Economia Política da Pena - Marco Alexandre

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Marco Alexandre de Souza Serra

ECONOMIA POLÍTICA DA PENA

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Copyright @ 2009 by Marco Alexandre de Souza Serrn

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CDU, 343.8

Inclui bibliograHaISBN 978-85-7106-393-8

Serra, Marco Alexandre de SouzaEconomia política da pena / Marco Alexandre de Souza

Serra .. Rio de Janeiro: Revan, 2009.

CapaSense Design & Comunicação

CIP-Brasil. Catalogação-na-FonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, Rj.

RevisãoShirley Bm2

Roberto Teixeira

1. Pena (Direito). 2. Direito - Aspectos econômicos. 3. Direito e polí-tica. I. TItulo.

04.06.09 10.06.09

Impressão(Em papel off-set 75gr5. após paginação eletrônica, em tipo Gatineau, c. 11'/13)

Divisão Gráfica da Editora Revan

Todos 0$ direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte destapublicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia

xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

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A percepção de insegurança, que se descola da realidade porquemuitas vezes cidades com índices de homicídios muito próximos tra-duzem. um desconforto existencial e sentimentos tão díspares, é agra-vada pela violência perpetrada pelos aparelhos do Estado, sobretudoas polícias. Para isso as políticas de segurança pública adotadas, maisou menos impregnadas pelo discurso beligerante, a nível local (com-petência dos Estados), têm repercutido sensivelmente. Além dessasmortes, a adoção da violência fatal como modo de resolução de confli-tos interpessoais por certo contribui para o incremento da tragédia,além de continuar a nutrir suas preferências.4.P

O atual aumento da violência, conquanto mais percebido do queempiricamente observado, é um fato inegãvel. Grosso modo ele não émuito mais que a expressão de um tipo de organização social e eco-nômica que, por não prescindir da violência para continuar a existir,tem produzido indivíduos que, entre outras coisas, não nutrem qual-.quer deferência pelo semelhante.'

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real seria necessário dispor de todos estes dados em todos os anos, ou 'pelo menoscontemplar, juntamente com os números relativos aos regimes fechado, semi-aberto ede presos provisórios, os submetidos a internação decorrente de medida de segurança.A soma destes daria o montante de todos os efetivamente reclusos. Assim os sujeitosao regime aberto e às medidas de segurança ambulatoriais, ficariam de fora. Mesmoassim é possível observar que os dados dão conta de uma permanência, até 2002. Apartir daí, a falta de clareza quanto à situação dos presos fora do sistema penitenciário,ou seja, em cadeias ou delegacias de polícia, impede que se arrisque este cálculo.4J7 Cf. o 3D Relatório sobro Direitas Humanos no Brasil (2002-2005), p. 13, "Nas áreasurbanas, a violência fatal continua a atingir de forma intensa e desproporcional os jovensdo sexo masculino, moradores das áreas carentes das grandes cidades e regiões metro-politanas. De 2000 para 2004, as mortes por homicídio por 100 mil habitantes entrejovens de 15 a 24 anos aumentaram 1,10%, de 26,71 para 27,01. Apesar de uma reduçãode 12,2oq.nna Região sudeste, a taxas de homicídio por 100 mil habitantes entre jovensde 15 a 24 anoo aumentaram nas regiões Sul (33,6%), Nordeste (19,9%), Norte (21,8%) eCentro-Oeste 0,4%). Rondônia (38,01100 mil), Pernambuco (50,7/100 mil), Mato Grosso(31,6/100 mil), Espírito Santo (49,11100 mil) e Rio de Janeiro (49,1/100 mil), e Paraná(28,0/100 mil) são os estados com as taxas mais altas em cada região."

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Capítulo VI

Modelos de estado e teorias da pena

APESARDOS JUizos E INTERPRETAçõES diluídos por toda a descrição históricarealizada neste livro, antes de concluí-lo parece ainda neoessãrio acres-centar outras considerações acerca das conexões que as variáveisaborda-das projetam sobre o exercício do poder punitivo do Estado, principal-mente sobre os modelos estatais concebidos em cada estágio evolutivodas forças produtivas e dos rearranjos institucionaisque elas condicionam.Isso se traduz em atribuir o devido relevo à correlação entre os desenvol-vimentos político-institucionais da organização estatal e aqueles referidosàs teorias jurídicas formuladas acerca da pena.4.38Essa conclusão, con-quanto aparentemente óbvia, é frequentemente ignorada pelos manuaisde direito penal. De fato ela compreende uma qualidade positiva de pou-cas obras jurídicas, sobretudo brasileiras. Tudo estaria perfeito. se essetrabalho não se prendesse a uma abordagem radicalmente diversa aoercadas estruturas do Estado, segundo a qual as instituições erigidas pelo Es-tado burguês compreendem apenas urna pequena parte de suas fundasestruturas,por conta das quais sua funcionalidade concreta não encontracompleta ressonância nos discursos jurídicos, políticos e até filosóficosaseu respeito. O aparente paradoxo, todavia, serã apenas superficial,pois adiscussão pretendiç]a nesse capítulo derradeiro não se distanciarã do eixometodológico da investigação - de alguma maneira todo impregnado dosfundamentos científicose metodológicos da criminologia crítica - ~mborapretenda abordar, sem qualquer pretensão de profundidade, as' teoriaspenais tradicionais, algumas mais outras menos liberais.

Sinteticamente, poder-se-ia dizer que o objeto desse capítulo éprocurar explicitar alguns vínculos que conectam a forma jurídica àestrutura social para a qual ela se destina. Esta perspectiva evidente-mente contrasta com aquela que se satisfaz em tornar compatívei~ os

t38 A -respeito, ver MAURACH,Rdnhartj ZIPF, 'Heinz (atualizador). Derecho penal: panegeneral. v I. Buenos Aires: EditorialAstrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1994, pp. 92 ess, Também RODRIGUES,Anabela. A determinação da pena privativa de liberdade.Coimbra: Coimbra editora, 1995, p. 180; MlR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoriade/deJitoene/E'itadodemocrdticodederecho. 2i 00. Barcelona: Bosch, 1982, p.15.

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objetivos cometidos ao Estado e as prescrições do ordenamento jurídi-co. Não obstante, não incorrerá no equívoco de deixar de fazer a de-vida referência às principais teorias jurídicas da pena. Agir dessa ma-neira poderia se traduzir numa alienação: essas construções discursi-vas, particularmente aquelas de feição preventiva, constituem, semsombra de dúvidas, o substrato comum do discurso hegemõnico cons"truído em torno do fenõmeno da criminalização, quer para reforçarquer mesmo para reduzir o poder punitivo.

Assim o perfil que define esse capítulo implica uma crítica da pe-na jurídica e de seus discursos legitimadores, em primeiro lugar, a par-tir de um ponto de vista diacrônico. Tal perspectiva, porque visa lançarluz sobre os fenômenos e fatos abordados a partir de sua evoluçãohistórica, além de não se afastar das delimitações metodológicas jáassumidas, atende ao pressuposto dialético da transitoriedade dos pro-cessos históricos e da cOlTelativamutabilidade da definição de crimes epráticas punitivas que lhe são próprias. De fato, a discussão ou mesmoa oposição entre as teorias concernentes aos fins da pena ou mesmodo direito penal é improdutiva se estas manifestações não forem vistasdentro de suas relações históricas. Isso não traduz que sua análise de-va seguir por um retilíneo fio cronológico, antes deve considerar ocontexto sócio-histórico, mas sobretudo político-econômico, envolvido.Tampouco quer dizer que o propósito desse capítulo é discuti-las comtoda a amplitude, o que obrigaria a buscar suas longínquas raízes,quase todas precedentes ao iluminismo, que melhor as lapidou'39

Em segundo lugar ela necessariamente terá de ser de natureza crimi-nológica, o que exclui as críticas juridicas ou internas endereçams às teo-rias da pena. Não será toda criminologia, porém, que comporá o instru-mental teórico necessário. Dada a verdadeira ruptura paradigmática quedesigna o seu surgimento, mas sobretudo em função da coincidênciametodológica com a abordagem materialista a respeito do funcionamentodo Estado, o exame das teorias jurídicas da pena deve se dar segundo ospressupostos científicoslegados pela criminologiacrítica.""

439 Ne$:e sentido, CIRlNO DOS SAN1DS', Teoria da peM, p. 7, nota 25; tambémFER-RAlOU, Luigi. Direito e razão: teoria do g~rantlsmopenal. 2a ed., p. 245 e ROXIN,Ctaus. Derecbo pena[ pane general. tomo I. Madri& Civitas, 1999, p. 85: RODRIGUES,A determinação da medida da pena privativa de liberdade, p. 219.440 Cf. CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 36: "explicar a desigualdade do Direi-to Penal pela relação dos mecanismos seletivos do processo de criminalização com as

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Convém ainda registrar, no entanto, que nem só de pressupostosmarxistas se' construiu a criminologia crítica. A criminologia crítica,além de representar a antítese da criminologia etiológica, se refere aum vasto e não-homogêneo campo de discursos. Seu mínimo denomi-nador comum é constituído, por um lado, pela assunção do 'critériocientífico que insere a análise do processo de definição e atribuição docrime e da criminalidade numa perspectiva macrossociológica, orienta-da pela estratificação e pelo antagonismo de classes que determina a(desigual) distribuição de poder de definição, e de vulnerabilidadesocial frente a essas definições, em relação às estruturas institucionaisencarregadas de exercê-lo. A isso deve ser agregado, por outro lado, oavanço proporcionado por uma importante corrente sociológica deorigem fenomenológica, que é.o interacionismo simbólico. Destaca-se,nesse panorama, a teoria do etiquetamento C1abellingapproach) se-gundo a qual o crime depende menos da natureza do fato do que dasdefinições e reações que esse fato merece em determinada realidadehistórica. Quer isso dizer que o objeto da criminologia não pode seruma entidade ontológicaj antes constitui uma realidade social constru-ída por uma infinidade de interações concretas, através das quais sequalifica, social e institucionalmente, um comportamento como sujeitoa uma punição formal e imposta pelo Estado."'''.

leis de desenvolvimento histórico da fonnação econômica capitalista, constitui avançocientífico importante da Crinúnologia Crítica."441 No sentido do texto ver BARATIA, Alessandto. Criminologta cn'tica e critica dodireito penal. 21 00. Rio de Janeiro: Revan, 1999, pp. 85 e ss; do mesmo autor, Cbecosa e la criminologia critica. Dei delliti e delle pene. v 1, 1991, pp. 53-81. Com ex-cepcional capacidade sintética, observa ClRlNO OOS SANToS, Juarez. A criminologiae a reJonna da legislação penaL Revista da Ordem dos Advogados do Bfasu - v, 1,2006, pp. 809-815, que "A Criminologia crítica se desenvolve por oposição à Crimino-logia tradicional, a ciência etiológica da criminalidade, estudada como realidade onto-lógica e explicada pelo método positivista de causas biológicas, psicológicas e ambien-tais. Ao contrário, a Criminologia crítica é construída pela mudança do objeto de estu-do e do método de estudo do objeto: o objeto é deslocado da crirninalidade, comodado ontológico, para a criminalização, como realidade construída, mostrando o crime. como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça crimi-nal, que constitui a criminalidade por processos seletivos fundados em estereótipos,preconceitos e outras idiossincrasias pessoais, desencadeados por indicadores sociaisnegativos de marginalização, desemprego, pobreza, moradia em favelas etc; o estudodo objeto não emprega o método etiológico das determinaçôes causais de objetosnaturais empregado pela Criminologia tradicional, mas wn duplo método adaptado ànatureza de objetos sociais: o método interacionista de construção social do crime e da

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Desse ponto de vista desponta um importante avanço epistemo-lógico adotado pela criminologia crítiCa,rarasvezes presente nas análi-ses marxistas tradicionais. Sua maior qualidade, como visto, pareceestar na capacidade de integrar considerações da esfera subjetiva doprocesso de construção social da realidade com o plano estrutural-objetivo da esfera das relações de produção'" Essa combinação éfundamental na medida em que procura vencer um debate aparente-mente mal resolvido no interior das ciências sociais, mais precisamenteda sociologia, normalmente realizado a partir das noções de estruturae ação social. Para a criminologia crítica as ações dos indivíduos nãotraduzem meros epifenõmenos de constrangimentos sociais impostospela realidade objetiva. 1sso seria impossível a um saber ou conjuntode saberes que assume alguns aportes do interacionismo simbólicocomo importantes. Por ser informada também pelas injunções que .tomam as atividades cognitivas de indivíduos e grupos como relevan-tes, sobretudo ante sua importância política, a criminologia crítica pre-tende compatibilizar os planos subjetivo e objetivo, com tendência aacentuar a importância do último, de forma que, em última análise, asubjetividade seja concebida como um momento do processo objetivo,continuamente superado, de imeriorização do que é exterior.443 Essaseria uma direção a ser seguida a por quem toma a realidade socialcomo prevalentemente definida peias condições materiais da vida so-cial, segundo o momento histórico e o estágio evolutivo das forçasprodutivas, na clássica formulação de MARX.•••Ao contrário de umaleitura bastante Corrente de marcado viés mecanicista, com i::;sonão sequer dizer que as determinações sociais atuam mecanicamente sobre o

criminalidade, responsável pela mudança de foco do iridivíduo para o sistema dejustiça criminal, e o método dialético que insere a construção social do crime e dacriminalidade no contexto da contradição capital/trabalho assalariado, que define asinstituições básicas das sociedades capital~as."

442 BARAITA" Cbe cosa e la criminologia crilica?, p. 59; no mesmo sentido, ClRINODOS SANTOS, A criminologia e a reforma da legislação penal, pp. 809-815.40 Assim, mais wna vez, BARATfA, Che cosa e la criminologia criltca? p. 62, e CIRI-NO DOS SANrOS, A criminologia e a reforma da legislação penal, pp. 809-815.444 Ver a respeito a clássica passagem de MARX,Karl. "Prefácio à contribuição à críticada economia política". In: FERNANDES,Aorestan Carg).MarxlEngels _ História. 2i ed.São Paulo: Ática, 1989, p. 233.

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movimento do psiquismo dos indivíduos.'" Afinal "a sociedade produzo homem assimcómo é também produzida por ele.".•••Em oposiçãoao que postula a ortodoxia da determinação da superestrutura pelabase, determinações e condicionamentos não se confundem com de-terminismo, com qualquer relação causal e imediata entre estruturaeconômica e estruturas mentais. A relação não deve ser linear, de cau-sa e efeito, mas relação dialética em que ambas as esferas (objetiva esubjetiva) se influenciam reciprocamente,'" conduzindo à noção decircularidade. É sobretudo sob essa condição que a criminologia críticapode se manter numa posição de superioridade científica frente à cri-minologia tradicional enquanto ciência etiológica da criminalidade.

Sem embargo, assim como toda a discussão realizada neste livrofoi historicamente delimitada pelo surgimento do Estado moderno,notadamente em sua forma propriamente burguesa, também esse tópi-co terá por recorte o processo evol.utivo que se desencadeia a partirdaquilo que a crítica da economia política denominou acumulaçãoprimitiva. Não por acaso, segundo BARAlTA,o crimen lesae majestatistem, na história da construção social da criminalidade, a mesma Impor-tância constitutiva que a acumulação primitiva teve na história ~a soci-edade capitalista.'" Ambas ocorrem de forma mais ou menos simultâ-nea com a consolidação do poder numa instância central da socieda-de, que procura se legitimar através da própria capacidade de assegu-rar a ordem e a conservação dessa forma de poder. Seu significado éduplamente importante para esse trabalho, uma vez que a etapa emquestão traduz tanto a acumulação primitiva de capitais quanto depoder sob a égide de um ente anônimo e aparentemente separado dasrelações de produção e das demais relações sociais que compõem avida em comum. Por último, as teorias abordadas, que praticamenteesgotam as justificativas usuais dadas ao "direito" de punir do Estado,são igualmente contemporâneas ao surgimento da prisão col}lo penaessencial e pntticamente exaustiva do sistema social ainda em vigor..

.., Fazendo. mesma distinção, ver ZAFFARONI,Eugenio Raúl; PlERANGEIJ,José Henrique.Manual di direito penal brasfle{ro. 5' ed São P.uh Revi.>tados TlibWlllis, 2004, p. 247.

«6 MARX, Karl, "Manuscritos econômicos-fJ1osóficas: trabalho alienado e superaçãopositiva da auto-alienação humana". In: FERNANDES, Florestan Corg). Marx/Engels-História. 2i ed, São Paulo: ÁHca, 1989, p. 170.«7 BARATIA, Cbe cosa e la criminologia critica?, p. 61.«8 BARATIA, Vecchie e nuove strategle ne/Ia /egtttimaxion.e deI diritto penale, p. 250.

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Na verdade, assim como o trajeto percorrido pela organizaçãoprodutiva, da feudal à capitalista, tenha se estendido por cerca de trêsséculos, também as ideologias de justificação do poder de punir estatalvão experimentando os mesmos dissabores e sucessos evolutivos, atéculminar na figura arquetípica do Estado moderno e mais propriamen-te burguês. Portanto, após uma breve digressão acerca da noção depena, será momento de discutir as funções que a ela se foram atribu-indo, mas sobretudo aquelas que efetivamente ela desempenha namodernidade. Em razão da importância e da atualidade do novo dis-curso de corte sistêmico incorporado à prevençâo geral positiva, suaabordagem exigiu um tópico próprio, razâo pela qual a prevençãogeral negativa também será analisada à parte.

1. Pena: uma confusão conceitual

Via de regra a reflexâo jurídica sobre a pena criminal comunga deuma imprecisão semântico-conceitual digna de registro. EsSa incongru-ência constitui um defeito grave porque a precisão de conceitos devesempre ser buscada. Ainda que tal exatidâo seja fadada ao fracasso,mereceOl censura determinadas concepções que se furtam em marcaras diferenças daquilo que é distinguível. Tal imprecisâo refere-se àcolocaçâo, sob um mesmo rótulo, de funções e finalidades da pena, epior, também de suas justificativas.'" 450

"9 Nesse sentido, RODRIGUES, Anabe1a Miranda. A determinação da medida da penaprivativa de liberdade. Coimbra, Coimbra Ed. 1995, pp. 152 e ss; também FERRAJOLl,Luigi. Diroi/o e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribwuis,2002, p. 171.

<60 Segundo FERRAJOLl,Ob. citada, pp. 170 e SS., a questão da justificativa da penaconstitui a abordagem externa da legitimação, referida a valores que transcendem odireito positivo. ~ ftiosófica, portanto. De wna perspectiva interna, isto é, que toma emconta não o problema étic01'Olítico da justiça mas o jurídico da legalidade, a penadeve refletir o que prescreve o direito positivo. A rigor, a pena toma assim um sentidoprescritivo, que designa as fmalidades que deve perseguir. Mas pode ela tambémcontemplar as fInalidades que de fato a pena persegue. FERRAJOLltoma por funçãoeste último significado, enquanto ao primeiro chamará fins. A despeito destas distin-ções. cuja importância não pode ser negligenciada, todas estas noções compõem asteorias da pena, muitas vezes assimiladas a teorias penais, para as quais, segundo já seafirmou, correspondem determinadas concepções de Estado.

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De um modo geral, tais teorias podem dividir-se em duas grandestradições, geralmente identificáveis mediante o recurso a clássica formu-lação de SÊNECA:de um lado alinham-se as concepções que pretendemjustificar a péna através do quia peccatum est (pune-se porque pecou) econsideram o mal já cometido, por isso mesmo referido ao passado; deoutro se unem aquelas que têm em vista o futuro na base do ne pecce-tur (pune-se para que não peque). A partir dessa bipartição as teoriasacerca da pena se desdobram nas teorias absolutas, afinadas com a ideiade puniçâo em função do crime já praticado, portanto como retribuição,e nas teorias relativas ou da prevenção; segundo essa última concepção,a justificativa da pena só pode se realizar com base nos fins utilitários,voltados ao futuro, que lhe é possível atribuir.

Em termos gerais, segundo o discurso jurídico que as reveste, asteorias absolutas, porque nâo concebem que a pena deva se justificarem função dos fins que atinge ou afirma visar, nada tem a ver comsuas finalidades. Nessa perspectiva, a pena basta por si mesma. Deoutro lado, mesmo quando apelam às finalidades que a pena deveconcretizar, .as teorias relativas se ocupam menos dos fins efetivos queela produz do que de sua justificaçâo. Nâo raro, a justificação nâo con-sidera minimamente os efeitos cono'etos provocados pela pena narealidade socia1.4S1 O acento, portanto, recai sobre a justificaçãoj mes-mo o problema dos fins, e somente para as concepções relativas, cons-titui uma questão quase que residual ou secundária.

Para esse trabalho as distinções apontadas acima, sobretudo asconcernentes aos reais efeitos produzidos pelo exercício do poderpunitivo do Estado, são tomadas como importantes. A utilização de uminstrumental semântico mais preciso e que se inscreve na tradição decrítica à dissonância perceptível do confronto entre os fins assumidos eaqueles ocultos que a pena efetivamente realiza, a bem da verdade, éimprescindível. Tal abordagem convocará à utilização do vocábulofunção, é verdade. Mas também exigirá agregar a distinção.-entre fun-ção manifesta e função latente. Essa distinção, reelaborada pela crimi-nologia crítica4S2 tem raízes na teoria sociológica453 e acabou por se

'51 Para isso nanualmente se costuma lançar mão da Lei de Hume. não se pode derivarlogicamente conclusões prescritivas ou morais de premissas descritivas ou fáticas, evice-versa. Nesse sentido, FER~JOLl, Ob. citada, p. 193. nota 15.452 Cf. CIRlNO OOS SANTOS, Teoria da pena, p. 4: "a análise da pena criminal nãopode se limitar ao estudo das funções atribuídas pelo discurso oficial, defmidas como

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revelar fonte de inesgotável desenvolvimento desse conjunto de sabe-res. Por medida de justiça é necessário registrar que a deslegitimaçãodo discurso jurídico-penal foi menos obra da filosofia ou de qualqueroutra construção teórica normativa do que do saber sociológico.'" Daía necessidade se trabalhar com pressupostos sociológicos, principal-mente aqueles absorvidos pela criminologia crítica.. Convém ressalvar, porém, que a utilização do conceito função

não significa adotar uma perspectiva funcionalista. Essa tende a perce-ber as funções que determinados instituições exercem na sociedadesempre de forma positiva, isto é, descrevendo como a sociedade fun-ciona ou deveria funcionar. Uma análise funcional pode, no entanto,não ser funcionalista no sentido acima descrito. Afinal, como a distin-ção entre funções manifesta e latente pretende demarcar, nesse âmbitoé possível descrever também como a sociedade ou uma de suas insti-tuições não funciona ou como ela funciona negativamente.455 Na ver-dade, essa distinção conceitual entre funções manifestas e latentes re-monta à tradição funcionalista, mas foi apropriada por certa reflexãocriminológica que não comunga dos pressupostos epistemológicos emuito menos dos políticos do funcionalísmo'" Por função declaradadeve-se entender aquelas desejadas e admitidas pelos discursos que assustentam. Já as latentes ou ocultas são aquelas que, a despeito de

funções declaradas ou manifestas da pena criminal; ao contrário, esse estudo deverasgar o véu da aparéncta das funções declaradas ou manifestas da ideologia jurídicaoficial, para identificar as funções reais ou /atentes da pena criminal, que podem ex-plicar sua existência, aplicação e execução nas sociedades divididas em classes sociaisantagônicas, fundadas na relação capitaVtraba/ho 4SSa/arlado, que defme a separaçãoforça de trabalho/meios de produção das sociedades capitalistas contemporâneas. OI

tS3 A título de exemplo, ver, extensivamente, MERmN, Robert K. Sociologia: teoria eestrutura. São Paulo: Mestre Jeu, 1970, pp. 85 e ss.

'" Assim, entre tantos outros, ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas, p. 50. JáBARATIA, Vecchie e nuove strategie nella leglitlmazlone dei dlrilto penale, p. 248,alude à necessidade de se utilizar de um conceito sociológico de pena, o que em suaopinião não pode implicar reduzi-lo a toda sanção negativa, tampouco podendo des-cer ao nível microssocioJ6gico.

'l' ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariiias. Introdução à análise soetol6glcados sistemas jurfdtcos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 142.

~ Na perspectiva critica e/ou radical, a distinção entre as funções manifestas e latentesé velha conhecida. Assim, por todos, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologiaradical. 2' ed. Curitiba: ICPCILumen juris, 2006.

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influírem no sistema social, não correspondem à vontade ou ao discur-so assumido pelos seus defensores.'"

Como visto, nem toda anãlise funcional ou que se utiliza do con-ceito de função precisa ser funcionalista. A questão, facilmente suscetí-vel a críticas, está em confundir uma análise funcional com funciona-lismo, isto é, como teoria social global, como filosofia social. Procedera uma análise funcional, nesses termos, não significa partilhar dosmesmos pressupostos epistemológicos ou políticos do funcionalismo.Afinal, a utilização do conceito de função permite investigar nâo só osefeitos positivos que determinada instituição social produz, mas tam-bém eventuais repercussões negativas que ela engendra. Através deleé possível também se concentrar na complexidade e nos conflitosconstitutivos da sociedade. Isso implica admitir, por exemplo, que odiscurso jurídico, inclusive o jurídico-penal, nem sempre cumpre fun-ções que os próprios funcionalistas tomam como positivas, isto é, quecolaboram para atingir ou para manter o equilíbrio social. Admite tam-bém eventuais disfunções. Aliás, exemplo emblemático no qual a utili-zação da distinção entre funções manifestas e ocultas goza de validadecientífica inegável é o da reflexão sobre o controle social efetuadopelo sistema penal.

Nessa perspectiva, uma crítica das teorias penais realizada doponto de vista da estrutura estatal tipicamente capitalista, além de lan-çar mão das noções de função manifesta e função latente, deve tomarem conta que os fins assumidos por determinado Estado tendem a seidentificar às funções manifestas ou declaradas atribuídas à pena. Sóassim a correlação entre um modelo abstrato de Estado pode encontrarsua interface penalógica. A questão nodal, porém, está fm identificaros nexos que unem determinado perfil jurídico e institucional aos dis-cursos que se orientam para legitimã-Io, com o específico momentoevolutivo do sistema capitalista. Dessa amarração é também possívelapontar que os efeitos reais que o poder punitivo produz podem serisolados e submetidos a uma análise criminológica de tipo crítico. Issoobrigará a concentrar as atenções sobre as formações capitalistas típi-cas dos países centrais, o que não significa dizer que uma precisa for-mação histórica deverá servir de paradigma. As condições históricas e

'l' ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Farü\as. Ob cilada, p. 142; também, SA.BADEll, Ana Lucia. Manual de sociologia juri'dicQ: introdução a uma leitura externado direito. 2a ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 151.

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políticas específicas de um Estado devem ceder espaço às linhas maisou menos comuns, Afinal, na perspectiva de uma economia política dapena estatal capitalista, os países que por ela foram influenciados, oforam na condição de uma peça de uma engrenagem que, emboramuito maior, é única e corresponde ao modo de produção dominanteno sistema mundial.

2. A pena como retribuição

A pena como retribuição corresponde à justificação absoluta do di-reito de punir, cuja necessidade adveio com a sua concentração nasmãos do Estado. Segundo essa perspectiva o sentido da pena resulta danecessidade de se compensar a culpabilidade do autor mediante a im-posição de mal equivalente, embora qualitativamente distinto, àqueleproduzido pelo crime. Através dela não se depreende qualquer finalida-de a ser alcançada, mas apenas a realização de uma ideia de justiça.Suas raízes na confissão religiosa, da tradição judaico-cristã, são eviden-tes,4SSe se expressam sobretudo no talião como medida da pena.

No entanto, suas formulações mais conhecidas são modernas eracionalistas. A primeira figura de destaque é KANT:para ele a pena,por sua própria natureza, não pode ser outra coisa, senão retribuição.Com KANT o racionalismo ilustrado adquire um caráter absolUto e odireito traduz, enquanto dever individual de consciência, um imperati-vo categórico.4S9 A pena, como resposta à negação desse dever, é umfim em si mesmo sem referência a nenhum outro como objetivamentenecessário. Daí deriva sua advertência moral fundamental: jamais umhomem pode ser tomado como instrumento dos desígnios de outro,pois ele é fim em si mesmo. Se a imposição de pena produz efeitospreventivos, para KANT isso carece de interesse.

A conhecida formulação de HEGEL.no nível da justificativa dapena jurídica significa, por outros caminhos, praticamente o mesmo:para HEGEL, o crime é a negação do direito; a pena a negação do

458 No sentido do texto, ver CIRlNO OOS SANTOS, Teoria da pena, pp. 4 e 55; tambémROXIN, Claus. Sentido e /imites da pena estatal. In: Problemas fundamentais de DireitoPenal. 2a ed Lisboa: Vega, 1993, pp. 15-47.459KANT, lmmanuel.lametajisicadelascostumbres.Madrid: Tecno5, 1999, pp. ]66-167.

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crime, portanto, a afirmação do direito. Como KANT,filiado à filosofiaidealista alemã, HEGELtoma o homem como fim, porque ele é racio-nal. De modo que não se pode tratá-lo como objeto da ameaça, a fimde intimidar os demais, como quisera FEUERBACH.Entusiasta da figu-ra do Estado, que para ele é a mais perfeita expressão da razão, a im-posição da pena resulta logicamente da lesão ao direito'60 .

Seguindo o pressuposto diacrônico que em alguma medida a-companha toda essa investigação, convém começar dizendo que essaoposição que ambos os filósofos idealistas representam ao utilitarismonão era ignorada. KANTpretende superar o utilitarismo que já preva-lecia em .sua época (1724-1804). MAURACH& ZIPF observam que,pelo fato de encontrar-se entre dois mundos, KANT consegue fazercomunicar entre si duas épocas: o jusnaturalismo do século XVII e asteorias absolutas que prevaleceriam no século XIX. Para esses autores.foi a literalidade de seu principio, o talião, o que impediu que a teoria.penal de KANTse impusesse diretamente'" Sua tese seria relançadacom retumbante sucesso, no século XIX. Assim ele constrói a primeira

.versão de retribuição jurídica e laica que, embora atendesse ao despo-tismo ilustrado462 no interior do qual surgiu, se transformou na base dodireito penal do estado liberal tipicamente burguês.

Com a consolidação do poder político em suas mãos, a burguesiatratou de se utilizar de sua posição para abandonar o direito natural daIlustração, que era essencialmente revolucionário. A classe vencedorajá não requer uma ideia, ela necessita da lei. Afinal, tendo nas mãos oEstado, tratava-se de tornar eficaz seu princípio de vigência: justamentea lei emanada do Estado. A esse objetivo nenhuma filosofia serviriamelhor do que a de HEGEL:para ele o Estado é a personificação darazão, a ideia absoluta. Daí que à mudança de postura em relação aoEstado segue-se uma mudança na fundamentação da 'pena.

A conexão da pena absoluta com o período do liberalismo e docapit"lismo concorrencial que lhe correspondeu é inevitável. Por issonão parece arriscado estabelecer um nexo entre essa justificativa penalcom a conclusão, cara a RUSCHEe KIRCHHEIMER,de que a abun-'dãncia de força de trabalho experimentada no período, de vertiginoso

460 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo:Martins Fontes, 1997. pp. 84 e 55.

~t>l MAURACHJZIPF,Ob. citada, p. 93.462 ZAFFARONl/PIERANGELI,Manual de direito penal brasileiro, p. 252.

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desenvolvimento das técnicas produtivas, conduziu à percepção desua desnecessidade para a reprodução do capital: a retribuição se a-molda a essa conjuntura porque justifica a destruição de força de tra-balho. O grande respeito pela dignidade humana do contratualismo deKANT não evitaria, pelo contrãrio, a extrema crueldade da pena noperíodo do liberalismo. Afinal, a pena seria um direito do delinquente,enquanto ser racional que precisa reconhecer seu direito à liberdade'"

Além disso, na perspectiva que JUAREZCIRlNOintitulou materia-lista/dialética, e que se insere no seio da criminologia crítica, a penacomo retribuição equivalente reflete "os fundamentos materiais e ideo-lógicos das sociedades fundadas na relação capitaVtrabalho assalaria-do, porque existe como 'forma de equivalência' jurídica fundada nasrelações de produção das sociedades capitalistas contemporâneas. ,,<61Tal forma jurídica é, por sua vez, equivalente à forma mercantil. Essanecessidade da sociedade burguesa, jã mencionada no curso desselivro,46Ssobretudo no momento histórico de seu nascimento e consoli-dação, ganha relevo discursivo no interior das ideologias penais: alémde mediar as relações econômicas, faz o mesmo com as relações jurí-dicas, e tende a impor-se em todos os demais níveís da vida social. "Asociedade burguesa estã dominada pelo equivalente. Ela torna o hete-rogêneo comparãvel, reduzindo-o a grandezas abstratas."'" Assim éque a pena, enquanto expressão da forma jurídica geral forjada pelamentalidade burguesa, deve ser equivalente à gravidade da condutaque pretende punir. A proporção entre o delito e a punição a que eladeve conduzir se reduz a uma relação de troca, assim como aquelaverificada entre o dano e sua reparação.'" Em síntese, segundo a ideo-logia do contrato, a pena consiste no valor de troca, cujo parâmetro éa porção de liberdade suprimida pelo condenado468_ coisa que só se

." HEGEL, Ob. citada, p. 89.••• CIRlNO OOS SANTOS, Teoria da pena, p. 19..t6S Ver supra, Capítulo I) item 3, p. 27.

166 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER,Max. ~/ética do esclaroctmento. Rio de Janei-ro, Jorge Zahar, 1994, p. 23."67 PACHUKANIS, Teoria geral do direito e marxismo, p. 119; CIRINO DOS SANTOS,Oh. citada, p. 21.

468 Nestes tennos, inclusive ampliando a analogia da pena criminal com a mercadoria,no sentido de conectar o, valor de uso da pena com as funções utilitárias manifest:as,CIRlNO OOS SANTOS, Ob. citada, p. 23.

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revela possível num sistema de produção que reduz todas as formasde riqueza social à equàção abstrata do trabalho humano medido pelotempo.'"

Ocorre que, para além da forma, o que designa as. relações deprodução capitalistas é o registro dá desigualdade nas quais operam. Arelação de equivalência, entre salãrio e força de trabalho, só não éperturbada segundo a forma jurídica, porque a criação de mais-valianão ocorre no nível da comercialização, onde as partes, livres e iguais,dispõem de liberdade de negociação. Ela se realiza no processo deuso produtivo da força de trabalho; na produção, não na circulação."oDai que sob a forma mercantil, que impera na esfera da Circulação, 'Itroca de equivalentes vigora escondendo a realidade concretamentedesigual na qual ela repousa seus fundamentos.

Assim como a mais-valia implica, por definição, que parte da for-ça de trabalho empregada pelo trabalhador não encontre no salãriosua equivalência, a pena tende a ultrapassar a medida ou o dano pro-vocado pelo crime. Afinal, como salienta PACHUKANIS,o direito pe-nai moderno não parte do prejuízo sofrido pela vítima, mas da viola-ção da norma fixada pelo Estado: "Uma vez que a parte lesada, com.suas pretensões, passa a segundo plano, então podemos nos perguntaronde se situa a forma de equivalência.',471A seguinte passagem deLAURINDOMINHOTO,para esse efeito, é lapidar:

A forma jurídica revestida pela moderna pena privativa de liber-dade enreda-se numa contradição entre os pólos da retribuição (umapena a ser imposta a partir de um exame estritamente lógico-formalacerca' da ilicitude da conduta e da culpabilidade do agente) e da re-forma (um cãlculo utilitãrio destinado a prevenir a criminalidade\e areabilitar o condenado). A contradição é ideológica no sentido enfãti-co, na medida em que se assenta numa aparência socialmente neces-sãria assumida pelas relações sociais capitalistas, que, por sua vez, étransposta de modo peculiar para o discurso jurídico penal da moder-

469 Nesse sentido, ANIYAR DE CAS1RO, Lola. Criminologia da reaçâo social. Rio deJaneiro: Forense, 1983, p. 189, se reportando a wn texto de MASSlMO PAVARINIintitulado In tema di economia politica della pena: impport1 /Ta strunura economica elauoro penitenziarlo alie orlgini dei sistema capitalfsttco di produzione. Carcere edemarginazione sociale. (1976)

"?o Mais uma vez, BARATIA, Criminologia critica e critica do direito penal, p. 163."71 PACHUKANIS,Ob. citada, p. 126. '

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nidade. o princípio da recompensa equivalente medeia ao mesmotempo relações jurídicas e econômicas: Ambas aparecem como rela-.ções que se travam num jogo de reciprocidade em que vontades indi-viduais supostamente autônomas exercem o seu livre-arbítrio.A priva-ção da liberdade juridicamente concebida como retribuição internalizaesse modo específico de aparecer que informa a esfera da circulaçãoda sociabilidade capitalista (o que a forma jurídica revela). Porém, sobo fundo falso da reciprocidade, os institutos .jurídicos e econômicosoperam concretamente à base de gritantes desigualdades sociais. Ooutro da penalidade moderna pode ser identificado na instauração deum aparato técnico-disciplinar destinado ao controle das ilegalidadesda força de trabalho e ao aprendizado, no cárcere, dos reclamos disci-plinares do capitalismo fabril (o que a forma jurídica esconde).'"

Essa aparência de igualdade ao nível das trocas mercantis e dasrelações sociais em geral, só pode prevalecer mediante a institucionali-zação de pelo menos uma parte da coação física - que o poder puniti-vo exprime - numa autoridade independente das classes e situada foradas leis inerentes ao mercado. Assim a coação pode ser exercida nointeresse de todos os membros que participam das relações jurídicas'73Essa autoridade é o Estado. Esse foi o caminho para o pensamentojurídico burguês tornar possível a naturalização dessa coação, enquan-to imposição fundamentada na violência colocando um indivíduo con-tra o outro, mesmo em contradição com as premissas fundamentaisdas relações entre os proprietários de mercadorias.474 Para que issotenha se {OInado possível não se pôde prescindir de uma ativa posturado Estado - mesmo no liberalismo, como já se assinalou - que reivin-dica o monopólio da violência física legítima e substitui à vítima nomomento da troca de equivalentes que a pena como retribuição jurídi-ca ao delito exprime.

-4n MLNHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado. Lua Nova. nos 55.56, 2002, pp.133-154.'" PACHUKANIS, Ob. citada, p. 98.~74PACHUKANIS, Ob. cilada, p. 97.

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3. A pena como prevenção especial

A prevenção especial exprime a justificativa à existência da penacomo meio para atingir o fim de prevenir novos delitos do seu próprioautor..Ela pode pretender neutralizar o criminoso, tornando-o inofen-sivo mediante a privação de sua liberdade; dessa maneira ela assumiriaum sentido negativo (inocuização). Pode também visar corrigi-lo, me-diante sua res.>ocialização,o que lhe daria um sentido positivo. Aindaque remontem aos primórdios do pensamento filosófico-penal, essasdoutrinas conheceram um próspero desenvolvimento no final do sécu-lo XIXe se tornaram hegemônicas por todo o século XX.'" Sua formu-lação moderna efetivamente é tributária do Iluminismo, mas acaboupor retroceder no decorrer do século XIXante a teoria da retribuição.

Com base na prevenção especial, várias teorias penais, provindasdos mais variados países, surgiramenquanto justificativasda pena comomeio objetivando transformar o desviante a fim de adequá-lo aos padrõese valores dominantes, mediante uma verdadeiraortopedia moral.

O grande responsável pelo ressurgimento moderno da prevençãoespecial, conforme observa ROXlN, seu discípulo, é FRANZ VONLISZT'" Seu Programa de Marburgo (1882),m condensa as várias pos-sibilidades fornecidas pela prevenção especial. Aos sujeitos insuscetí-veis de emenda: prevenção especial negativa ou neutralização; àquelesque revelassem possibilidades de reforma: prevenção especial positivaou ressocialização. Ainda para os ocasionais, ou que não precisam decorreção, ela poderia servir de meío intimidatório.'" Tudo depende daforma de ser e da prognose que se fizer sobre o autor. O preSSUp\lStodisso é a classificação dos delinquentes segundo os objetivos preten-didos pela aplicação da pena, tarefa da qual, aliás, LISZTentende ca-ber à ciência sociológica.'"

41S No sentido do texto, CIRLNODOS SANTOS, Ob. citada, p. 6; FERRAJOLl,Ob. cita.da, p. 246, entre tantos outros.476 ROXIN, Sentido e /imites da pena estatal, p. 20.m Cujo título original foi Teoria do fim no direito penal (Der Zweckgedanken im Stra-Jecht); a tradução aqui consultada foi a italiana La teoria dello scopo nel dtrltto penale.Milano: Giuffre, ]962. '.478 VON LlSZT, La teoria dello scopo nel dirltto penale, pp. 53 e 55. '

479 MAURACH/ZIPF,Ob. citada, p. 98.

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Não se pode deixar de registrar que 'nem só LlSZTrepresentoutoda essa vasta construção teórica. De seus fundamentos também Co-mungaram os adeptos da Escola Positiva (de ENRlCOFERRIe RAFALEGAROFALO)e a Défense Sociale Nouvelle (MARCANCEL),cuja influ-ência para a literatura penal brasileira é mais perceptível do que a dopróprio v, L1SZT.480

Antes de abordar os vínculos históricos que a hegemonia da pre-venção especial estabeleceu com a consolidação do poder do capitalnos países centrais48

\ é inafastável dizer que, do ponto de vista filosó-fico, essa justificação do poder punitivo do Estado é nitidamente frágil.Na verdade, e ela não parece esconder isso, é menos condicionadapor pressupostos axiológicos do que por sociológicos ou científicos, Éatravés da porta aberta pela procura de um fim para justificar o meioda pena que a .ciência, a reboque do positivismo determinista, do COf-

recionalismo, se assenhoreou do campo da justificação jurídica.As vertentes da prevenção especial se desenvolvem paralelamente

à difusão de concepções cientificistas da sociedade e do dispositivodisciplinar. Sobre suas bases desenvolve-se o projeto de uma socieda-de orgânica e integrada submetida menos ao controle moral ou éticoda retribuição do que ao controle científico. Daí que o crime seja in-terpretado como uma patologia e o criminoso como doente. A pena éo tratamento que a ciênci3; prescreve. Dessa forma o delito e a penadeveriam ser explicados como pertencentes e atribuíveis a cada indivi-duo em particular. O cometimento de um crime exprimia a inadequa-ção de seu agente à ordem social em que estava inserido. Nessa or-,dem de ideias, a conotação positiva ou negativa que a prevenção es-pecial assume depende da possibilidade de se alcançar a cura.

Esse modelo discursivo é próprio de quando a burguesia deixa dese ocupar da nobreza e volta suas atenções para as classes pobres em-purradas para os centros urbanos. Se em princípio essas últimas nãoenco~[ravam ocupação, pois a acumulação de capital era ainda incipi-ente, logo precisariam ser enquadradas no novo lugar que o desenvol-vimento das forças produtivas havia'lhes reservado: o interior da má-".quina 'fabril. Ambas as fases sugerem um discurso preventivo-especial.

4SO Conforme observa ROXIN, Ob. citada, p. 20, a prevenção especial logo voltaria aretroceder na Alemanha, de maneira que sua ampla difusão se deve mais ao movimen~to internacional da defesa social.481 Assim, ZAFFARONl/PIERANGELl, Manual de direito penal brasileiro, p. 269 ..

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a primeira de tipo negativo, ante a incapacidade de incorporação daordem produtiva de toda a forçà de trabalho disponível; a segunda detipo positivo, a fim de disciplinar as classes populares para o trabalhona fábrica e para o consumo de massas.

Dessa 'forma, em sua formulação mais difundida a prevenção es-pecial, diferentemente das teorias contratualistas e jusnaturalistas, quede alguma maneira expressavam' o apelo revolucionário da tutela doindivíduo contra o estado absolutista, reflete a vocação autoritária doestado liberal, mas sobretudo aquela reacionária que emerge de suacrise. FERRAJOLIaté não a considera de origem iluminista: seria muitomais ligada às tradições hebraico-cristã, platõnica e medieval do que àcultura iluminista propriamente dita.48' Não por coincidência a preten-são de prevenção especial emerge no contexto de questionamento daconcepção de Estado até então' existente: no fim do século XIX,a A-lemanha de VON LISZTquestionava se o estado liberal não havia setornado obsoleto em função dos câmbios que a estrutura social expe-'rimentava.483 A percepção era de que industrialização promovera um .sensív~lincremento de crimes, e a pena, puramente retributiva, revela- '.va-se ineficiente para lhe fazer frente. Começam a surgir súplicas desubstituição do estado liberal por outro de cariz social, com marcadastarefas de bem-estar e de prevenção. Assim o Estado poderia desfrutarde maiores direitos de intervenção na esfera privada dos indivíduos..•••

Na verdade, segundo FERRAJOLI- um insuspeito adepto do positi-vismo jurídico -o que essa teoria da finalidade penal reflete é o projetoautoritário de um liberalismo conservador que identifica a defesa penalda ordem com a estruturade classes, existente, pouco importam as justi-ficativas dos pontos de vista axiológico, naturalístico ou mesmo apenasteleológico.485 Dai a se tomar o delinquente irrecuperável ou habitualcomo manifestação patológica típica de setores da sociedade comumen-te agrupados sob o rótulo de proletariado,'" não há qualquer distância.

'" FERRAJOLI,Ob. citada, p. 246.." MAURACWZIPF, Ob. cilada, p. 97 .••• MAURACWZIPF, Ob. citada, p. 97; também MIR PUIG, Func/6n de la pena y teonadeI delito en e.1Estado democrático de derecho, p. 28.." FERRAJOLI,Ob. citada, p. 250.486 Neste exato sentido e com incrível sinceridade, -VON LISZT,La teoria del/o scopo neldiritto penale, p. 54: "A luta contra a delinquência habitual pressupõe seu exato co-nhecimento. c. ..) Se trata realmente de wn elo daquela cadeia, de resto muito significa-

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Se a ressocialização serve à reforma moral para que o indivíduo assumao seu destino de submeter-se à disciplina da fábrica e aos valores dasociedade de consumo de massa, a neutralização não pode divorciar-seda obrigação de trabalhar, inclusive coletivamente. A prisão celular, umavez experimentada a produção em massas a exigir o trabalho coletivo,deveria ser introduzida apenas como sanção disciplinar.'"

A pena como retribuição da culpabilidade conheceu seu apogeuem tempos que mesmo o desviante era considerado livre, e por sê-lo,poderia ter escolhido em não praticar o crime. Por isso, sua própriaCondiçào de igual e racional, exigiria a imposição de pena. As convul-sões sociais e a percepção da necessidade de maior ingerência estatalque elas despertam no transcorrer do século XIX, entretanto, conver-gem para despir o desviante desse status jurídico. As determinações,sejam elas de natureza antropológica, biológica ou social, fazem-noigualmente detefÍninado ao delito. A sociedade, através do Estado,deve então defender-se: se puder corrigir o criminoso, incutindo-lhe orespeito às leis e valores consagrados pela ordem política vigente, bemcomo reduzindo-o à condição de força de trabalho disponível, a pri-sào, mediante a incidência do dispositivo disciplinar, se encarregará datarefa; àquele refratário à assimilação dos valores sociais que a socie-dade produtora de mercadorias prescreve - e aqui pelo menos se devereconhecer a sinceridade da pena como neutralização - restará sereiiminado do convívio social. VON LlSZT,por exemplo, propõe queapós a terceira condenação, o indivíduo seja submetido ao isolamentoindeterminado, cujos custos deverão resultar de seu próprio trabalho.Antes disso, lamenta, uma vez não ser mais admissível, pelo estado daciência penal que ele próprio ajudou a atingir, o recurso à decapitaçãoou enforcamento, nem a utilização de deportação, que "a única possi-bilidade é pelo isolamento perpétuo ou por tempo indeterminado. ,,488Ainda segundo VON LlSZT,a categoria de criminosos habituais (irre-cuperáveis, portanto), é seguramente individualizável: trata-se daquelesque atentam contra a propriedade e o bons costumes.""

tivo e perigoso, de manifestação patológica da sociedade que se pode reagrupar sob acompreensiva denominação de proletariado."481 VON LlSZT, Ob. citada, p. 57.

489 VON LlSZT, Ob. citada, p. 56.

". VON L1SZT,Ob. citada, pp. 56-57.

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'No plano das funções, de fato a prevenção especial negativa tal-vez seja a única a cumprir a função que assume, já que a prisão impe-de o cometimento de crimes, pelo menos fora de seus limites'''' Difi-cilmente, porém, a função de prevenção especial negativa se enunciacomo exclusiva; ela quase sempre é associada à de tratamento ou re-forma, segundo a seguinte perspectiva: ante o fracasso da ressocializa-ção apela-se para a neutralização. Na prática, porém, como as primei-ras sempre fracassam, "a neutralização é somente uma pena atroz im-posta por seleção arbitrária."'"

A crítica criminológica destaca ainda as funções latentes ou ocul-tas que a pena tem desempenhado sob o discurso da prevenção espe-cial. Em geral, ela parte dos efeitos deletérios reconhecidos à institu-cionalização em prisões. Assim, ao enfrentar as contradições da pre-venção especial negativa, JUAREZClRINODOS SANTOSaponta, entreoutros, os seguintes efeitos que resultam da inocuização pela privaçãode liberdade: em vez de evitar, produz delinquência; determina' uma"desclassificação social objetiva" do sujeito, consolidando a desintegra-ção social do condenado, mediante o esgarçamento, muitas vezes le-vando .ao definitivo rompimento, dos laços sociais e afetivos., inclusiveno mercado de trabalho'92 Em suma, o que a prevenção especial ne-gativa deixa claro, inclusive no nível simbólico, é o seguinte: os que serecusam ao enquadramento à "forma moral" da sobrevivência atravésdo salário'9l e de sua subsequente disponibilização no mercado (deconsumo de bens ou de capit.ais)I ou seja, os que recusam a existênciaeconômica que fornece o combustível da máquina compulsiva capita-li.sta, não merecem existência social.

No campo da prevenção genericamente agrupada sob a ideia deressocialização, o que a crítica criminológica tem mostrado, especial-mente através da contribuição das ciências sociais, é o seguintê: os efei-tos produzidos pela prevenção especial positiva, além da impossívelcomprovação empírica daqueles declarados, têm atuado para a reprodu-

.,,, CIRlNO DOS SANTOS, Ob. cilada, p. 25;"segundo ZAFFARONl/BAllSTA, el. aloDirei/o penal brasileiro -1, p. 127: "Sem dúvida alguma, têm êxito preventivo especial:a morte e os demais impedimentos IlSicos são eficazes para suprimir condutas posteri.ores do mesmo sujeito."49\ ZAFFARONVBATISTA, el. ai., Ob. citada, p. 127.'" CIRlNO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 25.493 FOUCAULT, Vigiar epunir, p. 204.

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ção daquilo que ele visa justamente reduzir: a ocorrência de crimes'"Essa, aliás, uma característica constitutiva do modo de produção capita-lista, segundo a qual a existência de uma construção social só é admiti-da se provar seu caráter produtivo.

Como toda prevenção, a prevenção especial só seria aceitável seprov~ssesua eficácia, ou seja, que a incidência da pena reduziria a via.lência que se atribui à criminalidade; se provasse efetivamenre protegerbens jurídicos. Ocorre que, como todos os demais discursos utilitários, aprevenção especial, além de reproduzir aquilo que diz combater, tendea expandir o controle penal e o poder punitivo do Estado. Justamentepor incrementar as situações que autorizam sua inrervenção.

Sob o capitalismo, a totalidade da vida social é valorizada segundosua capacidade, senão de estimular as forças econômicas, pelo menosde converter os elemenros que a compõe a uma unidade suscetível deassumir um valor de troca. Atado às conrradições que lhe conferemconstante instabilidade, a racionalidade prevalenre no capitalismo tendea apreciar o que contribui para sua manutenção. Por conta de sua defi-ciência em termos de legitimidade material, a sustenração da dominaçãopolítica reciama motivos que'autorizem acionar a violência que o Estadomoderno represou em seu seio. Daí que o processo de criminalização(tanto primário quanto secundário), tal como concebido pela criminolo-gia crítica, é funcional ao sistema de produção e de dominação capitalis-ta: porque produz delinquência, fabrica ocasiões para a demonstraçãoda força punitiva do Estado, reforçando o seu poder.'95

Por isso a existência do crime, assim como do inimigo, constituiuma necessidade do Estado moderno. Do contrário ele não teria ra-zões "legitimas" para acionar a violência que mantém imobilizada. As-

494 BARATI A, Criminologia crítica e critica do direito penal, p. 90, "a intervenção dosistema penal, especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducati-vo sobre o delinquente determinam, na maioria dos casos, lU11a consolidação da iden-tidade desviante do condenado e o seu ingresso em L!flla verdadeira e própria carreiracriminosa."

495 Não se discute, aqw, se em o~traorganização produtiva e política, o crime deixariade ser funcional, ou mesmo seria abolido. Desde que assumiu as características comque a modernidade lhe revestiu, o sistema penal não conheceu uma ordem radical.mente distinta. Os países socialistas do século XX, por exemplo, nunca chegaram atomar a separação fundamental força e instnunentos de trabalho de uma perspectivacompletamente diferente. A respeito, ver KURZ, Robert. O colapso da modernização.2&ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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sim como o inimigo produz a guerra, o cnmmoso produz o sistemapenal. A renovação do crime"assim como os atos tomados como terro-ristas é o que justifica a utilização permanente da violência aprisionadapelos diques da racionalidade de tipo legal. Dessa maneira' o Estadointenta manter sua base de legitimação, que é de natureza legal, semabrir mão do frequente uso da força que ele lhe fez privativa.

Descortina-se, assim, o caráter produtivo tanto da guerra quanto docrime no modo de produção capitalista. Na "digressão" contida nos ma-nusa'itos conhecidos como Teorias da Mais-Valia, destinados à análisehistórica do pensamento econômico, MARXjá assinalava esse carãter como qual, de resto, o capitalismo procura investir toda relação social. '96497

496 MARX, KarJ. Teorias da mais.valia: história cTitica do pensamento econ6mico. V, LRio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980, pp. 382-383: "Filósofo produz ideias, poetapoesias, pastor prédicas, professor compêndios e assim por diante. Um criminosoproduz crimes. Se mais de perto observarmos o entrosamento deste último ramo deprodução com a sociedade como um todo, libertar-nos-emos de muitos preconceitos.'O criminoso não produz apenas crimes, mas também ° direito criminal e, com este, oprofessor que produz preleções de direito criminal e, além disso, o indefectível com-pêndio em que lança no mercado geral 'mercadorias', as suas conferências. Com issoaumenta a riqueza nacional, para não falarmos no gozo pessoal que, segw\da umatestemunha idônea, Professor Roscher, os originais do compêndio proporcionam aopróprio Autor. O criminoso produz ainda toda a polícia a justiça criminal, beleguins,juízes e carrascos, jurados etc.; e todos aqueles diferentes ramos, que constituem ou-

. tras tantas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem capacidades diversasdo espírito humano, criam novas necessidades e novos modos de satisfazê-las. Só atortura suscitou as mais engenhosas invenções mecânicas e ocupou na produção deseus instrumentos muitos honrados artífices. O criminoso produz uma impressão comgradações morais e trágicas dependentes das circunstâncias, e assim presta um "'servi.ço" ao despertar os sentimentos morais e estéticos do público. Não só produz com-pêndios sobre direito criminal, códigos penais e portanto legisladores penais, mastambém arte, literatura, romances e mesmo tragédias, tais como Schuld de Mu11ner,Rauber (Salteadores) de Schiler, J!.dipo de Sófocles e Ricardo lO de Shakespeare. Ocriminoso quebra a monotonia e a segurança cotidiana da vida burguesa. Por conse-guinte preserva-a da estagnação e promove aquela tensão e turbulência inquietantes,sem as quais se embotaria mesmo o aguilhão da concorrência. Estimula assim as forçasprodutivas. O crime retira do mercado de trabalho pane da população supérflua e porisso reduz a concorrência entre trabalhadores, impede, até certo ponto, a queda dosalário abaixo do mínimo, enquanto a luta contra o crime absorve pane dessa popula.ção. O criminoso aparece como uma daquelas "compensações" naturais, que restabe-lecem um equilíbrio adequado e abre ampla perspectiva de ocupações 'úteis'. Pode-secomprovar, descendo-se a ponnenores, a influência do criminoso sobre O desenvolvi-mento da produtividade. Teriam as fechaduras atingido a excelente qualidade atual, senão houvesse ladrões? A fabricação de notas de banco teria chegado à perf~ição pre-

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Muitos foram os adeptos dessa concepção, tida como a mais libe-ral e deferente às garantias legadas pelo Iluminismo. Todavia suas de-bilidades, mesmo do ponto de vista normativo, não são desconhecidas,com destaque para aquelas que apontam sua tendência em degringolarpara um terrorismo penal, além de não ser capaz de escapar d~ obje-ção kantiana de que nenhuma pessoa pode ser tratada como meiopara se atingir um fim que lhe é estranho.

Por ser, entre as penas preventivas, a mais idônea a atender aosprincípios que 'delimitam o poder punitivo do Estado, a teoria da pre-venção geral negativa de FEUERBACHparece não ter encontrado oentusia~mo do poder do Estado. Sua principal obra, o Código Penalbávaro de 1813, fracassa dada sua incompatibilidade prática, baseadana atribuição de um só fim à pena, ante o direito penal do estado libe:ral, ao qual a teoria absoluta servia muito mais adequadamente.'oo

A crítica da prevenção geral negativa, normalmente refere a ilegi-timidade da utilização do poder punitivo do Estado para infundir oterror, ou querer, com fundamento na demonstração de força sobreaquele que sofre .a punição, refrear os intentos desviantes da coletivi-da,de. A criminologia aponta, por sua vez, a inexistência de prova em-pírica de que essa projeção do castigo representada pela pena surtaqualquer efeito coletivo, tanto mais naquela criminalidade comum,formada por atitudes que não costumam ser acompanhadas de muitareflexão. Seus efeitos preventivos, se possíveis no âmbito da criminali-dade dourada (crimes econômicos, ecológicos, tributários, etc.), sãoabsolutamente irrelevantes no campo do direito penal reservado aossetores mais vulneráveis da população, onde a repressão penal seletivase exprime em toda sua envergadura.SOl Aliás, esse discurso supõe a.coincidência entre homo medius e homo economicus, ponderador dosbenefícios do crime e dos custos da pena, como queria o próprioFEUERBACH- algo pouco provável de. ocorrer, pelo menos naquelegrupo social de que o sistema. penal mais se ocupa, já que a classemédi~ muitas vezes deixa de delinquir para obter uma "recompensapela obediência", como pondera ELENALARRAURI.502

500 MAURACHlZIPF, oI>. citada, p. 94.

'" Cf. CIRINO DOS SANTOS, Te~rlada pena, p. 30.

m LARRAURI,Elena. Criminologia crilicCl; abolicionismo y garantismo. Revista deEstudos Criminais. v 20, pp. 11-~8;em sentido próXimo, HASSEMER,Introdução aósjundamenta.<; do Direito Penal, pp. 408 e 55.

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Por isso, o discurso da prevenção especial encaixa.se, em termosdas funções latentes que desempenha, não só garantia, mas a própriareprodução das relações sociais à imagem de um sistema produtor de'mercadorias.

Do ponto de vista da prevenção geral a pena tem por destinatárionão aquele que cometeu o crime, mas os demais que ainda não o fize-ram. Conforme eia se oriente para intimidar, mediante a demonstraçãode força, de que o Estado não tolera nenhuma lesão à ordem jurídi-ca,498ela será negativa. Se orientar-se a reafirmara validade dos valoresjurídicos que fundamentam a ordem social, ela será positiva.

A simples menção, não importa quão despretensiosa, da preven-ção geral negativa não pode furtar-se de fazer justiça a FEUERBACH.Talvez seja ele quem fundou o direito penal moderno, com as caracte-rísticas mais positivas que conhecemos. Um iluminista convicto e cren-te do inalienável papel de garantia que o princípio da legalidade re-presenta. Para FEUERBACH,ao lado da coação física de que o estadode direito dispõe deve se acrescentar outra espécie de coação que seantecipe à consumaçãci da lesão jurídica. S6 assim a pena seria eficaz-rjlente 'preventiva. Essa coação, de natureza psicológica, exerce.se afim de intimidare dissuadir, mediante uma ameaça, a coletividadenão-desviante, o mal produzido pela pena será tal que o desgostoprovocado pela insatisfação de um impulso agressivo será preferível'99

sente, se não houvesse moedeiros falsos? Teria o microscópio penetrado na esferacomercial comum (ver Babbage) sem a fraude mercantil? Não deve a química prática àfalsificação de mercadorias e ao esforço descobri-la tanto quanto deve ao afã honestode produzir? O crime, com os meios de ataque à propriedade sempre novos, provoca.a geração ininterrupta de novos meios de defeSa, e asSim tem, como as greves, influ-encia tão produtiva na invenção de rriáquinas. E se deixamos a esfera do crime priva-. do: sem crime nacional, teria jamais surgido o mercado mundial?" "

497 No mesmo sentido e remetendo ao irônico texto de MARX,ver'ANlYARDE CASTRO,'Criminologia da reação socia4 p. 152 e MINHOTO, As pri.<;ôesdo mercado, p. 146.~98Assim, FEUERBACH,Anselm v. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hanunura-bi, 2007, p. 51.

." FE\.1ERBACH, Ob. citada, p. 52.

4. A pena como prevenção geral negativa

Page 15: Economia Política da Pena - Marco Alexandre

Na realidade, lançar mão da pena para desencorajar os que nãocometeram crimes, mais do que constituir discurso de justificação dopoder punitivo, representa legitimação retórica50Jde seus abusos. Des-sa forma pretende produzir (na condição de uma verdadeira ideologia)na "generalidade dos cidadãos e no próprio aparato do sistema penalum consenso em torno de uma imagem ideal e mistificante de seufuncionamento:"'" BARATI A trabalha com a crítica à prevenção geralnegativa denominando-a de teoria ideológica, juntamente com a pre-venção especial positiva (a prevenções especial negativa e geral positi-va se agrupariam sob a denominação de teorias tecnocráticas).501Nessesentido, ela seria uma teoria imprópria para momentos de crise, ondea construção de consenso não é tão infactível. Segundo a perspectivaaqui adotada, o período mais adequado para sua utilização, em termosde desenvolvimento histórico do sistema capitalista, certamente foi davigência do Welfare State; no qual, de resto, ficou um tanto quantoobscurecida sob a sombra da hegemonia da prevenção especial positi-va por todo esse período.

5. A pena como prevenção geral positiva

o discurso jurídico da prevenção geral positiva visa, através daimposição do mal da pena, que a coletividade perceba a autoridade daordem normativa em vigor. A única coisa comum que existe entre todotipo de ordem é que a pena é sempre a reação ante a infração de umanorma.506Ela é a demonstração de vigência da norma à custa de umresponsável. Por isso é que para jAKOBS, seu mais moderno e signifi-cativo artífice, mais importante do que o comportamento do agente éassegurar a autoridade da norma. Nessas condições, não é missão dapena evitar lesões a bens jurídicos, mas reafirmar a"vigência da norma,que é o verdadeiro bem jurídico-penal.507Sua função declarada consis-

50' CIRINO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 30.504 BARATIA, Alessandro. Vecchte e nuove slralegie nella Jegit/imazione dei dirittopena/e. Dei deliUi e delle pene. Ano 11I, nO 2, 1985, p. 257.

50sBARAlTA, Ob. citada, pp. 256 e ss.

,<>6 ]AKOBS, Gunther. Derecho penak parte general. 2' ed. Madrid, Marcial Pons, 1997, p. 8.507 jAKOBS, Ob. citada, p. 13.

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te menos em prevenir a ocorrência de crimes do que na manutenção,e mais do que isso, no reforço de uma determinada ordem social, re-presentada pelo vigor da norma.

A influência sociológica dessa teoria, sobretudo a sustentada porjAKOBS, é evidente e remete ao princípio conservador que fundamen-ta o funcionalismo sociológico. jAKOBS sequer a recusa como real-mente conservadora.5°S

Essa concepção pode ser considerada a mais recente construçãoacerca da pena criminal, embora seus fundamentos não sejam muitooriginais. Sua antecessora mais certa é a perspectiva macrossociológicade DURKHEIM,do final do século XiX. Tanto uma quanto outra sur-gem num quadro de crise e de insuficiência de argumentos para justi-ficar determinado c.ontexto social.

Para situar historicamente o atual surgimento da moderna preven-ção geral positiva, convém compará-la com sua antecessora. A DUR-KHElM incomodava a concepção preferida ao liberalismo político,segundo a qual a sociedade era constituída pela interação de interessesindividuais independentes, uma simples somatória de vidas individu-ais. A interpretação que ele oferece para a questão da integração socialprocura ser distinta. Segundo ZAFFARONl& PIERANGELl,sua teoriasocial responde a um surto de depressão econômica experimentadopela primeira metade da década de 1890: "A impressão de que o de-senvolvimento econômico era linear e regulado automaticamente pelaconcorrência, a fé em um progresso indefinido guiado pela 'ciência' eà frente do qual se achavam 'naturalmente' os melhores, começa adesvanecer-se ...""" Percebe-se, nessa perspectiva, que seu surgimentoé contemporâneo aos primeiros sinais de esgotamento do liberalismoeconômico,_ esgotamento esse que repercute no seu esquema de coe-são social. A fim de reduzir esse déficit, é que a teoria da prevençãogeral positiva surge pretendendo deslocar a ênfase da prevenção espe-cial, própria do positivismo mecanicista.510

Para DURKHEIM,o crime é um fenômeno social normal para aprodução e perpetuação da solidariedade social. Por isso, à pena, en-quanto resposta comum a todos os crimes, cabe uma importante fun-

50ll jAKOBS, Ob. citada, p. 21.

'''' ZAFFARONIIPIERANGELI,Manual de dlrello penal braSileiro, p. 296.510 ZAFFARONIIPIERANGELI, Manual de direito penal brasileiro, p. 297.

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ção: manter intacta a coesão social através do reforço da vitalidade daconsciência comum.51I "O crime é portanto necessário; está ligado àscondições fundamentais de qualquet vida social e, precisamente porisso, é útil; porque essas condições a que está ligado são indispensá-veis para a evolução normal da moral e do direito."S12

Sem embargo, a prevenção geral positiva ficou na penumbra porum bom tempo, vindo a ressurgir sob o rótulo de prevenção-integração, principalmente na Europa, apenas na passagem dos anos1970 para os 1980. Nesses termos, ressurge quase como uma necessi-dade colocada pelo cenário de crise que o sistema produtivo tem pro-jetado sobre a classe trabalhadora, a partir da obsolescência do mode-lo fordista. Ao contrário daquela de verniz geral negativo, a prevençãogeral positiva é própria de momentos críticos, dos pontos de vista e-conômico e político. A crise que de agora se fala, consiste na que seabateu, em suma, sobre toda a pesada estrutura construída pelos esta-dos de bem-estar, de esvanecimento das legitimações instrumentaisdos sistemas punitivos, entendidas como voltadas, pelo menos no nÍ-vel de sua função manifesta, à defesa dos bens jurídicos através daredução de crimes.

Tomando-se a teoria de JAKOBS,pode-se facilmente perceber a assi-milação do funcionalismo sociológico de tipo sistêmico elaborado porLUHMANN,especialmente ao deslocar, como já se frisou, o objeto de tutelapenal do bem jurídico para a norm"'!': segundo esta perspectiva o equilí-brio do sistema social está associado à possibilidade de manutenção dasexpectativas de comportamento apesar de suas frequentes frustrações.5!'Ou seja, para a manutenção do equilíbrio social, o importante é que asexpectativas normativas não sejam desapontadas, apesar da existência deatitudes que empiricamente as confrontem: "A expectativa e o aconteci-mento têm que ser simbolicamente isolados de tal forma que o aconteci-mento não possa afetar a expectativa, não colocando em questão sua con-

511 DURKHElM, ~mile.Da dívisãQ do trabQlho social. za ed. São Paulo: Martins Fontes,1995, p. 83.512 DURKHElM, Émile. "As regras do método SQciológicd'. ln: Os pensadores, v. XXXIII.São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 423.

lU ]AKOBS, Ob. cilada, p. 13.514 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito - v I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1983, p. 56.

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tinuidade.,,5!' Por expectativas normativas (em contraposição às cognitivas)deve-se entender justamente aquelas que não se abalam apesar de frequen-temente frustradas pela realidade social. Dessa forma absolve-se a estruturasocial de qualquer contribuição para a realização de atos socialmente dano-sos, construindo-se uma teoria que, a despeito de sociológica, não se ocu-pa minimamente das condições sociais reais. Por outro lado, uma expecta-tiva normativa, para manter-se nessa condição, precisa ser desapontada.Isso dificilmente seria possível, segundo LUHMANN,se a expectativa desa-pontada não pudesse expressar_se.S!6A expectativa deve manifestar-se afim de que a norma seja salva de ameaças, neutralizando-se simbolicamen-te o desvio. Daí que mais importante que a imposição real da expectativamesma, seja sua manutenção.517Isso constitui uma estratégia de estabiliza-ção contrafática do sistema social, apesar da realidade.

Para essa construção teórica, o decisivo é que o consenso socialpareça existir apesar dos antagonismos e conflitos existentes. A onipre.sença do poder punitivo do Estado, para esse efeito, em LUHMANNéfundamental. 518Por isso a função da pena que parte dessa construção émenos preventiva do que simbólica. E essa função simbólica tem porobjeto a legitimação do poder políticoS!' e da realidade social existente,não importa quão caótica ela seja. As expectativas normativas a sel'l'mmantidas sequer necessitam referir-se a muitas pessoas, deixando entre-ver a consciência, de uma construção teórica dessa natureza, a respeitodo contexto estrutural no qual emerge: profundamente excludente eincapaz de trazer, para o gozo dos frutos socialmente produzidos, maisque uma franja quantitativamente inexpressiva da população.

Por isso BARATIA acerta ao afirmar que a teoria de JAKOBS inven-ta uma normalidade inexistente. Trata-se de uma maneira de colonizar apercepção da realidade, de forma que, para a manutenção da aparênciade equilíbrio do sistema, o homem deixa de ser sujeito de direitos para

51S LUHMANN, Ob. citada, p. 69.SI' LUHMANN, Ob. citada, p. 71.;17 LUHMANN, Ob. citada, p. 73.518 LUHMANN,Ob. citada, p. 124, as frustrações devem ser processadas de tal modoque os resultados sejam "tão inequivocos que perntitam o encadeamento direto dasuposição do consenso, ou até do próprio consenso. Isso é produzido pela força físi-ca. C.) A força física interessa-nos aqui não em seus efeitos físicos C..) mas sim emseus aspectos sensoriais e simbólicos, que acompanham o evento físico-orgânico. n

'" CIRlNO DOS SANI'OS, Teoria da pena, p. 32.

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ser objeto da realização de seu equilíbrio. Além de apropriada para pe-ríodos de crise, ela pode ser considerada de tipo tecnocrático, já quecontém um duplo código: um destinado a provar a eficácia do controlesocial e do aparelho de punição do Estado; outro reservado aos funcio-nários da máquina do.poder e à classe dominante."o

Já se mencionou que talvez a mais bem sucedida estratégia de le-gitimação empreendida pelo Estado moderno foi aquela levada a efei-to durante o período fordista, no qual se "empenhou em disponibili-zar, desde que em doses politicamente controladas, a fruição pelosindivíduos em geral, dos bens e riquezas por eles próprios produzi-dos.,,\2l Essas estratégias foram as responsáveis pelo maior nível deestabilidade política experimentado sem o recurso excessivo à coerçãoestatal. Com o abandono dessas práticas, a solução punitiva teve derecobrar sua importãncia. Por isso o significado da atual teoria da pre-venção geral positiva, em termos de sua funcionalidade ao atual mo-mento vivenciado pelo sistema capitalista, não é de difícil percepção.

Sua razão estrutural radica no declínio do estado de bem-estar eda desconfiança generalizada sobre a função de ressocialização'" Emsuma: a prevenção geral positiva de JAKOBSé quase um sintoma dainadequação do instrumento penal em face da satisfação de uma exi-gência política.'" Quer dizer, algo próprio ou exigido por uma ordemsocial de reduzida legitimidade, cuja reconquista, aliás, parece não lheestar acessível ou sequer lhe interessa.

As críticas suscitadas pela criminologia crítica são inúmeras: a pre-venção geral positiva de base sistêmica desconhece .todos os efeitosnegativos do sistema penal em termos de integração social; ignora acifra negra da delinquência, na medida em que, desde sua concepção, oque põe em perigo a confiança no equilíbrio institucional não são asviolações desconhecidas ou pouco visíveis, mas aquelas graves e mani-festas.'" Só essa última razão já seria suficiente para marcar sua predile-ção pela criminalidade comum, da qual as classes menos favorecidas

"" BARATI A, Veeehie e nuoue slrnIegie nella ieglttlmazlone dei dirllto penaIe, pp. 262-264.

521 Ver Capítulo 11I supra, p. 31.'" BARATIA, Veeehie e nuoue strntegie nella Iegllt/maz/one dei d/Tirtopenaie, p. 257.S23BARATIA, Alessandro. Integraci6*prevenci6n: una nueva jundamen/aci6n de lapena dentro de la teoria sistémtca. Capítulo Criminológico - nO 15, 1987, pp. 3.26.524 BARATIA, Integractón-prevenci6n: una nueva[undamemacf6n de la pena dentrode la teoria sistémtca, p. 23.

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são sempre responsabilizadas. Por isso ela legitima não s6 a seletividadedo sistema penal, mas também a sua própria expansão, além de reforçaros processos de imunização inerentes ao seu funcionamento.

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Finalmente, é necessário ainda explicitar que, não é por ser sim-bólica que a pena criminal deixa de produzir efeitos bastante concre-.tos. Primeiro porque a legitimação do poder do Estado supõe a legiti-mação da ordem por ele estabelecida. Quanto mais violenta essa or-dem, piores os efeitos produzidos, que dessa forma terminam todos,também, legitimadOS,'" Daí o revigoramento da solução violenta paraproblemas estruturais cuja resolução real não está contida na pautapolítica dos Estados contemporãneos'"

As semelhanças entre as construções teóricas que serviram de apoioà teoria da prevenção geral positiva são evidentes. Ambas surgiram comosucedâneos das teorias antes dominantes, a fim de preencher a lacunadiscursiva aberta pelo enfraquecimento de laços sociais mais duradouros,produzidos pela maior capacidade de incorporação do sistema social comque se defrontam. A atualidade, devido ao alto grau de injustiçadistributi-va, à seletividade do poder, à constante e exponencial reprodução desujeitos descartáveis pelo atual estágio evolutivo do modo de produção,exige cada vez mais frequentemente uma confirmação da validade danOlma jurídica como modelo de orientação social. Assim sobrecarrega-seCl papel reselvado à lei, enquanto sintoma da debilidade dos demais insti-tutos responsáveis pela integração social. Por ter se desocupado das de-mais esu-atégiasidõneas para sua legitimação, a ordem em vigor reclamaum discurso que privilegie a produção de efeitos meramente simbólicospara que o sistema continue a funcionar apesar do evidente e crescentedesequilíbrio que lhe acomete.

52:5 BARATfA, Integrací6n..prevencí6n' una nuevafundamentaci6n de la pena dentro

de la teoría sistémica, p. 23.,,, Cf. TAVARES, Juarez. A glohallzação e osprohiemas de segurança públtca. p. 126.527Conformepondera CIRlNO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 33: "a legitimação doDireito Penal pelo papel ideológico da criação de símbolos no imaginário popular ésimbólica, mas com evidente efeito instrwnental: é slmb6Uca, porque a penalizaçãodas chamadas situações problemáticas não significa solução social do problema, massimples solução penal produzida para efeito de satisfação retórica da opinião púbUca -,ou seja, nenhuma solução; mas possui efeito instrUmental, porque legitima o _DireitoPenal como programa desigual de controle social, agora revigorado para a repressãoseletiva contra favelas e bairros pobres das periferias urbanas, especialmente contra aforça de trabalho marginalizada dO mercado, sem função na reprodução do capital."

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6. Utilitarismo e razão de Estado

Da cori'elação entre 'desenvolvimento político-institucional da or-dem estatal e os discursos formulados para legitimar a existência dopoder de punir resulta, pelo menos em linha de princípio, que a fun-ção atribuída à pena deve corresponder, em última análise, aos finsque o Estado diz perseguir. Pois se o Estado é quem detém a exclusi-vidade para o uso legítimo da força, sua exteriorização deve voltar-se aesses objetivos. Isso, contudo, não encerra a inquietação sobre a legi-timidade desse exercício de poder tão grave. Principalmente depoisque as funções latentes da pena criminal foram cientificamente desnu-dadas. De fato, num Estado cujas estruturas são moldadas segundo osinteresses que nele se projetam por uma sociedade de classes sociaisantagõnicas, a legitimidade por ele conquistada nunca poderá refletir,em condições de igualdade, as demandas de todas as classes que con-vivem sob seu domínio. Justamente para esse efeito. é que a estratégiade legitimação por ele assumida não dispõe, em seu conteúdo, dejustificativas materiais capazes de garantir uma equilibrada distribuiçàode vantagens e de riquezas entre os participantes.

Por isso é que, também em princípio, o paradigma político damodernidade pode ser designado, desde WEBER, como responsávelpela dominação de tipo racional-legal. Quer isso dizer que o adventodo Estado moderno fez com que o poder punitivo do qual ele reivin-dicou o monopólio também viesse a fundamentar sua legitimidade(formaI) na legalidade.

Ocorre, como jã assinalado anteriormente, que a despeito dessaconstatação, o poder punitivo em boa parte continua.a desenvolver-seà margem da história do direito penal. Daí que o princípio da legali-dade tem se manifestado menos como um princípio real de funciona-mento do que como uma instância ideológica de legitimação. Pois narealidade tal princípio não corresponde, senão parcialmente e de ma-neira contingente, ao funcionamento concreto do sistema penal. Isso éverdade não só quanto ao sistema penal em toda sua extensão - o queexigiria incluir suas manifestações extralegais ou subterrâneas ~ mastambém quando se toma apenas a parte regida pela legalidade''"

528 B~TfA, Veçchie e nuove strategie ne/la legtltimaxtone de~diritto penale, p. 249.

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Essa ponderação remete à realidade de uma outra configuraçãodo paradigma político da modernidade. De fato a dominação políticaque a modernidade burguesa empreende não se esgota no papel dalei. Por várias vezes esta insuficiência foi apontada no transcorrer dessainvestigação."9 Por isso é necessário apreender que nem sempre osdiscursos ou construções doutrinárias acerca do poder punitivo reve-lam muito. Eis o motivo fundamental da necessidade de se debruçar i

não só sobre as funções declaradas ou manifestas atribuídas à penacriminal, mas também sobre suas funções latentes ou ocultas. A razãode Estado, segundo a qual a pena simplesmente se volta a realizar a"vontade do poder" raramente é assumida. Na verdade, ela é muitomais praticada do que teorizada.

As ideologias penais conhecidas, grosso modo divididas entre' ab-solutas e relativas, são encontradas muito antes da constituição doEstado que esse trabalho procurou de alguma forma analisar. A insis-tência em se atribuir uma utilidad~l um fim à pena, é antigaj muitoanterior, até, ao Iluminismo e mesmo' aos seus pilares fundamentais,tal. como o direito naturaL Isso vale mesmo para as teorias relativas oupreventivas, frequentemente vinculadas à noção de utilidade e discur-sivamente mais desenvolvidas após o Iluminismo.530 O que a moderni-"dade parece ter agregado a esses discursos de longa memória foi so-bretudo uma forma específica de racionalidade por detrás das justifica-tivas comumente endereçadas à legitimação do poder do Estado .depunir, inclusive conceitualizando-o, mais do que como uma proprie-dade, como um seu direito subjetivo (jus puniendi).

De fato, um patrimônio comum reivindicado por todas as teorias pe-nais consiste na sua racionalidade, desligada de explicações sobrenaturais,e empenhadas em impor limites ao poder punitivo arbitrário e cruel, peloqual o absolutismo havia se distinguido. As ideias iluministas, nessa or-dem de ideias, tomavam a utilidade ou a atribuição de um fim à pena, na

529Ver especialmente item 4 do Capítulo I, pp. 49-50.S30 Segundo uma compreensão bastante corrente, SENECA,que viveu no início da eracristã, tomou de PROTÁGORAS uma concepção preventiva de pena até hoje tida pormoderna: nemo prndens punit qula peccalUm esl sed ne peccetur (nenhum ind,ividuoracional pune pelo pecado cometido, mas para que futuramente não mais peque) .Nesse sentido, entre tantos outros, HASSEMER, WÍIÚred. Introdução aos fundamentosdo Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p 369; tambémCIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da P(Jntl; fundamentos polfticos e aplicação Judi-cial. Curitiba: lCPC/Lumen Juris, 2005, p. 4 .

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perspectiva de impor limites ao poder do Estado. Seria assim uma espéciede contra-poder, fundamentado na limitação que a lei representa. As coi-sas parecem haver se modificado, também nesse ãmbito, quando a ki,em vez de limitar, se converte em autorização de punir.

A partir do momento histórico em que a modernidade se tornamais propriamente burguesa, a relação crime e pena se modifica, em-bora a prisão já viesse se institucionalizando desde pelo menos o sécu-lo XVI. Até esse momento, a pena não era uma consequência necessá-ria do delito; segundo PIRES,se antes o crime tomava o culpado aptoa uma pena, no sentido de instituir uma condição, a partir da segunda'metade do século XVIII ele passa a constituir uma obrigação.53! Nãohavia o vínculo necessário, no sentido de que a exis~êncla do crimei~põe a existência de pena.532 . . ,

Simultaneamente a essa 'ffiudànça no binômio crime-pena, pelomenos em termos históricos, assiste-se ao reaparecimento de uma ca-tegoria, que segundo FOUCAULT,mergulha suas raízes na Antiguidadeoriental, permaneceu na penumbra por aproximadamente dez séculos,para ressurgir juntamente com a economia política no século XVIII,justamente quando o Estado se defronta com' o problema da popula-ção, e principalmente a necessidade de sua gestão.'"

O poder punitivo concentrado nas mãos do Estado deixou entre-ver seu caráter ilegítimo quando expressou que a retribuição da penadevia ser equivalente ao dano provocado pelo crime. Isso surge CO~

maior nitidez quando o castigo implicado na pena abandona o corpodo criminoso e investe na sua disposição de tempo e de liberdade.Isso parece ter ocorrido simultaneamente à percepção de que o prin- ,cípio da soberania, baseado na força cogente do direito, oferece limi-tações muito evidentes aos objetivos que a burguesia elegera para le~

531 PIRES,' Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os diretlos humano..(Novos Estudos - CEBRAP.n' 68, mar/2004, pp. 39-60.

532 PIRES.A raciona/idade penal moderna, opúblico eos direitas humanos, observa queé' apenas no século XVIU que, "no quadro da racionalidade penal moderna passa-se deuma cultura' da autorização para punir ilimitadamente a wna Culturada obrigação depunir limitadamente". Já BARArrA, Alessandro. Vecchie e nuove strategie nella legiltima-'.,zione deI dirllto penaJe, p. 249, obsetva que "a história da perta precede a história dodelito e continua a desenvolver-se, em boa parte, independentemente desta."533 FOUCAULT, Michel: A govemamentalidade.ln: Microftsica do poder. 1sa ed. RiÇ>deJaneiro: GraaI, 2003, pp. 277-293; também dele, "Omrws et singulalim": por uma criticada "razão política". Novos Estudos CEBRAP,na 26, março de 1990, pp. 77-99.

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var adiante seu projeto de poder. Segundo o que também revelam aspesquisas de FOUCAULT,se durante os séculos XVI e XVII a teoriajurídico-polítiça da soberania havia sido o grande instrumento da lutapolítica e teóriéa contra os sistemas absolutistas de poder dos séculosXVI e XVIl,SJ4a partir do século XVIII, já definitivamente vencida estabatalha, ocorre a assunção de uma "nova mecânica do poder" que alia,à regra do direito, tanto os dispositivos disciplinares quanto uma novaracionalidade por parte do Estado. Tal tipo específico de racionalidadeconstitui; no paradigma político da modernidade, o elemento não-,normativo e de natureza econômica que se ocupa da tarefa de gover~no dos indivíduos, O desbloqueio desta lógica acompanha0 surgimen-to de novas formas de relações econômicas, pelas quais se vai assimi-lando que o p;'incípio econõmico que está por trás da dominação bur-guesa, exige a separação do homem de seus instrumentos de trabalho.Isso sugere que, é quando fica claro que não é.a terra, mas o trabalhohumano, a fonte fundamental de riqueza, se delimitou o objeto privi- ,legiado da dominação política da modernidade. Por isso, não foi porobra do acaso que o poder punitivo moderno, desde o início de suaconstituição, mas sobretudo quando aproxima-se o século XIX, se o-cupou da disposição do homem sobre o seu tempo e sobre sua forçade trabalho. A prisão, nesse contexto, existe menos como uma unida-de produtora de efeitos imediatamente econõmicos do que de umautilidade política fundamentada na submissão do trabalho humano aoaparelho de produção capitalista.s"

Tudo sugere a possibilidade de se associar, portanto, as teoriaspreventivas com essa nova configuração da dominação política' mo-derna, que juntamente com o pilar da soberania e com o da disciplina,inclui a gestão governamental, "que tem na população seu alvo princi-pal e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais. "sJ6Deforma que, para não se arriscarem demasia, a governamentalização doexercício do poder por parte do Estado e a consolidação do utilitaris-mo no discurso jurídico da pena exprimem coincidências.

No interior da política integr.l do Estado, impregnada da ideia degestão. dos indivíduos, o poder' punitivo constitui o local privilegiado

5~ FOUCAULT," Microftsica do poder, p. 187.

535 FOUCAULT, Vigiar epunir, p. 205.

", FOUCAULT, A governamentaUdade, p. 291.

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541 SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente; contra o desperd(ctoda experiência. 30<1. São Paulo, COltez, ZOOI, p 52.

'" SOUSA SANTOS, Oh. cilada, p. 51.SoU WEBER, Max. Economia e sociedade. vI. 31 ed. Brasília: UnB, 1994, p. 15.

5« HABERMAS, Jurgen. Diretro e democracia.. entre [actlcidade e validade. v I. 2a ed.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, pp. 67 e ss. do mesmo Temia de la accióncomunicativa-I. Madrid: Taucus, 1999, pp. 316 e ss.

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BOAVENTURADE SOUSA SANTOS aponta que o direito foi cha-mado a atuar como força gestora dos déficits e excessos produzidospela incapacidade estrutural do capitalismo em cumprir as promessasda modernidade. Se tal gestão reconstrutiva ficou a cargo da ciência,ao direito passou a incumbir o papel de integração normativa tendentea evitar eventuais oposições.'u Isso se deu a partir de quando os crité-rios científicos de eficiência se tornaram hegemõnicos. Daí que as teo-rias jurídicas passam a ser avaliadas segundo sua capacidade de gestãocientífica da sociedade.'"

Especit1camente no campo das t1nalidades da pena, todo esse fenô-meno desencadeou, para utilizar conhecida terminologia habermasiana, acolonização da racionalidade jurídica pela radonalidade sodológica, quepor sua vez emerge, no século XIX, como uma espécie de apêndice dasciências naturais. Isso significou, por conta da reconhecida permeabilidadedo saber sodológico aos critérios cientít1cos jã aludidos - que com a mo-dernidade se transformaram em hegemônicos - a subsequente colonizaçãoda racionalidade referida a valores, típica do direito (Wertrationalitat) poraquela que se ocupa apenas dos fU1S, tipicamente cientítlca (Zweckratio-.nalitat) - segundo a paradigmãtica dicotomia legada por WEBER.""A mo-demidade do capitalismo avançado também foi responsãvelpela conversãoda ciência na principal força produtiva. A fase pós-industrial de desenvol-vimento do modo de produção capitalista veio confirmar definitivamenteessa premissa. Esse fenômeno foi apontado, tomando-se por objeto o du-ei"to em geral., tanto por BOAVENTURADE SOUSA SANTOS quanto porHABERMAS"';cada um a seu modo. Segundo essa compreensão, opera-seuma redução - encabeçada pelo mecanismo de mercado, descoberto eanalisado pela economia política - do direito ao papel complementar dessaforça gestora dos déficits e excessos produzidos pela incapacidade estrutu.ral do capitalismo em cumprir suas promessas. Essa redução é correlata auma outra, frequentemente mendonada pela teoria jutídica, que se traduzna redução sociológica do direito, com perda de importância para os valo-

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para a manifestação dos elementos estranhos àquele normativo (da lei)sobre o qual o discurso oficial pretende fundar sua legitimidade. Nessecontexto também aparece, como elemento constitutivo da ordem jurí-dica, a autorizaçào para suspensão da regra da lei - aquilo que A-GAMBEN chamou de estado de exceção - sem implicar sua derroga-ção.'" Essa particularidade, que é eminentemente burguesa porquecriação da tradição democrático-revolucionãria e não da absolutista,''''como parece elementar, fez com que o sistema jurídico ocidental as-sumisse uma estrutura dupla, constituída por dois elementos heterogê-neos, mas coordenados: um normativo e um anômico.539

No campo das justificativas do poder punitivo, BARATI A apontaque quando se intentou preencher de conteúdo a justificativa do poderpunitivo, o utilitarismo floresceu. A partir desse momento, quando seprocurou dar o estatuto de cientificidade, mediante a intenção de atri-buir um carãter instrumental é que se desenvolveram as teorias relati-vas ou utilitãrias da penas" As teorias utilitãrias justificam a pena pres-supondo que pena é prisão. Daí que suas justificativas dirijam-se me-nos à pena em si do que à pena privativa de liberdade. Conforme jã semencionou, as ideologias da prevenção especial sào as que conhece-ram maior difusão e ascendência sobre os discursos jurídicos, desdeseu surgimenro, quando dos primeiros sinais de crise manifestadospelo estado liberal. A ressocialização e a neutralização sempre se e-nunciaram como justificativas para a prisão, mas pretendem ser acata-das como justificativas da pena. Se a prevenção geral não parte tãoabertamente desse patamar, tampouco recusa a aplicação da prisão oumesmo lhe nega legitimidade.

A crise do modelo produtivo do capitalismo concorrencial talvezseja o evento que tornou mais clara, pelo menos no campo das teoriasda pena, as limitações que o paradigma da soberania oferecia para ocontrole social pretendido. Ou seja, nesse momento a armadura legalna qual o poder essava contido revelou-se insuficiente para atender osdesígnios do poder. Para isso a ciência foi convocada. Sem a forçacoercitiva do direito, porém, sua realização não seria factível.

537 AGAMBEN, Giorgio. Estado de excecão. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, pp. 18-19.'" AGAMBEN, Oh. citada, p. 16.'" AGAMBEN, Oh. citada, p. 130.S40 BARA'ITA, Veccbfe e nuove straregie nella legittimarione dei dirltto penale, p. 254.

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res propriamente normativos, sejam eles internos ou superiores ao planodo direito positivo.'''

Segundo essa perspectiva, a racionalidade prática-material ã qual odireito natural nutria simpatia, por exemplo, se converte numa técnica,num modelo operatório de engenharia social, na qual o fator determi- .nante não é a validade axiológica do direito, mas a decisão ótima emdadas condições. Assim, se a prevenção especial visava a transformaçãodo homem numa peça da engrenagem produtiva necessãria ã reprodu-ção do capital, o retomo da prevenção geral positiva responde ã radicaltransformação do modelo de acumulação legado pela tecnologia dainformação, que pensa poder dispensar a força de trabalho humana.

Para além da produção, a funcionalidade das teorias preventivasda pena também se revela ante a necessidade do reforço da ordem,para tanto relegitimando e autorizando a utilização da energia represa-da nas estruturas estatais. Para isso, enquanto a prevenção geral, assimcomo os funcionalismos de todos os matizes, servem para reatlrmar aideologia e os valores que correspondem aos interesses da classe de-tentora do capital, o sistema penal continua reproduzindo o materialde que ele próprio se alimenta: o crime. E a prisão persiste como penaessencial do modo de produção capitalista. Os fins atribuídos são tan-tos que o objetivo parece ser sempre buscar novos para se mantercom os mesmos meios.

Ante a falência do modelo produtivo fordista e a assunção da pri-são como depósito do refugo da globalização, parece certo que osprincípios normativos que de alguma forma limitavam a expansão dopoder punitivo tendam a atrofiar-se.'" Para isso um sistema penal fun-

545 O rechaço ao reducionismo sociológico, porém, não traduz que o direito possa serconcebido alheio ao processo social de produção -de sentido que lhe constitui, en.quanto produto de uma prática social discursiva que é mais do que palavras, poisinclui comportamentos, simbolos, conhecimentos. Assim, CARCaVA, Carlos Maria."Los jueces en la encrucijada: entr~el decisionismo y la hermeneutica controlada". ln:Derecbo, polrtica y magisn'alura. Buenos Aires: Biblos" 1996.~C; A respeito do incremento contemporâneo do processo de crirninalizaçãopela racionali.dade econômica, v~ MIRANDACOlJIlNHO, Jacinto Nelson de. O papel do pen.'\amemoeconomJcista no direito criminal de baje. Revista da Faculdade de Direito da UFPR.v, 31,1999, pp. 37-49; enfatizando da emergência de uma nova racionalidade puniliva, partieu-lannente no âmbito da criminologia atuarial- que do ponto de vista aqui sustentado poucotem de inovadora, RIVERABEIRAS,lõaki. StateJonn, Iabour matkel and penal SJStem- lhenewpunitiva rationalily in conte:x1.Punishrnent& Society. v 7, pp. 167-182. .

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cional e obcecado pelo cumprimento de fins, tal como a moderna pre-venção geral positiva, revela sua tendência incorrigível para maximiza-ção de seus resultados.'". Essas considerações acorrem em reforço ã escolha do título destaobra. O que distingue as teorias utilitãrias da pena é a racionalidadeque as anima, que não parece ser outra, senão aquela da qual o poderdo Estado se deu conta necessitar, quando se defrontou com o pro-blema de gestão das populações. Essa lógica é a mesma que define osobjetivos da economia política e é contemporânea à sua ascensão co.mo fOlma principal de saber e instrumento primordial de resolução deproblemas sociais e econômicos.548 De modo que a crítica das teoriaspreventivas da pena passa pela crítica da economia política; e sua he-gemonia, no campo dos discursos jurídicos, corresponde ao momentoem que o Estado, depois de ter se dado conta da necessidade de criarum mecanismo que frequentemente reforçasse seu poder, se atinoupara a importância de se gerir os detentores de sua força de trabalho,tànto para a produção quanto para a realização do valor na esfera dacirculação de mercadorias, enquanto grandeza fundamental para areprodução capitalista.

547 Advertindo quanto a este risco, apesar de se assumir partidária das teorias preventi.vas, inclusive a de corte funcionalista, ver RODRIGUES,Anabela. A derenninaçâo dapena prilJQtiva de Iibe,dade. Coimbra: Coimbra editora, 1995, pp. 306 e ss.54S Nesse sentido, ver FOUcÁillT, Agovernamentalidade, p. 291, além de AGAMBEN,Entrevista a Gianlucca Sacro na Rivisla on/ine, Scuo/a superiore deJ/'fxonomia e del/e .jinanze, ano I, nO6n, Giugno-Luglio 2004. Disponível em: http://www.rivi$la.ssef.itAcesso em: 6 mar. 2007.

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