Economizando a Vida

9
Polis e Psique, Vol.2, n.1, 2012 Página | 169 Economizando a vida: breves notas sobre a genealogia da economia no pensamento de Giorgio Agamben Andrea Cristina Coelho Scisleski Para falar do livro “O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo” é necessário, primeiramente, situar alguns postulados de seu autor. Giorgio Agamben é jurista e filósofo italiano e tem como uma de suas principais bases teóricas de destaque o pensamento de Michel Foucault, especialmente no que diz respeito ao que o filósofo francês discorre no que tange ao governo da vida, ao biopoder e à biopolítica. No entanto, Agamben, ao se debruçar também nos aspectos filosóficos e políticos que implicam a ideia de vida, propõe uma releitura e mesmo uma ruptura com alguns conceitos foucaultianos. Como o próprio Agamben (2010) explica, um dos seus princípios metodológicos é o de demarcar o elemento filosófico crucial na obra de um autor. Contudo, quando interpretamos e desenvolvemos neste sentido o texto de um autor, chega o momento em que começamos a nos dar conta de não mais poder seguir além sem transgredir as regras mais elementares da hermenêutica. Isso significa que o desenvolvimento do texto em questão alcançou um ponto de indecidibilidade no qual se torna impossível distinguir entre o autor e o intérprete (...) é o momento de abandonar o texto que está analisando e de proceder por conta própria (Agamben, 2010, p. 40-41). Isto é, criar uma interpretação é também inventar uma outra teoria. E é isso que faz Agamben a partir, especialmente, de Foucault. Em sua obra prima, “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I”, Giorgio Agamben (2004) coloca para si a tarefa que Foucault não pôde responder: “(...) onde está, então, no corpo do poder, a zona de indiferenciação (ou, ao menos, o ponto de intersecção) em que técnicas de individualização e procedimentos totalizantes se tocam?” (Agamben, 2004, p. 13). A crítica de Agamben ao filosófo francês cabe lembrar que Foucault morreu na década de 80 do século passado consiste na atual necessidade de repensar as questões que vinculam (e excluem) vida e política. Se entendermos que em Agamben sua obra Homo Sacer” não trata meramente de um livro, mas de um projeto

description

Resenha livro Agamben

Transcript of Economizando a Vida

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 169

    Economizando a vida: breves notas sobre a genealogia da economia no

    pensamento de Giorgio Agamben

    Andrea Cristina Coelho Scisleski

    Para falar do livro O Reino e a Glria:

    uma genealogia teolgica da economia e

    do governo necessrio, primeiramente,

    situar alguns postulados de seu autor.

    Giorgio Agamben jurista e filsofo

    italiano e tem como uma de suas principais

    bases tericas de destaque o pensamento

    de Michel Foucault, especialmente no que

    diz respeito ao que o filsofo francs

    discorre no que tange ao governo da vida,

    ao biopoder e biopoltica. No entanto,

    Agamben, ao se debruar tambm nos

    aspectos filosficos e polticos que

    implicam a ideia de vida, prope uma

    releitura e mesmo uma ruptura com alguns

    conceitos foucaultianos. Como o prprio

    Agamben (2010) explica, um dos seus

    princpios metodolgicos o de demarcar

    o elemento filosfico crucial na obra de um

    autor. Contudo,

    quando interpretamos e desenvolvemos

    neste sentido o texto de um autor, chega o

    momento em que comeamos a nos dar

    conta de no mais poder seguir alm sem

    transgredir as regras mais elementares da

    hermenutica. Isso significa que o

    desenvolvimento do texto em questo

    alcanou um ponto de indecidibilidade no

    qual se torna impossvel distinguir entre o

    autor e o intrprete (...) o momento de

    abandonar o texto que est analisando e de

    proceder por conta prpria (Agamben,

    2010, p. 40-41).

    Isto , criar uma interpretao

    tambm inventar uma outra teoria. E isso

    que faz Agamben a partir, especialmente,

    de Foucault.

    Em sua obra prima, Homo sacer: o

    poder soberano e a vida nua I, Giorgio

    Agamben (2004) coloca para si a tarefa

    que Foucault no pde responder: (...)

    onde est, ento, no corpo do poder, a

    zona de indiferenciao (ou, ao menos, o

    ponto de interseco) em que tcnicas de

    individualizao e procedimentos

    totalizantes se tocam? (Agamben, 2004,

    p. 13). A crtica de Agamben ao filosfo

    francs cabe lembrar que Foucault

    morreu na dcada de 80 do sculo passado

    consiste na atual necessidade de repensar

    as questes que vinculam (e excluem) vida

    e poltica.

    Se entendermos que em Agamben

    sua obra Homo Sacer no trata

    meramente de um livro, mas de um projeto

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 170

    de pesquisa, visualizamos O Reino e a

    Glria como uma continuidade do

    pensamento do autor que busca explicar,

    atravs da indicao de mais respostas e da

    colocao de novas questes sobre a

    produo de vida e de morte no contexto

    poltico, a ideia de soberania e governo,

    partindo de uma concepo de oikonomia.

    Para tanto, essa retomada arqueolgica da

    terminologia grega busca a definio da

    expresso, que designa administrao da

    casa (Agamben, 2011, p. 31). Entretanto,

    quando Aristteles que um dos

    filsofos no qual Agamben se inspira com

    frequncia faz seu tratado de economia

    apresentando o termo oikonomia, ele j

    aponta, segundo Agamben, para uma

    operao importante: uma distino que

    separa a casa (oikos) da cidade (polis).

    Antes de avanarmos sobre este

    tema, cabe uma advertncia. Uma

    advertncia conceitual e epistemolgica.

    Conceitual, primeiramente, porque

    Agamben ao continuar suas reflexes sobre

    o projeto de sua pesquisa inclui, aqui de

    modo mais enftico, uma discusso sobre o

    conceito de governo no to

    profundamente abordado em Homo Sacer

    I, posto que naquele momento um dos

    focos residia em precisar o conceito de

    soberania.

    Advertncia epistemolgica, porque

    agora ele prope um recuo arqueolgico

    que busca fazer emergir a articulao entre

    teologia e poltica, articulao essa que

    ser viabilizada justamente pelo conceito

    de economia. O livro trata, portanto, de

    trazer luz esse vnculo e o modo como

    ele foi se produzindo e provocando efeitos

    que culminariam no capitalismo atual.

    Esclarecido isso, Agamben inicia

    suas reflexes sobre a genealogia da

    economia e do governo partindo de dois

    paradigmas polticos derivados da teologia

    crist contempornea. O paradigma

    teolgico-poltico, apresentado por Carl

    Schmitt em 1922, em que uma de suas

    principais teses sustenta que todos os

    conceitos decisivos da moderna doutrina

    do Estado so conceitos teolgicos

    secularizados (Schmitt citado por

    Agamben, 2011, p. 14). Essa ideia, para

    Agamben, indica uma operao que traz

    elementos que concernem ao mbito da

    vida divina para a organizao gerencial e

    governamental da vida humana. Alm

    disso, a ideia de soberania a ser produzida

    nessa lgica aponta que, na perspectiva

    judaico-crist, o ser humano o nico ser

    vivo criado imagem e semelhana de

    Deus possibilitando, portanto, uma certa

    transposio de uma forma de gesto que

    transcendente; isto , o soberano governa a

    vida na terra tal qual Deus governa a vida

    divina.

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 171

    O outro paradigma em questo, a

    ser analisado por Agamben, a teologia

    econmica de Peterson, oposta ideia de

    Schmitt. Para Peterson, a monarquia divina

    funciona da seguinte forma: o rei reina,

    mas no governa (Peterson citado por

    Agamben, 2011, p. 22). Peterson aborda a

    organizao da Trindade (Pai-Filho-

    Esprito Santo) como os regentes

    administradores da vida eterna e terrena.

    Aqui, fica clara a perspectiva de uma

    gerncia que se d em nvel no mais

    monotesta, mas trina. E nessa trindade

    reside uma diviso: quem o soberano

    reina, e quem so os seus agentes

    governam. A partir dessa viso, segundo a

    leitura de Agamben sobre Peterson, est

    colocado um modelo econmico de gesto,

    em que se faz presente tambm uma ciso

    entre soberania e governo. Ou seja, dessa

    maneira, o soberano pensa a ordem, porm

    necessita de agentes subalternos para

    execut-las.

    Agamben, ao longo dos diversos

    captulos do livro, vai apresentando as

    sucessivas conceituaes do termo

    economia em distintos contextos

    histricos. Ele inicia retomando a

    oikonomia grega de Aristteles para

    designar a administrao da casa que

    envolve um organismo complexo no qual

    se entrelaam relaes heterogneas (...)

    que so distintas em trs grupos: relaes

    despticas senhores-escravos (...),

    relaes paternas pais-filhos e relaes

    gmicas marido-mulher (Agamben,

    2011, p. 31). De acordo com o filsofo

    italiano, o que une essas relaes um

    paradigma que pode ser definido como

    gerencial, e no epistmico, que

    implica decises e disposies que

    enfrentam problemas sempre especficos,

    que dizem respeito ordem funcional

    (taxis) das diferentes partes do oikos

    (Agamben, 2011, p. 32). Progressivamente,

    como Agamben discorre detalhadamente

    no livro, a extenso analgica e semntica

    do termo oikonomia/economia toma

    rumos que se propagam bem mais alm das

    designaes originais.

    Dessa forma, um dos exemplos do

    alargamento da concepo de economia

    est no cristianismo pregado por Paulo.

    Para o apstolo, Deus incumbiu o messias,

    Seu Filho, a oikonomia da execuo de um

    plano divino de salvao (Agamben,

    2011). Oikonomia aqui entendida nos

    termos aristotlicos da administrao, mas

    j transposta a um campo teolgico. Os

    cristos, no sentido que Agamben

    interpreta Paulo, passam a ser tambm

    membros nessa ordem econmica e, por

    conseguinte, tornam-se os primeiros

    homens a integrarem-se economia. Nessa

    perspectiva, desenha-se uma possibilidade

    de unificao do ente divino, justamente

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 172

    porque atravs da empreitada realizada

    pelo Filho para a salvao da humanidade,

    a trindade passa a ser entendida como algo

    nico. A diviso Pai-Filho-Esprito Santo

    nada mais que uma diviso que organiza

    uma gesto; em outras palavras, trata-se de

    um dispositivo econmico, um arranjo

    gerencial. Nesse momento, evidencia-se

    uma expanso no que passa a ser tomado

    como economia, mas ainda no est

    presente o atrelamento dessa ideia com a

    poltica.

    Mais tarde, com o desenvolvimento

    do cristianismo e em especial durante a sua

    longa consolidao na Idade Mdia,

    tornou-se importante que a ideia de

    trindade fosse mais consistentemente

    elaborada, justamente para a igreja no

    correr o risco de apresentar uma

    pluralidade de divindades que levassem

    quebra do monotesmo. Nessa perspectiva,

    Agamben explica porque o pensamento de

    um dos primeiros telogos romanos,

    Hiplito, retomado pela igreja, uma vez

    que os argumentos do telogo da Roma

    Antiga apresentam um cuidado com a

    unicidade divina: Deus uno segundo

    sua dynamis1 (...) e triplo apenas segundo

    a economia (Hiplito citado por

    Agamben, 2011, p. 67). Desse modo,

    percebemos que a ciso no diz respeito

    ontologia do ser divino e sim apenas sua

    forma de administrar. Apesar do xito

    cristo sobre a unidade divina enquanto

    ente, Agamben pontua que com isso, uma

    nova fratura reaparece: a separao entre

    Deus e sua ao; isto , entre Deus e seu

    governo de mundo. Agamben assinala que

    nesse momento podemos j visualizar o

    anncio de uma tica em sentido moderno;

    em outras palavras, uma tica que surge

    da fratura entre ser e prxis (Agamben,

    2011, p. 68), produzida no final do mundo

    antigo, mas que a modernidade herda2.

    importante salientar os efeitos

    que aparecem a partir dessa ciso entre

    Deus e sua administrao, ser e prxis,

    reino e governo, potncia e ao. Nas

    palavras de Agamben: Reino e Governo

    constituem uma mquina dupla, lugar de

    separao e de uma articulao

    ininterrupta (Agamben, 2011, p. 114).

    Nessa afirmao, cabem algumas

    explicaes.

    A primeira delas a conceituao

    de mquina no projeto agambeniano.

    Inicialmente podemos dizer que mquina

    um dos significados do conceito

    dispositivo. Para Agamben,

    sinteticamente, o dispositivo ainda mais

    amplo que a concepo foucaultiana,

    porm em Agamben, o dispositivo assume

    uma funo completamente governamental

    que se dirige diretamente aos sujeitos. Nas

    palavras do autor:

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 173

    Chamarei literalmente de dispositivo

    qualquer coisa que tenha de algum modo a

    capacidade de capturar, orientar,

    determinar, interceptar, modelar, controlar

    e assegurar os gestos, as condutas, as

    opinies e os discursos dos seres viventes.

    No somente, portanto, as prises, os

    manicmios, as fbricas, as disciplinas, as

    medidas jurdicas, etc (...). Temos assim

    duas grandes classes, os seres viventes (...)

    e os dispositivos. E entre os dois, como

    terceiro, os sujeitos. Chamo sujeito o que

    resulta da relao e, por assim dizer, do

    corpo a corpo entre os viventes e os

    dispositivos (...). Ao ilimitado crescimento

    dos dispositivos no nosso tempo

    corresponde uma igualmente disseminada

    proliferao de processos de subjetivao

    (Agamben, 2009, p. 40-41).

    importante levar em considerao

    que, apesar de dispositivo ser um dos

    possveis sentidos para o conceito de

    mquina, ele no esgota as concepes

    dessa ltima. De acordo com Castro

    (2012), a mquina agambeniana implica na

    presena de quatro componentes: a)

    dispositivo que produz gestos, condutas e

    discursos; b) bipolaridade; isto , articula

    sempre duas coisas aparentemente opostas,

    mas no necessariamente (exemplo:

    soberania e governo como elementos da

    mquina governamental); c) zonas de

    indiscernibilidade; ou seja, a produo de

    uma agregao de coisas que se mesclam

    ao ponto de no percebemos mais uma

    fronteira, fazendo com que essas coisas

    paream ou se tornem uma s (exemplo: as

    estratgias de produo de vida e de morte

    pela mquina jurdico-poltica ocidental) e,

    finalmente, d) inoperosidade; o que

    significa em termos gerais um modo da

    existncia da potncia, j que implica em

    uma possibilidade que no

    necessariamente se concretiza.

    Colocado isso sobre a ideia de

    mquina, cabe ainda destacar aqui

    brevemente a acepo de potncia, pois se

    trata de um elemento crucial em O Reino

    e a Glria.

    Na verdade, potncia um conceito

    importante que atravessa toda a obra de

    Giorgio Agamben e que toma como

    fundamento, em especial, o pensamento

    aristotlico e leibniziano. De modo geral,

    para o autor italiano, podemos afirmar que

    a experincia da potncia no coincide

    com o ato de uma ao. De acordo com

    Agamben, segundo os pressupostos

    aristotlicos, a potncia propriamente

    oposta ao ato: algo como uma faculdade

    de sentir distinta do sentir em ato

    (Agamben, 2006, p. 15). Ainda em

    Aristteles, cabe diferenciar que na ideia

    de potncia no est em questo uma

    dimenso genrica, mas sim uma certa

    experincia, uma certa vivncia que se

    atrela possibilidade.

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 174

    Para ilustrar podemos nos referir ao

    prprio exemplo que Agamben cita: a

    criana tem a potncia de vir a ser um

    arquiteto, um chefe de Estado o que

    remete a uma potncia genrica. Isso difere

    em muito de um arquiteto que j tem a

    cincia e a habilidade de construir. essa

    ltima perspectiva que interessa ao vis

    aristotlico, pois o arquiteto tem a potncia

    de construir mesmo quando no est

    construindo. Isso quer dizer que a

    potncia definida essencialmente pela

    possibilidade do seu no-exerccio

    (Agamben, 2006, p. 16).

    justamente a partir dessa noo

    de um no exerccio, que a ideia de

    privao torna-se fundamental para o

    entendimento daquilo que tomado como

    potencial: a potncia pressupe a

    disponibilidade de uma privao

    (Agamben, 2006, p. 16). A privao

    implica que o potente tal porque tem

    algo e porque s vezes lhe falta algo

    (Agamben, 2006, p. 15). Para Agamben,

    por exemplo, o arquiteto potente

    justamente quando ele no constri; o

    pianista sabe tocar piano mesmo quando

    no est utilizando o instrumento. Ou seja,

    a potncia no se extingue porque o sujeito

    est privado de algo. Pelo contrrio, a

    partir dessa privao que ele se torna

    potente. Ressaltamos que essa privao diz

    respeito possibilidade da potncia, uma

    vez que quando o arquiteto planeja a

    construo ou quando o pianista toca, o

    que temos so sujeitos em ato.

    Retomando a discusso sobre O

    Reino e a Glria referente ao que foi

    explanado acima, podemos pensar, ento,

    que reino e governo so elementos que

    operam como uma mquina dupla. Isso

    significa que h uma separao que coloca

    esses elementos em campos ontolgicos

    distintos, porm, eles esto em relao.

    Assim, reino e governo, se tomados

    enquanto uma mquina dupla, so um

    dispositivo que produzem uma relao de

    articulao (que por ser um dispositivo, por

    sua vez, tambm produz modos de

    subjetivao), mas que ao se articularem

    parecem ser uma coisa s, porm no se

    esgotam em termos de relao.

    por isso que o mtodo de

    Agamben aponta para uma arqueologia,

    justamente porque ele visa um recuo mais

    para trs no tempo a fim de escavar uma

    ontologia dos objetos que estuda

    (Agamben, 2009). Nesse vis, visibilizar

    que na concepo da gesto econmica

    capitalista, por exemplo, h uma separao

    entre reino e governo, potncia e ato, entre

    outros, enquanto elementos ontolgicos

    diferentes permite-nos realizar uma anlise

    que percebe as foras que produziram uma

    articulao tal que faz com que hoje esses

    objetos se articulem de tal forma que

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 175

    apaream agora, em uma viso ligeira,

    como indissociveis e basicamente uma

    coisa s.

    Nesse contexto, Agamben procura

    nos mostrar que a economia capitalista

    atual emerge das condies propiciadas

    pela teologia judaico-crist. Assim, nessa

    via de uma produo de algo que est

    disposto como separado, a partir da

    genealogia da economia que Agamben

    apresenta na via de uma forte influncia

    teolgica, que herdamos uma concepo

    poltica dessa desarticulao. Ou seja, a

    partir do momento em que h a separao

    de reino e governo, a concepo de

    economia inicia a adentrar no mbito da

    poltica, especialmente porque passa a

    configurar um modelo para aquilo que

    formar um incio de uma ordem jurdica

    nas sociedades ocidentais.

    Cabe ressaltar ainda, porm, que o

    prprio Agamben reconhece que Foucault

    ao colocar a problemtica da vida no

    mbito do governo da populao de uma

    biopoltica, portanto faz um recuo

    tambm no cristianismo ao trabalhar a

    ideia de poder pastoral. Contudo, Agamben

    diverge do filsofo francs no ponto em

    que o germe da diviso entre Reino e

    Governo aparece na oikonomia trinitria,

    que introduz na prpria divindade uma

    fratura entre ser e prxis (Agamben,

    2011, p. 127). Ademais, essa ciso torna-se

    indispensvel para um governo do mundo

    na perspectiva teolgica, j que alguns

    telogos defenderam a ideia que se Deus

    estivesse constantemente ocupado em

    intervir a todo instante na vida de cada

    vivente em particular, ele seria inferior s

    coisas que prov. Ora, justamente pela

    ideia sustentada em um rei que reina, mas

    no governa que o governo se faz possvel

    e, por isso mesmo, passa a implicar

    tambm a poltica.

    Outro argumento que Agamben

    desenvolve no livro concerne ao papel dos

    anjos. Estes, alm de serem agentes de

    aes do governo divino (portam

    mensagens aos homens e mulheres

    escolhidos, etc), exaltam a glria divina. Se

    por um lado, os anjos mostram uma

    hierarquizao da organizao do governo,

    por outro, sempre quando exercem suas

    atividades, glorificam a Deus. A

    sacralizao da hierarquia e a imitao do

    divino comeam, no mbito do governo do

    mundo, a adentrar no modelo jurdico-

    poltico. A glria, nesse contexto, a

    celebrao do poder.

    Quanto a esse aspecto, Agamben

    apresenta alguns exemplos: a chegada do

    soberano cidade, os ritos judicirios,

    entre outros, em que se inspiram?

    Imaginemos, por exemplo, um tribunal

    qualquer. O juiz togado, a sua cadeira

    acima do nvel do cho, o ru sua

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 176

    frente.... Por que o poder precisa da glria?

    O que as vestes suntuosas expressam?

    Agamben entende que esses ritos no so

    modernos, mas que foram inventados na

    antiguidade judaico-crist e que de certo

    modo ainda se fazem presentes nas

    sociedades capitalistas ocidentais.

    interessante notar que a

    estipulao de um dia de descanso semanal

    nas sociedades capitalistas remetem muito

    mais herana judaico-crist do que a uma

    conquista dos direitos trabalhistas, por

    exemplo. Esse dia inoperoso exemplifica

    o que se entende por glria, j que a glria

    implica em uma celebrao ao poder, mas

    uma celebrao que no produz outra coisa

    que no a contemplao do prprio poder.

    Finalmente, nos apndices do livro

    Agamben apresenta um breve resumo do

    que foi a discusso abordada:

    O que nossa investigao mostrou que o

    verdadeiro problema, o arcano central da

    poltica, no a soberania, mas o governo;

    no Deus, mas o anjo; no o rei, mas o

    ministro; no a lei, mas a polcia ou

    seja, a mquina governamental que eles

    formam e mantm em movimento

    (Agamben, 2011, p. 299).

    As reflexes finais de Agamben no

    livro apontam para um movimento que

    buscou, complexa e paulatinamente,

    desenhar uma genealogia da economia e do

    governo capitalista atual. A herana

    teolgica, como coloca Agamben, no

    pretende sinalizar de modo algum o bom

    ou o ruim nas aes governamentais, mas

    ao colocarmos em anlise essa herana

    teolgica da concepo de governo e de

    economia atual, percebemos a a existncia

    de uma ciso que permite um governo pela

    exceo, uma distncia necessria entre

    soberania e governo, entre ao e prtica

    que foram forjadas enquanto estratgias de

    gesto. Ao realocarmos essa questo para o

    campo da Psicologia, podemos

    problematizar a organizao que elas

    produzem no mbito das Polticas

    Pblicas, por exemplo; os efeitos que se

    desdobram em termos de modos de

    subjetivao, os valores que so

    defendidos pelos indivduos, as sociedades

    que constroem. Ao politizar a economia, o

    homem se tornou cidado, mas um cidado

    forjado por operaes que o dividiram e o

    adestraram em um mundo capitalista e

    individualizador de seus interesses. O

    Estado, ao trazer a dimenso da economia

    para a esfera da gesto, poupa (em termos

    econmicos!) a vida de sua populao,

    padronizando formas de existncia. A ideia

    de profanao que Agamben coloca, nesse

    sentido, torna-se necessria, j que a

    sacralizao de certos valores que se

    tornaram cristalizados fomentaram cises e

    excluses no campo social.

  • P o l i s e P s i q u e , V o l . 2 , n . 1 , 2 0 1 2 P g i n a | 177

    Notas

    1 Dynamis significa potncia em grego,

    como o prprio Agamben explica em

    outros textos (Agamben, 2006).

    2 Cabe ressaltar que no livro em questo,

    Agamben desenvolve uma srie de

    argumentos que vo delineando noes

    que complexificam e produzem um

    adensamento ideia de economia. Dentre

    elas, a concepo de livre-arbtrio e

    liberdade, de criao, de providncia

    divina, etc, mas que nesta escrita no cabe

    um maior aprofundamento, j que

    demandaria a elaborao de um outro texto

    que escapa ao propsito de uma simples

    resenha.

    Referncias

    Agamben, G. (2004). Homo Sacer: o poder

    soberano e a vida nua I. Editora

    UFMG: Belo Horizonte.

    Agamben, G. (2006). A potncia do

    pensamento. Revista do

    Departamento de Psicologia UFF,

    v. 18, n. 1, pp. 11-28.

    Agamben, G. (2009). Signatura rerum:

    sobre el mtodo. Adriana Hidalgo

    editora: Buenos Aires.

    Agamben, G. (2010). O que um

    dispositivo? Em Agamben, G. O que

    o contemporneo ? e outro ensaios.

    Argos: Chapec.

    Agamben, G. (2011). O Reino e a Glria:

    uma genealogia teolgica da

    economia e do governo. Boitempo

    Editorial: So Paulo.

    Castro, E. (2012). Introduo a Giorgio

    Agamben: uma arqueologia da

    potncia. Editora Autntica: Belo

    Horizonte.

    Andrea Cristina Coelho Scisleski: Possui

    graduao em Psicologia pelo Instituto de

    Psicologia (2004) e mestrado em

    Psicologia Social e Institucional, ambos

    pela Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul (2006). Doutor em Psicologia pela

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    Grande do Sul (2010). docente do

    Programa de Ps-graduao em Psicologia

    da Universidade Catlica Dom Bosco

    (Campo Grande - MS). Realizou

    doutorado-sanduiche na Goldsmiths

    College, University of London (2009-

    2010).

    Endereo: Universidade Catlica Dom

    Bosco, PPG Psicologia.

    av. Tamandar 6000

    Jardim Seminrio

    79117-900 - Campo Grande, MS - Brasil

    Telefone: (67) 33123605

    E-mail: [email protected]