueiras e elas me nocauteiam, é o melhor sonífero que existe. Para acordar, para me informar, para fazer uma espécie de sociologia crítica. O grande ápice do zapeamen-to é desligá-la. Não dá para pensar uma TV cabeça o tempo todo, ela tem que ser agradável, mas não precisa ser burra. Duvido que as pessoas queiram profundidade o tempo todo. Ela é tudo. Boa parte da população se informa e compreende o mundo a partir dela. Culturalmente, ela é o principal meio. Não me incomoda essa cara meio caleidoscópica.

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Ela tem seus momentos de superficialidade circen-se e certos momentos ser absolutamente informa-tiva. A maioria das pessoas não quer profundida-de o tempo inteiro. A TV aparentemente é fácil de ser feita, mas ela tem que ser bem realizada em lin-guagem. Um erro da TV pública no Brasil foi pen-sar que ela não tinha que ser sedutora.

O senhor não acha que a TV às vezes desinforma a população?

Em certos momentos, sim. Mas a muito da re-lação homem mulher veio pela televisão brasileira, não as públicas, mas as comerciais. Nas novelas, os homossexuais estão consquistando espaço na tele-dramaturgia, a questão da ecologia. Ela informa, desinforma, é um circo, uma oferta diversificada. A televisão tem permitido aos brasileiros a ter conta-to com o mundo, com as diversas regiões do Brasil, então informa, desinforma, informa mal em certos momentos, informa bem em outros, disponibiliza dados e aspectos da realidade, é um poderoso ins-trumento, em alguns momentos é brilhante, em ou-tros é medíocre, em outros é meio fascista, eu não tenho uma visão tão condenatória, é mais comple-xo e exigiria uma reflexão mais sistemática.

Como vê o plano de banda larga do governo?O objetivo que o presidente Lula determinou é

enorme. O Estado brasileiro precisa encarar a info-via como parte da estrutura necessária para o Bra-sil constituir não só uma economia forte, mas com uma sociedade capaz de viver o século 21 de forma bem sucedida. Ele quer que chegue a todos os muni-cípios, quer integrar todas as escolas públicas, quer que todas as pessoas tenham acesso a banda larga, isso vai ser uma revolução, o governo está buscan-do os caminhos. O mercado tem dificuldade de dis-ponibilizar infraestrutura em boa parte do território porque não é rentável, e aí entra a possibilidade de se montar uma grande infovia, uma grande rede de banda larga disponível para todo o povo brasileiro ou grátis ou com um preço bastante acessível.

Como a cultura pode se beneficiar da internet com banda larga?

Já se beneficia. O equipamento cultural mais presente no território brasileiro se chama lan-hou-se. Não há lugar hoje, uma vilazinha, que não tenha pelo menos uma lan-house. Quando tiver essa faci-lidade de acesso aí sim a gente vai ver multiplicar, isso está trazendo modernidade. Vou dar um exem-plo pessoal, mas muito significativo.

A internet contribui para fortalecer a regionalização da comunicação e da cultura?

Eu acho que deveriam pensar uma nova esco-la, que assumisse que não tem mais o monopólio da informação e da formação, que as crianças de hoje já nascem ligadas a processos culturais que nem os pais têm controle e que poderia trazer para

dentro da escola esses processos e transformar em processos pedagógicos de cognição, de constru-ção de conhecimento, tornar a escola mais atraen-te, fazer com que as crianças se sintam mais am-bientadas nessas escolas. Na teia da cultura, hoje, vários agentes ligados aos pontos de cultura es-tão fazendo entrevistas, gravando, e os interesses são outros. Então estamos assistindo uma mudan-ça de paradigma da comunicação, os grandes jor-nais estão decaindo, o interesse pelas grandes re-des de TV está diminuindo, aumenta o interesse pela TV regional, acho que a gente está no limiar de uma situação de mudança completa e o mundo não pode mais ser pensado sem a tecnologia di-gital, sem a internet, sem essa democratização da capacidade de produzir.

A internet com banda larga vai assumir papel de preponderância no século 21 semelhante ao da TV na segunda metade do século 20?

Acho que estamos perto disso. O que falta é o acesso. Quando essa infovia for disponibilizada para todos, a um custo acessível, bye bye Brasil.

A TV pode ser desbancada?Ela vai continuar existindo. Pensaram que a TV

ia desbancar o livro. As coisas ficam cada qual no seu cada qual.

Tem espaço para todas as mídias?Tem espaço para o livro, para o rádio, para a TV

aberta, para a TV por assinatura, para a Internet, para os DVDs ou novos suportes.

O que pensa sobre a produção nacional e estrangeira na televisão? Tanto na TV aberta quanto na TV a cabo, predomina a produção que vem do exterior.

Acho que a gente não pode ser xenófobo. A cul-tura brasileira, se tiver condições de igualdade, por exemplo, 80% da música veiculada e consumida no Brasil é brasileira, sem precisar ter nenhuma proi-bição, porque temos uma música de boa qualidade, que a população se identifica, que entende, e exis-te igualdade de condições na veiculação. Quando o audiovisual for assim, também, acho que a gente vai ter a preponderância dos conteúdos nacionais. Não precisamos de sistemas de proteção. Precisa-mos de disponibilizar igualdade de condição para o conteúdo brasileiro.

Dá para comparar o que o ministério faz hoje com o que havia no governo FHC?

O ministério não era nada. Não tinha nenhuma relação vital com o processo da cultura brasileira, não estava à altura dessa grandeza e dessa capaci-dade criativa, como política pública. Estamos tra-tando a cultura em três dimensões: como fato sim-bólico, como direito de acesso de todo brasileiro e como economia poderosa. Estamos construindo as políticas para as artes, de museus, de preservação do patrimônio, política de apoio à cultura dos po-vos indígenas, essa complexidade toda a gente está avançando. Hoje o Ministério existe, é bem avalia-do e está em condições de dar apoio e suporte aos principais processos da cultura brasileira. Fizemos uma revolução pacífica nessa área. Não basta au-mentar o poder aquisitivo das pessoas e incluir eco-nomicamente, é preciso educação de qualidade e acesso pleno à cultura, é isso que a gente está per-seguindo, isso foi uma mudança importantíssima.

O senhor fica até o final do mandato do presidente Lula?

Sim. A não ser que o presidente não queira, mas quando ele me convidou, ele indicou que eu fosse até o final, e eu assumi esse compromisso com ele.

Vai estar também na gestão da Dilma se ela for eleita?

Quem sabe? Ninguém sabe sobre isso. Vai ser uma opção dela.

Mas gostaria de estar?Tenho dúvida para falar a verdade: um lado

meu gostaria porque nada está consolidado, a gen-te não chegou nem a metade do percurso, mas ou-tro lado meu... é isso, é difícil dizer isso...

Está satisfeito com o seu trabalho?Bastante. Acho que somos bem sucedidos no

empreendimento que nós assumimos a responsabi-lidade de dirigir.

Lúcia Rodrigues é jornalista.

“Eu acho que o PV está ficando careta, abandonando o seu programa”

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Fidel Castro

Há no mundo uma monopolização crescente do pensamento. Os recentes avanços tecnológicos favorecem a concentração da informação em poucas mãos.

Quando Francis Fukuyama lançou a inconsistente teoria do fim da história, o objetivo era semear a desesperança e consolidar a ideia de que não há futuro, e sim perenização do presente. O capitalismo é o melhor e definitivo sistema econô-mico; e a democracia, manipulada pelo poder financeiro, sua expressão política.

Derrubado o muro de Berlim, a globalização consiste em impor ao planeta a pax americana e sepultar, assim, as ideologias progressistas e li-bertárias, extinguindo, da cultura, a consciência histórica, sem a qual não há como construir alternativas.

Felizmente teorias não detêm o avanço histórico. A América Latina é, hoje, o melhor exemplo disso, com a sua primavera democrática e seus governos democrático-populares. Novos atores sociais e processos emancipatórios des-pontam. Redes planetárias de busca de “outro mundo possível” aparecem.

Esses sinais de esperança reforçam a necessidade de se aprofundar o pensa-mento crítico, alternativo, e promover a descrença nos dogmas consagradores da desigualdade e da exclusão social e da apropriação privada da riqueza.

Para o pensamento hegemônico, os novos inimigos são o “terro-rismo” (leia-se: tudo que se opõe a ele), o narcotráfico, os países que formam o “eixo do mal”, e todos que criticam o sistema de dominação múltipla do ca-pitalismo transnacional e neoliberal.

O polo hegemônico desse pensamento único são os EUA, respaldados pelo consenso da União Europeia e do Japão. E sobretudo as empresas transnacio-nais. Em nome da defesa da democracia (entenda-se: do modelo fundado na desigualdade e na exclusão), procura-se evitar a proliferação de armas atômi-cas ou de destruição em massa… exceto nos países que, na ótica de Washing-ton, integram o “eixo do bem”.

Quem melhor expressou a nova doutrina político-militar foi Zbig-niew Brzezinski, em 1998, quando denunciou que o imperativo dessa estraté-gia geopolítica consiste em manter os vassalos dependentes no que diz respei-to à segurança, e evitar que os “bárbaros” se articule m, como agora ocorre na América Latina e no Caribe, com a proposta de fundação, no próximo ano, de um organismo semelhante à União Europeia, capaz de congregar os países do continente sem a presença e ingerência dos EUA e do Canadá.

Hoje, o que preocupa a CIA e o Pentágono não é a confrontação leste-oes-te, e sim a norte-sul entre os países ricos e pobres. Há um processo sistemático de pasteurização da cultura, travestida de entretenimento centrado no consu-mismo, de hegemonização do pensamento, por meio da disseminação midiática de paradigmas comuns e do consumo padronizado, de modo a negar o pluricul-turalismo, o direito à autonomia dos povos originários, a diversidade religiosa, os movimentos sociais emancipatórios, a cultura como processo crítico de leitura e transformação da realidade. Como diria Paulo Freire, cada vez mais a cabeça dos oprimidos pensa e enxerga pelo ponto de vista dos opressores.

Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros. Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

O último encontro com LuLa

Ditadura do PENSamENTo

uNIPoLaR

Conheci Lula em Manágua, em julho de 1980, há trinta anos, du-rante a comemoração do primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Gra-ças a Frei Betto sabia quem era Lula, um líder operário no qual os cristãos de esquerda tinham depositado bem cedo suas esperanças. A grande nação emergia das trevas da ditadura militar, imposta pelo império ianque na dé-cada de 60.

Durante o último encontro com Lula, ele expressou que, prestes a fina-lizar o seu mandato, desejava visitar seu amigo Fidel, qualificativo honroso que recebi da sua parte. Acho que o conheço bem. Não poucas vezes con-versamos fraternalmente dentro e fora de Cuba.

Numa ocasião, tive a honra de visitá-lo no seu lar, situado num modesto bairro de São Paulo, onde morava com a família. Para mim foi um encontro emotivo com ele, com a sua esposa e com os seus filhos. Nunca esquecerei a atmosfera familiar e sadia daquele lar, e o sincero afeto com que o tratavam os moradores vizinhos, numa época em que Lula já era um prestigiado líder operário e político. Então, ninguém sabia se chegaria ou não à presidência do Brasil, pois os interesses e forças que se opunham a ele eram enormes.

Não tentarei fazer um relato das vezes que nos falamos antes que fos-se eleito presidente; uma delas, entre as primeiras, foi em meados da déca-da de 80, quando lutávamos em Havana contra a dívida externa da Améri-ca Latina, que na época chegava a 300 bilhões de dólares e tinha sido paga mais de uma vez.

Em três ocasiões, os seus adversários, apoiados em enormes recursos econômicos e midiáticos, o derrotaram nas urnas. Mas, nos últimos oito anos, sob a direção de Lula, o Brasil superou obstáculos, incrementou o seu desenvolvimento tecnológico e potencializou o peso da economia brasilei-ra. Tive o privilégio de assistir à sua posse, nos fins de 2002. Também es-teve Hugo Chávez, que acabava de enfrentar o golpe traidor de 11 de abril daquele ano.

Depois que adoeci, tive o privilégio de ser visitado por Lula todas as vezes que viajou à nossa Pátria. Não direi que sempre coincidi com a sua política. Sou, por princípio, oposto à fabricação de biocombustível a partir de produtos que possam ser utilizados como alimentos, ciente de que a fome é e poderá ser, cada vez mais, uma grande tragédia para a humanidade.

Contudo, esse não é um problema criado pelo Brasil e muito menos por Lula. Faz parte inseparável da economia mundial imposta pelo imperialismo que, subsidiando as suas produções agrícolas, protege seus mercados inter-nos e concorre no mercado mundial com as exportações de alimentos dos países do Terceiro Mundo. O Brasil não teve outra alternativa a não ser in-crementar a produção de etanol perante a concorrência desleal dos Esta-dos Unidos e da Europa.

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Os cientistas advertem: quando o aumento chegar a 3% na média mundial da temperatura, podemos ter a inviabilidade da vida humana em muitas regiões e a destruição de várias cidades litorâne-as. Mas nada disso comove os capitalistas. A indústria de automóvel, o agronegócio, o consumo de carne, o desmatamento, os gastos militares, as guerras e o consumismo individualista continuam crescendo, esgo-tando as reservas naturais e desequilibrando o meio ambiente.

A Rio-92 e a recente Conferência da ONU em Copenhague não ti-veram êxito e a de Cancún, convocada para novembro de 2010, tam-bém está fadada ao fracasso. Diante dessa grave situação, o governo boliviano de Evo Morales, movimentos ambientalistas, a Via Campesi-na, outros governos progressistas e cientistas estão convocando uma cúpula mundial dos povos, de 19 a 22 de abril, em Cochabamba, com mais de 5 mil delegados de todo o mundo.

Vamos discutir a natureza dos problemas e as medidas ne-cessárias para atingir as suas causas. Estaremos também debatendo a realização de um grande plebiscito mundial, em que os movimentos so-ciais ambientalistas e governos progressistas serão convocados a or-ganizar um trabalho pedagógico de debate e finalmente de consulta para que a população se manifeste e vote sobre quatro temas funda-mentais na atual conjuntura.

O primeiro tema é quem são os culpados pelo desequilíbrio ambien-tal e quem deve pagar a conta pelo seu restabelecimento.

O segundo é a necessidade de alterar o atual padrão de con-sumo de energia e de produtos supérfluos, imposto pelas corporações transnacionais.

O terceiro é a necessidade de as Nações Unidas organizarem um tri-bunal internacional para julgar e punir governos e empresas responsá-veis por crimes ambientais. As empresas culpadas hoje estão isentas e, como gozam de muita influência sobre os governos, nada acontece.

E o último tema é a necessidade de suspender todas as bases mili-tares no exterior (somente os Estados Unidos têm 883 bases militares em outros países) e usar as despesas militares e as da guerra para sal-var nosso planeta.

Há uma expectativa muito grande sobre a Conferência de Cochabamba, seus debates e resultados. A proposta é organizar esse de-bate e o plebiscito até o final do ano de 2010, para que seus resultados coincidam com a realização da Conferência de Cancún, em novembro, e assim a população tenha outros canais para manifestar suas propostas, independente dos governos, que se preocupam apenas com taxas de lu-cro das empresas e com taxas de crescimento econômico do PIB.

Como veem, finalmente parece que temas tão importantes para a sobrevivência da humanidade começam a entrar na agenda política dos movimentos sociais, de governos progressistas, e assim a popula-ção também poderá ser estimulada a debater o que mais lhe interes-sa: as condições de vida no planeta.

João Pedro Stedile

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Os problemas climáticos e as mudanças de modelo

Votaria eu em Dilma 2010? Sim, dou-lhe meu voto sob as seguintes exigências programáticas:Apoio incondicional aos governos anticapitalistas de Hugo Chávez, Evo

Morales, Rafael Correa e Mujica. Que reestatize e nacionalize todas as privatizações feitas por FHC, me-

diante plebiscito popular para ressarcir os prejuízos.Que na mídia seja garantido espaço livre e gratuito para discutir a so-

berania nacional e o imperialismo. Suspensão imediata do pagamento da dívida externa.Reforma agrária em todos os latifúndios produtivos e improdutivos. Taxação das fortunas bem ou mal adquiridas.Criação de empresas mistas e estatais para coordenarem milhares de

microdestilarias de álcool e óleos vegetais em pequenas propriedades.Promover a produção de minhoca como o arado natural da filosofia.Edificar milhares de Cieps (brizolões) por todas as cidades e roças.Uso obrigatório de adubo orgânico na terra para suprimir os fertilizan-

tes químicos fabricados pelas multinacionais.O direito da criança ao leite do seio da mãe e proibição de Coca-Cola

para a mulher gestante.Eliminar os planos privados de saúde e fechar os Mc Donalds.Acabar com o caráter publicitário dos programas eleitorais para que os

eleitores não sejam consumidores nem os candidatos empresários.Automóveis submetidos a um rigoroso critério ecológico: extinguir os

Pajeros e 4 por 4.Proibir latidos de cachorro em casas, apartamentos e ruas.Abrir as cadeias para os detentos com pequenos delitos.Revestimento acústico obrigatório em todas as Igrejas crentes e Pente-

costais. Cada beato multado pela tonalidade de sua voz.Bibliotecas com livros de socialismo e marxismo em todas as fábricas

e sindicatos.Democracia para os trabalhadores e não para os executivos das multi-

nacionais.Vestibular com testes de gramática e geografia para os candidatos a rei-

tores das universidades.Fomentar aliança política entre os favelados e os sem-terra em home-

nagem ao educador Darcy Ribeiro.Restringir o consumo de música pop e popular para crianças, adoles-

centes e velhos.Proibição de telenovelas e programas de auditório nas televisões.Ensinar a didática anticapitalismo verde para toda a agricultura e peque-

nos empresários. Nenhum outro mundo é possível com combustível fóssil.Pavimentar o caminho do socialismo: sol+socialismo= solcialismo.Implantar mictórios e defecatórios gratuitos em todas as praças com

chuveiros.Decretar o fim do reconhecimento de firma e desativar o sadomonetarismo.Haverá outras exigências a reivindicar, mas sei que todos os outros can-

didatos são bundões, assim consagro meu voto na Dilma.

Saudades do Brizola:Dilma e meu voto

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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os velhos usineiros, agora travestidos de em-presários “modernos”, em consequência da propaganda sobre as supostas vanta-

gens do etanol brasileiro, intensificam suas cam-panhas internacionais para vender o produto. Re-centemente, ganharam um reforço especial com o anúncio do governo sobre acordos trabalhistas e de zoneamento ambiental. Porém, um breve re-lato sobre as principais tendências do setor é su-ficiente para mostrar que essas são apenas medi-das de fachada.

As características que historicamente marca-ram a oligarquia rural no Brasil permanecem inal-teradas. Ou seja, o monopólio da terra, a explora-ção do trabalho e de recursos naturais estratégicos.

A principal mudança tem sido a presença crescente do capital internacional na indústria dos agrocom-bustíveis. Há alguns anos, verifica-se um aumen-to do ritmo de aquisições no setor sucro alcoolei-ro, com crescimento na participação de empresas estrangeiras e aumento na concentração do poder econômico de determinados grupos.

Dados do Sindicato da Indústria de Fabricação do Álcool e Açúcar de Minas indicam que a parti-cipação de empresas estrangeiras na indústria da cana no Brasil cresceu de 1% em 2000 para 12% na safra 2007/2008. Outro levantamento da Pri-cewaterhouse Coopers revela que existem cerca de 450 usinas no Brasil, controladas por 160 em-presas nacionais e estrangeiras, e que o contro-

A principal mudança na oligarquia rural no Brasil tem sido a presença crescente do capital internacional na indústria dos agrocombustíveis.Fotos Douglas Mansur

Maria Luisa Mendonça

le estrangeiro chegaria a 15%, incluindo partici-pação acionária em grupos nacionais. De acordo com estudo do grupo KPMG Corporate Finance, de 2000 a setembro de 2009, ocorreram 99 fu-sões e aquisições de usinas no Brasil. Entre estas, 45 negociações aconteceram no período de 2007 a 2009 e em 22 casos ocorreu a compra de uma usina nacional por um grupo estrangeiro.

Maiores produtoresEm outubro de 2009, a empresa francesa

Louis Dreyfus Commodities anunciou a com-pra de cinco usinas da Santelisa Vale, de Ribei-rão Preto (SP), para aumentar sua produção de cana no Brasil. A fusão criou o grupo LDC-SEV

O monopólio da terrae a produção de agrocoMbustíveis

Nos últimos anos, as usinas de cana-de-açúcar se tornaram campeãs em trabalho escravo.

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Bioenergia, tornando-se o segundo maior produ-tor mundial de açúcar e etanol. O grupo preten-de produzir 40 milhões de toneladas de cana-de-açúcar por ano e tem participação acionária das famílias Biaggi e Junqueira, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do banco Goldman Sachs. Essa fusão aumen-ta para 20% a participação de empresas estran-geiras no setor.

Uma nova característica da indústria do eta-nol, se comparada ao Pró-Alcool da década de 1970, é a aliança entre setores do agronegócio com empresas petroleiras, automotivas, de bio-tecnologia, mineração, infra-estrutura e fundos de investimento. Nesse cenário, não existe ne-nhuma contradição desses setores com a oligar-quia latifundista, que se beneficia da expansão do capital no campo e do abandono de um projeto de reforma agrária.

Em 2009, a empresa petroleira britânica Bri-tish Petroleum (BP) anunciou que irá produzir etanol no Brasil, com investimento de US$ 6 bi-lhões de dólares nos próximos dez anos. A BP irá atuar por meio da Tropical Bioenergia, em asso-ciação com o Grupo Maeda e a Santelisa Vale, em Goiás, que contam com uma área de 60 mil hec-tares para a produção de cana no estado.

Em julho de 2009, a Syngenta divulgou a aqui-sição de terras para produzir mudas de cana-de-açúcar na região de Itápolis (SP). O projeto inclui a produção de mudas transgênicas e pretende se expandir para outros estados, como Goiás, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul.

concentração eMpresarialNo início de 2010, ocorreram novas fusões. Em

janeiro, a multinacional agrícola Bunge anunciou a compra de quatro usinas do Grupo Moema, in-cluindo a usina Itapagipe, que tinha participação acionária de 43,75% da empresa norte-americana Cargill. Com a negociação, a Bunge passará a con-trolar 89% da produção de cana do Grupo Moema, estimada em 15,4 milhões de toneladas por ano.

Em fevereiro, foi anunciada a fusão da ETH Bioenergia, do grupo Odebrecht, com a Compa-nhia Brasileira de Energia Renovável (Brenco), que pretende se tornar a maior empresa de etanol no Brasil, com capacidade para produzir três bilhões de litros por ano. Alguns dos acionistas da Bren-co são Vinod Khosla (fundador da Sun Microsys-tems), James Wolfensohn (ex-presidente do Banco Mundial), Henri Philippe Reichstul (ex-presidente da Petrobras), além da participação do BNDES. Já a Odebrecht tem sociedade com a empresa japone-sa Sojitz. O novo grupo irá controlar cinco usinas: Alcídia (SP), Conquista do Pontal (SP), Rio Claro (GO), Eldorado (MS) e Santa Luzia (MS).

O conglomerado ainda participa da construção de um alcoolduto entre o Alto Taquari e o porto de Santos, e pretende instalar usinas na África. A empresa pretende captar R$ 3,5 bilhões até 2012, dos quais pelo menos 20% virão do BNDES, além de outros R$ 2 bilhões que o banco já investiu an-teriormente na Brenco.

Nessa mesma linha, em fevereiro de 2010, a gigante petroleira holandesa Shell anunciou uma

associação com a Cosan para a produção e dis-tribuição de etanol, com o objetivo de produzir quatro bilhões de litros até 2014. Ao divulgar a operação, a nota da Shell afirmava que pretende criar “um rio de etanol, correndo desde as planta-ções no Brasil até a América do Norte e a Europa”. Apesar da repercussão internacional da prática de trabalho escravo na Cosan, a empresa segue como líder no setor.

Seguindo essa tendência, a Vale anunciou que pretende produzir diesel a partir do óleo de palma na região amazônica a partir de 2014, por meio de uma parceria com a empresa Biopalma da Ama-zônia S.A. A intenção é produzir 500 mil tonela-das de óleo de palma por ano. Parte do combus-tível será utilizada nas locomotivas da estrada de ferro e nas minas de Carajás, no Pará.

Monocultivo da canaEm relação ao avanço territorial do monocul-

tivo de cana, dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) mostram que, em 2006, eram 4,5 milhões de hectares e, em 2008, chega-ram a 8,5 milhões de hectares. Na safra de 2009 houve um aumento de 7,1% em relação a 2008. Essa expansão é estimulada por recursos públicos. Entre 2008 e 2009, estima-se que o setor sucroal-cooleiro tenha recebido mais de R$ 12 bilhões do BNDES. Essa verba é extraída, em grande medida, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Segundo a CONAB, 45,08% da safra foi des-tinada à produção de açúcar e 54,9%, à produ-ção de etanol, que resultou em 25,87 bilhões de litros do produto. A expansão da área planta-da foi de 6,7%, ou cerca de 473 mil hectares. A maior expansão ocorreu na região do Cerrado, principalmente em Mato Grosso do Sul (38,80%) e Goiás (50,10%).

Dados do Laboratório de Processamento de Ima-gens e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Goiás, indicam que o ritmo atual de des-matamento do Cerrado poderá elevar de 39% para 47% o percentual devastado do bioma até 2050. A pesquisa demonstra ainda que a destruição do Cerrado coloca em risco a disponibilidade de re-cursos hídricos para o Pantanal e a Amazônia, pois esses biomas estão interligados.

trabalho escravoAs usinas de cana se tornaram campeãs em

trabalho escravo nos últimos anos. De acordo com dados da Campanha Nacional de Comba-te ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2007, dos 5.974 trabalhadores resgatados da escravidão no campo brasileiro, 3.060 ou 51%, foram encontrados no monocul-tivo da cana-de-açúcar. Em 2008, dos 5.266 res-gatados, 2.553, ou 48% dos trabalhadores man-tidos escravos no país estavam em plantações de cana. De janeiro a junho de 2009, o número era de 951 trabalhadores, que representavam 52% do total. Ao final de 2009, o Ministério do Tra-balho registrou a libertação de 1.911 trabalha-dores nas usinas de cana nos estados de Goiás, Mato Grosso, Pernambuco, Espírito Santo, Mi-nas Gerais e Rio de Janeiro.

Em 2009, o Ministério do Trabalho inclui grandes usinas na chamada “lista suja” do tra-balho escravo. Uma delas foi a Brenco, que tem participação acionária de 20% do BNDES. Entre 2008 e 2009, o BNDES liberou R$ 1 bilhão para usinas da Brenco em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. Ao mesmo tempo, o Grupo Móvel expediu 107 autos de infração contra a empre-sa, que é presidida pelo ex-presidente da Petro-bras, Henri Philippe Reichstul. Apesar da prática de trabalho escravo, o presidente do BNDES, Lu-ciano Coutinho, anunciou a continuidade do fi-nanciamento para a Brenco.

Em 31 de dezembro de 2009, foi a vez do gru-po Cosan – a maior empresa do setor sucroalcoo-leiro do país, com produção anual de 60 milhões de toneladas de cana. Apesar da prática de tra-balho escravo, a Cosan recebeu R$ 635,7 milhões do BNDES em junho de 2009, para a construção de uma usina de etanol em Goiás. O BNDES man-teve o financiamento para a Cosan, mesmo após a evidência de trabalho escravo. A Cosan possui 23 usinas, controla os postos da Exxon (Esso do Brasil) e teve um faturamento de R$ 14 bilhões de reais em 2008.

Em outubro de 2009, o Grupo Móvel libertou 55 trabalhadores escravizados na Destilaria Ara-guaia (chamada anteriormente de Gameleira), no Mato Grosso. Segundo o auditor fiscal Leandro de Andrade Carvalho, que coordenou a operação, os trabalhadores estavam sem receber salário há três meses. Essa foi a terceira libertação realizada em oito anos na mesma usina. A Destilaria Ara-guaia pertence ao Grupo Eduardo Queiroz Mon-teiro (EQM) – um grande conglomerado econômi-co com sede em Pernambuco. O grupo controla outras usinas em Pernambuco, Tocantins e Mara-nhão, além de participar como acionista em ve-ículos de comunicação, como o jornal Folha de Pernambuco, a Rádio Folha de Pernambuco, Folha Digital de Pernambuco e Agência Nordeste.

Em junho de 2009, fiscais do Ministério do Trabalho e do Ministério Público detectaram ir-regularidades em usinas fiscalizadas na região de Ribeirão Preto, em São Paulo, entre elas a Ba-zan, Andrade, Central Energética Moreno Açú-car e Álcool, e Nardini Agroindustrial. As usinas não forneciam equipamento adequado (como lu-vas, sapatos e caneleiras) e foram constatadas ir-regularidades no pagamento da jornada de tra-balho. Os trabalhadores declararam que cortam cerca de 20 toneladas de cana por dia. Os fiscais também registraram condições precárias de mo-radia, como superlotação, locais com risco de in-cêndio e falta de condições de higiene.

Ainda em 2009, o Ministério Público do Tra-balho (MPT) conseguiu uma liminar que obriga a usina São Martinho, em Limeira (SP), a corri-gir irregularidades trabalhistas. Durante fiscaliza-ções nas safras de 2007 e 2008, o MPT constatou a falta de equipamentos de proteção, de seguran-ça no trabalho, de cuidados médicos, de condi-ções de higiene e de alimentação adequadas. A ação judicial inclui ainda a condenação da em-presa ao pagamento de R$2 milhões aos trabalha-dores por dano moral.

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trabalho degradanteA expansão de monocultivos para a produção

de agroenergia gera desemprego, pois causa a ex-pulsão de camponeses de suas terras, impede que outros setores econômicos se desenvolvam e gera dependência dos trabalhadores a empregos pre-cários e temporários.

José Alves é cortador de cana no interior de São Paulo e explica, “Esse serviço é muito ruim, a gente só vem porque precisa mesmo. Eu vim de Minas e lá não tem outro serviço. Mas a gente nunca sabe quanto vai receber, porque tem muito desconto do salário. Eu recebo uma média de $700 por mês, mas tudo é caro: aluguel, alimentação, e não so-bra nada. A gente sabe que a usina rouba no pa-gamento, mas temos que ficar calados.

A expansão e a crescente mecanização do se-tor canavieiro têm gerado maior exploração da força de trabalho. A maioria dos trabalhadores não tem controle da pesagem de sua produção di-ária. “A gente nunca sabe quanto vai ganhar e o pagamento vem com muitos descontos. A usina rouba no peso ou na qualidade da cana cortada. Por exemplo, uma cana que vale R$ 5,00 a tone-lada, eles pagam só R$ 3,00. É assim que a usina engana os trabalhadores”, denuncia D.S., corta-dor de cana em Engenheiro Coelho, SP.*

Outro trabalhador da região, Jacir Pereira, confirma a denúncia: “A gente ganha pouco e o salário não confere com o que a gente corta nem com o acordo coletivo. O acordo diz que o preço da tonelada é $5,85, mas a usina paga só $3,87. Eu tenho que cortar 18 toneladas de cana por dia, trabalhando de segunda a sábado. Só de aluguel eu pago $700,00 e não sobra quase nada”.

As mulheres, apesar de discriminadas pelas usi-nas, também se arriscam no trabalho pesado, como

conta a trabalhadora Odete Mendes: “Eu corto dez toneladas de cana por dia e ganho R$ 190,00 por semana. Só de aluguel, eu gasto R$ 270,00 por mês. Eu vim do Paraná, mas não quero ficar mais aqui. A gente vive num quarto muito pequeno, tem que dormir no chão. Eu já quebrei o braço e nem aguento mais pegar no facão. Sinto falta de ar, às vezes parece que vou morrer”.

Os movimentos repetitivos no corte da cana cau-sam tendinites e problemas de coluna, descolamen-to de articulações e cãibras, provocadas por perda excessiva de potássio. Carlita da Costa, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cosmópo-lis, conta que “quando começa a safra, você vai na roça e vê o pessoal todo com o pulso enfaixado, por-que abre o pulso e eles não conseguem movimen-tar a mão, não aguentam a dor. O pessoal tem muita tosse, muita dor de cabeça, muita cãibra”.

Os ferimentos e mutilações causados por cortes de facão são frequentes. Porém, raramente as empresas reconhecem esses casos como acidentes de trabalho. Muitos trabalhadores doentes ou mutilados, apesar de impedidos de trabalhar, não conseguem aposen-tadoria por invalidez. “Já quebrei o braço duas vezes. Quando alguém passa mal durante o trabalho, não recebe atendimento. Outro dia, um companheiro fe-riu o olho e a enfermeira da usina não quis atender. Querem o nosso serviço, mas não temos assistência médica quando alguém se machuca”, diz J.S., traba-lhador da usina Ester em São Paulo.

Como forma de evitar que os trabalhadores mor-ram de exaustão, as usinas passaram a distribuir estimulantes com sais minerais, após a divulgação de dezenas de casos de morte nos canaviais. “Um dos trabalhadores que cortava mais cana na usina Ester era o Luquinha, conhecido como “podão de ouro”. Em pouco tempo, ele ficou doente, sentia do-res em todo o corpo, não conseguia comer nem an-dar. Morreu aos 34 anos. O sistema do pagamento por produção é que causa a morte dos trabalhado-res”, explica Carlita da Costa, presidente do Sindica-to de Trabalhadores Rurais de Cosmópolis, SP.

“É comum ouvir tosse e gritos nos canaviais. Te-mos que inalar os agrotóxicos e a cinza da cana quei-mada o dia todo. Uma vez eu caí no monte de cana e senti um gosto de sangue na boca. Percebi que o corte da cana estava me matando”, completa Carlita.

MigraçãoEm São Paulo (maior produtor do país), a maio-

ria dos trabalhadores no corte da cana é formada por migrantes. O desemprego causado pelo mode-lo agrícola baseado no monocultivo e no latifún-dio aumenta o contingente de trabalhadores que se submetem a trabalhar em lugares distantes de sua origem, em condições degradantes. Esses tra-balhadores são aliciados por “gatos” ou “turmei-ros”, que realizam o transporte e fazem a interme-diação das contratações com as usinas.

A história do trabalhador E. S. ilustra a situ-ação dos migrantes: “tenho 27 anos e vim da Paraíba, porque lá não tem trabalho. Tem muito nordestino aqui. A gente ganha uns R$ 20,00 por dia, mas o custo de vida é muito alto. A usina bai-xa o preço da cana e não temos controle”.

Ana Célia tem uma história parecida, “tenho 24

anos e vim de Pernambuco. A usina rouba no peso da cana. A gente corta 60 quilos e recebemos so-mente por 50 quilos. Tenho problema na coluna, sinto dor no corpo todo. Já emagreci nove qui-los nessa safra. Meu marido cortava cana, mas foi afastado porque ficou doente. Quero ir embora”.

A trabalhadora Edite Rodrigues resume a situ-ação no corte da cana. “Tenho 31 anos e vim de Minas Gerais. Tenho três filhos e preciso trabalhar, mas a gente não vê a hora de ir embora. Quando termina o dia, o corpo está todo quebrado, sinto cãibra e ânsia de vômito. Mas no outro dia come-ça tudo de novo. A cinza da cana ataca o pulmão e não sara nunca. A terra fica seca com o sol quente e vem aquele pó. Às vezes só ganho R$ 50,00 por semana porque a usina engana a gente.”

Carlita da Costa conclui que, “vai continuar morrendo gente, o roubo vai continuar até o dia que acabar o trabalho por produção. Esse método de pagamento mata os trabalhadores”.

luta caMponesaApesar de ocupar apenas um quarto da área, o

Censo mais recente do Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística (IBGE), constatou que a agri-cultura camponesa responde por 38% do valor da produção (ou R$ 54,4 bilhões). Em relação à ge-ração de empregos, de cada dez trabalhadores no campo, sete estão na agricultura camponesa, que emprega 15,3 pessoas por 100 hectares. No caso da agricultura extensiva, em cada 100 hectares são gerados apenas dois empregos.

Segundo análise de Frei Sérgio Gorgen, dirigen-te do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), “No Plano Safra 2009/2010 foram destinados R$ 93 bilhões para o agronegócio e R$15 bilhões para a agricultura camponesa, considerando que 1 hectare da agricultura camponesa teve, em média, uma ren-da de R$ 677,00, enquanto que 1 hectare do agro-negócio teve, em média, uma renda de apenas R$ 368,00. Daquilo que vai para a mesa dos brasileiros, 70% é produzido pelos pequenos agricultores”.

Além de receber subsídios de forma despro-porcional, o latifúndio se beneficia com outras formas de privilégio, como a Medida Provisória que legaliza a grilagem de terras na Amazônia, a “flexibilização” da legislação ambiental e traba-lhista, a continuidade da prática de trabalho es-cravo, entre outras. O monopólio da terra impede que outros setores econômicos se desenvolvam, gerando desemprego, estimulando a migração e a submissão de trabalhadores a condições degra-dantes. Esse cenário significa que a resistência dos camponeses é estratégica, já que se encon-tram no centro da disputa por recursos estratégi-cos, com o avanço do capital no meio rural.

*Algumas entrevistas foram realizadas em setembro de 2009. Alguns nomes de trabalhadores foram substitu-ídos por suas iniciais para evitar retaliação por parte das usinas. A autora agradece ao Sindicato de Trabalhadores Rurais de Cosmópolis, ao Movimento Sem Terra e à Co-missão Pastoral da Terra pelo apoio à pesquisa.

Maria Luisa Mendonça é jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

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paulo Lins abre a porta de seu apartamen-to, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, e leva um susto: “Caramba, não sabia que

vinham mulheres! Vou colocar uma camisa”, diz. O autor de Cidade de Deus é um cara tranquilo, na dele. Não esboça reação nem diante dos melhores elogios. Suas emoções só afloram em, basicamen-te, dois momentos: empolgado, ao ler trechos de seu novo livro, Desde que o samba é samba é as-sim; e irritado, ao comentar a política de seguran-ça do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, “talvez tenha sido o governo que mais matou”. Nesta conversa, o escritor Paulo Lins oferece ao leitor da Caros Amigos informações inéditas so-bre o filme Faroeste Caboclo, do qual é roteirista, e apresenta com alegria de criança seu novo roman-ce. Além disso, fala sobre literatura, educação, cul-tura, política e as coisas da vida.

Fernanda Chaves – Como é ter filhos? Paulo Lins – São dois meninos, um de 28, outro de quatro e uma menina de 20. O menorzinho vai morar em São Paulo. Estou indo para lá para ficar com ele. É muito legal ter uma criança aos seus cuidados, filho ou não, pois a condição de pre-parar outra pessoa para o mundo nos faz buscar o rigor da ética (estou falando no sentido estrita-mente filosófico) para o convívio social. E tam-bém a criança nos aproxima da natureza, nos faz cuidar da saúde para ter força para correr, brin-car, carregar no colo, pegar jacaré na praia, jogar bola. Enfim, brincar nos traz saúde e ter saúde é brincar de qualquer coisa. Mas também dá traba-lho e preocupação. Tem hora que a gente se es-tressa. Quando o Fred fez oito, nasceu a Mariana e quando ela fez 16, nasceu João. Eu nunca vivi sem criança em minha vida, sem contar os alu-nos, que também nos forçam a procurar ser um ser humano mais maneiro. Agora, a minha filha é a rainha. Ela falou que eu posso ter quantos filhos eu quiser, menos menina. Eles são lindos!

Fernanda Chaves – E ela está tentando vestibular para quê?

Produção cultural. Meu filho também faz pro-dução cultural. Eu queria um médico e um advo-gado na família, mas o pessoal foi para área cul-tural (risos).

Marcelo Salles – E seus pais, liam muito?

Eu tinha uma tia, Celestina, que me lia histórias

entrevista Paulo lins

do mundo quando eu não sabia ler. Outro estímulo para arte foi dona Marília Freitas e dona Sônia For-miga. Uma com a literatura e a outra com a música. As duas foram minhas professoras no primário.

Marcelo Salles – Isso onde?

Cidade de Deus.

Marcelo Salles – Tanta influência desaguou no livro Cidade de Deus. Para quantas línguas foi traduzido?

Acho que 15 ou 14. Grego, polonês, alemão, coreano...

Marcelo Salles – A que você atribui esse interesse de vários países no seu livro?

O Brasil estava em pauta no mundo pela sua vio-lência urbana. Uns três anos antes de sair o livro, teve um político, Moreira Franco, que disse que iria acabar com a violência em seis meses, ele se elegeu assim. Imagine a pressão. Então, quando sai um li-vro desse com uma visão interna, de uma pessoa que viveu, que morou na favela, como eu, o interesse era quase natural. O filme saiu em época de eleição e isso deu mais fórum. Como teve muito interesse aqui no Brasil, desencadeou um interesse mundial. Se um li-

vro faz muito sucesso no país dele, é traduzido pra-ticamente no mundo todo. Acho que foi o assunto e a preocupação estética que eu tive de fazer uma lin-guagem coloquial hiperdistensa (o livro é totalmen-te oral, com o falar de rua da favela). Na verdade, tudo o que está no livro estava na mídia todo dia. E, quando saiu o livro, parecia algo novo, mas não foi. É que tem um trabalho de arte onde as coisas ficam mais claras por causa do sentimento.

Marcelo Salles – Dá trabalho?

Tem que transpirar o tempo todo. Lendo muito e escrevendo ao mesmo tempo.

Daniela Murteira de Salles – Quanto tempo demorou?

Cinco, seis anos. Mas envolvido com o tema, dez anos. Aí parava de dar aula, sou professor, né? Pa-rei várias vezes... Escrever é uma coisa que você tem que fazer todo dia, tem que se dedicar cinco, seis ho-ras. E relendo o tempo todo, lendo romances, po-esia, contos, teoria, filosofia, história, enfim, lendo tudo e ainda ter que ficar ligado no que está acon-tecendo, que é fundamental para quem está mergu-lhado nos livros, senão a gente sai da real. Pode até se achar um ser superior (risos).

Samba, cinema, literatura

Paulo Lins, o autor da Cidade de Deus, irá lançar um segundo romance.

e a violência no Rio de JaneiroParticiparam: Marcelo Salles, Fernanda Chaves e Daniela Murteira de Salles. Fotos: Fernanda Chaves

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Marcelo Salles – E, nesse seu processo de escrita, como você faz: joga o texto todo e depois vai arrumando ou pensa em cada palavra?

Eu costumo escrever duas páginas por dia. E es-tou sempre relendo. Ontem mesmo fui dar uma en-trevista, comecei a falar do livro, depois comecei a ler (gravando) e a mudar algumas coisas enquanto estava falando na própria entrevista. Eu estava len-do uma parte do livro para ir ao ar e mudei na hora uma frase do romance. Toda vez eu reescrevo.

Marcelo Salles – E o que você lê?

Nesse minuto eu estou lendo Monodrama de Carlito Azevedo, que é poesia. Eu gosto muito de filosofia e história, mas o que eu mais leio é muita poesia. Mas já andei pela sociologia, pela antropo-logia esse ano. Vou lendo de acordo com a neces-sidade de fazer um novo trabalho. Agora, voltan-do ao Carlito, o livro dele foi a coisa mais grata que me aconteceu ainda no final do ano passado. Fi-quei com mais vontade de escrever. Quanta poesia no texto dele, como ele escreve bem! Quando co-mecei a ler o Monodrama me deu vontade de reler Drummond, Bandeira, Cabral, Pound.

Marcelo Salles – Qual a importância de Roberto Schwarz para você?

A primeira vez que li o Roberto foi numa disci-plina optativa de poética do André Bueno, na Fa-culdade de Letras da UFRJ em 1983 ou 84, não me lembro bem. Eu tinha vinte e poucos anos. Foi um xerox de um artigo dele que a gente discutiu em sala de aula. Mas logo li A Sereia e o Desconfia-do, Ao Vencedor as Batatas, Pai de Família, de uma vez só. Naquela época, quando eu pegava um au-tor assim fundamental, lia logo a obra toda. Meus amigos também faziam assim. Um Mestre na Peri-fa e Que Horas São”, Duas Meninas e Sequências Brasileiras ele publicou depois. Depois fui lendo o resto da obra dele, sempre que publicava. Quando eu li Ao vencedor eu estudava grego e latim, esta-va iniciando as leituras de linguística, que eu gosto muito, e fascinado por Filologia Românica, estava lendo os provençais também. Era quase um parna-siano. De repente, de enxurrada, junto com Roberto veio Antonio Candido, Heloísa Buarque de Hollan-da, os poetas marginais ali também tão próximos. Logo pintou Walter Benjamin, Roland Barthes, Mi-khail Bakhtin. E vieram os historiadores filósofos franceses, os pensadores alemães. A poesia concre-ta estava em pauta como nunca depois de trinta anos. Na verdade todo mundo estava lendo essa ra-paziada. Enfim, o “Ao Vencedor” me deu vontade de mais crítica, pois antes eu só lia poesia. Era raro eu ler prosa. Só lia prosa e crítica para fazer traba-lho e por obrigação. Até hoje leio mais os poetas do que os prosadores. Às vezes, passo o dia lendo po-esia. Depois, a Alba Zaluar veio com antropologia. Ela nem mandava ler, ela trazia o livro, entregava e nas reuniões ela ia dando aulas no meio do traba-lho. Voltando ao Roberto, quando eu o conheci pes-soalmente eu estava um tanto chateado com ele por causa do Que Horas São. Se o Ao vencedor foi um abre alas para crítica, o Que Horas São? foi um sa-colejo porque ele se meteu a falar daquele momen-to, ou pelo menos da poesia que se discutia naquele

momento (em Sequências Brasileiras ele faz isso de novo) e me desestruturou o pensamento a respeito da poética. Eu passei a conceber a literatura de outro jeito. Comecei a questionar tudo com raiva, porque não queria rever nada e sem querer eu fui mudan-do os meus conceitos. Se o Roberto não tivesse lan-çado Que horas São?, o Cidade de Deus seria outra coisa. A Alba Zaluar disse que ia me apresentar ao Roberto, e eu falei que não queria conhecê-lo por causa daquele livro. Estava chateado com ele. Até hoje ele ri disso. A coisa estava pesada nos anos de 1980. Além de ter que encarar o Plano Cruzado, a gente da poesia perdeu Drummond, Vinicius de Mo-raes, o Leminski morre logo em seguida. E o Rober-to me vem com aquele livro. Só depois que fiquei de bem com o texto. Vou até ler de novo. Tem tem-po que eu não leio.

Marcelo Salles – Eu tinha uma professora de literatura que dizia “não vou colocar ideia na cabeça de quem não tem ideia”.

Eu acho errado isso. Porque o pensamento vem de fora e pensa que vem de dentro, como disse, acho, o Arnaldo Antunes. Não sei se foi ele que dis-se isso, mas é bem a cara dele. Acho que tem que botar ideia sim, botar ideia e discutir. Ninguém nas-ce sabendo nada. Todas as conclusões vem de fora, vem da pesquisa, vem do desenvolvimento, vem do desenrolar de ideias. O conhecimento é nossa maior herança que recebemos e que damos. A comuni-cação que eu mais gosto é a palavra. Eu queria ter conversado com Machado de Assis. Eu sou apai-xonado pela literatura. A tradicional mesmo, tanto fora como aqui dentro. Eu sou da turma que lê Ma-chado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa. É nela que eu procuro me conhecer, conhecer o Bra-sil. Conhecer o humano. A cada dia eu gosto mais de João Cabral, Manuel Bandeira, Drummond, Ha-roldo de Campos, Carlito, Ferreira Gullar, um mon-te de gente. Machado de Assis é um gênio mundial. Mas não é reconhecido como tal. Em certos países, ele não é muito comentado. Na Polônia, na Estônia, não tem Graciliano Ramos. E é um escritor de ní-vel internacional. Ele é tão bom quanto Allan Poe. É tão bom quanto Dostoievski. Você pode colocar o Machado de Assis ao lado de Shakespeare. A litera-tura brasileira é de alto nível. E a maioria do povo brasileiro não tem noção disso.

Marcelo Salles – Você não colocaria o Lima Barreto entre os grandes?

Colocaria. Tem vários. João do Rio é um gran-de escritor e é pouco comentado. Bem diferente de Machado, mas tem sua graça, sua contribuição his-tórica, linguística e sua poética também.

Marcelo Salles – Tem pouco professor no Brasil?

De uma certa forma, o ensino vai bem. Falar isso é confuso, mas estou falando aqui em termos bem amplos...

Marcelo Salles – É, porque o salário do professor...

A escola se universalizou no Brasil. São raros os municípios que não tem escola. Isso é um grande

avanço. Começou com Getúlio Vargas e nunca mais parou. Até mesmo a ditadura construiu escolas, por-que os militares eram desenvolvimentistas. Todos os governos trabalharam bem o desenvolvimento de espaços de ensino. Agora, resta qualificar melhor o professor, equipar as escolas e pagar um salário de-cente aos funcionários da educação.

Marcelo Salles – E a experiência dos brizolões aqui no Rio?

Acho que o PMDB foi muito cruel na época. Aquele Plano Cruzado atrapalhou a criação dos bri-zolões. E não desenvolveram o projeto de Darcy Ri-beiro em toda sua plenitude, onde era fundamen-tal a interação da escola com a comunidade. Não deram o devido valor aos brizolões e os professo-res foram e são verdadeiros heróis, porque desen-volveram vários projetos interessantes sem a ajuda do poder público. Em São Paulo, não sei o que Ser-ra fez com os CEUs. No governo da Marta [Suplicy], tinha a interação da comunidade com a bibliote-ca, a música, artes em geral, era latente, coisa que acontecia também com a prática esportiva. A esco-la tem que ser constantemente geradora de conhe-cimento e cultura e um centro integrador sem pre-conceito ou discriminação. E a sociedade toda tem que abraçar a escola como abraça a seleção de fu-tebol. O fato de uma criança ficar na escola o dia todo num país como o nosso é louvável. Quando eu estava no governo tampão da Benedita, encomen-dei uma pesquisa em quatro favelas da cidade sobre atividade cultural. Uma na zona sul, uma na zona norte, uma na zona oeste e uma na baixada flumi-nense. Todos queriam, em primeiro lugar, bibliote-cas. E o que acontece no país: a grande maioria das escolas públicas não tem bibliotecas. E a população tem acesso àquilo que o Estado dá. Na Rocinha não sei se tem, não sei se no Macaco, no São Carlos, no Borel tem biblioteca.

Marcelo Salles – No Alemão não tem, estão construindo agora com o PAC.

Por falar em Alemão, Sérgio Cabral fala, por exemplo: “a polícia sobe na favela e tem que trocar tiro mesmo, porque o traficante não recebe a polícia com flores e sim com tiros, então a polícia responde à altura”. Com essa teoria de porta de cabaré, talvez este tenha sido o governo que mais matou nesse Es-tado. A polícia é recebida com tiro porque o Estado deixa as armas e munição chegarem lá pela corrup-ção. E as drogas também. Drogas nem tanto, porque as drogas não são oficiais como as armas – não há fábrica de armas clandestinas. Então são os empre-sários do setor e os governos que são os responsá-veis pelas armas que estão matando essas crianças, esse meninos semianalfabetos, desnutridos, sem cul-tura, sem educação, com fome e com raiva. A polícia do Sérgio Cabral matou tanto que quatro desembar-gadores, cinco juízes, músicos, artistas, professores, jornalistas, além de diversas entidades como OAB, Tortura Nunca Mais, MST e pessoas como Marcelo Yuka, Letícia Sabatella, Lobão, Beth Carvalho, Nilo Batista, Carlos Latuff, Cecília Coimbra, Vera Mala-guti e várias outras assinaram um manifesto contra essa política assassina do início do governo dele. Eu também assinei. Não é fácil dar tiro na polícia, tem

e a violência no Rio de Janeiro

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que ter peito. Para o cara sentar o dedo na polícia, ele está dando tiro em toda a sociedade. Então, quan-do ele atira num policial, ele está atirando no presi-dente da República, nos deputados e senadores, no governador; nas pessoas que discriminam, está ati-rando nos racistas, nos corruptos, nos ladrões da po-lítica, nessa gente que só pensa em lucro. Enfim, ele está atirando no que a gente tem de pior. Está ati-rando naquilo que o faz existir.

Fernanda Chaves – Com o passar dos anos foi aumentando essa violência, você tem essa percepção?

Aumentou o número de armas. Esse negócio de dizer que arma vem pela fronteira... A maioria das armas que eu vi nas favelas do Brasil é fabri-cada aqui. Munição também. A política de segu-rança do Sérgio Cabral matou muita gente. Ele é o responsável. Essa política de ocupação que ele está fazendo não significa nada. Qual o grande projeto de recuperar os bandidos? Os trafican-tes estão indo para onde? Depuseram as armas? Saíram do crime? Eu fico com medo de o Esta-do ocupar a maioria das favelas, segregar moni-torando o deslocamento dessas pessoas e depois matar todo mundo de uma vez, dizendo de novo que não foi recebido com flores. Isso não tem ca-bimento porque o Brasil não tem pena de morte.

Marcelo Salles – Você está jogando luz num segmento que poucos ousam defender.

Existem trabalhos que resgataram pessoas desse universo e outros que evitaram que pessoas entras-sem no crime. Então, se tiver oportunidade, a pessoa vai fazer outra coisa. Ninguém quer ser bandido.

Marcelo Salles – Há quem diga que o problema é da natureza da pessoa, uma maldade inerente a determinadas pessoas.

Isso é lombrosiano, é ridículo. Não pode existir crime organizado se não tiver corrupção. Não pode existir tráfico de drogas e armas se não existir cor-rupção. Tinha que liberar as drogas. Criminalizar as drogas é fonte de corrupção. É para juiz ganhar dinheiro, para advogado ganhar dinheiro, para po-lícia ganhar dinheiro, para governantes corruptos ganharem dinheiro. Por que é crime vender, com-prar e fumar? Na Suécia não é. Na Espanha não é. Por que no Brasil só é crime para pobre? Porque o usuário de classe média, alta, vai para clínica de recuperação. E pobre vai para a cadeia. E apanha da polícia na rua, quando não é extorquido. Eu já vi policial pegar dois reais de um usuário para não levá-lo preso.

Daniela Murteira de Salles – Há sete anos, em entrevista à Caros Amigos, você disse que tem pouco bandido no Brasil. Ainda pensa assim?

Para o tamanho da desigualdade social, pela tortura do racismo (racista é igual a torturador), pela corrupção pública e privada (nessa qua-se ninguém fala) e pela pobreza, o número des-ses bandidos armados, semianalfabetos, famintos que nascem nas favelas e periferias da América Latina é muito pequeno. Só tem esse tipo de cri-minalidade onde teve colonização e escravidão.

Marcelo Salles – Então isso seria reflexo da violência da colonização?

Claro que sim! Nossa violência é bem pareci-da com a de Caracas, Quito (onde tem armas bra-sileiras nas mãos da população pobre), Cidade do México e de várias cidades não só da América do Sul, mas da América Central e África. O crime do colarinho branco já é diferente, a maioria é gen-te de classe média e classe alta. Eu estou falando do crime urbano violento.

Fernanda Chaves – Quer dizer, violento de maneira mais imediata, porque o outro também é violento na medida em que...

Exatamente, esse crime armado. O outro é dis-farçado de desarmado.

Fernanda Chaves – E João de Santo Cristo, Jeremias, Maria Lúcia... Quem teve a ideia de filmar Faroeste Caboclo?

Várias pessoas. Já fui chamado para fazer esse filme duas vezes. Tinha dado problema com os di-reitos autorais, então só agora estou terminando o roteiro. Vai começar a rodar este ano.

Marcelo Salles – Quantas páginas tem o roteiro?

125, mas vai mudar.

Fernanda Chaves – A gente sempre ouviu essa música e achava que era um roteiro pronto.

Engana-se quem acha que essa música é um ro-teiro pronto. Como música ela funciona, mas como roteiro a gente teve que inventar muita coisa, sobre-tudo na volta de João de Santo Cristo para reencon-trar Maria Lúcia. Vários amigos ajudaram: Bráu-lio Montalvani, Marçal Aquino, Marcos Bernstein, Fernando Meireles, José Belmonte.

Marcelo Salles – Vai filmar onde?

Brasília e parte da Bahia.

Marcelo Salles – Conte mais! Quando ele [Renato Russo] escreveu essa letra

– isso a mãe dele que me falou – ele botou o fi-lho, a mãe, a irmã e disse: “vou cantar uma músi-ca pra vocês”. Como se tivesse feito a maior obra de arte da vida dele. É mais uma história de vio-lência. Só muda o local. E o Rio de Janeiro tem migração muito grande, assim como São Paulo. A gente tenta fazer uma história de amor. Mais do que uma história violenta. Porque o amor é um assunto inesgotável.

Marcelo Salles – Vamos falar do livro que você está terminando. O nome é mesmo Desde que o samba é samba é assim?

Caetano, que é uma de minhas maiores refe-rências criativas, liberou. “Não quero alegrar e sim cantar para fazer qualquer boa emoção con-tida desabrochar pelo desempenho do meu povo. Mostrar o mundo mais belo do que se imaginou vida afora. Mundo que se quis na infância, quan-do havia a possibilidade de se encontrar uma fada no caminho e pedir a ela milhões de estrelas ca-dentes, uma lua que falasse com a gente e o bem querer de todo mundo. Agora, esses pedidos estão sendo atendidos, através da arte, que abençoa os nosso desejos, colorindo assim a sedução”.

Marcelo Salles – Então vai ser um romance, não é?

Isso, não é documentário, não. É a história da Cristina, uma professora universitária do Rio de Janeiro que pesquisa a história do samba. Quando ela ia fazer a pesquisa no Arquivo Nacional, surge uma nova história. Tem a vida dela, uma mulher, professora universitária de classe média baixa, e a história do Estácio (bairro carioca).

Fernanda Chaves – E quais são as principais personagens femininas do livro?

As professoras normalistas do Estácio e as prosti-tutas, que tem papel importantíssimo, e há as mulhe-

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res que construíram as primeiras organizações popu-lares de moradores. As mães de santo, tia Ciata...

Marcelo Salles – O samba é negro?

É.

Marcelo Salles – Por quê? Porque ele foi produzido num bairro negro, por

pessoas negras e com instrumentos africanos, da África negra, e baseado em outros ritmos africanos também. O samba é negro e carioca.

Marcelo Salles – Então não tem mais dúvida se o samba nasceu na Bahia ou no Rio?

O samba é carioca! O samba nasceu aqui! O sam-ba de Nelson Cavaquinho, do Xangô da Mangueira, do Cartola, do Ismael Silva. O que nasceu na Bahia foi o Axé e outros ritmos. O samba é arte de vanguar-da muito importante no Brasil, tanto quanto o mo-dernismo de Mário e Oswald de Andrade. Porque deu no que está aí: a música oficial do Brasil é o samba e nosso maior espetáculo é o desfile das escolas de samba. Isso é uma vitória! A grande festa do Brasil qual é? É o Carnaval? E onde está? Está aqui do lado, no Estácio, no sambódromo. Vou colocar o nome dos caras que inventaram isso tudo: Ismael Silva, Alce-bíades Barcelos, o Bid, Armando Marçal, Nilton Bas-tos, Edgar Marcelino de Passos, o Mano Edgar, Silva Fernandes, o Brancura, Oswaldo Vasques, o Baiaco, Ruben Barcelo, Mano Ruben, General Lopes e Auré-lio Gomes fundaram a Música Popular Brasileira. É a base da Música Popular Brasileira essa música que está aí. Esses caras produziram um ritmo novo sa-bendo o que iriam fazer. É vanguarda. Pensado, ela-borado. Na mesma época que estava nascendo a um-banda nasceu o samba carioca, o grande samba, o samba. O resto era samba de roda, jongo, eram outros batuques, outros ritmos. Esse pessoal fala que é tudo uma coisa só. Como se o tambor fosse tudo uma coi-sa só. Às vezes o cara está batendo tambor ali, signi-fica canto de morte ou de guerra, só porque é tambor é tudo parecido, não é. É o mesmo instrumento, mas o toque é diferente. Ah, já existia o samba de roda na Bahia... Nada disso! É outra parada.

Fernanda Chaves – O samba nasceu em que bairro do Rio?

Na região da chamada Pequena África, Catum-bi, Estácio, pra onde vieram os negros. E esses caras criaram a base da música. Tem uma história inte-ressante de um senhor que pergunta a Ismael Sil-va o que é o samba. “O chefe da polícia pelo tele-fone mandou lhe avisar”. Aí o Ismael Silva diz que isso não é samba, é maxixe. Como é o samba? “Se você jurar que me tem amor, eu posso me regene-rar” (cantarolando). Então o samba é negro, todos eram negros e mulatos...

Marcelo Salles – Inclusive o Brancura?

Inclusive o Brancura. Tem duas versões para ele. Alguns autores dizem que é porque ele só gos-tava de mulher branca, outros dizem que é porque ele se vestia de branco. O Bid inventou o tambo-rim, e inventou o bumbumbaticumbumburugun-dum. O tamborim nasceu assim: ele pegou, cor-tou uma lata, fez uma circunferência e queria um

instrumento que desse um tom mais agudo. Tava ele, o Ismael Silva e o Brancura. Cortava uma lata de manteiga com faca e martelo, enquanto Alma Negra sussurrava uma letra procurando um mote no violão. “Agora é só arrumar um coro e prender aqui que está pronto, disse Dunga depois que cor-tou a lata. Tem que pegar um coro lá no terreiro quando tiver matança. Mas um instrumento des-se tamanho mesmo?, perguntou Alma Branca. É, meu avô falava que (...) tocavam um negócio as-sim. Vamos ver se dá certo. Coro de cabrito é muito grosso, tinha que ser mais fino, tipo coro de gato. É um instrumento bom na preparação da segunda do samba, na hora do refrão. Também é precioso para esquentar o ritmo” (citando trechos do livro).

Marcelo Salles – E sobre a perseguição ao samba?

Mas a história nasceu da perseguição da polí-cia, o samba nasceu apanhando. Era manifestação de negros, tanto a umbanda quanto o candomblé. Uma das coisas que tinha a ver com o samba era o candomblé. E muito mais a umbanda. O Ismael Silva fala que às vezes tava tocando samba e vira-va macumba. Então, para não apanhar da polícia, Ismael Silva e eles criaram um bloco de corda. Já tinha samba de branco, de cordões. Então pra polí-cia deixar, na Praça XI, porque os negros não che-gavam. Por exemplo, Pixinguinha foi proibido de tocar em vários lugares. Aí nasceu o Deixa Falar, que já tem um ritmo diferente, tem o tamborim.

Marcelo Salles – O tamborim marca a diferença?

O tamborim e o surdo. O surdo é a marcação. Era o cantor que puxava, improvisava e o resto do pessoal tinhas as músicas. Aí o Ismael Silva queria uma música que desse pra cantar e dançar ao mes-mo tempo. A Música Popular Brasileira nasce na mão de Ismael Silva. O Brasil é conhecido no mun-do todo pelo samba. E é muito forte também inter-namente. Os músicos são tratados como deuses. Te-mos reis, príncipes, damas.

Marcelo Salles – Mas nosso rei da música é branco.

Mas o grande rei da música já era Francisco Al-ves. Só depois virou o Roberto Carlos. O que im-porta é que temos mestres, damas, reis, príncipes e revelações a toda hora na música popular feita no Brasil de toda cor, de toda origem. Assim como Vi-nicius de Moraes e Mário de Andrade conheceram Ismael Silva, Carlos Drummond de Andrade ia para a Mangueira prosear com Cartola. Só tem música boa quando tem mestiçagem. Olha a música fran-cesa, espanhola, portuguesa. Compara com a bra-sileira, americana, jamaicana. Acho que a mestiça-gem cultural... A base da umbanda é o candomblé, os deuses estão todos presentes, mas tem o catolicis-mo, tem espiritismo, tem religiões do oriente, budis-mo. Então acho que tem essa mestiçagem cultural. E o samba é a mesma coisa. O Brasil é isso. A umban-da é carioca também, nasce em Niterói. E o Ismael Silva é de Niterói. O maior sambista do Brasil é nite-roiense. E ficou preso porque deu um tiro na bunda de um português que molestou sua irmã.

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analistas políticos em Israel estão acostu-mados a ligar a tendência crescente do eleitorado do país de escolher líderes na-

cionalistas cada vez mais extremistas e brutais ao aumento também intenso da resistência palestina. Dizem isso apesar do fato de Israel gozar de fato do apoio militar sem limites dos Estados Unidos, que lhe mandam continuamente os armamentos mais sofisticados.

A liderança eleita tinha como plataforma au-mentar a segurança de Israel, mas isso virou uma piada. A cada dia novos confrontos jogam gaso-lina nas chamas crescentes do Oriente Médio. Eis como a liderança provocou essa insegurança da população israelense:

1. O assassínio do líder do Hamas em Dubai.Mesmo estando em vigência o novo acordo de

cessar-fogo entre o governo de Israel e o Hamas, agentes do serviço secreto israelense assassinaram em Dubai o líder do Hamas, ignorando completa-mente as leis internacionais. Isso provocou reações raivosas de governos ocidentais, em Londres, Berlim e Paris, pois foram usados passaportes falsos desses países pelos agentes assassinos. No fim, foram dados mais argumentos ao fundamentalismo do Hamas, pois esse assassínio tira a máscara de Netanyahu e Lieberman. Simultaneamente, foi liquidado o pouco crédito de que a Autoridade Palestina gozava, acu-sada que é de ser agente de Israel.

2. Anexação a Israel de lugares sagrados tam-bém para os palestinos.

A nova iniciativa do governo de Israel é de anexar lugares sagrados para as três religiões, como o Túmulo de Raquel e o Túmulo de Abraão em Hebron, que ficam no coração da Palestina. Isso abriu uma nova frente de batalha – não é mais guerra de resistência, e sim uma guerra san-ta, que vai juntar todo o mundo muçulmano con-tra Israel e dar legitimação às acusações dos fun-damentalistas islâmicos do Irã sobre a verdadeira intenção de Israel, de anexar mais terras e ame-açar todo o mundo islâmico, e dos fundamenta-listas do Hamas. Especificamente, Ahmadinejad quer transformar esse conflito entre nações num conflito entre religiões, para juntar todo mun-do contra Israel, para liberar os lugares sagrados. Tudo isso vai multiplicar os riscos de Israel bom-bardear o reator atômico iraniano.

3. Visita do vice-presidente dos Estados Unidos.Quando o vice de Obama, Joe Biden, desceu

do avião, nesse exato momento o governo israe-lense anunciou a construção de 1.600 novas ca-sas de judeus em Jerusalém Oriental, o que levou a protestos do governo de Washington, mais graves do que jamais haviam sido feitos pelos EUA con-

tra Israel. Hillary Clinton se disse “insultada”. O chanceler brasileiro Celso Amorim disse que nun-ca ouviu, por parte dos Estados Unidos, uma de-claração tão hostil a Israel.

Podemos achar que um chefe de governo com experiência parlamentar, como Bibi Netanyahu, cercado de conselheiros bem treinados, tinha ca-pacidade de entender como essas provocações re-percutiriam em prejuízo de Israel. Será que ele vai utilizar esses riscos só para mostrar ao mundo que não tem com quem conversar?

Na minha última passagem por Israel, durante as recentes eleições, muitos dos meus amigos dos movimentos da esquerda, perturbados no labirin-to em que estamos presos, justificaram seu apoio a Netanyahu usando o argumento de Begin, de que só um homem da extrema direita nacionalista ti-nha condições de fazer um acordo com o Egito, o que não esteve ao alcance da social-democracia governante durante décadas. Pois não havia nin-guém à direita de Begin para protestar contra o acordo com um país árabe.

Mas agora Netanyahu não tem condições de cumprir sua promessa a Obama, do reconhecimen-to de dois Estados para dois povos. Ele tem à sua di-reita os ortodoxos e o parceiro nacionalista Lieber-man, mais fortes do que as pressões de Obama.

Até o presidente americano saiu do embate por nocaute técnico. Não sobrou nada das promessas que Obama fez ao povo americano na campanha eleitoral. E agora o bloco dos colonos judaicos na Cisjordânia subjuga Netanyahu, embora não pas-sem de 5% da população de Israel e os ortodoxos não passem de 12% da população total.

Uma minoria barulhenta e sectária, com meios de chantagem na coalizão, obriga Netanyahu a adotar essas atitudes provocadoras e trágicas, des-providas de qualquer lógica. Será que anexar esses lugares sagrados é importante para garantir a segu-rança dos cidadãos de Israel? Esses acontecimentos nos jogam a 14 anos atrás. Em 1996, encontrei os representantes do Ministério de Relações de Isra-el na Tenda da Paz, construída ainda no tempo de Rabin. Me deram as boas-vindas, pois eu estava a caminho de encontrar Yassir Arafat e o seu minis-tro da Propaganda, Yassir Abed Rabd, atual secre-tário-geral do Al Fatah, em Ramallah.

Essa reunião foi para ver as possibilidades de construir um Monumento à Paz dos Heróis (entre Rabin e Arafat) sobre uma colina em Beit Jala, um subúrbio de Jerusalém Oriental, na antiga frontei-ra entre Jerusalém Oriental e Jerusalém Ociden-tal. Essa colina havia sido doada pela Igreja Or-todoxa Grega.

Depois, fomos, juntamente com o prefeito de

Beit Jala, Raji Zaidan, contemplar o magnífico pa-norama. Abed Rabd fez um comentário sarcás-tico sobre os dois lados fundamentalistas, sobre seu hábito de descobrir sempre mais e mais luga-res sagrados onde alguém está enterrado, embo-ra esse alguém já tenha cinco túmulos em lugares diferentes. “Cada vez que precisamos construir ca-sas para mais habitantes, eles não deixam. Se não conseguirmos frear essa tendência à violência so-bre nossos territórios, vai ser difícil encontrar uma solução”, concluiu Abed Rabd.

Gershon Knispel

Gershon Knispel é artista plástico.

Isso reforça a segurança de Israel?

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Monumento dedicado ao Dia da Terra, em Sakhneen.

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ahistória da arte sequencial, assim defi-nida por Will Eisner, ou simplesmente “quadrinhos”, tem um desenvolvimento

bastante particular no Brasil. Não raras vezes li-gada à vida social e política do país, ofereceu di-versas crônicas da vida brasileira, desde a crítica de costumes do “Amigo da Onça” dos anos 1950 até os violentamente poéticos, e não menos en-graçados, webcomics (tirinhas virtuais) dos anos 00 de André Dahmer.

O Brasil passou por gerações influenciadas por escolas inglesas, europeias e japonesas, mas ad-quirindo particularidade em seu desenvolvimen-to especialmente no formato tirinha – sketch de 3 quadros, publicado em jornais, inicialmente como forma de humor simples, mas assombrosamente versátil e poderosa. Prova disso são os desenhis-tas das últimas gerações, de Henfil e sua crítica à ditadura dos anos 70, passando pela geração que ficou conhecida como underground dos anos 80, representada por Angeli, Laerte e Glauco, e poste-riormente por Adão Iturrusgarai, condensados em fórmula pela publicação “Los Tres Amigos”, dese-nhada e escrita pelo quarteto.

Geração 00Atualmente, uma nova geração se destaca por

seus trabalhos publicados na internet. Essa geração, pioneira no território virtual, é representada primor-dialmente por André Dahmer (nosso entrevistado de honra), Arnaldo Branco (responsável pelas tirinhas Mundinho Animal e Capitão Presença) e o mau-hu-morado gaúcho Allan Sieber, radicado no Rio de Ja-neiro. Mesmo entre os novos talentos existe a influ-ência de escolas diferentes. Dahmer, Sieber e Branco possuem em comum a pouca preocupação com a exatidão de seus traços.

“A gente percebe que existe, na nova geração, autores que procuram fazer romances gráficos. É o caminho que o Gabriel Bá e o Fábio Moon se-guiram, com muito mérito. Me parece que é o ca-minho que o Rafael Grampá está fazendo, e um pouco também o Rafael Coutinho. É uma geração muito talentosa”, analisa Paulo Ramos, editor do Blog dos Quadrinhos. Até então os romances gráfi-cos eram pouco explorados no Brasil, porém, hoje, “os garotos de São Paulo” (Grampá é gaúcho, mas vive na capital paulista) são referência no estilo. Em julho de 2008, os gêmeos Fábio Moon e Rafa-

el Bá e Rafael Grampá ganharam o Eisner Awar-ds, prêmio de expressão internacional. “É incrível como esses garotos de São Paulo fazem a parte de-les e a gente aqui no Rio faz a nossa. A gente está mais perto do Glauco, do Henfil, do Angeli do que eles, que estão mais próximos do Will Eisner”, afir-ma André Dahmer.

Dentro ainda da nova geração, está Rafael Sica, que faz o quadrinho “ordinário”. Suas tirinhas, sem-pre em preto e branco, revelam uma surreal (literal-mente) rotina de Porto Alegre, assustadora por suas nuances. O absurdo e o casual convivem lado a lado no seu traço, que desrespeita frequentemente os li-mites dos três quadrinhos e ajuda a inaugurar uma perspectiva diferente do humor tradicional, traba-lho de parto empreendido duramente nas últimas décadas pelos grandes nomes desse ofício.

Exemplo disso são os trabalhos dos últimos anos de Laerte, que tem reinventado sua obra e o próprio formato dos quadrinhos, ou seja, a velha-guarda, fa-zendo trabalho de nova. Para Paulo Ramos, “o Laer-te não só se reinventou, ele reinventou o gênero. Ele faz construções que são ora filosóficas ora crônicas ora pensatas ora poemas. Não tem a característica da tira cômica, com um desfecho inesperado. Estamos até tentando buscar um nome pra isso, tenho cha-mado de tira livre, mas não acho ideal. É uma ino-vação especificamente brasileira, não conheço para-lelo disso em nenhum lugar do mundo”.

Novas mídiasSe o cartunismo se popularizou no Brasil por

meio de revistas e jornais, como o Pasquim, Fo-lha de S. Paulo, Chiclete com Banana etc., hoje os principais nomes surgem na internet, em blogs e sites. Aliada à crise do mercado editorial de HQ, que causa o estancamento de novas publicações do desenho nacional – apesar de abundarem mangás e os clássicos super-heróis –, os jornais de gran-de circulação também estão saturados e tem pou-co espaço para novos traços.

“A internet oferece um suporte ideal às tirinhas. Elas são de leitura rápida, então há uma conver-gência entre o seu formato e a web”, acredita o jornalista Paulo Ramos. A solução internética, no entanto, ainda apresenta problemas. Mesmo as-sim, existem os que conseguiram razoável suces-so e atraíram até velhos lobos do mar, como La-erte, para a web.

“A grande novidade é que muito desses autores são vistos primeiro na internet e depois são publi-cados nos jornais. Não dá pra dizer que os jornais têm as melhores tiras, eles têm que dividir o status com a internet”, afirma Ramos. Também vemos sur-gir pequenas editoras ou coletivos de artistas que se juntam para realizar publicações de pequena e mé-dia tiragem, buscando se afastar do modelo edito-rial tradicional, que demanda uma vendagem de li-vros muito grande.

Um dos exemplos mais recentes e hilários é a web-comic Wagner e Beethoven. Um jornalista, que se mantém anônimo sob a alcunha de Mau-ro A., ilustra suas ideias com antigas imagens dos grandes compositores de música erudita que dão nome à série. Há, ainda, a novíssima geração, do quadrinista João Montanaro, que completará 14 anos em maio. Mesmo começando precocemente, ele já conquistou espaço na internet e publicou na revista MAD e na Folha de S. Paulo. “Ele já é um talento pelo trabalho que fez, ainda mais quando sabemos a sua idade. O João é um expoente do fim dessa nova geração”, arremata Paulo Ramos.

CoNheça mais o CartuNismo brasileiroRafael GRampáhttp://furrywater.wordpress.com/aRnaldo BRancohttp://www.oesquema.com.br/mauhumor/allan SieBeRhttp://talktohimselfshow.zip.net/andRe dahmeRwww.malvados.com.brRafael Sicahttp://rafaelsica.zip.net/fáBio moon e GaBRiel Báhttp://10paezinhos.blog.uol.com.br/WaGneR & Beethovenhttp://wagnerebeethoven.apostos.com/João montanaRohttp://porjoao.blogspot.com/paulo RamoS (BloG doS QuadRinhoS)http://blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br/Rafael coutinhohttp://www.raffa-bingo.blogspot.com/laeRte coutinhohttp://www.verbeat.org/blogs/manualdominotauro/

A nova Geração dos quadrinistasOs quadrinhos no Brasil têm uma história longa e cheia de renovação de personagens e autores, os quais dão originalidade a essa expressão artística.

Otávio Nagoya e Pedro Ribeiro Nogueira

Dedicamos essa matéria à memória do cartunista Glauco Villas-Boas e de seu filho Raoni.

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No início da entrevista com André Dahmer, um dos maiores expoentes da nova geração de quadrinistas, ele disparou: “Essa é a última entre-vista que faço como nova geração. Já estou com 35 anos de idade e oito de Malvados”. Nessa des-pedida, o quadrinista fala sobre a sociedade de consumo, dinheiro, propaganda, drogas, aborto... E também sobre quadrinhos.

Caros Amigos - os quadrinhos no Brasil sempre tiveram um caráter bastante contestador. como você situa sua produção nesse contexto?André Dahmer- Eu cresci lendo Henfil, mas não tinha idade pra compreender que quadrinho podia ser feito com conotação política também. Eu come-cei tarde e com os piores possíveis. Aos 12 anos eu li Marvel e DC, mas de passagem. Mas quando eu era pequeno, tinha Turma da Mônica, depois desco-bri o Will Eisner com “O Edíficio”. Ler Frank Miller foi o momento em que eu me separei, percebi que existiam outras escolas. Mas eu realmente só voltei a pegar em quadrinho quando eu comecei a produ-zir, em 2001. Foi bom por um lado, porque eu não tive muitas referências. Ter referência é bom, mas tem um monte de garoto começando todo errado, cheio de vícios. Existem milhões de formas de fazer quadrinhos e de fazer humor, não me vejo só como um cara que faz quadrinhos de orientação política, fiz muitos quadrinhos de costume também. Adoro humor pastelão, apesar de fazer pouco esse tipo de humor não ideologizado, sem compromisso.

você estudou desenho, tem um traço refinado, mas mesmo assim optou por fazer algo muito simples no começo do malvados, foi uma opção estética?

Eu vivia em um tempo difícil, vivendo um in-ferno trabalhando com jornalismo. Eu não podia

fazer quase nada, e queria desenhar, escrever. Os Malvados são fruto dessa pressa. Na época, as pes-soas falavam “é um quadrinho de alguém que não sabe desenhar”. Eu também nunca dei muita im-portância para isso. Nisso sou parecido com o Ar-naldo Branco, e, conhecer ele e o Allan Sieber foi libertador. Eu vi que havia outra escola. O seu de-senho mostra o quanto você tem de força e fraque-za. E como é um trabalho essencialmente visual e público, existe um medo danado de falar “agora é minha vez” e de se reconhecer imperfeito.

e os livros que você publicou, você sempre disse que era mais pelo prazer de publicar que pelo retorno financeiro...

Dinheiro é importante, mas não é tudo. Se eu estivesse atrás de dinheiro não fazia quadrinho, fazia medicina. É uma profissão de fé, como a do professor. Pergunta para um professor de Geogra-fia se ele faz isso pelo dinheiro. Tem gente que está se reunindo para publicar sozinho, acabar com o atravessador da livraria e da editora. Não precisa mais de patrão. Em grandes editoras, isso eu expe-rimentei, tem que vender livro para caralho, a edi-tora pega tudo. Eu conquistei o mínimo para viver bem. Vivo bem porque não sou consumista.

falando nisso, vários de seus quadrinhos falam do consumismo desenfreado na sociedade...

Olha só, quando os Racionais MCs falam que “Em São Paulo, Deus é uma nota de cem”, eles es-tão com toda razão. Que tempo é esse em que a úni-ca religião, a única ideologia vigente é a da grana. A gente está vivendo uma histeria coletiva, é uma roda viva, precisamos comprar sem saber o porquê. Levantamos de manhã para comprar, temos uma indústria que produz muito além do necessário. É uma indústria do frágil, é feito pra não durar por-que é parte do sistema da sociedade de consumo. O

dinheiro é uma realidade, não é só uma invenção do mercado. Todo mundo precisa pagar suas contas, e quem não tiver dinheiro vai passar muito aperto. O mundo é duro, mas mesmo assim é hora de mudar as coisas, a forma como nós vemos o dinheiro.

tem uma frase que diz “o humor nunca é a favor”. mas ele pode ser revolucionário, transformador, provocar reflexões?

Vivemos num tempo difícil. Mas eu também não quero o mundo nessa lógica de mercado pura e simples, onde tudo é feito num sistema em que as corporações mandam mais que os governos. Nós sabemos que através da televisão essas cor-porações passam uma imagem muito bonita do que elas parecem ser. São bonitinhas e jovens por fora, mas reacionárias por dentro. Qual o banco hoje que não é ecológico? Vendem até carro eco-lógico. Imagina a força desse discurso. As pesso-as são suscetíveis a tudo isso. É uma máquina de propaganda enorme. Eu não sou dos mais otimis-tas, mas acho que as pessoas podem acordar.

numa entrevista você se definiu como “um homem de esquerda, mas que busca algo que nunca existiu”. Quais são suas principais referências políticas?

Isso é difícil pra mim. Eu tive meus heróis, mas a política é algo muito duro. Eu abandonei essas referências porque o homem é foda, o po-der é um negócio de louco. No sentido de leituras, de referências teóricas tem o Michel Foucault e também a Naomi Klein. O “No Logo” é muito atu-al. Uma voz dissidente desse mundo maluco em que estamos vivendo, de crença única no consu-mo e no dinheiro. Ela se levanta e fala “olha, es-sas empresas que nos EUA passam filmes lindos, com crianças correndo felizes, colocam as crian-ças na Ásia para fazer produtos”.

entrevista André dAhmer

“A propaganda sabe que consumidor é que nem barata”

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É a mesma lógica? o capitalismo incorpora o que é contra ele para se fortalecer...

A propaganda materializa muito bem isso, porque ela sobrevive com uma agilidade enorme, transforma ações inicialmente contra ela a seu favor. A propaganda sabe que consumidor é que nem barata, você vai inventando um veneno mais forte para matar e elas vão se adaptando.

Já usaram seu trabalho nessa lógica?

Eu trabalho dentro do sistema, para o portal G1, para a Folha de S.Paulo, quer coisa mais siste-ma que isso? Também fiz para Caros Amigos, como também já liberei pra uso livre. Eu tenho lá meus pudores, tem coisas que eu não faço. Pediram pra eu ficar na frente de uma webcam desenhando o que o público pedir para uma marca de carro. Tam-bém tentaram licenciar meus personagens para uma marca de bebida e eu não aceitei. O problema é como você ganha seu dinheiro. Por exemplo, o ma-tador profissional deve ter um mercado grande, ma-tar padre é caro, matar ativista é muito caro, matar deputado muito mais. Depende do que você quer fa-zer. Eu não tenho problema de recusar trabalho não, confio muito no sistema que eu montei para viver de maneira mais independente. Então, quando che-ga um trabalho eu penso e vejo se é bom, principal-mente para os meus leitores, não quero desapontar ninguém. Eu sei o que eu construí, sei por causa de quem meu trabalho é lido.

as suas tirinhas são bem polêmicas, tratando de temas difíceis e com um humor que pode ser considerado pouco convencional.. você já sofreu censura em algum veículo?

Um amigo meu que trabalha em jornal me dis-se uma vez que a única vez que ele foi censurado foi quando eu escrevi sobre produtos e corpora-ções. Aí a gente volta àquele papo das marcas, do poder desses branding. Você pode falar de qual-quer coisa menos disso. Eu já recebi cartas in-dignadas de leitores, religiosos, mas são pessoas que nunca foram apresentadas à ironia. Uma vez fiz uma tira sobre a questão Palestina e fui muito ameaçado. Colocaram a tira em um fórum da in-ternet e escreveram que me matariam. “A gente sabe quando e onde você vai lançar seu livro”.

assustou?Não, cão que ladra não morde. Coleção de

ameaças tenho algumas. Não me preocupo. O que é mais preocupante é a questão da opinião no Brasil. Porque copiamos todo o modelo ame-ricano de vida, o consumo, o livre mercado, mas uma coisa não pegamos, o direito pleno de se expressar. Então existe ainda acusações de apo-logia ao crime, como acontece com a Marcha da Maconha. Imagina se nos EUA você não vai poder fazer uma marcha sobre a maconha, so-bre o aborto, pelo sexo na rua, você pode plei-tear qualquer coisa, as pessoas podem se reu-nir e querer mudar a lei e isso não é apologia ao crime. Esses dias ficaram assustados porque derrubaram um helicóptero. Eu não me assus-to com isso, porque é o caminho natural que estamos trilhando. O Brasil assinou, juntamen-

te com outros países, uns três tratados que tra-tam as drogas como assunto de polícia. É uma orientação americana e escolha dos nossos go-vernantes. Quem aplaude isso? Os vendedores de armas! Hoje em dia a questão moral caiu. A questão é que os países ricos precisam vender armas. Os homens das armas não estão interes-sados em legalizar as drogas. É um caso muito maior do que o dinheirinho que a polícia ganha, ou então o valor que a classe média paga para não ser presa. Eu achava no início que defender a legalização das drogas era uma discussão bur-guesa de quem queria se drogar, das classes al-tas. Mas, sabemos que a droga se democratizou entre as classes baixas. E quem sofre mais com o problema das drogas são os pobres, que são mar-ginalizados, morrem primeiro, inflam as cadeias, e com o agravante desse sistema penitenciário debilitado. Só existe o caminho da legalização, mas acho que tem que legalizar a cocaína tam-bém. Se compraria com controle estatal. Prefi-ro que o Estado venda a cocaína e cobre impos-to, do que fique na mão do Zé Galinha, o dono do morro. Se um cara como o FHC está falan-do agora em legalizar as drogas, então estamos atrasados uns 20 anos nesse debate.

Recentemente você publicou uma tirinha abordando o tema das drogas, você costuma trabalhar com o assunto?

Foi uma tira que substitui a maconha pela ju-juba, dizendo que estava proibida. Isso trata a questão do açúcar, que é uma droga, ou então do café, do álcool ou do tabaco, que são drogas le-galizadas. Eu sou tabagista, mas se eu quiser pa-rar de fumar existem remédios no mercado, pos-so ligar para o telefone do governo e eles vão me orientar. É uma questão de maior urgência. Você não pode deixar que aconteça uma guerra civil no Rio de Janeiro e achar que o que resolve é a polícia pacificadora, que é um nome engraçadís-simo para polícia do Rio de Janeiro.

cria um paralelo engraçado. Se essa é a polícia pacificadora, então como chamam a outra polícia?

Pois é, deve ser a polícia de mau humor, o tal do BOPE. Mas esse é um paralelo com o carro ecológi-co, como que funciona a força da palavra, como as pessoas conseguem manipular a palavra para tocar um projeto político, ou construir a imagem de uma empresa, ou a imagem de um estado.

a tirinha que me referi é uma em que todas as pessoas estão no celular e uma dizendo: “cuidado, maconha vicia”.

A maconha é só a maior das distorções, pois você sabe que o tabaco e o álcool matam. O esta-do não tem o direito de dizer “seu corpo é meu”. Não pode dizer “você não pode comer cocô”, eu não gosto de comer cocô, mas quem gosta não deve ser preso por comer, ainda mas se ele comer cocô e não operar nenhuma máquina, agora se ele atropelar alguém, porque tava doidão de tan-to comer cocô, deve ser julgado por uma lei mais dura, pois assumiu o risco de comer cocô e diri-giu. Lógico que eu to fazendo graça, mas é um as-sunto sério, análogo à questão do aborto, o corpo é meu, não é do estado.

na tirinha você mostra a dependência da sociedade com a tecnologia. como você trabalha com essa questão?

Estamos no tempo da hirpercomunicação, essa que chamam de sociedade da informação, mas na verdade é a sociedade da desinformação, por-que hoje em dia se você perguntar para qualquer um como se faz suco de tomate, ninguém sabe. É um avanço da industrialização da comida que as pessoas perderam a relação com os alimentos. Que sociedade de informação é essa em que você não sabe o mal que está fazendo essas porcarias que vendem nos supermercados? Não é de se es-tranhar que os casos de câncer estão aumentan-do assustadoramente. Enterrei recentemente um amigo com um caso raro de câncer de estômago e ninguém sabe explicar o porquê. E a gente não pode discutir isso, pois a única informação que interessa é a que gera lucro.

os transgênicos entram nessa discussão?Essa é a sociedade da desinformação. Você vê

na televisão que o tomate combate o câncer e na verdade ele está te dando câncer. As pessoas estão muito afastadas da realidade, vivem a vida como se só existissem elas, isso não é uma sociedade da informação. Existe uma diferença enorme en-tre informação e conhecimento, a informação é uma coisa: “sei que o plástico faz mal pro mun-do”, conhecimento é você ter a certeza que tem que parar de consumir dessa maneira. Conheci-mento é você adquirir consciência e ter a percep-ção de que você faz parte de algo maior.

e você acha que seu trabalho tem a característica de levar o conhecimento para seu público de uma forma humorada?

Eu estou longe de ser um cara que usa humor para melhorar o mundo, acho que é uma posição mais egoísta, uma necessidade minha. Eu aban-donei várias convicções que eu tinha e uma de-las é a capacidade do homem se organizar e mu-dar de uma maneira rápida. Não acredito mais em revolução de sangue, como eu acreditava com 18 anos, dizendo “só muda com revolução arma-das”. Não acredito mais nisso, acho que são os meus 35 anos.

Pedro Ribeiro e Otávio Nagoya são jornalistas.

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Ana MirandaMeMórias De uM jornalista não investigativoRenato Pompeu

Senhor, vos agradeço esta comidaQue é fruto de meu suorQue é justa e que me cabeDe que meu corpo precisaPor sua própria natureza

Perdoai esta refeiçãoA ser partilhada com um ou doisQue apenas puderam sonharCom a saciedade da fomeDe nossa própria natureza

Perdoai, Senhor, a morte de um animalEste triste boi, este peixinho, esta avePerdoai o corte de matas, as plantaçõesDe feijão, arroz, trigo, ou mandiocaPerdoai a fumaça, as chuvas negrasE vossa cristalina água que se sujaE vossa abençoada terra, devastadaPerdoai o preço desta refeição,Perdoai a destruição e ofensaQue é o caminho deste alimentoSenhor, para que eu viva

Senhor, perdoai os lavradores,Perdoai os criadores, construtores,Operários, perdoai os das colheitasPerdoai, meu Deus, nossa santa simplicidadeE a todos os que sentem fomePois a fome, Senhor, nos destesE também a consciência da fomePerdoai, SenhorE bendizei este alimentoAmém.

Ana Miranda é escritora.

Depois de completar 50 anos de jorna-lismo profissional, estou pondo fim a es-tas memórias. Como disse no primeiro arti-go da série, nunca exerci cargos de chefia, a não ser durante algumas semanas, e assim não fiquei sabendo de muita coisa das de-cisões editoriais, mesmo nos órgãos em que trabalhei. Já contei aqui todos os casos de manipulação de notícias de que tive conhe-cimento, embora imagine que muitos mais tenham ocorrido em praticamente todas as publicações de que fui funcionário ou cola-borador. Nada mais tenho de relevante para contar aos leitores.

Fazendo um balanço de minhas experi-ências, chego à conclusão de que nenhum dos atuais modelos de jornalismo vigentes no mundo me parece satisfatório, no Bra-sil, nos Estados Unidos, na Europa, em Cuba ou na Coreia do Norte. Me lembro sempre do lema americano de que a liberdade de imprensa é a liberdade de cada proprietá-rio de impressora. Ou seja, ou a liberdade é de um grupo privado ou é de um órgão estatal. Sonho com o que Marx aponta na Crítica ao programa de Gotha, de 1875: a propriedade pública, a propriedade pela so-ciedade, a propriedade de cada um e de to-dos, e não a propriedade de uns poucos ou estatal. Todos os cidadãos e cidadãs seriam donos de tudo e teriam direito a participar das decisões em todas as atividades sociais. Me parece que isso é tornado materialmen-te possível pelos modernos meios eletrôni-cos, como a internet.

Fico em dúvida se a liberdade de ex-pressão deve ser absoluta, como nos Esta-dos Unidos, em que racistas, partidários de guerras de conquista etc. têm plena liberda-

de de divulgar suas posições odiosas. Além disso, se é possível vislumbrar na internet a possibilidade material da concretização do direito de todos e de cada um de prestar informações, não consigo vislumbrar uma possibilidade de materializar as condições de fazer a informação de cada um ficar em pé de igualdade com todos os outros pres-tadores de informações no que se refere a atingir o público.

Sinto que devo uma palavra aos jovens: vale a pena ser jornalista? A resposta de-pende de cada caso e de cada situação con-creta. Finalmente, acho que devo também uma posição sobre a exigência de diploma em jornalismo para ser jornalista. Não pos-so ser a favor dessa exigência, pois eu mes-mo só tenho diploma do secundário. Como disse, luto por uma sociedade em que todos possam ser jornalistas. Mas, aos jovens que me perguntam, na situação concreta da so-ciedade atual, se vale a pena fazer o cur-so de jornalismo, respondo que sim, depen-dendo se o curso é bom ou não. Não há necessidade de diploma para administrar empresas, mas os formados em administra-ção estão mais preparados para enfrentar o mercado.

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Renato Pompeu é jornalista e [email protected]

novo sítio: www.carosamigos.com.br

Prece antes do almoço

O último capítulo destas lembranças

“Eu sou do tempo que as camisas dos jogadores não tinham números”

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de acordo com a legislação ambiental bra-sileira, a estação ecológica é a modalida-de de unidade de conservação que mais

garante a proteção ambiental de uma área. No entanto, não foi o que aconteceu com a reser-va de mata atlântica Jureia-Itatins após ter sido tranformada em estação ecológica. A mudança não diminuiu o desmatamento na região e ain-da deixou famílias sem alternativa de renda, in-centivando o comércio ilegal de produtos flores-tais. Acompanhamos as últimas discussões entre o Estado de São Paulo e os moradores da Jureia na tentativa de criar um mosaico de unidades de conservação que solucionem esses problemas.

“Não gosto dessa coisa de meio ambiente. O am-biente é inteiro, e eles querem dividir”. Assim Nanci do Prado, 73, definiu a mudança da legislação pau-lista que, em 1987, transformou o local onde vive em estação ecológica. A casa que vive com o ma-rido, Onésio do Prado, 80, fica no Grajaúna, centro da estação Jureia-Itatins, um dos poucos redutos de mata atlântica ainda existentes no Estado de São Paulo. A lei estadual nº 5.649/87 criou a unidade de proteção integral em terras dos municípios de Pe-ruíbe, Iguape, Miracatu e Itariri, com 79.270 hecta-res, para “assegurar a integridade dos ecossistemas e da fauna e flora nelas existentes, bem como sua uti-lização para fins educacionais e científicos”.

A alteração ocorreu por pressão de ambien-talistas diante dos planos de construir duas usi-nas nucleares e empreendimentos turísticos na re-

gião. Desde então, as 332 famílias que moravam na área, vivendo da agricultura de subsistência, do manejo de recursos naturais e da pesca, deixaram de ter permissão para ocupar aquelas terras.

A maioria dos dez filhos de dona Nanci, ame-açada pela possibilidade de ser multada por cri-me ambiental e sem alternativa de fonte de renda, deixou a Jureia para buscar trabalho na cidade. Glória do Prado, 52, é um deles. “Criei meus fi-lhos limpando casa de veraneio”, disse, durante audiência pública realizada no dia 2 de fevereiro, em Iguape, com o objetivo de discutir uma pro-posta para criação de um mosaico de unidades de conservação na Jureia-Itatins. A primeira fase da consulta aconteceu no dia anterior, em Peruíbe.

Direito De permanênciaEsse não é o primeiro debate que pretende criar,

em parte da Jureia, Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), onde seja possível a ocupação humana e o manejo de recursos florestais com sus-tentabilidade. Há 24 anos, as comunidades que vi-vem no local, por não terem sido indenizadas após a desocupação, lutam pelo direito de permanência e pela formação de um mosaico, onde pedaços ha-bitados da área sejam delimitados como RDS.

O movimento se fortaleceu e em 2006 foi cria-da a primeira lei a estabelecer o mosaico de unida-des de conservação da Jureia, com a definição de duas RDS: a do Despraiado e a de Barra do Una. A lei nº. 12.406 não atendeu aos anseios da popula-

ção por ter deixado de fora outras partes habitadas da Jureia, e foi derrubada em junho do ano passa-do por uma decisão do Tribunal de Justiça (TJ) em Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) pro-posta pela Procuradoria-Geral do Estado.

O tribunal justifica a medida pela falta de estu-do/relatório dos impactos ambientais (EIA/RIMA) da mudança da Jureia-Itatins de estação ecológi-ca a áreas com menor grau de proteção, como são os parques e RDS, segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Outro proble-ma apontado foi o vício de competência, já que a lei deveria ter sido proposta pelo Poder Executivo, mas partiu da Assembleia Legislativa do Estado.

Com isso, toda a área da Jureia-Itatins voltou a ser estação ecológica, e a Fundação Florestal, ór-gão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, ago-ra elabora uma nova proposta de lei. Porém, a se-gunda exigência da Justiça – a realização de EIA – ainda não foi atendida. Estudos desenvolvidos en-tre 2008 e 2009 por Instituto Socioambiental (ISA) e Universidade de Campinas (Unicamp), que foram encomendados pelo Estado para servirem de base ao plano de manejo do mosaico antes vigente, estão sendo aproveitados como respaldo ao novo projeto.

maior participaçãoA União dos Moradores da Jureia (UMJ), que,

desde 1990, luta por uma lei que inclua todas as comunidades da área em RDS, teme o risco de ou-tra Adin, caso a Fundação Florestal não elabore fo

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Divergências de projetos aceleram destruição da Jureia

Fabíola Munhoz

Uma das poucas reservas de mata atlântica do Estado de São Paulo continua sendo destruída porque o governo não respeita as demandas das comunidades tradicionais.

A área da reserva denominada Grajaúna, onde está localizada

a praia do Una, é motivo de divergência entre moradores

e órgãos estaduais.

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novos estudos. “Pedimos a prorrogação das dis-cussões para que possamos elaborar outra pro-posta”, disse Arnaldo das Neves Júnior, 55, con-selheiro da UMJ, na audiência de Peruíbe.

O diretor-executivo da Fundação Florestal, José Amaral Wagner Neto, afirmou ao final do último dia de audiências que não há preceden-tes indicando a exigência do EIA/RIMA. A pro-motora Cristina Godoy, 37, que coordena o Nú-cleo de Meio Ambiente do Ministério Público de São Paulo, enfatiza a ordem do acórdão para que o estudo de impactos seja realizado.

Segundo a coordenadora dos estudos utiliza-dos pelo Estado para definição do novo mosai-co, Rozely Ferreira dos Santos, o diagnóstico tem informações para compor um EIA, mas não foi construído dentro da lógica da resolução 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente.

mosaico De propostasDe acordo com a União de Moradores da Jureia,

a RDS Barra do Una deve ser extendida ao longo da estrada para incluir as populações de Barro Branco, Itinguinha, Teteguera e Utinga Grande (hoje mora-doras do Parque Estadual Itinguçu) e, além disso, ter seus limites expandidos para englobar as famí-lias ribeirinhas que vivem no entorno do rio Una do Prelado e a área do Grajaúna. Também pela pro-posta dos moradores, a RDS do Despriado passaria a abarcar as comunidades de Aguapeú e Rio das Pe-dras, ambas ao sul da reserva.

Já o projeto do governo mantém Itinguçu como parque estadual e continua considerando apenas Barra do Una e Despraiado como RDS, com o aumento dessas reservas. Pela proposta, Barra do Una passaria a abranger também: Ilha do Ameixal, a área que vai do rio Una do Pre-lado até o rio Canela, uma porção de mangues e a região de Tocaia, com aptidão para atividades agrícolas. A RDS do Despraiado, por sua vez, se-ria ampliada ao norte, para incluir uma área já devastada pela plantação de banana.

“Somos contra o aumento da RDS do Des-praiado para cima. Lá é área de proteção per-manente, e as comunidades tradicionais nunca usaram. Foram invasores que desmataram, e a população pode ficar ameaçada se a área for in-cluída”, declarou Adriana Lima, 36, vice-presi-dente da UMJ.

Roberto Oyaizu, morador do Despraiado, con-firma a informação e diz que a terra ao norte da RDS não é apropriada para o manejo de recursos florestais. O habitante da Jureia participou de três empates – manifestações contra o desmatamento – na zona ao norte do Despraiado. Segundo Dau-ro Marcos do Prado, 45, presidente da UMJ, só após o terceiro empate o Estado tomou uma pro-vidência e chamou a comunidade para discutir a proposta do primeiro mosaico.

população traDicionalNeto diz que o estudo apresentado pela Funda-

ção Florestal é o que melhor equilibra a proteção ambiental e o reconhecimento da população tradi-cional. “O que ocorre é que não dá para atender a todas as comunidades, principalmente aqueles que

têm uma dispersão muito grande”, explica. A UMJ, porém, justifica sua proposta de incluir

as comunidades menos numerosas, como Grajaú-na, Aguapeú e Rio das Pedras, em áreas de RDS, com a informação de que tais populações – as mais antigas da Jureia – representam a conservação da cultura caiçara e a tradição do manejo florestal, que tem ajudado a preservar a biodiversidade. “Ao longo de décadas, a presença dessa população e a locomoção com canoas permitiram que o fluxo das águas fosse constantemente mantido. Hoje, com a proibição das atividades, os rios e riachos se en-contram assoreados e entupidos por capim”, ilus-tra carta da associação.

A coordenadora dos estudos, Rozely, redigiu carta endereçada ao governador de São Paulo, José Serra, e assinada por outros pesquisadores, na qual defende “que o coração da Jureia, que abrange a serra do Itatins, as planícies dos rios Una do Prelado, Comprido e Rio Verde e os Ma-ciços da Jureia e do Parnapuã, sejam destinados à conservação integral”.

Questionada sobre as comunidades tradicio-nais que vivem nessas áreas, ela responde que não há necessidade de criar RDS para um núme-ro de pessoas tão pequeno. “Esses tradicionais, no meu ponto de vista, são os verdadeiros guardiões da floresta”, ponderou.

De acordo com a pesquisadora, é importan-te separar os tradicionais, que residem na Jureia e causam poucos impactos ambientais, daqueles que se declaram integrantes de comunidade tra-dicional, mas “desejam crescer economicamente dentro de uma lógica capitalista e colocam casei-ros e meeiros em suas propriedades, enquanto sua família mora na cidade próxima”.

Nilto Tatto, pesquisador do ISA, também considera a responsabilidade do Estado. “Se não forem criadas unidades de conservação que preservem o meio ambiente e conservem as co-munidades tradicionais, haverá espaço para as pressões imobiliárias, que tomaram conta de todo o litoral paulista”.

inDefinição traz preJuízosDepois que a lei de 2006 foi derrubada pelo TJ,

diminuiu o acesso a serviços públicos por parte da população das antigas RDS. De acordo com o morador do Despraiado, Carlos Pontes, foi fecha-da uma escola no local que atendia 30 alunos.

Em resposta, Neto disse que há recursos para a reforma da via, mas por respeito a procedimentos da entidade, a obra ainda não foi realizada. Sobre a falta de outros serviços públicos, o diretor alega que a fundação caminha dentro de suas possibili-dades. “Dependemos de parceria com as prefeitu-ras. Nossa atribuição é meio ambiente.”

A prefeita de Peruíbe, Milena Bargieri, afirma que sua administração pode fazer pouco por quem vive na Jureia enquanto não for criada a nova lei. Para o presidente da Câmara dos Vereadores de Iguape, Joaquim Antonio Coutinho Ribeiro, 40, deve haver um entendimento entre as prefeituras de Iguape e Peruíbe para que as duas gestões en-contrem formas de atender aos anseios da popula-ção enquanto o mosaico não é definido.

Maria Elizabeth Negrão Silva, prefeita de Igua-pe, foi procurada para falar a respeito no dia da audiência realizada na cidade, mas sua secretá-ria de gabinete informou que ela estava ocupada com os preparativos de um evento em que o go-vernador José Serra anunciaria a construção da barragem do Valo Grande. Embora 85% da Ju-reia faça parte do município, nenhum represen-tante da prefeitura compareceu à consulta públi-ca sobre o mosaico.

Com a invalidação da lei de 2006, também os projetos de geração de renda que seriam inicia-dos nos parques estaduais (áreas onde é permiti-do o uso público) e nas RDS foram paralisados. É o que contam os gestores das antigas unidades de conservação, que agora atuam como administra-dores de núcleos da estação ecológica.

Para Otto Hartung, 44, gestor do núcleo do Prelado, antes considerado parque estadual, o maior problema é a falta de indenização e realo-cação das famílias que vivem nas áreas de pro-teção integral.

proteção só no papelA ex-moradora do Grajaúna, Glória do Pra-

do, conta que sua propriedade se tornou vulnerá-vel à ação de caçadores e ladrões de palmito de-pois que sua família abandonou o local em busca de sobrevivência.

Neto contradiz as denúncias, informando que, de 2007 aos dias de hoje, foi praticamente duplicado o número de bases de fiscalização e vigilantes na Jureia. O gestor Otto diz o contrá-rio. “No decorrer desses anos, não teve manu-tenção no quadro funcional, nem novas admis-sões. Os funcionários também perderam o direito de usar arma.”

De acordo com a prefeita de Peruíbe, as co-munidades da Jureia contribuem para a proteção da área e a prefeitura e o Estado têm dificuldade em fiscalizar o desmatamento. “Eu acredito que o fato de remover essas pessoas abre espaço para novas invasões.”

O presidente da Câmara de Iguape acrescenta que o impedimento do extrativismo e da agricul-tura de subsistência tem incentivado a ilegalida-de. “Você vê pessoas que deixam de ter rendi-mento. Aí a necessidade aperta, e começa a ter prisão por corte de palmito. Por isso estamos do lado dos moradores.”

O diretor da Fundação Florestal garantiu que irá levar em conta as reclamações feitas pela socie-dade. Agora resta esperar, já que foram prometidos novos debates e nenhum projeto de lei foi apresen-tado pelo Estado, somente estudos. O secretário es-tadual de Meio Ambiente, Xico Graziano, não quis se pronunciar e, segundo sua assessoria, ele só fa-lará a respeito quando tiver concluído a análise dos relatórios apresentados pela fundação.

Por enquanto, apenas se sabe que, ao contrário do que deseja dona Nanci, a Jureia não será una, mas um mosaico. E a maior divisão não está na classificação da natureza, mas nas ideias diver-gentes sobre a melhor forma de conservá-la.

Fabíola Munhoz é jornalista.

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mesmo sem contar há dois anos com o dinamismo de Sérgio de Souza, seu criador e esteio de sempre – falecido

prematuramente –, a revista Caros Amigos man-tém a postura idealizada por ele. Ao completar 13 anos desde o seu lançamento – longevidade rara-mente alcançada por periódicos independentes – a revista procura manter o padrão que a consagrou e que a caracteriza no meio jornalístico.

O diretor geral Wagner Nabuco, responsável pelas áreas administrativa, comercial e editorial da Caros Amigos, que se ligou à revista como só-cio cinco meses após o primeiro número de abril de 1997, em setembro daquele ano, destaca o pa-pel importante que a revista representa desde o seu início, de ser um contraponto ao conservado-rismo que predomina na mídia brasileira.

A revista começou com um grupo de ami-gos, que incluía jornalistas, publicitários, pro-fissionais liberais, profissionais da comunicação, que discutiam como criar um veículo que se con-trapusesse ao jornalismo predominante naquela época, e ainda hoje, não só em termos de conteú-do mais questionador e mais crítico, progressista, mas também em outros aspectos. Queriam a vol-ta do texto de qualidade e o cultivo dos aspectos artísticos da forma gráfica da revista, numa épo-ca em que a mídia grande promovia o modelo da revista alemã Focus e do jornal americano USA Today, com seus textos tatibitates e suas ilustra-ções cheias de cores e vazias de ideias.

Alguns nomes desse grupo, além de Sérgio de Souza, eram os dos jornalistas Alberto Dines, Juca Kfouri, José Carlos Marão, Roberto Freire, Mylton Severiano, Francisco Vasconcelos, João de Barros, Sérgio Pinto de Almeida, Oswaldo Luiz Vita (conhecido como Colibri), do jornalista e edi-tor João Noro, do publicitário Oscar Colluci, do executivo de marketing Jorge Luís Brólio. Mon-

taram a Editora Casa Amarela, que conseguiu re-cursos para fazer o novo lançamento ao prestar serviços editoriais para o Banco Francês e Bra-sileiro e para a Accor (Ticket-Restaurante). Com produtos editoriais para esses dois grandes clien-tes, foram obtidos os fundos necessários ao pe-sado investimento necessário a um projeto edito-rial desse porte.

A revista foi lançada em abril de 1997, sem-pre sob a liderança de Sérgio de Souza, com a capa tendo como tema uma entrevista com Juca Kfouri, e foi um sucesso de bancas, em relação ao tamanho do projeto, e ao inusitado da fórmu-la – um formato desconhecido, papel offset, im-pressão preto e branco inclusive na capa, no pri-meiro momento –, tendo vendido perto de 20 mil exemplares.

Êxito nas bancas, a revista porém não tinha assinaturas e anúncios. Ainda no primeiro mês, a jornalista Marina Amaral, colaboradora da revis-ta, convidou Wagner Nabuco, que tinha sido dire-tor de marketing da Veja e tinha o sonho de fundar uma publicação – “eu era um revisteiro apaixo-nado”, lembra ele – para reunir-se com Sérgio de Souza e João Noro, principais responsáveis pela execução do projeto da Caros Amigos.

Do encontro participaram também Roberto Freire, Jorge Luís Brólio e Frederico Vasconce-los, que com Sérgio de Souza e João Noro for-mavam a sociedade que editava a revista. “Fize-mos um acordo, entrei como sócio em setembro e a partir de janeiro de 1998 começamos a implan-tar o projeto de assinaturas”, diz Wagner Nabu-co. A carteira de assinantes cresceu muito duran-te os três anos seguintes, o que facilitou muito o financiamento do projeto. Mas no último trimes-tre de 1998, as grandes fontes de verbas da revis-ta, o Banco Francês e Brasileiro e a Accor, deixa-ram de comprar os serviços da editora. A revista

tinha poucos anúncios e desde então enfrenta di-ficuldades, mas as venceu e continua vencendo por causa de esforços denodados. “Sem a ajuda de muitos jornalistas, ilustradores, fotógrafos e amigos solidários que são colaboradores com tex-tos e ilustrações sem receber pagamento, e sem o empenho entranhado das equipes internas, das muitas pessoas que trabalharam para a revista, e fundamentalmente sem o apoio dos nossos leito-res, o projeto não teria sobrevivido”, afirma Wag-ner Nabuco.

Ele destaca como momentos mais importan-tes da trajetória da revista o lançamento, a capa no terceiro aniversário sobre o filho fora do ca-samento de Fernando Henrique Cardoso (a maior venda da revista), a capa sobre o apagão de for-ça e luz durante o governo FHC, uma matéria so-bre a repressão da Polícia do Paraná contra mili-tantes do MST (que deu à revista o seu primeiro Prêmio Vladimir Herzog), as entrevistas de Mano Brown, Chico Buarque, Tom Zé, Lula e a filóso-fa Marilena Chauí. Wagner Nabuco aponta essas cinco entrevistas como “paradigmáticas da nos-sa história”.

Continua: “Muitos previram o nosso fim nos primeiros seis meses e um ano. Mas, 13 anos de-pois, estamos aqui. Provamos que é possível e necessária uma plataforma de produção de con-teúdo que consiga reunir a imensa criatividade, diversidade e talentos de jornalistas, escritores, artistas, pensadores, militantes, sindicalistas, que seja um lugar onde possam convergir os demo-cratas e progressistas. E que há uma demanda por uma cultura de qualidade. Entregamos cultu-ra seja no meio impresso, seja em meios digitais, audiovisuais, o que for, inclusive em livros im-pressos tradicionais. Se um dia houver chip nas cabeças, alguém tem de enviar conteúdo decente para esses chips”. il

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Renato Pompeu

No seu 13º aniversário, Caros Amigos respira coerência.

Anos de luta pela informação

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Renato Pompeu é jornalista e escritor.

Os principais processos judiciais contra a revista em 13 anos.

na sua busca de informações precisas so-bre os grandes problemas nacionais e do mundo contemporâneo, a Caros Amigos

muitas vezes contraria interesses poderosos. Por isso mesmo a revista enfrentou e enfrenta vá-rios processos judiciais nestes 13 anos de exis-tência. O advogado Aton Fon Filho, um dos ad-vogados da Editora Casa Amarela, que publica a Caros Amigos, destaca dois processos que têm re-lação com o futebol e outro movido pelo empre-sário Cecílio do Rego Almeida, da empreiteira CR Almeida sobre uma entrevista dada ao jornalis-ta João de Barros.

Um é o processo movido por Luiz Roberto Zini, o Beto Zini, que foi presidente do Guarani FC de Campinas, contra a reportagem de capa “Quem matou Toninho do PT?”, da então editora exe-cutiva Marina Amaral. Na verdade, foram duas ações: uma criminal, contra Marina Amaral, já transitada em julgado, favoravelmente à jorna-lista, e outra cível, indenizatória, contra Marina Amaral e a Editora Casa Amarela, cuja sentença em primeira instância, recém-decidida, também foi favorável à jornalista e à editora, tendo os ad-vogados de Zini recorrido.

O outro processo sobre futebol destacado por Aton Fon Filho foi movido por Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de Futebol-CBF, em 2002, que obteve uma cautelar que im-pediu a circulação do livro que até hoje continua vetado e que continha o relatório sobre a CPI da Câ-mara dos Deputados a respeito do futebol, conheci-da como CPI da CBF-Nike, livro que havia sido ela-borado pela Editora Casa Amarela, de autoria dos deputados Aldo Rebelo e Sílvio Torres. Nesse caso também está correndo ação indenizatória.

Já o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida mo-veu uma queixa-crime contra João de Barros e uma ação indenizatória contra a Editora Casa

Amarela, sob a alegação de que tinha sido apon-tado como “grileiro” pelo texto publicado. Os dois casos já transitaram em julgado, com a Justiça tendo dado razão ao jornalista e à editora, já que todos os dados citados na matéria foram consi-derados comprovados, e inclusive muitos deles ti-nham sido relatados pelo próprio queixoso.

No caso de Beto Zini, Marina Amaral, a partir de uma extensa pesquisa sobre o assassínio do prefeito de Campinas, Toninho do PT, afirmava que este ha-via contrariado interesses de muitas empresas e pes-soas, como as empreiteiras CBPO e Mendes Júnior e o próprio ex-presidente do Guarani. No entanto, assinalava a matéria, o Ministério Público e a Polí-cia só acusaram o marginal conhecido por Andinho, acusado de vários sequestros e homicídios no inte-rior de São Paulo. O próprio juiz do caso, entretan-to, se recusou a levar Andinho a júri, alegando que eram necessárias maiores investigações.

Já Ricardo Teixeira, quando foi ouvido pela CPI, abriu mão do seu sigilo bancário e fiscal, o que le-vou o relatório a incluir dados sobre suas movimen-tações e sobre seus bens. Esses dados constavam do livro elaborado pela Editora Casa Amarela, mas Ri-cardo Teixeira argumentou na Justiça que seus sigi-los bancários e fiscal haviam sido violados. Apesar de a editora ter argumentado que o próprio Teixeira havia renunciado aos seus direitos de sigilo, a Justi-ça decidiu pela cautelar que proibiu a venda e a cir-culação do livro. A ação indenizatória movida por Teixeira ainda está tramitando.

Aton Fon Filho também lembra do processo movido pela Unoeste, uma universidade de Pre-sidente Prudente. A matéria apresentava dados segundo os quais alguns cursos da universidade eram de frequência livre, ou seja, “de fim de se-mana”, e a instituição entrou com ação dizendo que tinha sido prejudicada por uma falsa acusa-ção. A Justiça, entretanto, aceitou as alegações

da defesa, de que vários fatos constavam de uma auditoria sobre a Unoeste feita pelo Ministério da Educação. Esse caso já está transitado em julga-do, favoravelmente à revista, tendo a Justiça con-siderado improcedente a ação da Unoeste.

Outro processo, mais recente, também se des-taca. A deputada federal Thelma de Oliveira, tu-cana do estado de Mato Grosso, viúva do ex-go-vernador Dante de Oliveira, processou o jornalista Palmério Dória e a Caros Amigos, por nota publi-cada ano passado na coluna Picadinhas, dando conta de uma fabulosa conta administrada pelo casal na Suíça, de 43 milhões de dólares.

Uma pesquisa no acervo digital da revista Veja de setembro de 1998 mostra: “MALAS DE DÓLA-RES, ex-tesoureiro de Dante de Oliveira revela o subterrâneo da campanha de 1994”. A reporta-gem de Leonel Rocha revela depoimento do eco-nomista José Porto, ex-tesoureiro da campanha de Dante de Oliveira ao Ministério Público em Brasília, em 1998, em que conta duas viagens que fez a São Paulo, em 1995, para buscar quatro ma-las com seis milhões de dólares, em companhia de um irmão de Dante, Armando.

Em março de 2006, Leandro Fortes descreve, em reportagem na Carta Capital, o depoimento do juiz Julier Sebastião da Silva, titular da 1ª Vara Criminal da Justiça Federal em Mato Grosso, na CPI dos Bingos. É um mergulho nas ligações entre o banqueiro do bicho José Arcanjo Ribeiro, conhe-cido como o comendador Arcanjo (há cinco anos preso em presídio de segurança máxima em Cam-po Grande), o ex-governador Dante e seu irmão Armando. A deputada Thelma de Oliveira preten-de, de Palmério Dória e da Caros Amigos, 400 mil reais, mas nada fez contra a Veja ou a Carta Capi-tal. A ação ainda está tramitando.

O pesado custo da independência

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Roma – Durante a década de 20, nas ruas de Chicago, Al Capone personificava a ilegalida-de e o gangsterismo. Era considerado o pior ini-migo da cidade americana e o seu rosto era de do-mínio público. Passados mais de 80 anos, a máfia internacional e, sobretudo, aquela italiana, não é mais associada a personagens folclóricos, muni-dos de boina e carabina e irremediavelmente con-finados em terras distantes.

Muito pelo contrário. Pode ser comparada a uma holding bem-sucedida, que desconhece fron-teiras e administra uma rede formada por ativida-des e investimentos diversificados. Seus expoen-tes podem ser, por exemplo, idosos aparentemente inofensivos, como Bernardo Provenzano, ex-líder da associação mafiosa siciliana Cosa Nostra. Fo-ragido há mais de 40 anos, Provenzano foi deti-do em 2006, em uma casa de campo nos arredo-res de Corleone, circundado por exemplares da Biblía, enquanto comia pão e chicória.

Mas a máfia italiana também pode assumir a fi-sionomia de Walter Schiavone – camorrista que em Casal di Principe (Caserta) solicitou ao seu arquite-to a construção de uma mansão idêntica àquela do gângster Tony Montana no filme Scarface – ou ser confundida, silenciosamente, entre inúmeros cola-rinhos brancos cada vez mais qualificados.

Não é de hoje que a extorsão deixou de ser o core business dos clãs mafiosos italianos, cedendo espa-

ço a atividades mais lucrativas. Além do tráfico de drogas, da pesca predatória, e da chamada agromá-fia – com o controle praticamente total da fileira produtiva de gêneros agroalimentares –, outra es-pecialidade mafiosa é a gestão ilícita de resíduos tó-xicos nos aterros do sul do país; uma atividade que, segundo a associação Legambiente, movimenta cer-ca de 7 bilhões de euros por ano.

Uma chaga como a máfia é capaz de infiltrar-se no poder político, ditando regras, além de criar verdadeiros “samurais do liberalismo”, assim como define os camorristas o escritor Roberto Saviano.

Segundo Massimo Ciancimino, filho do fale-cido capo mafia e ex-prefeito de Palermo, Vito Ciancimino, não é de hoje que o vértice da polí-tica é vulnerável às exigências da máfia. Em suas últimas declarações como testemunha no proces-so contra o general Mario Mori, acusado de ter impedido, em 1995, a prisão de Bernardo Proven-zano, a Forza Italia – o partido criado por Silvio Berlusconi em 1994 – seria o resultado de uma conexão com organizações mafiosas.

O ministro da justiça, Angelino Alfano, apres-sou-se em desmentir as declarações, afirmando que “não é possível desacreditar um governo que lutou contra a Cosa Nostra, obtendo excelentes resultados como a prisão de mais de cem mafio-sos”. No entanto, as palavras de Ciancimino filho continuam despertando polêmicas.

No sul da Itália, jovens agricultores mostram que é possível transformar os terrenos que pertenciam à máfia em oportunidades de emprego.

Anelise Sanchez

Quem ganha com a crise Em 2009, o instituto de pesquisas Centro Studi

Investimenti Sociali (Censis), divulgou os resul-tados de um estudo que demonstra que a crimi-nalidade organizada italiana possui uma grande capacidade de manipular o cenário econômico e social do país, principalmente na região sul. A pesquisa revelou que, 13 das quase 17 milhões de pessoas residentes na Campânia, Calábria, Pu-glia e Sicilia convivem com organizações mafio-sas que integraram-se, quase fisiologicamente, na sociedade civil.

As quatro regiões mais dominadas pela má-fia são aquelas que, juntas, representam 22% da população italiana, mas que produzem somente 14,6% do PIB nacional, afastando potenciais in-vestidores.

Se antes da atual crise econômica as maiores representações mafiosas condicionavam signifi-cativamente setores estratégicos do país – como o da construção civil ou o dos resíduos industriais e urbanos – tudo indica que, agora, a rentabilida-de, dos clãs mafiosos estará garantida.

Se, de um lado, as instituições de crédito freiam a concessão de empréstimos, do outro a máfia continuará a dispor de uma grande liquidez financeira. Sendo assim, poderá não só adquirir imóveis, títulos e ações que sofreram uma depre-ciação, mas também alimentará a agiotagem e, provavelmente, tentará abocanhar uma substan-cial fatia do capital que será colocado em circu-lação para conter a crise.

Não é raro que, graças a uma meticulosa ati-vidade de insider trading, os líderes dos clãs ma-fiosos conheçam antecipadamente o conteúdo dos editais para a concorrência na execução de obras, e sirvam-se de “laranjas” para abrir sociedades por ações e infiltrar-se no circuito das licitações. So-mente em 2008, 410 mil novas empresas foram criadas em solo italiano, mas os rigorosos contro-les realizados pela Direzione Investigativa Anti-mafia (DIA) para fiscalizar a sua integridade ainda foram insuficientes; cerca de 25 em um semestre.

a maior empresa do paísO patrimônio das maiores representações ma-

fiosas italianas é inestimável, mas já em 2007 a associação empresarial Confesercenti lançava um alarme, afirmando que a máfia é a maior empresa nacional e que, na época, faturava anualmente 90 bilhões de euros. Esse valor corresponde, aproxi-madamente, a 6% do PIL do país.

Um modo eficaz para compreender o poten-cial dos clãs mafiosos na Itália é analisar alguns dos dados sobre os bens confiscados da máfia nos últimos anos.

Foi em 1982, com a chamada lei Rognoni – La Torre, que o país definiu, juridicamente, o que é uma associaçâo mafiosa, fomentando uma nova cultura de oposição a esse fenômeno. Mais tar-de, graças a um abaixo-assinado organizado pela associação Libera, foi aprovada uma normativa (109/96) que estabelece que os bens confiscados dos mafiosos serão incorporados ao patrimônio do Estado ou das prefeituras, podendo posteriormente

Forjar do trigo o milagre da legalidade

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Na Sicília, um voluntário trabalha para ajudar os jovens da Cooperativa Placido Rizzotto.

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ser destinados a entidades de caráter social.Segundo os números divulgados pela asso-

ciação Libera, até dezembro de 2009 exatamente 9.198 bens foram confiscados dos clãs mafiosos; um patrimônio estimado em mais de 600 milhões de euros. A Sicília e a Campânia são as regiões onde foram confiscados o maior número de imó-veis e empresas, mas isso não significa que o nor-te rico e industrializado seja imune às infiltrações mafiosas. Na Lombardia, região que tem como capital a cidade de Milão, foram confiscados, em 2008, 610 imóveis e 161 empresas.

Desde 1996 até hoje, somente 5.022 dos quase 9 mil imóveis confiscados que passaram a ser pro-priedade do Estado foram realmente devolvidos à sociedade para fins sociais, porque o processo que prevê o sequestro, o confisco e a entrega das pro-priedades para as associações, entidades ou coo-perativas capazes de colocá-las a serviço da co-munidade é muito complexo.

Na tentativa de agilizar essa ação, no início de fevereiro o governo anunciou a inauguração da Agenzia nazionale per la gestione dei beni se-questrati e confiscati alla criminalità organizzata. Se trata de um órgão público encarregado de co-ordenar a gestão dos bens confiscados, ocupan-do-se, inclusive, do monitoramento do uso que se faz dos imóveis, terras e propriedades. “Isso é o resultado do que pedimos há anos, mas ainda existem problemas sem respostas, como o fato de 36% dos bens confiscados permanecer hipoteca-do por bancos e outros 30% ainda estarem ocu-pados pelos próprios mafiosos ou por pessoas li-gadas a eles”, comenta Don Luigi Ciotti, fundador de Libera. “Por esses motivos, é preciso reforçar as investigações patrimoniais e esclarecer por que a lei emanada em 1996 que também previa o con-fisco dos bens dos corruptos ainda não foi apli-cada”, completa.

restituir valor à terraPrincipalmente nas regiões Sicília, Puglia, Ca-

lábria e Campânia existem muitas cooperativas de agricultores que levam adiante a reconversão de terras mafiosas, utilizando-as para o cultivo de plantações destinadas à fabricação de produ-tos orgânicos como macarrão, azeite, mel, molho de tomates e vinhos.

Hoje esses produtos estão à venda nas prate-leiras reservadas aos produtos biológicos de al-guns supermercados italianos, mas no início não foram raros os casos de hostilidade em relação a esse tipo de iniciativa.

O pontapé inicial para esse tipo de projeto foi dado pela Libera, um grupo que reúne mais de 1.500 associações liderado por Don Ciotti, um jornalista que se formou padre e que, desde 1995, se dedica à formação de uma cultura da legalidade e ao com-bate ao crime organizado. O resto é mérito de jo-vens que souberam arregaçar as mangas e manter a cabeça erguida, mesmo diante de problemas como o difícil acesso ao crédito de instituições bancárias, terras férteis, mas duramente castigadas, e fortes si-nais de intimidação, como o incêndio de colheitas ou furto de equipamentos agricolas.

Para os membros da associação Libera, o com-bate à máfia não è baseado exclusivamente na repressão, mas também é algo que se faz com a economia, e o trabalho nas terras confiscadas de-monstra que existe uma alternativa justa e legal mesmo naqueles territórios “contaminados” por potentes organizações criminosas.

Até agora, quatro cooperativas que aderem à Libera Terra (Placido Rizzotto, Pio la Torre, Val-le del Marro e Terre di Puglia) foram beneficia-das com cerca de 700 hectares de terra, e um dos exemplos mais emblemáticos de empreendimen-to bem-sucedido é o resultado da produção viní-cola de algumas cooperativas sicilianas.

Em 2001, a Libera abriu uma concorrência pú-blica para recrutar jovens desempregados dispos-tos a criar uma cooperativa para administrar as terras confiscadas pelo consórcio Sviluppo e Le-galità aos chefes mafiosos Giovanni Brusca e Totò Riina. Naquela ocasião, 300 candidatos apresenta-ram-se para o concurso e 15 deles foram selecio-nados para cultivar 115.54.30 hectares de terra. Assim, nos arredores de Corleone, nascia a coo-perativa Placido Rizzotto-Libera Terra, que atual-mente, em parceria com a cooperativa Pio la Torre – Libera Terra, produz 450 mil garrafas de premia-dos vinhos com a marca Cento Passi, o nome ex-traído do filme de Marco Tullio Giordana sobre o assassinato do radialista Pepino Impastato.

Mas a ousadia desses jovens não conhece limi-tes. Em 2008, as cooperativas Pio La Torre, Terre di Puglia e Placido Rizzotto constituiram um con-sórcio, chamado Libera Terra Mediterraneo, com o objetivo de promover um modelo de economia limpa e justa. “Na prática, cultivamos a terra em regime de comodato gratuito”, explica Francesco Galante, responsável pela comunicação do con-sórcio. “Quem recebe um bem confiscado deve multiplicar o seu valor, desenvolvendo um tra-balho de interesse social, e a Libera Terra, com o seu empenho, demonstra que é possível contras-tar a economia mafiosa”, completa.

Além dessas atividades, anualmente, no verão, as cooperativas abrem suas portas e acolhem vo-luntários dispostos a ajudá-las nas colheitas; uma demonstração inequivoca de solidariedade a esse tipo de iniciativa.

É evidente que restituir às comunidades locais as propriedades antes pertecentes à mafia não só contribui para gerar empregos, como também de-monstra, simbolicamente, que no braço de ferro entre o Estado e o crime organizado, a legalida-de é a vencedora.

O sucesso das cooperativas é tanto que, em breve, serão inauguradas mais duas delas, cha-madas Le Terre di Don Peppe Diana, na cidade de Catania e na região da Campânia.

No entanto, o atual governo liderado pelo pre-miê Silvio Berlusconi aprovou, no Senado italiano, uma emenda da legislativa que prevê o leilão das propriedades confiscadas, não destinadas a coope-rativas em um prazo de três ou seis meses.

A medida, que ainda aguarda aprovação de-finitiva na Câmara, foi idealizada para arreca-dar verbas para a segurança pública e o Minis-

tério da Justiça, mas de acordo com os membros da associação Libera, a iniciativa comporta o ris-co de as propriedades confiscadas retornarem às organizações mafiosas, que se servirão de ami-gos e “laranjas” para reapropriar-se de bens que, por prudência, nenhum cidadão ousará comprar. A associação acredita que além de colocar em ris-co a credibilidade das instituições italianas, a me-dida representa uma violência contra os familia-res de vítimas da máfia, as testemunhas de justiça que pagaram com a própria vida o combate à ile-galidade e os jovens agricultores que venceram um desafio moral, mas também econômico. “A venda não é um dogma, mas também não deve tornar-se uma regra”, observa Don Ciotti.

experiência atravessa fronteiras

Na opinião de Francesco Galante, que também é um dos sócios da cooperativa Placido Rizzotto–Libera Terra, o sucesso do projeto só foi possível porque as cooperativas conjugaram uma menta-lidade ético-social com uma lógica empresarial, típica de quem coloca no mercado produtos de qualidade, criando riqueza local.

Segundo ele, a fórmula empresarial adotada pelas cooperativas italianas pode ser exportada para outras partes do mundo.

A Placido Rizzotto é, por exemplo, um dos só-cios-fundadores de Cooperativas Sin Fronteras, uma organização sem fins lucrativos, com sede na Costa Rica, que promove o desenvolvimento, o crescimento e a integração de empresas agrí-colas organizadas de forma coletiva. O objetivo é criar alianças internacionais entre pequenos e médios produtores que apostaram na agricultu-ra sustentável.

A Placido Rizzotto conhece de perto a rea-lidade latino-americana e também aquela das ocupações lideradas pelo Movimento dos Tra-balhadores Sem Terra (MST). Francesco lembra que a situação brasileira é comparável à sici-liana durante as décadas de 40 e 50, quando o chamado decreto Gullo determinava que a terra dos latifundiários seria desapropriada e entregue a camponeses pobres. “Quando os proprietários das terras, com o auxílio da máfia, se opunham a este tipo de decisão, aconteciam ocupações simbólicas por parte dos camponeses”, explica. “Esse foi um dos motivos que gerou episódios como a morte de Placido Rizzotto e a carnificina de Portella della Ginestra, em que homens, mu-lheres e crianças reunidos num comício pró-co-munista foram baleados e mortos”.Esse é um dos motivos pelo qual o sócio da coo-perativa Placido Rizzotto acredita que o conceito de ocupação possa evoluir com o passar dos anos. “É claro que as ocupações do MST desrespeitam as normas do direito civil e penal, mas por outro lado não são ilícitas em relação à Constituição, principalmente se souberem afirmar-se como um movimento não violento, bem visto pela coleti-vidade”, opina.

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no primeiro dia de março, muitos uru-guaios não conseguiram esconder a es-perança diante da posse de José “Pepe”

Mujica, que assumiu com a tarefa de dar con-tinuidade ao primeiro mandato da Frente Am-pla – coalizão de partidos de centro-esquerda que em fevereiro comemorou 39 anos de sua funda-ção – e que também marcou a estreia da esquer-da na presidência do país. Mujica também refor-ça o bloco de governos progressistas da América Latina que, numa visão ampla, inclui desde Lula até Hugo Chávez. Além da ênfase em políticas so-ciais, traço comum desses governos, a vitória da Frente Ampla também é vista como fruto da re-ação popular contrária aos governos neoliberais antecedentes, que levou à ascensão de grupos de esquerda à presidência.

Pepe Mujica atraiu atenção para além dos se-tores de esquerda: a mídia se encantou com a sua trajetória política e personalidade diferenciada. Aliás, foi quase tudo o que se pode ouvir ou ler a respeito do novo presidente. Mujica foi militan-te do Movimento de Libertação Nacional – Tupa-maros, guerrilha urbana criada no início da dé-cada de 60 e derrotada em 1970. Um ano antes da instauração da ditadura civil-militar (1973), ele foi preso e assim permaneceu até o fim do re-gime, em 1985.

A partir de então, participou dos debates que levariam à fundação do Movimento de Participa-ção Popular (MPP) em 1989, quando a organiza-

ção entrou para a Frente Ampla. Mesmo reconhe-cendo os limites da democracia que havia sido instaurada no país, ex-guerrilheiros deixaram as armas e entraram na legalidade: Pepe Mujica foi eleito deputado em 1994, senador em 1999 e se reelegeu em 2004, sendo o mais votado do país. No ano seguinte, assumiu o Ministério de Pecu-ária, Agricultura e Pesca onde ficou até 2008, quando decidiu retornar ao Senado.

Dos tempos de Tupamaros, o presidente con-servou um traço característico da organização: a austeridade. Segundo relatou o jornal argentino Neuquén, Mujica declarou em entrevista coletiva que compreende a prática em sentido “mais pro-fundo” como “a luta desesperada por manter a li-berdade”, pois “quando compramos, não compra-mos com dinheiro e sim com tempo de vida que gastamos para ter esse dinheiro”. Assim como ou-tros presidentes, o ex-tupamaro optou por não ocupar a residência oficial e seguirá vivendo em sua granja nos arredores de Montevidéu, onde cultiva hortaliças e flores junto da esposa, Lucía Topolansky, ex-guerrilheira e senadora mais vo-tada em 2009 pelo MPP.

Frente AmplAAo que tudo indica, os próximos cinco anos

serão uma continuidade do primeiro mandato da Frente Ampla encabeçado por Tabaré Vazquéz: se aprofundarão as políticas sociais, mas o ce-nário econômico é completamente distinto. Em

2005, Vazquéz tinha diante de si um país debili-tado pela crise decorrente dos problemas de seus vizinhos e principais parceiros comerciais: Brasil e Argentina. A economia uruguaia sofreu com a brutal retirada de dinheiro estrangeiro e diminui-ção das exportações, com consequente desvalo-rização da moeda nacional. A pobreza chegou a 31% e o desemprego atingiu 19% da população economicamente ativa. A recuperação teve início ainda em 2003, com sucessivos aumentos do PIB. Nesse cenário, a Frente Ampla venceu no primei-ro turno em 2004 e obteve maioria nas câmaras.

O primeiro governo da esquerda uruguaia não tinha apenas que se legitimar enquanto tal, era necessário fortalecer a economia do país e rever-ter os problemas sociais gerados pela crise. De acordo com Constanza Moreira, cientista políti-ca e senadora eleita pelo MPP, “o primeiro gover-no da Frente Ampla esteve limitado pela impe-riosa necessidade de transmitir à população que a ‘estreia’ na presidência não resultaria em caos e instabilidade”. Para atrair a confiança de inves-tidores e organismos financeiros internacionais, Vázquez não fez grandes alterações na economia nem no modelo de acumulação. Por meio de uma reforma tributária e acordos internacionais bus-cou-se dar garantias aos investidores estrangeiros – sobretudo brasileiros e argentinos. A linha ado-tada teve como referenciais as políticas econômi-cas de Lula e Ricardo Lagos, do Chile. Em 2006, houve negociações infrutíferas entre o Uruguai e fo

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O UrUgUAi de mUjicA: entre a esquerda e o neoliberalismo

Juliana Sada e Patrícia Agusti

Ao que tudo indica, os próximos cinco anos serão uma continuidade do primeiro mandato da Frente Ampla encabeçado por Tabaré Vazquéz.

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os Estados Unidos para assinar um Tratado de Li-vre Comércio. Dois entraves foram apontados: o curto período no qual o acordo deveria se concre-tizar (seis meses) e o possível atrito com os países do Mercosul, prioritários para o Uruguai.

Apesar de não ter seguido os modelos econô-micos precedentes, o governo não fez modifica-ções substanciais, o que gerou críticas por setores da Frente Ampla, uma vez que contrariou pro-gramas da organização. Para a senadora Cons-tanza Moreira, o próximo governo poderá rea-lizar transformações mais importantes, uma vez que as “bases iniciais estão lançadas”. Entretan-to, a equipe econômica é formada pelos mesmos atores e o ex-ministro de economia, Danilo As-tori, é o atual vice-presidente. Quando questiona-da sobre o direcionamento do governo, afirmou que “a construção do socialismo do século 21 não é uma tarefa que se realizará agora, mas seguirá um rumo político que não seja contraditório nem oposto com esta meta final”.

O grande diferencial do governo Vázquez em relação aos seus antecedentes foram os diversos planos de assistência social e a promoção de di-reitos civis. Um dos carros-chefe do governo foi o plano Ceibal, por meio do qual todos os alunos e professores do ensino fundamental público re-ceberam um laptop – iniciativa que Mujica prevê expandir para alunos do ensino médio. Ainda na educação, promoveu-se uma campanha de alfa-betização de adultos, reduzindo a taxa de analfa-betismo a 1,9% em 2008. Já a taxa de desempre-go diminuiu a 7,6%, índice mais baixo registrado desde 1993.

No campo de direitos, aprovou-se a união ci-vil de homossexuais e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Outro avanço foi a Lei de Negociação Coletiva, que permite ao Estado in-tervir nas negociações salariais entre patrões e empregados. Entretanto, a lei que legalizaria o aborto foi vetada por Tabaré Vázquez, gerando críticas de setores de base do governo. Inclusive por parte de sua organização, o Partido Socialis-ta do Uruguai, o que levou o mandatário a soli-citar sua desfiliação.

Outro retrocesso apontado pela esquerda uru-guaia foi a não revogação da Lei de Caducidade, criada no fim da ditadura e utilizada como um mecanismo que permite imunidade aos tortura-dores. Em outubro realizou-se um plebiscito, por iniciativa popular, sobre o tema e 52% da popu-lação optou pela manutenção da lei. Mesmo com esse resultado, muitos juristas buscam maneiras de suprimir a norma, alegando que esta contraria a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Uruguai é signatário.

SegUndO mAndAtO O processo ocorrido desde a escolha de Pepe

Mujica como candidato da Frente Ampla até a sua vitória nas urnas gerou um reordenamen-to das forças internas da coalizão. Atualmente, o principal grupo é o Espaço 609, formado pelo Movimento de Participação Popular (MPP), agru-pamentos minoritários e com eventual apoio do Partido Comunista do Uruguai (PCU). Com similar

peso está a Frente Líber Seregni (FLS) – formada pela Assembleia Uruguaia, Aliança Progressista e Novo Espaço – e que impulsionou a candidatura de Danilo Astori para presidente. A aliança entre MPP e PCU foi fundamental para que Pepe ga-rantisse sua candidatura, já apoiada pelas bases partidárias mas que na disputa interna teve de se confrontar com Danilo Astori, respaldado por Ta-baré Vázquez. Uma vez definido como candidato presidencial da FA, Mujica pediu sua desfiliação do MPP, alegando que deveria responder à Frente sem estar submetido às obrigações do movimen-to. Em troca do seu apoio, o PCU garantiu para si a candidatura para o governo estadual de Mon-tevidéu nas eleições de maio.

Nas eleições para a Câmara de Deputados e o Senado, em outubro, o Espaço 609 obteve mais cadeiras, seguido pela FLS e pelo Partido Socia-lista. A divisão de ministérios no governo Muji-ca foi feita de maneira proporcional a votação recebida nas câmaras. Assim, o Espaço 609 ficou com quatro ministérios; Frente Líber Seregni com três; Espaço 90 (socialistas) com dois; e três mi-nistérios foram divididos entre Corrente de Ação e Pensamento – Liberdade, Vertente Artiguista e Lista 1001 (comunistas).

As prioridades traçadas pelo presidente Pepe Mujica para os próximos cinco anos podem pare-cer similares às de muitos países latino-america-nos: combate à pobreza, maior atenção à saúde e à educação, melhorias na moradia, aprofundamen-to da integração com países vizinhos, aperfeiçoa-mento do transporte, além de uma reforma de Es-tado. Contudo, o que difere o ex-guerrilheiro de outros governantes é a maneira como se pretende levar a cabo parte dessas políticas. A austeridade, palavra bastante usada desde a posse, já foi colo-cada em prática com o estabelecimento de um teto salarial para os funcionários públicos – que deve ficar em R$3.200 – e a proibição do uso de carros oficiais, inclusive pelo presidente e ministros. Mu-jica anunciou ainda que doará 87% de seu salário (cerca de US$ 10.800) a um fundo de ajuda social. A ideia é que a iniciativa atraia a população para trabalhos voluntários. Em encontro com militares, o presidente evocou uma maior participação deles nas ações sociais como uma maneira de aproximar as Forças Armadas da população e diminuir o dis-tanciamento causado pela ditadura.

No segundo semestre deve ter início o Plano Habitacional, que prevê melhorias nas moradias precárias e construção de novas casas com a par-ticipação da população na construção delas, algo que já ocorre nas cooperativas habitacionais. Co-gita-se utilizar mão de obra de presos tanto em mutirões como na fabricação de portas, janelas e outros itens. Essas medidas reduziriam o tempo de reclusão e facilitariam a reinserção de parte da população carcerária à sociedade. Outro objetivo do governo de Mujica é a melhora da qualidade da educação e, consequentemente, a maior espe-cialização da mão de obra uruguaia.

Em relação à infraestrutura, o foco será a re-cuperação da malha ferroviária, mas também se planeja a ampliação de estradas. Em encontro com o presidente boliviano Evo Morales em mar-

ço, Mujica discutiu a hidrovia Paraguai-Paraná, que promete dar uma saída para o mar ao Para-guai e à Bolívia. No encontro também se avançou em um acordo de fornecimento de gás natural ao Uruguai, que tem uma deficiência energética.

Na agenda presidencial já estão marcadas via-gens ao Brasil e à Venezuela. Com o Brasil, o diálo-go se focará no fornecimento de energia e no for-talecimento de políticas ligadas ao Mercosul. Com Hugo Chávez devem ser discutidos assuntos liga-dos ao intercâmbio de tecnologia, energia e educa-ção. Já com o país comandado por Cristina Kirch-ner, os laços estão estremecidos desde a instalação de uma fábrica de celulose na divisa entre os pa-íses. A partir de então, manifestantes que denun-ciam a contaminação do Rio Uruguai pelos resí-duos da produção do papel fecharam a ponte que liga a Uruguai à Argentina. O conflito foi levado à Corte Internacional de Haia e um veredito deve ser anunciado ainda no primeiro semestre de 2010. Resolver a crise diplomática com a Argentina é um dos pontos-chave para aumentar a participa-ção uruguaia no Mercosul, uma das maiores am-bições do novo governo.

ObStácUlOSUma das primeiras ações de Mujica foi aproxi-

mar-se de líderes da oposição para obter apoio em projetos a longo prazo e políticas que vão além da atual administração frente-amplista. Já entidades patronais cobraram uma revisão das leis trabalhis-tas aprovadas nos últimos cinco anos. Fora os opo-sitores convencionais, o governo teve de lidar com algumas críticas por parte do PIT-CNT (central de sindicatos). A primeira avaliação negativa veio an-tes mesmo da posse, devido à reunião do presiden-te uruguaio com um grupo de empresários de vá-rios países no início de fevereiro, que teve como finalidade atrair investimentos para o país, o que foi visto como uma inclinação ao neoliberalismo. Já na segunda semana de março, o sindicato rea-giu a declarações feitas por Mujica de que ele pre-fere esclarecer fatos obscuros ocorridos durante a ditadura a ver ex-militares com idade avançada na cadeia, dando a entender que o governo apoia a prisão domiciliar de ex-militares com mais de 70 anos que tenham violado os Direitos Humanos.

Da mesma maneira que houve frisson com a eleição de Mujica, criou-se uma expectativa em relação ao passado revolucionário do presidente e entusiastas de governos progressistas da América Latina podem esperar um alinhamento com Chá-vez ou Evo Morales. Para o jornalista Raúl Zibe-chi, do semanário uruguaio Brecha, no entanto, “o cerne da relação com esses países vai girar em tor-no da energia, pois o Uruguai é muito dependen-te do petróleo”. Ele descarta uma radicalização em termos econômicos, pois “estar na ALBA (Alian-ça Bolivariana para os Povos de Nossa América) supõe colocar limites no capital e isso, inevitavel-mente, gera uma crise provocada pela direita, que sempre ameaça boicotar a governabilidade”. Res-ta a Pepe Mujica saber equilibrar todas as forças e conseguir atender às diferentes expectativas.

Juliana Sada e Patrícia Agusti são jornalistas.

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Cesar Cardoso

Como mudou o mundo nestes 13 anos, desde que surgiu Caros Amigos!

Desde então tivemos os dois governos de FHC e sete anos do governo Lula, no Brasil. A América Latina ainda vivia o auge neoliberal. Desde então vieram várias crises, a brasileira de 1999, a argen-tina de 2001-2002. Paralelamente, o grito dos za-patistas em Chiapas, as mobilizações camponesas e indígenas no Brasil, no Peru, na Bolívia, no Equa-dor, entre tantas outras mobilizações populares. O surgimento do Fórum Social Mundial, as grandes mobilizações contra a guerra do Iraque. Mas tam-bém os atentados em Nova York e em Washington, a declaração das “guerras infinitas” pelo governo Bush, as invasões do Afeganistão e do Iraque, en-tre outras agressões imperialistas.

Se eu fosse escolher um momento espe-cial nesses 13 anos, eu escolheria a eleição de Evo Morales, em dezembro de 2005, para a presidên-cia da Bolívia. Em primeiro lugar, porque pela pri-meira vez um indígena, em um país em que mais de 60% se considera indígena, foi eleito presi-dente. O mais importante, no entanto, foi ter sido eleito no bojo de cinco anos de lutas antineoli-berais, demonstrando como o movimento indíge-na boliviano havia se transformado na liderança dessa luta na Bolívia.

Um país que tinha tido um pujante movimen-to mineiro quando a exploração do estanho era a

Emir Sader

Emir Sader é cientista político.Cesar Cardoso é escritor e tem o blog PATAVINA’S.(www.cesarcar.blogspot.com)

Revista CARAS... AMIGAS

13 ANOS

O suplemento rico e chique da Caros Amigos(no próximo número sairemos em inglês e papel couché, para nos diferenciarmos do resto da revista)Editores: Gisélio Bunchen & Cesar Cardoso

Saiu a coleção “Para Entender O Brasil”, com os depoimentos dessa gente humilde, que von-tade de chorar! Volume um: Por Que Eu Amo Mo-rar Numa Favela que Desaba e Inunda. Volume dois: Por Que Eu Adoro Trabalhar de Camelô em Vez de Ter Carteira Assinada e Aposentadoria. E volume três: Por Que eu Sou Apaixonado Por Vender Droga em Vez de Estudar. Finalmente nós, da elite, vamos enten-der essa gentalha (e descobrir que eles não têm jei-to mesmo).

E já que, por falta de assunto melhor, estamos falando do povinho, pesquisa: responda depressa, o brasileiro é um povo pacífico ou atlântico?

Amiga participativa: saíram as novas palavras de ordem pra você desfilar sua coleção outono/inver-no nos Jardins: “Paz na Terra! Viva a Batalha Naval!” “Basta de basta. Agora é Bosta!” E: “Nem mais um dia: liberdade aos frangos de padaria!”

Um pouco de economia. Preocupados com a ascensão dos pobres ao mundo do consumo, os bancos lançaram uma linha de crédito popular para a compra da dignidade própria. O kit completo vem com diploma universitário, que dá direito à prisão especial. Vamos lá, miserável, não perca a sua chan-ce de dizer: “sabe com quem está falando?”

E o Brasil, hein? Corrupção, vá lá. Agora, ascen-são social dos pobres? Francamente! Mas otimismo, my friends, otimismo. O planeta vai esquentar? Oba, vamos vender ar condicionado. Vai ter enchente pra todo lado? Oba, vamos vender boia. Vai desabar tudo? Oba, vamos vender material de construção!

É isso aí. Liberdade, liberdade: abre as pa-tas sobre nós!

atividade fundamental do país, mas essa ativida-de – assim como o movimento operário vincula-do a ela – não sobreviveu ao devastador diagnós-tico do neoliberalismo, que literalmente matou o paciente com a doença – a exploração do miné-rio e a inflação.

A continuação desses governos das eli-tes bolivianas esbarrou na resistência indígena quando tentou privatizar a água e aí se iniciou um novo ciclo de mobilizações populares, ago-ra liderado pelos movimentos indígenas. Um mo-mento decisivo na nova etapa não apenas da Bolí-via, mas da esquerda latinoamericana, foi quando os movimentos indígenas passaram da resistên-cia à disputa hegemônica, fundando um partido – o MAS. A liderança de Evo Morales e o papel in-telectual e político do seu vice-presidente, Álva-ro García Linera, foram determinantes para que a força social e cultural acumulada se transformas-se em força política e impusesse sua hegemonia ao conjunto do país.

Esse processo faz parte do movimento políti-co mais importante destes 13 anos, o surgimento dos governos progressistas na América Latina. Por isso, podemos dizer que, pelo menos para a Amé-rica Latina – e para nós, brasileiros, entre eles – o mundo ficou melhor nestes 13 anos desde que Caros Amigos surgiu. E contribuiu para que fos-se melhor.

SuGeStõeS de leItuRA

AS ORIGENS DO FASCISMOAntonio GramsciEditora Alameda

O BRASIL ENTRE O PASSADO E O FUTUROEmir Sader e Marco Aurelio Garcia (orgs.)Boitempo e Perseu Abramo

GEOGRAFIA: TRADIÇÕES E PERSPECTIVASAmalia Lemos e Emerson Galvani (orgs.)Editora Expressão Popular

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Mc Leonardo

A ideologia purista no que diz respeito à lín-gua é tão autoritária e dogmática que um de seus principais recursos retóricos é negar pura e simplesmente a existência mesma dos usos lin-guísticos que seus defensores rotulam de “er-ros”. Nesse discurso, se uma determinada cons-trução sintática não é acolhida pela tradição gramatical, diz-se que “isso não é português”, ainda que 300 milhões de pessoas em quatro continentes falem assim. Se determinada pala-vra não vem registrada nos dicionários é por-que ela “não existe”.

Esse discurso faz a operação principal das ideologias, no sentido clássico desse termo nas ciências sociais: o falseamento da realidade por meio da inversão da história. Dá a impressão de que, na aurora dos tempos, Deus disse: “Fa-ça-se a gramática, faça-se o dicionário”. As-sim a língua foi criada e somente depois sur-giram as pessoas que iam falar a língua. Essa operação ideológica fica bem evidente no dis-curso, igualmente tradicionalista, de que “hoje em dia ninguém fala certo”, como se em algum momento do passado, numa Idade de Ouro lin-guística, todas as pessoas tenham falado a lín-gua exatamente como ela vem prescrita nas gramáticas e nos dicionários. Pura fantasia, agridoce ilusão. Ninguém jamais, em lugar nenhum, falou, fala ou falará uma língua tal como vem desenhada e moldada nas gramá-ticas e nos dicionários. Essa “língua” registra-da ali é que, de fato, não existe. É um modelo utópico, um padrão ideal, baseado numa mo-dalidade de uso extremamente restrita, um câ-none literário antiquado, e que despreza tudo o que a ciência moderna sabe a respeito das lín-guas: que elas são mutantes, variáveis, hetero-gêneas, instáveis.

Essa ideologia, infelizmente, está impreg-nada até hoje na maioria dos livros didáticos destinados ao ensino de português no Brasil. Embora tenham abraçado modernas teorias linguísticas no tocante à prática da leitura e da produção de textos, quando o assun-to é gramática, continuam apegados a um modo de ver a língua que as ciências da lin-guagem já provaram ser francamente equi-vocado, falho, errado mesmo. Consultando um desses livros, por exemplo, encontrei a seguinte pérola: “Não existe ‘apesar que’.” Ora, se não existe, por que a necessidade de

explicitar essa não-existência? É no mínimo irracional e ilógico apresentar, numa obra didática, alguma coisa que “não existe”. A verdade é que “apesar que” existe, sim, e sua simples menção no livro didático é a prova cabal dessa existência. Só que tal existência é condenada pela norma estreita e estrita que se pretende veicular como “língua certa”. Há uma distância astronômica entre não existir, pura e simplesmente, e existir e ser condena-do — mas essa distância é facilmente venci-da pelas botas-de-sete-léguas da ideologia. Consultando a internet, encontrei nada me-nos do que 305 mil ocorrências de “apesar que” em textos escritos, incluindo pareceres jurídicos, teses acadêmicas, artigos científi-cos. Para algo que não existe é um número bem alto, não? É uma pena que nosso ensi-no de português ainda se agarre com tantas unhas e dentes a um fantasma de língua, em vez de desdobrar em sala de aula a realidade múltipla, diversificada e fascinante da lín-gua nossa de cada dia.

falar brasileiroMarcos Bagno

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Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Um verdadeiro pacificador

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Existe ou não existe? Eis a questão

Guth Fraga é meu amigo há 17 anos, nos co-nhecemos quando eu e meu irmão subíamos o mor-ro pra cantar nas festas de rua que reuniam milha-res de pessoas na favela e que pra nós era a grande oportunidade de cantar.

Em uma dessas festas conhecemos o Guth, que nos convidou pra nos apresentarmos em um colégio que ficava na subida do morro, era só a gente chegar mais cedo e se inscrever.

O “Show das Sete”, como era chamado o evento, reunia a molecada da favela pra assistir a um show de auditório totalmente democrático e nin-guém sabia o que iria assistir, mas não tinha um sá-bado que estivesse vazio, era feito pelo ainda peque-no Grupo de Teatro Nós do Morro.

Tivemos a chance de ver de perto o crescimento do grupo e temos o orgulho de dizer que não só de-mos nossa pequena contribuição pro Nós do Morro ser o que é hoje, como sabemos o quanto esse grupo foi importante pra sermos o que somos hoje.

Subimos o Morro do Vidigal no último dia 10 de março a convite do nosso amigo Guth pra can-tar na estreia do “Campinho Show”, que tem o formato exatamente igual ao lendário “Show das Sete”.

Bem no alto do morro há um espaço imenso onde tem duas quadras de futebol, um campo soçaite, uma pracinha com brinquedos pras crianças e uma pe-quena arena onde o grupo resolveu fazer o “Campi-nho Show”.

“Temos que ocupar os espaços, não podemos abandoná-los, temos que pelo menos dividi-los”, me diz o Guth.

Trinta e quatro anos vivendo e convivendo com favelas, sei exatamente o que ele quis dizer.

No final das apresentações, o Guth falou pra pla-teia sobre a importância de dividirmos nossas vidas por meio das nossas emoções.

Não se pode falar em pacificação sem a divisão de opiniões, acredito muito mais na força transforma-dora da arte do que na força policial que impõe seus métodos “pacificadores”.

Vida longa pro “Campinho Show”, o Vidigal mere-ce esse exemplo de pacificação.

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IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

As duas obras mais belas do mês são justamente as mais caras. Uma é o luxuoso álbum Roberto Burle Marx – Uma experiência es-tética, paisagismo e pintura, publicado pela Repsol e pela Design e Edito-ra Ltda.. Com belíssimas ilustrações de trabalhos paisagísticos e pictóricos, o livro comemora os cem anos de nascimento de Burle Marx. Tem ensaios de Lélia Coelho Frota e Lauro Cavalcanti. As fotos são de Cesar Barreto e há ainda uma entrevista, por Regina Zappa, com Haruyoshi Ono, que está à frente do Escritório Burle Marx desde a morte do mestre, em 1994, sen-do assim seu herdeiro.

A outra obra linda e cara é a coleção de DVDs Aramis Millarch – 30 anos de jornalismo cultural, lançada pela Petrobrás, RádioCaos e Homem de Fer-ro. São entrevistas que o falecido jornalista curitibano fez com nomes im-portantes das artes brasileiras nos anos 1960, 1970 e 1980, em particular na música, teatro, cinema e design. Afi nal, ele conviveu com artistas como João Gilberto, Cartola, o percussionista Airto Moreira, o ator Paulo Goulart, Elis Regina e tantos outros.

Mais acessível, mas igualmente encantadora, é a pesquisa da jornalista e professora Maria Luisa Rinaldi Hupfer, As Rainhas do Rádio – Símbolos da nascente indústria cultural brasileira. Tendo como pano de fundo o concurso da Rainha do Rádio, realizado a partir de 1937, a auto-ra retrata a trajetória de cantoras como Linda e Dircinha Batista, Marle-ne, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Ângela Maria, Dóris Monteiro. Porém também reconstrói o nascimento da indústria cultural no país, e seu desen-volvimento pelas emissoras de rádio e gravadoras de discos, além de suas ramifi cações por revistas e jornais. Tudo isso inserido no quadro mais amplo da ditadura varguista, da Segunda Guerra Mundial e do ufanismo do desen-volvimentismo democrático dos anos 1950. A reconstrução histórica é tão evocativa e emocionante que, não só pelo texto, mas particularmente pe-

las belíssimas ilustrações, lembra o clima do fi lme A Era do Rádio, do diretor e ator Woody Allen.

Também bonito é o livro O ban-quete dos deuses – Conversa so-bre a origem e a cultura brasileira, do fi lósofo, educador, pesquisador e militante indígena Daniel Mun-duruku, com ilustrações de Mau-ricio Negro e Luciano Tasso, edi-tado pela Global. A obra inclui os ensaios “Em busca de uma ances-tralidade brasileira – À guisa de in-trodução”, “Quanto custa ser ‘ín-dio’ no Brasil – As imagens dos povos indígenas no inconsciente e nos livros didáticos”, “O banquete dos deuses – Ou como ser alimen-to da divindade”, “Esta terra tinha

dono – Um pouco da pré-his-tória dos povos indígenas”, en-tre outros. Como se vê, Mun-duruku (nome de sua etnia) resgata as riquezas da cultura e da sabedoria indígenas.

Igualmente da Glo-bal, saíram dois volumes da coleção Roteiro da poesia bra-sileira, dirigida pela escritora Edla van Steen, Anos 70, com seleção e prefácio de Afonso Henriques Neto, e Anos 2000, seleção e prefácio de Marco Lucchesi. No total, são 15 volu-mes, que cobrem desde a Colônia e o arcadismo até os dias atuais. Entre os nomes dos anos 1970, estão Olga Savary, Adélia Prado, Cláudio Mello e Sou-za, Astrid Cabral, Ruy Espinheira Filho, Waly Salomão, Paulo Leminski, Pe-dro Paulo de Sena Madureira, Chacal, Alex Polari, Ana Cristina Cesar, Régis Bonvicino. Dos anos 2000, Amador Ribeiro Neto, Ana Rusche, Estrela Ruiz Leminsky, Luís Maffei, e tantos outros.

Além de poesia, temos o romance O planalto e a estepe, do angolano Pe-petela, publicado pela Leya-Texto Editores. É a comovente história, basea-da em fatos reais, do amor entre um jovem angolano e uma jovem mongol, que se apaixonaram em Moscou, em 1960, e levaram 35 anos para concre-tizar sua união, depois de combater preconceitos que supostamente não de-veriam existir entre militantes comunistas.

Saindo das belas-artes, nos deparamos com problemas espi-nhosos do mundo contemporâneo, no livro Judeus contra judeus – A história da oposição judaica ao sionismo, do historiador judeu russo radicado no Ca-nadá Yakov Rabkin, publicado pela Editora Acatu. Diz o prefácio de Joseph Agassi, professor no Canadá e em Israel: “O autor se propõe a questionar o mito segundo o qual o Estado de Israel prote-ge todos os judeus e constitui também sua pá-tria-mãe. Com muita razão, o livro demonstra que esse mito é antijudaico (...). Nesse contex-to, a questão vital para os judeus é a seguinte: os interesses de Israel coincidem com os inte-resses dos judeus da Diáspora ou, pelo contrá-rio, entram em confl ito com eles?” Em suma, trata-se de uma obra importante não só para os judeus, mas para todos os interessados nos grandes problemas atuais da humanidade.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amare-la, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

Artes belas E JUDEUS CONTRA O SIONISMO

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www.confiancanobrasil.gov.br

Estamos vivendo um novo Brasil.Feito por você. Respeitado pelo mundo.

Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais.

27,5 milhões de pessoas ascenderam à classe C e 6,5 milhões às classes A e B, de 2003 a 2009. Fonte: Centro de Políticas Sociais - FGV.

14 novas universidades federais e 124 campi. 111 novas escolas técnicas.

Início da exploração de petróleo na camada do Pré-Sal.

Redução de 75% no desmatamento da Amazônia nos últimos 5 anos. O menor nível em 21 anos. Fonte INPE.

A bolsa brasileira obteve a maior valorização do mundo nos últimos 12 meses: 66,4% (encerrados em janeiro de 2010).

US$ 241 bilhões em reservas internacionais (posição de 25 de fevereiro de 2010).

11,9 milhões de empregos formais gerados nos últimos 8 anos. Segundo dados da RAIS (2003-2008) e do Caged

(2009-2010, até janeiro).

As exportações brasileiras mais que dobraram (+109%) entre 2003 e 2009.

Aumento de 5,9% nas vendas do comércio varejista em 2009.

Crescimento de 18,9% da indústria em dezembro de 2009, em comparação com o mesmo mês em 2008.

3,01 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 12,7% frente a 2008.

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Estamos vivendo um novo Brasil.Feito por você. Respeitado pelo mundo.

Nós brasileiros conquistamos um país cada vez melhor para todos. Estamos juntos, seguindo em frente. E é possível avançar ainda mais.

27,5 milhões de pessoas ascenderam à classe C e 6,5 milhões às classes A e B, de 2003 a 2009. Fonte: Centro de Políticas Sociais - FGV.

14 novas universidades federais e 124 campi. 111 novas escolas técnicas.

Início da exploração de petróleo na camada do Pré-Sal.

Redução de 75% no desmatamento da Amazônia nos últimos 5 anos. O menor nível em 21 anos. Fonte INPE.

A bolsa brasileira obteve a maior valorização do mundo nos últimos 12 meses: 66,4% (encerrados em janeiro de 2010).

US$ 241 bilhões em reservas internacionais (posição de 25 de fevereiro de 2010).

11,9 milhões de empregos formais gerados nos últimos 8 anos. Segundo dados da RAIS (2003-2008) e do Caged

(2009-2010, até janeiro).

As exportações brasileiras mais que dobraram (+109%) entre 2003 e 2009.

Aumento de 5,9% nas vendas do comércio varejista em 2009.

Crescimento de 18,9% da indústria em dezembro de 2009, em comparação com o mesmo mês em 2008.

3,01 milhões de veículos vendidos em 2009, um novo recorde histórico. Crescimento de 12,7% frente a 2008.

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Page 48: Ed. 157 - Revista Caros Amigos

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