ECOLOGIA POLTICA

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POR UMA METODOLOGIA DO DIREITO DE BASE PRAGMATISTA: O RACIOCÍNIO ABDUTIVO NO DIREITO For A Legal Methodology Grounded On Pragmatism: Abdutive Reasoning In Law Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega Sumário: 1. Proposta Pragmatista para uma Metodologia Jurídica; 2. A contribuição pragmatista no contexto de descoberta - Metodêutica, o método para descobrir métodos; 3. A abdução e o Direito; 4. A inferência abdutiva; 5.O retorno à apagoge em Aristóteles; 6. O argumento jurídico apagógico; 7. O Método de clarificação conceitual de Peirce; 8. A dúvida e a fixação da crença no pragmatismo – a superação do método a priori ; 9. Postura Pragmatistas no Direito; 10. Bibliografia RESUMO A metodologia jurídica é aqui tomada na perspectiva da aplicação do direito pelo operador jurídico. É analisada do ponto de vista de suas deficiências e a investigação se centra na proposta pragmatista como alternativa de aperfeiçoamento, através de modo de inferência abdutivo – lógica das conseqüências, originariamente desenvolvido por Charles Sanders Peirce. A postura pragmatista proposta para o processo de decisão judicial encontra-se inserida no contexto da descoberta pela própria natureza do raciocínio abdutivo de Peirce. A forma de pensar pragmatista não se presta a servir de baliza para aferir a racionalidade argumentativa da decisão jurídica, pois a essência do raciocínio abdutivo se opera no âmbito da descoberta e não da justificação. A inadequação e insuficiência das construções analítico- formais da Teoria Geral do Direito, verificada na pós-modernidade, desponta a necessidade de construção de novos paradigmas para a Ciência Jurídica. O Pragmatismo exsurge nesse contexto como uma alternativa de se repensar as questões jurídicas sob uma nova plataforma de raciocínio, hábil a compreender problemas que a dinâmica social faz nascer. Para isso foi realizada uma revisão bibliográfica do Pragmatismo Clássico em seus principais expoentes – C. S. Peirce, W. James e J. Dewey – e discutida as possibilidades de uma Filosofia do Direito e Metodologia Jurídica Pragmatistas. Aprofundando-se no método de investigação 1

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POR UMA METODOLOGIA DO DIREITO DE BASE PRAGMATISTA: O RACIOCÍNIO ABDUTIVO NO DIREITO

For A Legal Methodology Grounded On Pragmatism: Abdutive Reasoning In Law

Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega

Sumário: 1. Proposta Pragmatista para uma Metodologia Jurídica; 2. A contribuição

pragmatista no contexto de descoberta - Metodêutica, o método para descobrir métodos; 3. A

abdução e o Direito; 4. A inferência abdutiva; 5.O retorno à apagoge em Aristóteles; 6. O

argumento jurídico apagógico; 7. O Método de clarificação conceitual de Peirce; 8. A dúvida

e a fixação da crença no pragmatismo – a superação do método a priori ; 9. Postura

Pragmatistas no Direito; 10. Bibliografia

RESUMO

A metodologia jurídica é aqui tomada na perspectiva da aplicação do direito pelo operador

jurídico. É analisada do ponto de vista de suas deficiências e a investigação se centra na

proposta pragmatista como alternativa de aperfeiçoamento, através de modo de inferência

abdutivo – lógica das conseqüências, originariamente desenvolvido por Charles Sanders

Peirce. A postura pragmatista proposta para o processo de decisão judicial encontra-se

inserida no contexto da descoberta pela própria natureza do raciocínio abdutivo de Peirce. A

forma de pensar pragmatista não se presta a servir de baliza para aferir a racionalidade

argumentativa da decisão jurídica, pois a essência do raciocínio abdutivo se opera no âmbito

da descoberta e não da justificação. A inadequação e insuficiência das construções analítico-

formais da Teoria Geral do Direito, verificada na pós-modernidade, desponta a necessidade

de construção de novos paradigmas para a Ciência Jurídica. O Pragmatismo exsurge nesse

contexto como uma alternativa de se repensar as questões jurídicas sob uma nova plataforma

de raciocínio, hábil a compreender problemas que a dinâmica social faz nascer. Para isso foi

realizada uma revisão bibliográfica do Pragmatismo Clássico em seus principais expoentes –

C. S. Peirce, W. James e J. Dewey – e discutida as possibilidades de uma Filosofia do

Direito e Metodologia Jurídica Pragmatistas. Aprofundando-se no método de investigação

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científica de Peirce, foi revelado que a lógica cartesiana de grande influência no meio

jurídico conduz à auto-ilusão, pois seu pressuposto é uma dúvida irreal, abstrata,

estabelecida por um juízo de autoridade, despida de qualquer conexão com os elementos

sensíveis do mundo. Nesse ponto reside a vantagem do método pragmático, pois não orienta

a investigação por dogmas, mas a partir da realidade, mediante a prova e o erro. A

determinação pragmatista do significado de algo se deve ao exame do conjunto de todas as

futuras conseqüências práticas verificáveis. Estabelece-se uma ‘claridade’ real das idéias que

se distinguem pelos diferentes modos de ação que têm lugar na prática. O raciocínio

abdutivo de Peirce, ao possibilitar se inferir daquilo que já se sabe algo que ainda não se

conhece, supera a ‘falácia da indução’, permitindo o avanço da ciência e conhecimento

novo. Distinta da indução e da dedução, a abdução é uma forma sintética de inferência, que

não é validada nem a priori, nem dedutivamente. Sua base racional é o falibilismo. O caráter

de falibilidade é imanente ao Pragmatismo, pois não se alcança o conceito definitivo e

acabado de algo, mas se trabalha pelo seu permanente aperfeiçoamento. Desse modo, o

método pragmatista admite uma continuidade, uma evolução e uma dinâmica para o Direito.

Do ponto de vista da prática judicial, tem-se que o método dominante ainda é o subsuntivo

igual ao utilizado no século XIX. Assim, por maior correspondência da abstração – teoria –

com a realidade prática, faz-se necessária uma Metodologia do Direito, mais devotadas aos

fatos, que se acrescente à de base aprioristica-racionalista, sem, no entanto, descartá-la. O

Pragmatismo Clássico, como método capaz de processar a mutabilidade da realidade social,

representa uma possibilidade real de aperfeiçoar o Direito.

Palavras-chave: METODOLOGIA JURÍDICA – FILOSOFIA PRAGMATISTA –

ABDUÇÃO

ABSTRACT

The legal methodology here is taken in the perspective of law-making. We analyse the

deficiencies of the traditidional legal methodology and present pragmatic adjudication as an

alternative way to improve the Law, through the Abdutive Reasonig, developed by Charles

Sanders Peirce. Is is important to notice that this pragmatic proposal is inserted within the

“context of discovery” considering the abductive reasoning own’s nature. Pragmatism does

take into consideration the “context of justification”, which deals with the rational adequacy

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of a judge’s veredict, otherwise the essence of pragmatism reasoning is operated in

discovery context. An abdutive inference is not concerned with a process of argumentation

as a process of justification, but with a process of imagination and discovery. The

deficiency of the Traditional Theory of Legal Reasoning, which was grounded on Legal

Formalism, indicates the need of a new paradigm. Hence, Pragmatism appears in that

context as an alternative to refound legal theories under a new plataform of reasoning – the

Abduction, which is able to understand the dynamic of social and legal changes. For that, a

bibliographical revision of the Classical Pragmatism within its main exponents – C. S.

Peirce, W. James and J. Dewey – was done and the the possibilities of a Philosophy of Law

and Legal Pragmatic Methodology was discussed. Taking Peirce’s Pragmatism into

consideration, it is reavealead that the acartesian logics leads to ato-ilusion, because its

assumption is an unreal doubt, estabilished by method of authority, without any link with the

sensible elements of the world. Therein resides the advantage of the pragmatic method. Thus

it does not take dogma for granted, instead it considers reality through the evidence and the

error. For Peirce the whole meaning of any idea is to be found in considering what effects

that might conceivably have pratical bearings, we conceive the object of aour conception to

have. Peirce’s Abductive Reasoning infers the known from what is unknown, overcoming

the “falacy of induction”, allowing the advance of new science and knowledge. Unlike

Induction and Deduction, Abduction is a synthetic inference, not valid “a priori”, neither

deductively. Its rational ground is falibilism. The character of falibility is inherent to

Pragmatism, for it does not achieve the definite concept of something, but it constantly

works its permanent enhancement, througt the evolution and dynamic of the Law. The

Classical Pragamatism is a capable method of understanding the changes of social reality

represents a real possibility of enhancing the Law.

Keywords: LEGAL METHODOLOGY – PRAGMATISM PHILOSOPHY – ABDUCTIVE

REASONING

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1. Proposta Pragmatista para uma Metodologia Jurídica

A metodologia jurídica é aqui tomada na perspectiva da aplicação do direito pelo

operador jurídico. Esta é analisada do ponto de vista de suas deficiências e a investigação se

centra na proposta pragmatista como alternativa de aperfeiçoamento, através de modo de

inferência abdutivo – lógica1 das conseqüências, originariamente desenvolvido por Charles

Sanders Peirce.

O pensamento pragmatista tem suas raízes na antiguidade e manifestou-se

posteriormente na modernidade, através do Clube Metafísico de Boston, tendo como figuras

proeminentes C. S. Peirce, W. James, S.J. Green, J. Dewey e O. W. Holmes. Este último foi

jurista e chegou à Corte Suprema dos Estados Unidos, tendo defendido que a vida no direito

não tem sido a lógica, mas a experiência. Para ele mais importante do que o silogismo na

determinação das regras pelos quais os homens devem viver, estão as necessidades vividas

pelo seu tempo, as teorias políticas e morais prevalecentes, confessadas ou inconscientes e

até mesmo os preconceitos que os juízes compartilham com seus contemporâneos2.

Averso aos modelos formais de conceituação do discurso e às teorias abstratas, tendo

como pressuposto uma doutrina anti-essencialista, o pragmatismo torna-se uma nova forma

de raciocínio para tratar de questões jurídico-filosóficas, em substituição ao modo de pensar

cartesiano de base idealista. As deficiências do modelo subsuntivo tradicional, incapaz de

resolver os problemas que a realidade social faz surgir revela a necessidade de se buscar

respostas para interrogações com base em uma teoria crítica3. O Pragmatismo americano do

século XX e suas manifestações recentes representam uma alternativa possível, face à crise

de paradigmas instaurada com a frustração das teorias analítico-formais, bem como suas

repercussões na Teoria Geral do Direito.

A aplicação do referencial pragmático à metodologia jurídica, inicia-se, na expressão

peirceniana, com a dúvida genuína4, em função das exceções e erros que desafiam a

consistência do modelo subsuntivo tradicional. O modo de pensar pragmatista tem como

1 Tenha-se que a expressão lógica adota por Peirce não se limita ao sentido clássico de lógica formal, sendo ao mesmo tempo uma lógica, uma ética e uma estética. 2 MURPHY, John. O Pragmatismo: de Peirce a Davison. Trad. Jorge Costa. Portugal: Asa, 1990. p. 54. 3 Boaventura de Souza Santos aponta o Pragmatismo americano do nosso século como uma das fontes de inspiração para o que o autor chama de Teoria Crítica Moderna. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente : contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001. p.25.

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ponto de partida a inquietação real que o sujeito tem com todos seus preconceitos e trata de

eliminar os falsos problemas criados unicamente na abstração.

Em sentido oposto ao dogmatismo tradicional, o pragmatismo supera o dualismo e

integra o mundo dos fatos e o mundo dos direitos num plano único. “Ligar pensamento à

existência, ligar o pensamento à vida, eis a idéia fundamental do Pragmatismo”5

Com o pensamento pragmatista deixa, então, de haver o salto mortal – o abismo

epistemológico – entre existência e pensamento. Este último encontra sua significação na

conduta que o agente está apto a produzir. Assim, o pensamento só se faz como elemento da

realidade, movendo-se tão somente num plano único, do qual também fazem parte a

existência e a vida.

Os efeitos concebíveis de natureza prática que algo pode envolver compõem seu

significado. O método pragmático, não concebendo uma diferenciação que se opere na

abstração e que não se distinga na realidade, revela a impossibilidade de se pensar em planos

separados – abstrato e real.

Os significados dos conceitos intelectuais no pragmatismo não são definitivos, porém

dinâmicos e abertos, repousando no somatório de todas as conseqüências práticas previsíveis

de algo, cujo número é indefinido. Por esta razão, diante da impossibilidade de se levantar

todos os futuros resultados experimentais, o conceito no pragmatismo é probabilístico. A

falibilidade lhe é imanente, o que possibilita ao pragmatista buscar sempre um

aperfeiçoamento e refinamento do significado6

O método pragmático busca liquidar disputas que, de outro modo, seriam

intermináveis7. Crítico voraz às inconsistências do dogmatismo tradicional e com uma

filosofia voltada ao concreto, aos fatos, o pragmatismo não se filia nem à corrente

racionalista, nem à empirista8, procurando antes reconciliá-las, ou melhor, superá-las. Tome-

se as palavras de James9 :

4 PEIRCE, Charles Sander. Fixation of belief. www.peirce.org. Acesso em 10 de jun de 2005 5 DURKHEIM, Emile. Sociologia, Pragmatismo e Filosofia. Trad. Evaristo Santos. Porto:Rés. p.31 Destaque-se que esta citação das lições de Durkheim se refere à parte na qual o sociólogo descreve o Pragmatismo e não corresponde ao seu posicionamento que é de oposição à filosofia pragmatista. 6 STROH, Guy W. A Filosofia Americana: Uma Introdução.Cultrix, São Paulo, 1968. p. 115. 7 JAMES, William. O que significa pragmatismo. In: Pragmatismo e outros ensaios.Lidador, p.44. 8 Em sua primeira conferência, intitulada ‘ O atual dilema da Filosofia’, James esquematiza o dualismo em duas colunas, enumerando suas dicotomias. Em uma delas tem-se o Espírito Terno (Racionalista, o que segue princípios, Intelectualista, Idealista, Otimista, Religioso, Livre arbitrista, Monista e Dogmático) e em outra coluna tem-se o Espírito Duro (Empírico, o que seguem fatos, Sensacionalista, Materialista, Pessimista, Irreligioso, Fatalista, Pluralista e Cético). JAMES, William. O atual dilema da filosofia. In: Pragmatismo e outros ensaios.Lidador, p.29. 9 JAMES, William. O que significa pragmatismo. In: Pragmatismo e outros ensaios. Lidador, p.57.

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[..], o pragmatismo , devotado aos fatos, não tem essa propensão materialista sob a qual o empirismo ordinário opera. Mas ainda, não faz qualquer objeção ao sistema de abstrações, na medida em que possa percorrer os particulares com sua ajuda, o que realmente, pode ser feito.Interessado não em conclusões, mas naquilo que nossos espíritos e nossas experiências elaboram juntos, [..]

Voltando o olhar para a prática judicial, tem-se que do ponto de vista metodológico

ainda se assenta no método subsuntivo, que remonta ao século XIX10. Esse modelo, na qual

a decisão jurídica resulta senão a partir da lei através de uma subsunção lógica dos fatos, não

resiste a uma análise mais profunda. Não raro são os casos em que as normas jurídicas não

se conformam ao fato por mera subsunção, dada a singularidade de cada evento e a

impossibilidade de o legislador prever a infinidade de ocorrências fáticas que se podem dar

na realidade.

Destaque-se, ainda, que neste modelo as decisões se processam por uma inferência

lógica a partir de norma jurídica e do fato jurídico. Acrescente-se que no método subsuntivo

a norma jurídica, como entidade abstrata, integra o plano do dever ser e o fato, como

entidade concreta do real, o plano do ser. A própria estruturação do modelo subsuntivo

revela uma aporia: Como se pode realizar no plano da abstração uma transposição de duas

realidades ( ser e dever ser) que se consideram apartadas em planos distintos?

Adiante-se que da lei não se pode subsumir nada. Com base no pressuposto

pragmatista desenvolvido por Charles Sander Peirce “nothing new can ever be learned by

analysing definitions”11. Neste sentido, o modelo subsuntivo não permite ao julgador

avançar12 para uma decisão jurídica, pois que se queda no plano da pura abstração.

A referência epistemológica do modelo subsuntivo, é o representacionismo, segundo

o qual o conhecimento é entendido como uma representação da mente do que existe fora

dela, como se a mente fosse um espelho da natureza. Assim, a partir da teoria dos dois

mundos natureza e espírito, ser e consciência, real e ideal, objeto e sujeito, ser e dever-se

estariam separados rigorosamente. Pontue-se que essa oposição binária da metafísica

10 KAUFMANN. E W. Hassemer. Introdução à Filosofia do direito e à teoria do Direito Contemporâneas. Trad. Marcos Keel. Fundação Caloute Gulbekian: Lisboa, 2002.p.184. 11 “nada de novo pode ser aprendido apenas se analisando definições”. PEIRCE, Charles Sanders. How to make our ideas clear. In: Charles S. Peirce: Selected Writings. Org. Phiplip Wiener.New York: Dover Publications, 1980. p.113 12 Diversamente o método pragmático possibilita se avançar no conhecimento, pois que suplantando o dualismo metódico, a significação de algo pelas suas conseqüências práticas verificáveis. No pragmatismo há a idéia de avanço, de continuidade

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ocidental, estabelecidas pela tradição européia clássica, notadamente através de Platão,

Descartes e Kant é refutada pelo pragmatismo13.

É de notar que as teorias do direito que se desenvolveram no período moderno,

mantiveram a distinção entre o ser e dever ser, ora privilegiando um ou outro. Assim, as que

procederam dedutivamente, como o positivismo lógico-normativo, a jurisprudência de

conceitos e a teoria pura do direito acentuaram o dever ser do direito, olvidando-se, todavia

dos fatos jurídicos – momento de ser do direito. As que de outro modo procederam

indutivamente, como a teoria jurídica de Rudolf von Jhering, o positivismo jurídico

empírico, a jurisprudência dos interesses, o movimento do direito livre e a sociologia

jurídica empírica, voltaram-se à realidade, sem, no entanto lograr justificar como a partir do

ser se poderia alcançar o dever ser.14

Arthur Kaufmann, em contraponto a esses dois paradigmas, revelando que não se

pode atingir o direito por mera dedução ou indução, desenvolve uma metodologia jurídica a

partir da analogia15. O modelo subsuntivo tradicional seria deficiente, pois que norma e

situação de fato nunca seriam idênticos, mas apenas semelhantes. A analogia, para o autor,

subjaz todo processo de aplicação da norma, na qual são comparadas duas realidades. Dessa

forma, é uma metodologia aberta às situações concretas que se oferecem à observação.

A aproximação entre ser e dever ser se daria numa relação de correspondência, de

referência recíproca. Apesar do salto que a tese de Kaufmann representou para a

metodologia jurídica, com raciocínio por analogia, ela comporta algumas dificuldades em

razão da própria natureza do raciocínio por semelhança. Esclareça-se que na analogia, aquilo

que está para ser reconhecido não é reconhecido no seu ser, em si, mas numa relação

mantida com outro mais conhecido. E no caso de este outro ser desconhecido, como o

operador jurídico vai proceder, tendo em vista que a relação de semelhança não se

estabelece?

É exatamente o raciocínio abdutivo ou retrodução16 que fundamenta o método

pragmático de Peirce que responde a essa indagação. A abdução como uma forma ousada de

descobrir hipóteses e explicar novos fatos (lógica da investigação ou lógica das

13 RORTY, Richard.Esperanza o conocimiento? Una introducción al pragmatismo. Fondo de Cultura Económica: Mexico, 2001.p.9 14 KAUFMANN. E W. Hassemer.(n.10).p.182. 15 KAUFMANN. E W. Hassemer.(n.10).p.187. 16 PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1990.p.6.

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conseqüências), consubstanciaria uma nova metodologia jurídica concebida sob uma

perspectiva pragmatista.

2. A contribuição pragmatista no contexto de descoberta - Metodêutica, o método para descobrir métodos.

Importa substancialmente situar o âmbito de abordagem da contribuição da postura

pragmatista no que pertine ao processo de decisão judicial. Trazendo para o Direito a

distinção que Hans Reichenbach e Karl Popper fizeram na filosofia da ciência entre o

contexto de descoberta e o contexto de justificação17, tem-se que no primeiro se está a

discutir a razão explicativa porque o juiz tomou a decisão, seja, por exemplo, por um motivo

religioso, econômico, psicológico, social, jurídico, dentre outros; enquanto que no segundo

contexto está a razão justificadora, na qual se observa a adequação racional, correição da

argumentação, coerência, interpretação da lei.

Os estudos desenvolvidos em Teoria do Direito sempre deram demasiada atenção ao

contexto de justificação, subestimando o contexto de descoberta, sob o argumento de este

cair em psicologismos18. Não atribuindo importância à imaginação e ao descobrimento,

esses teóricos se voltaram à lógica e à racionalidade dos argumentos.

A postura pragmatista proposta para o processo de decisão judicial, neste trabalho,

encontra-se inserida no contexto da descoberta. A forma de pensar pragmatista não se presta

a servir de baliza para aferir a racionalidade argumentativa da decisão jurídica, pois a

própria essência do raciocínio abdutivo, evidencia uma análise que se opera no âmbito da

descoberta.

Expressão da máxima pragmatista de Peirce, a abdução representa uma forma de

raciocínio ousado, na qual se lança uma hipótese provisória criativa, com vistas as suas

conseqüências, em resposta aos estímulos dados da experiência, que geraram um estado de

perturbação, de dúvida.

Essa lógica da descoberta está impressa no método pragmático de clarificação

conceitual desenvolvido por C. S. Pierce , o qual objetiva superar obscuridades decorrentes

de distinções imaginárias que não se diferenciam no modo de expressão na realidade,

17 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica.São Paulo: Landy Editora, 2003. p.22. 18 ABIMBOLA, Kola. Abductive reasoning in law: taxonomy and inference to tehe beste explanation. Cardozo Law Review. v. 22 p. 1682-1689.

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tomando a significação de algo pelo somatório de todas as possíveis conseqüências práticas

concebíveis.19

Esclareça-se que a concepção pragmatista de algo, sendo uma concepção de todos os

efeitos práticos concebíveis, faz com que a concepção tenha um alcance muito além da

prática e as hipóteses sejam sempre falibilistas, pois nenhuma hipótese vai abarcar a

completude da realidade. Permite qualquer vôo de imaginação, contanto que essa

imaginação se depare com um efeito prático possível e muitas hipóteses que pareceriam a

primeira vista excluídas da máxima pragmática não o são.

Dessa sorte, a postura pragmatista está a colaborar para o Direito especialmente no

que pertine aos chamados hard cases, pois nesses o método pragmatista e a abdução se

oportunizam em razão da dúvida genuína no sentido dado por Peirce. Nessas situações, a

disposição e agir pragmatista permite evidenciar as premissas que motivam a decisão e que

na maioria das vezes ficam inarticuladas na sua fundamentação.

O fato de a abordagem pragmatista só poder falar acerca do contexto de descoberta,

não significa que o contexto de justificação deva ser desprezado, mas que o da descoberta

seja substancialmente considerado.

Interessa para a compreensão dessa proposta pragmatista para o Direito a revisão de

conceitos próprios do pragmatismo como método, dúvida, crença, hábito, investigação,

inferência, claridade conceitual.

Antes de adentrar na análise desses conceitos, no entanto, tenha-se que a lógica das

conseqüências, como também é conhecido o raciocínio abdutivo, difere substancialmente da

argumentação conseqüencialista do MacCormick, pois este tem sua teoria inserida no

contexto da justificação e essa argumentação conseqüencialista20 está circunscrita aos limites

marcados pelos princípios da universalidade, consistência e coerência.

3. A abdução e o Direito

Distinta da indução e da dedução, a abdução é uma forma sintética de inferência, que

não é validado nem a priori, nem dedutivamente. Sua base racional é o falibilismo. É uma

forma de raciocínio que parte dos efeitos para remontar às causas e procura descobrir a partir

da consideração daquilo que já se conhece, alguma outra coisa que não se conhece. Dessa

19 PEIRCE, Charles Sander. How to make our ideias clear.www.peirce.org . Acesso em 23 do jun de 2005. 20 ATIENZA, Manuel. As razões do direito: Teorias da Argumentação Jurídica.São Paulo: Landy Editora, 2003, p. 133.

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sorte, a abdução insiste sobre as conseqüências experimentais e se constitui eminentemente

uma lógica da descoberta21.

No Direito, Kauffman, que desenvolveu uma metodologia jurídica a partir da

analogia, embora não tenha teorizado acerca da abdução, ressalta a importância do grande

passo que pode ser dado na filosofia e teoria do direito com a aplicação do raciocínio

abdutivo22, também denominado pelos teóricos do pragmatismo com a lógica das

conseqüências.

O próprio Kauffman aponta que “ futuramente, terá, a metodologia jurídica, que se

prestar maior atenção à abdução do que até agora aconteceu. Não se esperem dela, todavia,

conclusões irrefutáveis, pois ela não as pode oferecer.”23

Juristas pragmatistas apresentaram teorias interessantes do ponto de vista filosófico

que tem expressão na famosa frase de Oliver W. Holmes de que “a vida do direito não tem

sido lógica, tem sido experiência”, falhando, no entanto, como aponta Benjamin N. Cardozo

em razão da ausência de um método claro, sem o qual a proposta pragmatista seria apenas

uma promessa que estaria ainda por amadurecer24.

Holmes apontou que a decisão judicial não se tratava de um processo inferencial do

tipo silogismo dedutivo, pois os juízes procedem de forma a deixar, conscientemente ou não,

inarticulados o verdadeiro terreno, no qual se funda o seu julgamento25. Premissas que

efetivamente motivam a decisão, sejam de ordem psicológica, social, jurídica, econômica,

dentre outras, não aparecem explícitas na fundamentação. Como adiantou Roscoe Pound, o

papel do o silogismo dedutivo faz é papel de justificador a posteriori, depois que a decisão

foi tomada.

21 PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1990.p.203. 22 KAUFMANN. E W. Hassemer. Introdução à Filosofia do direito e à teoria do Direito Contemporâneas. Trad. Marcos Keel. Fundação Caloute Gulbekian: Lisboa, 2002.p.129. 23 KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Trad. Antonio Ulisses Cortes. Fundação Caloute Gulbekian: Lisboa, 2004, p. 118. 24 CARDOZO, Benjamin N. A Natureza do Processo e a Evolução do Direito. Porto Alegre: Ajuris, 1978. p. 46. 25 HOLMES, Oliver. The Path of Law. In: The Holmes Reader. Julius Marke. Ocena Publications: New York, 1955. p.59-85

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A abdução ou apagoge, que constitui a base lógica na qual se alicerçou o

pragmatismo de Peirce, é apresentada como alternativa para o suprir o problema da falta de

método a fim de fundamentar a proposta pragmatista de como pensar e aplicar o direito, que

é devotada para as conseqüências da decisão jurídica.

Importa compreender como se opera exatamente essa inferência abdutiva para se ter

clara sua contribuição para o Direito.

4. A inferência abdutiva

Para ilustrar observe os três tipos de raciocínios: o dedutivo, que infere do geral para

o particular, o indutivo que infere do particular à regra e a abdução que infere dos efeitos à

causa:

Dedução

Regra – Todos os grãos de feijão no saco são brancos

Caso – Estes grãos de feijão foram retirados deste saco

Resultado – Logo, estes grãos de feijão são brancos

Indução

Caso – Estes grãos de feijão foram retirados deste saco

Resultado – Estes grãos de feijão são brancos

Regra – Logo, Todos os grãos de feijão no saco são brancos

Abdução

Regra – Todos os grãos de feijão no saco são brancos

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Resultado – Estes grãos de feijão são brancos ( indício, não é conclusão)

Caso – Estes grãos de feijão foram retirados deste saco (hipótese)

Tenha-se que a inferência na abdução não é justificada pela mediação de um termo

médio, mas pela heurística da descoberta de hipóteses que é o princípio que habilita esta

forma de raciocinar. É uma inferência sui generis. A abdução é, assim, uma inferência

provável, e, portanto falibilista, não necessária e está relacionada com uma adivinhação, a

formulação de uma hipótese a partir de um insight. Este, no entanto, não se confunde com a

concepção descartiana de uma iluminação interior ou intuição para alcança a verdade. O

insight a que a abdução se refere é o de cunho pragmático, pois o estímulo para a adivinhar,

criar hipótese, advém da provocação que a experiência ocasiona, ou seja, dos seus efeitos26.

E isso já era anunciado por Aristóteles nos Primeiros Analíticos como se verá.

Assim, no silogismo abdutivo a inferência se dá da regra e do resultado para o caso.

No exemplo dado acima, tem-se a situação na qual alguém entra numa casa e se depara com

alguns grãos de feijão brancos sobre a mesa (resultado – fato particular ou indício) e sabe

que o saco desta casa contém grão de feijão branco (Regra), razão pelo qual pode inferir,

supor que aqueles grãos de feijão sobre a mesa são provenientes do saco (Caso)27. Perceba-

se que a abdução é a forma de raciocínio arrojado de que se valem normalmente os detetives

para formular um conjectura.

Observe-se que a premissa menor do silogismo dedutivo aparece como solução

hipotética do silogismo abdutivo. A hipótese é uma inferência de uma premissa menor do

26 PEIRCE, C.S. Três tipos de raciocínio. In: Semiótica. Perspectiva: São Paulo, 2003, p. 221. 27 FEIBLEMAN, James K. An Introduction to the Philosophy of Charles S. Peirce. M.I.T: Cambridge, 1946, p. 117.

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silogismo, a partir de outras duas proposições. E a indução é uma inferência de uma

premissa maior de um silogismo a partir de sua premissa menor e conclusão.

5. O retorno à apagoge em Aristóteles

Interessa saber que C. S. Peirce fez um resgate dos escritos de Aristóteles e

investigou as formas de silogismo quanto ao seu aspecto inferencial, ou seja, em atenção às

diferentes espécies de raciocínio. Nesse sentido Peirce encontra em Aristóteles três tipos

fundamentais de silogismo ou modos fundamentais de inferência: a Dedução (synagoge), a

Indução (epagoge) e a Abdução (apagoge)28.

Peirce retorna à Aristóteles para redescobrir o raciocínio abdutivo e em especial o

seu potencial como processo inferencial criativo, de grande contribuição para as ciências e as

artes, e que por muito tempo passou despercebido e foi subutilizado.

Esses três tipos de raciocínio foram dados por Aristóteles nos Primeiros Analíticos.

Todavia, a ilegibilidade de uma única palavra neste manuscrito e a sua substituição por uma

palavra errada, realizada pelo seu primeiro editor – Apellicon, é apontada por Peirce como

fator que acabou por alterar por completo o sentido do capítulo sobre Abdução29. A

expressão do grego correspondente é apapoge e se encontra tematizada no Livro II, Capítulo

25 dos Primeiros Analíticos, 69a , 20-35.

Além dos Primeiros Analíticos, 69a, há referência à apagoge nos Tópicos 159b e

160a. Todavia, é fundamentalmente nos Primeiros Analíticos onde a lógica dessa forma de

inferência é anunciada. O título do capítulo 25, Livro II, desta obra, referente à abdução –

apagoge, encontra-se traduzido como redução.

Neste capítulo a questão que se percebe como posta por Aristóteles é a seguinte: se a

Virtude (areté) pode ser ensinada (didaction). Os três termos do silogismo possível são a

Ciência (epistemé), o que pode ser ensinado(didaction) e a Virtude (arete).

28 PEIRCE, C.S. Espécies de Raciocínio. In: Semiótica. Perspectiva: São Paulo, 2003, p.5. 29 PEIRCE, C.S. Os Três Tipos do Bem. In: Semiótica. Perspectiva: São Paulo, 2003, p. 207.

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Page 14: ECOLOGIA POLTICA

Aristóteles tem que a “Ciência poder ser ensinada” é evidente, mas se a “Virtude é

uma Ciência” não está claro. Assim, se “Virtude ser uma Ciência” é tão ou mais

convincente, no sentido de ser não menos provável ou mais provável que a “Virtude poder

ser ensinada”, tem-se a redução. Dessa sorte, avança-se no conhecimento, pois um termo

adicional é inserido como hipótese. 30

Assim, em vez de se perguntar se a “Virtude pode ser ensinada”, se questiona se a

“Virtude é uma Ciência”.

Esse silogismo seria arranjado da seguinte forma:

Regra: “Ciência poder ser ensinada”

Resultado: “Virtude poder ser ensinada” ( Fato, Indício)

Caso: “Virtude ser uma Ciência” (Hipótese)

A inferência da proposição do tipo a “virtude ser uma Ciência”, denota um

silogismo que raciocina pelos efeitos, lançando hipóteses para se chegar à causa. Esse

raciocínio torna o efeito explícito na conclusão, pois reduzindo ao absurdo teríamos que se a

Virtude pode ser ensinada é porque a Virtude é um Ciência. A conseqüência de a Virtude ser

uma Ciência é tomada como hipótese.

É de notar que o arranjo da inferência apagoge de Aristóteles identifica-se com a

abdução peirceniana. Efetivamente, aqui, não se infere do geral para o particular, nem do

particular para o geral, não se tratando nem de um silogismo dedutivo, nem de um indutivo.

Procura-se conhecer o desconhecido por aquilo que já se conhece, inferindo-se a hipótese.

Na apagoge a aceitação da premissa menor e do silogismo é provisória de modo que

se afasta do raciocínio puramente dedutivo.

30 ARISTÓTELES. Primeiros Analíticos, II, 25, 69a, 20-35.

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Page 15: ECOLOGIA POLTICA

6. O argumento jurídico apagógico

Embora o Direito não tenha teorizado a apagoge ou abdução como modo de

inferência, alternativo ao dedutivista, na forma tratada por Peirce, esta forma de raciocínio

aparece na doutrina jurídica como topoi, tipo de argumento jurídico31 ou mesmo como lógica

retórica, no sentido de um procedimento quase-lógico, que se opõe a concepção de lógica

formal 32.

O argumento jurídico apagógico é enunciado na doutrina como redução ao absurdo.

Isso se deve, em parte, pela tradução do termo grego apagoge como sendo redução. A idéia

central na apagoge não é a redução, mas a peculiaridade de ser uma forma inferencial de

criação de hipóteses que parte dos efeitos para as causas, ou seja, é uma lógica voltada à

conseqüência.

Não obstante tenha a expressão redução prevalecido, a argumentação jurídica

apagógica ainda revela uma raiz de conexão com apagoge original de Aristótles – a atenção

aos efeitos. Esse argumento jurídico é entendido como sendo aquele na qual se supõe que o

legislador é sensato e que jamais poderia ter admitido uma interpretação das leis que

conduzisse a conseqüências iníquas. Perelman destaca que este argumento está no centro de

todos os raciocínios que se preocupam com as conseqüências de uma decisão jurídica, como

o fato de ser injusta ou justa, afastando-se da concepção puramente positivista do Direito.

31 PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: Nova Retórica. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 79. 32 FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo: Atlas, 1994, p.335.

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Acrescenta, ademais, que esse modo de raciocinar ficou mais difundido depois da Segunda

Guerra Mundial33.

Os juízes de primeiro grau estariam, ainda segundo ele, mais sensíveis a esse tipo de

argumento, pois atuam mais pragmaticamente, buscando soluções conforme o que lhe parece

justo e aceitável, enquanto que as Cortes de Cassação são mais sensíveis à coerência do

sistema.

Interessa pontuar que a reminiscência da apagoge no Direito que se circunscreve ora

a argumentos do tipo consequencialistas ora de redução ao absurdo se construíram

especificamente no contexto da justificação, perdendo a característica fundamental da

inferência abdutiva resgatada por Peirce, que é a criação e só pode se desenvolver

plenamente no âmbito do contexto da descoberta, onde se oportuniza vôos de imaginação,

como tratamos no segundo tópico.

7. O Método de clarificação conceitual de Peirce

A possibilidade de se superar a obscuridade das idéias em torno de um determinado

conceito é apresentada pelo método de clarificação conceitual pragmatista. Na obra Como

tornas nossas idéias claras34, Peirce enuncia a máxima pragmatista: “ [...] whole meanig of

any idea is to be found in considering what effects that might conceivably have pratical

bearings, we conceive the object of aour conception to have” 35

Peirce critica as teorias de significação existentes, propondo um método na qual

seriam consideradas as conseqüências práticas para compor a concepção que se tem de

determinado objeto. Esta é a máxima do pragmatismo.

Em Algumas conseqüências de quatro incapacidades (1868)36, Peirce critica o

espírito cartesiano, que segundo ele, influenciou a maior parte dos filósofos modernos. A

máxima cartesiana, esclarece o autor, parte de uma dúvida completa, na qual todos os

33 PERELMAN, Chaim. Lógica Jurídica: Nova Retórica. Martins Fontes: São Paulo, 2000, p. 80. 34 PEIRCE, Charles S. How to make our ideas clear. In: Selected Writings. New York, Dover Publications.p.113. 35 “Considerer quels sont lês effets pratiques que nous pensons pouvouir être produits par l´objet de notre conception,.La conception de tous ces effets est la conception de l´óbjet”- Comment rendre nos idées claires - “Considerar quais são os efeitos práticos que nós pensamos poderem ser produzidos pelo objeto de nossa concepção. A concepção de todos esses efeitos é a concepção do objeto”.- Como tornas nossas idéias claras.

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Page 17: ECOLOGIA POLTICA

preconceitos são abandonados. Ocorre, no entanto, que este ceticismo inicial não passa de

uma ilusão da abstração a conduzir a um rodeio inútil, pois o método cartesiano não

descansa enquanto não recuperar as crenças postas de lado formalmente.

O pragmatismo, diversamente, começa com a dúvida real, não a dúvida abstrata

cartesiana. Isso significa que o ponto de partida leva em consideração todos os preconceitos

que se possui no momento. Destaque-se a famosa frase pragmatista37: “Não vamos agora

duvidar em filosofia daquilo que não duvidamos em nossos corações”

A tese cartesiana na qual uma idéia clara é aquela que se reconhece onde quer se

encontre, sem que se confunda com qualquer outra, não permite distinguir de maneira

objetiva as idéias que são claramente apreendidas, daquelas que aparentemente são.

Isso porque se toma como base a doutrina do uso familiar da idéia ou da distinção

abstrata, que não são adequadas nem suficientes para determinar claramente a significação

de algo (Descartes – método a priori de auto-evidência e Leibniz – método da definição

abstrata).

A familiaridade leva à subjetividade e a distinção abstrata conduz a uma

objetividade abstrata que não se sabe se é realmente a objetividade efetiva. A doutrina da

claridade e da distintividade de Descartes não atentou para o fato de que o pensamento

sozinho não origina pensamento, nem nada de novo pode ser apreendido unicamente

analisando definições.

O Pragmatismo de Peirce formula, em oposição, um método em busca de uma maior

perfeição da claridade do pensamento, num grau mais elevado que a lógica anteriormente

proposta.

As idéias obscuras conduzem a um dispêndio de energia sem sentido Importante,

assim, o método pragmático para uma direção clara das ações no mundo.

Ao desenvolver sua tese, Peirce utiliza terminologias próprias definindo o que são

crença e dúvida. Segundo o autor a indecisão, concebida como a dúvida genuína, excita a

ação do pensamento que decide o modo de atuar. Quando a irritação da dúvida cessa a

crença é criada, o que significa, em outros termos, o estabelecimento de um hábito. Note-se,

no entanto, que a crença é tanto o ponto de partida como o de chegada para o pensamento,

pois constituindo uma regra de ação influirá num futuro pensar e estimulará novas dúvidas.

36 PEIRCE, C. Sander. Algumas conseqüências de quatro incapacidades.In: Escritos Coligidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.71. 37 PEIRCE, C. Sander. Algumas conseqüências de quatro incapacidades.In: Escritos Coligidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.71.

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Page 18: ECOLOGIA POLTICA

Portanto, a função do pensamento é a criação da crença e tudo o que não se refira à

crença não faz parte do pensamento em si mesmo. O pensamento que está fora da crença é

simples acréscimo e não pensamento propriamente.

Em resumo, toda a função do pensamento é produzir hábito de ação. Assim, para

desenvolver um significado é preciso determinar quais os hábitos que ele produz. Sabendo

que a ação sempre produz um resultado sensível, a base da distinção real do pensamento são

as possibilidades de diferenças práticas.

Essas possibilidades é que revelam o carácter de probabilidade e falibilidade que a

significação apresenta e permitem a busca constante por um maior aperfeiçoamento e

claridade das idéias.

8. A dúvida e a fixação da crença no pragmatismo – a superação do método a priori

Retomando o que foi dito anteriormente, o emprego do método pragmático

possibilita revelar as falsas distinções imaginárias que não se diferenciam na sua forma de

expressão. A distintividade das idéias está sentada nos diferentes modos de ação que têm

lugar na prática.

Tratando da lógica do pensamento e os elementos determinantes dos processos de

inferência, Peirce mostra que o hábito da mente é o que condiciona se uma ou outra

inferência será extraída.

Assim, estar-se a falar em inferências válidas e inválidas e não em inferências

verdadeiras ou falsas, tendo em vista que as inferências decorrem de um hábito da mente que

em geral produz conclusões verdadeiras ou não, sem referência necessária à verdade ou

falsidade de sua conclusão. Nesse sentido, a validade é puramente uma questão de fato e não

de raciocínio.38

O impulso que o homem tem para aceitar ou acreditar naquela ou em outra premissa

aparece no hábito da mente. E cada hábito específico que determina uma ou outra inferência

constitui o princípio condutor de inferência, que é um fato.

Os fatos que servem de princípios condutores podem ser identificados na classe dos

absolutamente essenciais ou na dos que possuem outro interesse distinto como objetos de

pesquisa, ou seja, no segundo grupo estão todos os fatos excluídos da primeira classe.

38 PEIRCE, C.S. The Fixation of Believe.www.peirce.org. Acesso em 10 de jun de 2005

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Page 19: ECOLOGIA POLTICA

Os princípios condutores insertos na primeira divisão são aqueles fatos tomados

como certos ao se questionar se de certas premissas se segue determinada conclusão.

Acredita-se, por exemplo, que regras de raciocínios deduzidas da própria idéia de processo

são essenciais.

Peirce identifica, no entanto, existirem fatos que já são supostos mesmo antes de ser

colocada a questão lógica, tendo em vista possuir o ser humano os estados de espírito da

dúvida e da crença. Exsurge, assim, a importância da reflexão lógica como capaz de trazer

novos elementos e descobrir novas coisas a partir do que já se conhece.

Frise-se, novamente, a distinção entre a dúvida e a crença. O hábito que determina as

ações do homem constitui a crença, não significando, no entanto, um agir imediato, mas um

direcionamento do comportamento de acordo com a ocorrência da ocasião. É um estado

calmo e satisfatório que não se procura alterar.

A dúvida, por sua vez, é o estado de irritação que impulsiona a um agir a fim de

destruí-la, de sorte a alcançar um estado de crença.

Essas concepções são eminentemente pragmáticas, pois a crença guia o desejo do

homem e molda suas ações, ao passo que a dúvida genuína é despida de tal efeito. A

transição, também, é possível da crença para a dúvida.

A discussão acerca da dúvida é a inquirição como a luta causada por este estado de

irritação direcionado à busca da crença. A partir da inquirição é que se logra o

estabelecimento da opinião.

Essa opinião alcançada conformará um estado de crença que restará firme até

enquanto o homem encontrar-se suficientemente satisfeito com ela, independente de ser

verdadeira ou falsa. É necessário um novo elemento a afetar a mente de sorte que o homem

venha realmente se incomodar com esse novo objeto do conhecimento.

Com o pragmatismo, portanto, devem ser extirpadas as proposições que não

encerram uma inquirição cujo fim é o estabelecimento da opinião, pois não partem de uma

dúvida real. Assim é o caso dos filósofos que colocam uma inquirição questionando tudo, ou

aponto uma interrogação na proposição. Isso não instiga a mente para a busca da crença. O

mesmo quando se duvida de premissas que não podem ser mais satisfatórias do que já são,

ou quando se discute um assunto do qual todo mundo está convencido e donde a dúvida

cessou.

Tenha-se que o pragmatismo apresenta-se como o método adequado capaz de

satisfazer a dúvidas dos homens, de sorte a estabelecer a opinião real, coincidente com os

fatos.

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Page 20: ECOLOGIA POLTICA

Interessa, aqui, trazer à discussão as quatro possibilidades de fixação da crença,

apresentadas por Pierce: o método de tenacidade, o de autoridade, a priori e o científico39. A

insuficiência dos três primeiros métodos são apontadas pelo filósofo.

No método da tenacidade o sujeito não aceita nada que venha a perturbar sua crença.

É o método de simples acreditar. Dessa sorte, não há possibilidade de trânsito de crença para

dúvida e vice-versa. Em determinadas situações esse método é satisfatório, pois a calma e a

fé compensam o estado de perturbação a que o homem se submeteria. Em relação, no

entanto, ao impulso social, esse método não se sustenta, pois o homem não vive isolado e

está sempre a ser influenciado pelos outros.

Na autoridade, há uma imposição arbitrária da crença, tornando-se os sujeitos

pensantes em escravos intelectuais.

O método apriorístico, por sua vez, ao fazer com que o indivíduo adote idéias que

acredite como resultado da razão, pode levar a resultados enganosos, dissociados dos fatos e

a transformar a inquirição num processo parecido ao desenvolvimento do gosto,

direcionando-se o agir de acordo com o que se acredita que traz mais prazer.

Em oposição, o método científico, que é o pragmático, apresenta-se como o único

capaz de estabelecer uma significação em concordância com a realidade dos fatos. Através

do raciocínio abdutivo, este método possibilitaria a solução dos problemas, que surgem com

a dúvida genuína, ao transpô-los para um estado de crença.

Esclareça-se que esse conceito de método científico deve ser entendido num contexto maior pragmatista e se presta tanto à Ciência quanto à Arte, sendo tomado associado a perspectiva criativa imprimida pelo raciocínio abdutivo.

9. Postura Pragmatistas no Direito.

Uma vez esclarecidos os pressupostos pragmatistas, tem-se que a atitude

pragmatista se presta aos hard cases, pois é nesses onde método pragmatista e a abdução se

oportunizam em função de uma dúvida genuína, na expressão peirceneana . Nessas

situações, a disposição e o agir pragmatistas permitem evidenciar as premissas que motivam

a decisão e que na maioria das vezes ficam inarticuladas na sua fundamentação.

Dewey em ‘Minha Filosofia do Direito’ iniciou este trabalho. Para o autor a lei –

norma jurídica – não poderia ser concebida como uma entidade separada, somente podendo

39 PEIRCE, C.S. The Fixation of Believe.www.peirce.org. Acesso em 10 de jun de 2005

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Page 21: ECOLOGIA POLTICA

ser discutida em termos das condições sociais em que surge e do que concretamente se faz.

Atente-se para às palavras do filósofo 40:

[...] Um dado ajuste legal é aquilo que se faz, e aquilo que faz reside

no campo de modificar e/ou manter as atividades humanas enquanto

interesses em andamento. Sem aplicação, há pedaços de papel ou

vozes no ar, mas nada que possa ser chamado de lei.

Os fenômenos e fatos sociais não são concebidos como algo acabado, mas como

processo, coisas em andamento. O padrão, ou seja, a tipicidade não está encerrada em

molduras teóricas terminadas, considerando que o exame das conseqüências na realidade

constitui a base para a manutenção ou modificação deste padrão.

Holmes critica com propriedade as deficiências da teoria tradicional que tende “a

colocar a carroça diante do cavalo e a considerar o direito ou o dever como algo que existe à

parte e independente das conseqüências de sua violação, à qual certas sanções são

acrescentadas mais tarde.”41

O que se costumou chamar de aplicação da lei não é algo que ocorre após uma regra

ou lei, mas é uma parte necessária deles42. Vê-se, assim, que para os pragmatistas norma

jurídica e fato jurídico integram uma mesma realidade, na medida em que se fazem

acontecer e não se diferenciam na prática.

A postura pragmatista de atentar para as conseqüências da decisão jurídica,

possibilita tornar claro premissas que não aparecem num contexto de justificação e assim

através de um raciocínio abdutivo trazer à evidência pelas conseqüências da decisão as

premissas de motivação que se quedam ocultas.

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