ECOLOGIA DE SABERES - bibliotecatede.uninove.br · Trata-se de uma pesquisa de abordagem...

225
1 ECOLOGIA DE SABERES: Um estudo do diálogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Açaí. EDIELSO MANOEL MENDES DE ALMEIDA SÃO PAULO 2016

Transcript of ECOLOGIA DE SABERES - bibliotecatede.uninove.br · Trata-se de uma pesquisa de abordagem...

  • 1

    ECOLOGIA DE SABERES:

    Um estudo do dilogo entre o conhecimento escolar e o

    saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa.

    EDIELSO MANOEL MENDES DE ALMEIDA

    SO PAULO

    2016

  • 2

    Almeida, Edielso Manoel Mendes de.

    Um estudo do dilogo entre o conhecimento escolar e o saber

    popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa./ Edielso Manoel Mendes de

    Almeida. 2016.

    227 f.

    Tese (doutorado) Universidade Nove de Julho - UNINOVE, So

    Paulo, 2016.

    Orientador (a): Prof. Dr. Ana Maria Haddad Baptista.

    1. Ecologia de saberes. 2. Diversidade epistemolgica. 3. Saber popular. 4. Amaznia.

    I. Baptista, Ana Maria Haddad. II. Titulo CDU 37

  • 3

    ECOLOGIA DE SABERES:

    Um estudo do dilogo entre o conhecimento escolar e o

    saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa.

    ___________________________________________________________________

    Orientadora: Prof. Dra. Ana Maria Haddad Baptista (UNINOVE)

    ________________________________________________________________

    Examinador I: Prof. Dra. Diana Navas (PUC/SP)

    ________________________________________________________________

    Examinador II: Prof. Dra. Mnica Rebecca Ferrari Nunes (ESPM)

    ________________________________________________________________

    Examinador III: Prof. Dr. Maurcio Silva(UNINOVE)

    ________________________________________________________________

    Examinador IV: Prof. Dr. Manuel Tavares Gomes (UNINOVE)

    ________________________________________________________________

    Suplente: Prof. Dra. Carminda Mendes Andr (UNESP)

    ________________________________________________________________

    Suplente: Prof. Dr. Jos Eduardo de Oliveira Santos (UNINOVE)

    Aprovadoem ______/______/______

    Tese apresentada Universidade Nove de Julho,

    junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em

    Educao, para obteno do ttulo de Doutor em

    Educao pela banca examinadora formada por,

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    A todos os meus professores do Programa de Ps-graduao em Educao

    da Universidade Nove de Julho (UNINOVE) que socializaram seus conhecimentos e

    experincias.

    A professora Ana Maria Haddad Baptista, por acreditar em mim, aceitando-

    me como orientando, e pelo apoio moral nos momentos difceis que vivenciei em So

    Paulo.

    A diretora da Escola Plo e aos professores e professoras da Ilha do Aa pela

    recepo, companheirismo e acolhimento no perodo da pesquisa de campo.

    A todos os ribeirinhos e ribeirinhas que vivem/convivem na Ilha do Aa.

    Aos membros da banca de qualificao professores Diana Navas e Manuel

    Tavares Gomes, pela leitura criteriosa do trabalho o que contribuiu significativamente

    no processo de construo e concluso da tese.

    Aos professoresMauricio Silva e Mnica Rebecca Ferrari Nunes que se

    disponibilizaram em compor a banca de defesacom os demais professores.

    A minha famlia, em especial a querida mezinha,Maria Jos Mendes de

    Almeida que sempre acreditou na capacidade de seus filhos eIn memoriam ao meu

    pai,Mercdio Gomes de Almeida pelos ensinamentos que me proporcionou durante

    sua existncia neste mundo.

    A Edmar Souza das Neves, grande amigo, companheiro de viagem e de

    caminhada neste doutorado que sempre me incentivou a voar mais alto.

    E a todos que contriburam com a realizao deste trabalho, mas que no

    foram citadossintam-se contemplados, pois esta conquista um pouco de cada um

    de ns.

  • 5

    RESUMO

    Estapesquisa apresenta como temtica a Ecologia de Saberes: um estudo do

    dilogo entre o conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa,

    na qual investigamos como ocorre o dilogo, na prtica pedaggica dos professores

    que atuam em classes multisseriadas, entre o conhecimento escolar e o saber popular

    das comunidades ribeirinhas da referida ilha. Numa perspectiva mais ampla, a

    pesquisa objetiva analisar o modo como o saber escolar dialoga com os outros

    saberes de carter popular decorrentes da diversidade cultural e, por isso,

    epistemolgica.De forma mais especfica, a pesquisa objetivarealizar um estudo, a

    partir das memrias dos moradores da ilha do Aa, em relao aos saberes presentes

    no discurso e nas prticas cotidianas dos ribeirinhos; bem como, identificar, na prtica

    pedaggica do professor, a presena do saber popular dos ribeirinhos e as formas

    como dialogam com o saber escolar e; averiguar como as populaes ribeirinhas

    foram se constituindona Amaznia brasileira e a relao entre o saber popular,

    produzido por essa populao, com os aspectos culturais, sociais e econmicos do

    municpio de Afu. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo estudo

    etnogrfico, realizado em cinco comunidades ribeirinhas que compem a ilha do Aa

    no municpio de Afu, no Estado do Par; tendo como base para fundamentao

    terica: a Ecologia de Saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o dilogo

    na concepo de Paulo Freire. Os resultados indicam que o saber popular dos

    ribeirinhos est relacionado com o contexto social, econmico, cultural e religioso no

    qual esto imersos;esses povos estabelecem, entre si e com os outros, relaes de

    trocas materiais e simblicas. No tocante ao dilogo na prtica pedaggica dos

    professores, esteocorre de forma vertical (colonizadora) e horizontal

    (descolonizadora), com a predominncia das prticas colonizadoras nas quais o

    dilogo ocorre verticalmente, por meio da imposio do saber escolar e o no

    reconhecimento do saber popular.

    Palavras-chave: Ecologia de Saberes. Diversidade Epistemolgica. Saber Popular.

    Amaznia.

  • 6

    ABSTRACT

    This research brings as a theme Ecologys Knowledge: a study about the dialog

    between school and popular knowledge by people that live in Aai Island (called in

    Portuguese Ribeirinhos), it was done a survey to investigate how is the teachers

    pedagogic practice, considering teachers that work with different levels in the same

    class and how is the dialog between school and popular knowledge in Ribeirinhos

    community in Aai Island. In a holistic view the research aims to analyze how the

    school knowledge dialog with others popular knowledge considering cultural diversity

    and epistemological. In specific way this study tries to understand the Aai residents

    memories about knowledge presents in daily Ribeirinhos discuss and practice. As

    well as aims to identify the popular presence and the way that occur the knowledge

    dialog in teachers pedagogic practice and to inquire how Ribeirinhos people were

    compounded in Brazilian Amazon and the relation between popular knowledge that

    these people produced with cultural, social and economic aspects in Afu district. It is

    a qualitative search with ethnographic study produced in five (05) Ribeirinhas

    Community that are in Aai Island in Afu district in Par state. As theory base this

    search used the Ecologys knowledge suggestion by Boaventura de Souza Santos and

    the dialog Paulo Freires concept . The results present that popular knowledge is linked

    with social, economical, cultural and religion contexts where they are. These people

    establish themselves a kind of material and symbolic transposition relation. About

    dialogs teachers pedagogic practice there is a vertical (colonizer) and horizontal

    (decolonized) way where Colonizer practices are predominate and the dialogs occur

    vertically by school knowledge imposition and the popular knowledge its not

    recognized.

    Key words: Knowledge Ecology. Epistemological diversity.Popular Knowledge.

    Amazon.

  • 7

    RESUMEN

    Esta investigacin presenta el tema de la ecologa del conocimiento: un estudio

    del dilogo entre el conocimiento escolar y el saber popular de los ribereos de la isla

    del Aa, en la cual investigamos cmo el dilogo, en la prctica pedaggica de los

    docentes que trabajan en multisseriadas clases, entre el conocimiento y el saber de

    las comunidades ribereas de esta isla. En una perspectiva ms amplia, la

    investigacin pretende examinar cmo el saber de la escuela dialoga con otros

    conocimientos derivados de la diversidad cultural y epistemolgica, por lo tanto, de

    carcter popular. Ms especficamente, la investigacin tiene como objetivo realizar

    un estudio de los recuerdos de los habitantes de la isla de Aa, en relacin a los

    conocimiento presente en el discurso y en las prcticas diarias de los ribereos; bien

    como, identificar en la prctica pedaggica del maestro, la presencia de los

    conocimientos populares de ribereos y como es el dilogo con la escuela y su

    conocimiento; descubrir cmo las poblaciones reasentadas si constituyeron en

    Amazonia brasilea y la relacin entre el conocimiento de las personas, producidas

    por esta poblacin, con los aspectos culturales, sociales y econmicos del municipio

    de Afu. Es una investigacin cualitativa de tipo etnogrfico estudio, en cinco

    comunidades ribereas que conforman la isla de Aa en el municipio de Afu, en el

    estado de Par; la base para la fundamentacin terica: la Ecologa del Conocimiento

    propuesta por Boaventura de Souza Santos y el dilogo desde la concepcin en Paulo

    Freire. Los resultados indican que el saber de la poblacin riberea, est relacionado

    con el contexto social, econmico, cultural y religioso en el que est inmerso; Estas

    pueblos establecen entre s y con otros, intercambio de materiales y simblicas. En

    relacin con el dilogo sobre la prctica pedaggica de docentes, se produce

    verticalmente (colonizacin) y horizontal (descolonizadora), con el predominio de

    prcticas coloniales en el que el dilogo se produce verticalmente, a travs de la

    imposicin de conocimiento y el no reconocimiento del saber popular.

    Palabras clave: Ecologa del conocimiento. Diversidad epistemolgica. Saber Popular.

    Amazonia.

    LISTA DE FOTOGRAFIAS

  • 8

    Fotografia 1 -Mina de ferro Carajs, no Estado do Par

    Fotografia 2 - Reassentamento coletivo urbano para os atingidos pela usina

    Fotografia 3 - Vista area da construo da barragem de Belo Monte, em Altamira,

    Par

    Fotografia 4 - Peixes mortos ao longo das margens do Rio Araguari, no municpio de

    Ferreira Gomes, estado do Amap

    Fotografia 5 - Passarela de madeira no bairro Capimarinho

    Fotografia 6 Trabalhador autnomo (carreteiro) transportando mercadoria

    Fotografia 7 - Igreja de Nossa Senhora da Conceio

    Fotografia 8 Ribeirinho jogando a tarrafa no rio

    Fotografia 9 rea desmatada para o plantio de milho

    Fotografia 10 Casas construdas em rea de invaso no bairro Capimarinho

    Fotografia 11 Centro de Educao Infantil Theopompo Nery

    Fotografia 12 Classe multisseriada

    Fotografia 13 Laboratrio de Informtica da EMEF Frei Faustino Lagarda

    Fotografia 14 -Escola ribeirinha que funciona como anexo

    Fotografia 15 - Sala de aula de uma escola ribeirinha que funciona como anexo

    Fotografia 16 - Escola Polo

    Fotografia 17 - Prdio da Escola B

    Fotografia 18 - Prdio da Escola E

    Fotografia 19 Cascos feitos de madeira Cedro

    Fotografia 20 Ribeirinho levando o filho para a escola no casco

    Fotografia 21 Ribeirinha pescando com o canio

    Fotografia 22 Ribeirinho com o filho colocando a malhadeira no rio

    Fotografia 23 - Ribeirinho tecendo a malhadeira

    Fotografia 24 Matapi

    Fotografia 25 - Benzedor benzendo uma criana com susto

    Fotografia 26 Ribeirinha cuidando da horta

    Fotografia 27 Marupazinho

    Fotografia 28 P de Mastruz

    Fotografia 29 P de Capim Marinho

    Fotografia 30 P de Noni

    Fotografia 31 Sementes de Cacau

  • 9

    Fotografia 32 Erva Cidreira

    Fotografia 33 Catinga de Mulata

    Fotografia 34 Palmeira de Buriti

    Fotografia 35 - Ps de Aa

    Fotografia 36 Menino subindo no Aaizeiro

    Fotografia 38 Instrumentos utilizados para a colheita de aa

    Fotografia 39 Menina debulhando o cacho de aa

    Fotografia 40 Amassadeira eltrica.

    Fotografia 41 Amassadeira manual

    Fotografia 42 Ribeirinha amassando o aa com as mos

    Fotografia 43 Lista de contedos da disciplina Cincias

    Fotografia 44 Fragmentos do contedo sobre ecossistema no caderno de aluno

    Fotografia 45 Fragmentos do contedo sobre os animais no caderno de aluno

    Fotografia 46 Contedo referente ao tem moradia abordado no livro didtico da

    disciplina Artes para o 1, 2 e 3 ano do ensino fundamental

    Fotografia 47 Sala de aula multisseriada

    LISTA DE TABELAS

  • 10

    Tabela 01 - Membros do grupo Modernidade/Colonialidade

    Tabela 02 Comparao da produo de aa no intervalo de quatro anos

    Tabela 03 Quantidade de Alunos matriculados no CEI

    Tabela 04 Percentual de atendimento das crianas de 0 a 3 anos

    Tabela 05 - Percentual de atendimento das crianas de 4 a 5 anos em Afu

    Tabela 06 Estabelecimentos de ensino fundamental por dependncia administrativa

    Tabela 07 - Distoro idade/srie no ensino fundamental

    Tabela 08 - Taxa de rendimento escolar no ensino fundamental em 2015 rea

    urbana

    Tabela 09 Escolas que compem o Regional Madeira com o nmero de alunos no

    ano de 2016

    Tabela 10 Distribuio das turmas da Educao Infantil e anos iniciais do ensino

    fundamental por professor

    Tabela 11 Os professores sujeitos da pesquisa

    Tabela 12 Os moradores sujeitos da pesquisa

    Tabela 13 Categorias apriorsticas

    Tabela 14 Categorias apriorsticas

    Tabela 15 Categorias no apriorsticas

    LISTA DE MAPAS

  • 11

    Mapa 01: Localizao Geogrfica do municpio de Afu.

    Mapa 02: Mapa da ilha de Maraj indicando a proximidade de Afu com o Macap.

    LISTA DE SIGLAS

  • 12

    CAETA - Comisso Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a

    Amaznia

    CEI- Centro de Educao Infantil Theopompo Nery

    EJA - Educao de Jovens e Adultos

    ECA - Estatuto da Criana e do Adolescente

    ICOMI Sociedade Brasileira de Industria e Comercio de Minrios de Ferro e

    Mangans

    IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IDH ndice de Desenvolvimento Humano

    INEP Instituto Nacional de Edies Pedaggicas

    IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    LDBEN Lei de Diretrizes e Base da Educao Nacional

    MEC - Ministrio da Educao

    NEC - Ncleo de Educao do Campo

    PME - Plano Municipal de Educao

    PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio

    PNDU -Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    PNLD- Programa Nacional do Livro Didtico

    SEMED - Secretrias Municipais de Educao

    SEED - Secretaria de Estado da Educao do Amap

    SEMTA - Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia

    UEPA - Universidade do Estado do Par

    UNIFAP - Universidade Federal do Amap

    SUMRIO

  • 13

    APRESENTAO 15

    INTRODUO 19

    1ESTUDOS TERICOS DA PESQUISA 24

    1.1A ECOLOGIA DE SABERES 24

    1.1.1O Paradigma hegemnico 24

    1.1.2 A crise do paradigma hegemnico 26

    1.1.3 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente 28

    1.1.4 A crtica da razo indolente 30

    1.1.5 Ecologia de Saberes: o reconhecimento dos saberes nascido das lutas

    dosoprimidos

    38

    1.2 A DESCOLONIZAO EPISTEMOLGICA 42

    1.2.1Os Estudos Ps-Coloniais 42

    1.2.2A colonialidade do poder 47

    1.2.3 Gnose ou pensamento liminar 53

    1.3O DILOGO: ponto de partida para prticas transformadoras 59

    2 A EDUCAO DAS POPULAES RIBEIRINHAS NA AMAZNIA 64

    2.1 UM MERGULHO NA AMAZNIA BRASILEIRA 64

    2.2 POVOS DA AMAZNIA: os ribeirinhos 80

    2.3 AFU: a Veneza Marajoara 85

    2.3.1 Aspectos Histricos, Geogrficos e Econmicos 86

    2.4 A EDUCAO RIBEIRINHA NO MUNICPIO DE AFU 99

    2.4.1 Educao Infantil 99

    2.4.2 Ensino Fundamental e Mdio 106

    3 PERCURSO METODOLGICO 115

    3.1 TIPO E LOCAL DA PESQUISA 115

    3.2 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS 120

    3.3 CARACTERIZAO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 124

    3.4 TCNICA DE ANLISE DOS DADOS 125

    3.4.1 A emergncia das categorias de anlise da Pesquisa 127

    4ANLISE E INTERPRETAO DOS DADOS 130

    4.1 O SABER POPULAR DOS RIBEIRINHOS DA ILHA DO AA 130

    4.1.1 Saberes das guas 134

    4.1.2 Saberes da Terra e da Mata 147

  • 14

    4.1.3 Saberes do Aa 156

    4.2 O DILOGO ENTRE O CONHECIMENTO ESCOLAR E O SABER POPULAR 164

    4.2.1 O Conhecimento Escolar 164

    4.2.1.1 O conhecimento escolar na tica dos professores 166

    4.2.2O Livro Didtico 173

    4.2.3O Planejamento das Aulas 180

    4.2.3.1 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

    perspectiva colonizadora

    181

    4.2.3.2 Professores que desenvolveram o planejamento a partir de uma

    perspectiva descolonizadora

    183

    4.2.4 Metodologias de Ensino e Aprendizagem 186

    4.2.4.1 Professores que desenvolveram prticas colonizadoras 187

    4.2.4.2 Professores que desenvolveram prticas descolonizadoras 193

    5CONCLUSO 206

    REFERENCIAS 214

    APNDICES

    APNDICE A Roteiro de entrevista para a comunidade 223

    APNDICE B Roteiro de entrevista para os professores 224

    APNDICE C Roteiro de observao das aulas 226

    APNDICE D Roteiro de observao das atividades na comunidade 227

    APRESENTAO

  • 15

    Investigar a Amaznia um desafio, devido ao vasto territrio que a compe e

    a diversidade tnica e cultural que a caracteriza. A vastido geogrfica e os aspectos

    multiculturais das populaes que habitam a regio fazem com que a Amaznia no

    seja concebida como unvoca, mas sim como espao pluralizado e multicultural.

    Nesses espaos, a populao, que diversificada, constri e reconstri

    cotidianamente as Amaznias. Nesta tese, investigamos a Amaznia ribeirinha, na

    qual o rio e a mata tm um papel preponderante nos aspectos econmicos, sociais,

    culturais e religiosos dos povos que habitam esta regio.

    Como oriundo da Amaznia Ribeirinha, vivenciei desde a infncia a convivncia

    com o rio por meio da pesca do peixe e camaro, dos banhos e brincadeiras nas

    guas; com a mata, atravs da caa de animais silvestres e feitura de roa para plantar

    milho, melancia, mandioca, macaxeira e maxixe para o consumo, bem como trocar e

    vender. Tambm aprendi a confeccionar os utenslios necessrios produo

    econmica, dentre os quais o paneiro para colocar camaro e o aa, o casco para

    navegar nos rios, o matapi para pegar o camaro, a malhadeira e o canio para

    pescar, dentre outros necessrios para a sobrevivncia neste contexto.

    Minha famlia era ribeirinha, oriunda da Ilha dos Cars no municpio de Afu,

    que pertence ao estado do Par. Como na ilha no havia escola, os pais que

    quisessem que seus filhos estudassem tinham que mudar para cidade, foi o que os

    meus fizeram, pois acreditavam que com acesso educao escolar, seus filhos

    poderiam ter uma vida melhor da que eles levavam. Aos sete anos j estava morando

    em Macap, capital do estado do Amap e matriculado na 1 srie do ensino

    fundamental.

    Inicialmente,a convivncia com a escola no foi muito boa;fui muitas vezes

    repreendido pelas minhas professoras devido forma como falava, a minha

    linguagem era oriunda do meio social no qual vivia, ou seja, dos ribeirinhos,

    considerada pela escola como feia, incorreta. Assim, dificilmente abria a boca nas

    aulas, geralmente apenas respondia presente na hora da chamada quando meu

    nome era citado. Isso me fez ter vergonha da minha prpria linguagem e para

    sobreviver neste meio foi preciso reaprender a falar de acordo com a lngua dominante

    considerada correta, culta e hegemnica.

    Conclui o ensino fundamental e, em 1985,fui aprovado no teste de seleo para

    o curso de formao de professores a nvel mdio no Instituto de Educao do

    Territrio do Amap (IETA), instituio pblica que formava professores para atuar na

  • 16

    educao infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Durante o referido curso, fui,

    aos poucos, motivado pela professora da disciplina Didtica e principalmente pelos

    meus colegas de turma, perdendo a timidez e ficando mais a vontade para falar, pois

    nas aulas a professora fazia perguntas, queria saber nossa opinio sobre os temas

    das aulas, abria espao para o debate, garantia a todos o direito palavra.

    No ano de 1988, iniciei a carreira docente em uma escola ribeirinha no

    Municpio de Macap. Tinha acabado de concluir o curso de formao de professores,

    para aprender a ensinar1,e fui encaminhado, juntamente com meus colegas recm-

    formados, para o interior2. O meio de transporte que utilizaram para nos distribuir nas

    comunidades foi o caminho, e, onde o carro no podia entrar, trocvamos o

    caminho por barcos, voadeiras ou catraios3 para chegar ao futuro local de trabalho.

    Era professor recm-formado, sem experincia de sala de aula, tendo a

    responsabilidade de ministrar aulas de 1 a 4 sries em classes multisseriadas4,

    sozinho, sem ter nenhum colega de trabalho para dividir as dvidas, as angstias e

    as dificuldades. Assim, a docncia foi aprendida na prtica, pois, no curso de

    formao, no estudamos o processo de ensino e de aprendizagem com classes

    multisseriadas. Alis, nunca discutimos a educao ribeirinha, apesar de vivermos na

    Amaznia, uma regio repleta de rios e florestas. Trabalhei na escola para a qual fui

    designado durante seis anos e vim para a cidade aps a aprovao no vestibular para

    o curso de Pedagogia na Universidade Federal do Amap (UNIFAP).

    Concluda a graduao, passei a trabalhar como docente em uma instituio

    de formao de professores para educao infantil e sries iniciais do ensino

    fundamental. Nesta escola, formamos um grupo de estudos para discutir e refletir

    sobre a educao do campo na Amaznia e especificamente no Amap. A literatura

    era escassa e tnhamos acesso a poucas obras sobre o assunto. Essa escassez

    reflete os poucos estudos e investigaes referentes a essa temtica. Em relao a

    isso, explica Arroyo (2004, p. 8) que somente 2% das pesquisas dizem respeito a

    questes do campo, no chegando a 1% as que tratam especificamente da educao

    1 Expresso usada pelo gestor do setor de Educao do campo da Secretaria de Educao, na primeira e nica reunio na qual fomos informados de que iramos trabalhar na zona rural. 2 Expresso comumente utilizada para se referir s escolas localizadas fora da rea urbana do muncipio. 3 Pequenos barcos movidos a motor que fazem o transporte de pessoas e pequenas cargas nos rios da Amaznia. 4 Escolas nas quais somente um professor (a) atua, ao mesmo tempo e no mesmo espao, com todas as turmas das sries iniciais do ensino fundamental. Em algumas comunidades, o professor ou a professora assume tambm a educao infantil.

  • 17

    escolar no meio rural. Isso nos fez criar um projeto no qual convidvamos professores

    das escolas ribeirinhas, dos assentamentos, das comunidades quilombolas, das

    regies de garimpos, dentre outras, para dialogarem com os professores e os alunos

    do magistrio (como chamvamos o curso de formao de professores). Em seguida,

    decidimos ir at essas escolas. Foi um projeto ousado. Enfrentamos muitos

    obstculos que, geralmente, os educadores que atuam nessas instituies enfrentam

    constantemente; eles abrangem desde o apoio logstico at a burocracia das

    Secretrias Municipais de Educao (SEMED).

    Posteriormente, em 2002, assumi a disciplina Estrutura e Funcionamento da

    Educao Bsica no curso de Pedagogia no polo5 de Afu, como professor substituto

    na UNIFAP. Este foi o primeiro contato que tive com o municpio conhecido como a

    Veneza Marajoara, famoso por seu Festival do Camaro, que atrai milhares de

    pessoas de todos os cantos do pas e do exterior no ms de julho.

    O polo universitrio ao qual fui designado funcionava apenas nos meses de

    janeiro e julho, em uma escola pblica de ensino fundamental e mdio. Os alunos da

    turma de Pedagogia eram todos professores nas escolas ribeirinhas6 pertencentes ao

    sistema de ensino de Afu. As nossas aulas partiam das discusses das garantias

    constitucionais sobre a educao, da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    e das recm-aprovadas Diretrizes Operacionais para a Educao Bsica nas Escolas

    do Campo, uma vez que, para eles, estas leis ainda no tinham nascido naquele

    lugar, visto que a realidade educacional vivenciada nas escolas ribeirinhas estava

    longe do que estabelecem as leis.

    No ano de 2009, conclui o mestrado em Educao pela Universidade do Estado

    do Par (UEPA), no qual investiguei a prtica pedaggica do professor em escolas

    ribeirinhas na Amaznia Paraense. Em seguida, comecei a trabalhar na Secretaria de

    Estado da Educao do Amap (SEED), especificamente no Ncleo de Educao do

    Campo (NEC), setor responsvel pelo planejamento, execuo e avaliao dos cursos

    de formao continuada dos professores das escolas do campo da rede estadual de

    ensino. Trabalhei neste setor at a minha aprovao para cursar o doutorado.

    5 Os polos universitrios funcionavam nos municpios que firmavam convnio com a UNIFAP para a formao, em nvel superior, dos professores do seu sistema de ensino. 6 Utilizaremos a expresso escolas ribeirinhas, pois todas as escolas situadas no meio rural de Afu so ribeirinhas. Acreditamos que assim destacaremos as singularidades da realidade vivenciada pelos atores sociais que vivem e sobrevivem do rio e da mata.

  • 18

    Portanto, a incurso na temtica da educao ribeirinha na Amaznia, faz parte

    da minha histria de vida pessoal e profissional. Neste estudo, investigamos uma

    faceta desta regio denominada de Amaznia Afuaense que aprofundamos no

    decorrer desta tese.

    INTRODUO

    Esta tese intitulada,Ecologia de Saberes: um estudo do dilogo entre o

    conhecimento escolar e o saber popular dos ribeirinhos da Ilha do Aa, analisa, no

    mbito da educao bsica, especificamente na educao infantil e anos iniciais do

    ensino fundamental, o dilogo entre diferentes tipos de conhecimentos. Tm como

  • 19

    objeto de estudo, investigar como dialogam o saber popular dos ribeirinhos da ilha do

    Aa e o saber escolar (saber hegemnico) na prtica pedaggica dos professores

    que atuam em classes multisseriadas nas escolas da referida ilha.

    Utilizamos como referencial tericopara fundamentar a pesquisa a concepo

    de ecologia de saberes proposta por Boaventura de Souza Santos e o dilogo na

    visode Paulo Freire. Na ecologia de saberes, o mundo um arco-ris policromtico

    (SANTOS, 2008), sendo assim, h uma diversidade de culturas com diferentes formas

    de produzir saberes que orientam suas atividades produtivas, sociais, culturais e

    religiosas. O reconhecimento da diversidade epistemolgica existente no mundo,

    essencial para que se efetivem prticas nas quais os saberes possam dialogar numa

    relao de igualdade, sem a imposio do conhecimento cientfico como hegemnico.

    O termo ecologia, de acordo com Santos (2008, p. 157), assenta no reconhecimento

    da pluralidade de saberes heterogneos, da autonomia de cada um deles e da

    articulao sistemtica, dinmica e horizontal entre eles.

    Para Freire (2014), o dilogo se constitui no encontro entre educador e

    educandos que refletem e agem sobre o mundo a ser transformado e humanizado.

    Portanto, o dilogo comunicao, pois conhecemos a realidade na interao com

    nossos semelhantes, o que o torna tambm social, apesar da dimenso individual,

    haja vista que por meio dele que podemos atuar criticamente para transformar a

    realidade na qual vivemos.

    O dilogo, segundo Freire (2014), para ser um elemento de humanizao e

    transformao, precisa ser repleto de amor, humildade, f e confiana nos homens,

    bem como esperana aliada luta pela mudana. No dilogo, todos tm que ter

    garantido o direito palavra que, para o autor, considerada prxis (ao-reflexo-

    ao).

    Assim, investigamos o dilogo entre o conhecimento escolar e o saber popular

    dos ribeirinhos na prtica pedaggica dos professores que atuam em classes

    multisseriadas e desenvolvem suas atividades profissionais nas escolas situadas na

    ilha do Aa, pertencente ao municpio de Afu, no estado do Par.

    A opo pelo referido municpio deu-se por trs motivos. O primeiro foi o contato

    que tive como docente no polo da Universidade Federal do Amap (UNIFAP), perodo

    em que vivenciei a formao em nvel superior, no curso de Pedagogia, dos

    professores do referido muncipio. Os constantes dilogos, dentro e fora da sala de

    aula, aguaram-me o interesse em investigar a prtica pedaggica com turmas

  • 20

    multisseriadas, nas quais somente um professor assume a responsabilidade pelo

    ensino de crianas da educao infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, e

    tambm de adolescentes e adultos, porque nas comunidades ribeirinhas comum

    encontr-los estudando nas turmas do 1 ao 5 ano. Sendo assim, as classes

    multisseriadas so espaos marcados predominantemente pela heterogeneidade, ao

    reunirem grupos com diferenas de sexo, de idade, de interesses, de domnio de

    conhecimentos, de nveis de aproveitamento, etc. (HAGE, 2005, p. 6).

    O segundo motivo foi o nmero significativo de escolas ribeirinhas; de acordo

    com os dados obtidos na Secretaria Municipal de Educao (SEMED) em 2015, foram

    contabilizadas 207 escolas localizadas na zona rural7. Neste estudo, so

    consideradas escolas ribeirinhas, pois esto situadas s margens de rios, lagos, furos

    ou igaraps nas comunidades ribeirinhas. Este montante corresponde a 98,2% do

    total de escolas do sistema municipal de ensino de Afu, que est organizado

    administrativa e pedagogicamente em 24 regionais. Os regionais so agrupamentos

    de escolas de acordo com a sua localizao geogrfica. Esta foi a estratgia adotada

    pela Secretaria Municipal de Educao (SEMED) para atender diversidade

    geogrfica da regio.

    O terceiro motivo est voltado para a continuidade da pesquisa que realizei no

    mestrado, na qual investiguei os saberes mobilizados e produzidos na prtica

    pedaggica dos professores ribeirinhos em classes multisseriadas que atuam na

    referida ilha. Neste estudo, cheguei concluso de que os professores produzem

    saberes a partir do contexto no qual desenvolvem suas atividades profissionais; no

    doutorado, resolvi investigar como acontece o dilogo entre o saber popular e o

    escolar, compreendendo que a maneira como o dilogo ocorre na prtica pedaggica

    do professor est vinculado com o saber produzido por este docente.

    Dentre os regionais, optamos por continuar a investigao no Regional

    Madeira, devido a algumas caractersticas que o distinguem dos outros regionais,

    dentre elas: o horrio das aulas nas escolas de acordo com a mar, ou seja, os rios

    e igaraps da regio na mar vazante inviabilizam a entrada dos catraios para o

    transporte dos alunos, sendo necessrio esperar a mar encher para poder adentr-

    los; a economia das comunidades que compem o regional baseada quase que

    7 Os tcnicos da SEMED chamam escolas da zona rural, mas todas as 207 escolas esto localizadas em ilhas ou as margens de rios, furos ou igaraps por isso as consideramos ribeirinhas.

  • 21

    exclusivamente na colheita do aa. Outra caracterstica que nos fez optar pelo citado

    regional foi a proximidade com Macap, onde reside o pesquisador, o que viabilizou a

    pesquisa de campo, devido facilidade de transporte (a viagem de catraio at as

    escolas do regional dura em mdia 90 a 120 minutos) e permanncia no local da

    pesquisa8.

    Diante deste contexto, partimos nesta investigao da seguinte questo

    problema: Como ocorre o dilogo, na prtica pedaggica dos professores que atuam

    em classes multisseriadas, entre o conhecimento escolar e o saber popular das

    comunidades ribeirinhas da ilha do Aa?

    Como objetivo geral, propomos analisar o modo como o saber escolar dialoga

    com os outros saberes de carter popular decorrentes da diversidade cultural e, por

    isso, epistemolgica. E como especficos: Cartografar, a partir das memrias dos

    moradores da ilha do Aa, os saberes presentes no discurso e nas prticas cotidianas

    dos ribeirinhos; identificar, na prtica pedaggica do professor, a presena do saber

    popular dos ribeirinhos e as formas como dialogam com o saber escolar; averiguar

    como as populaes ribeirinhas foram se constituindona Amaznia brasileira e a

    relao entre o saber popular, produzido por essa populao, com os aspectos

    culturais, sociais e econmicos do municpio de Afu.

    O municpio de Afu pertence ao estado do Par. Est situado no arquiplago

    do Maraj que uma ilha com uma rea de aproximadamente 40.100 km, a maior

    ilha do Brasil e tambm a maior fluviomartima do mundo.

    Afu fica s margens dos rios Cajuuna, Afu e Marajozinho; como a maioria

    das cidades ribeirinhas na Amaznia, nasceu ao redor de uma igreja catlica

    denominada Nossa Senhora da Conceio, atravs de terras doadas por Micaela

    Ferreira, no final do sculo XIX. Possui forte vnculo com os rios atravs da pesca, do

    lazer e do uso como via para o meio de transporte. uma cidade pequena; de acordo

    com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) de 2013, possua

    em torno de 15 mil habitantes. Localmente, a prefeitura e alguns grupos de

    propagandistas a definem como "Veneza Marajoara" ou "Veneza Amazonense", pois

    a cidade se levanta sobre as guas. Embora a comparao seja suprflua, fato que

    8 Durante a pesquisa de campo fiquei hospedado nas escolas ribeirinhas, onde fui gentilmente recebido pelos professores e comunidade local.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Brasilhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Riohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rio

  • 22

    a pequena cidade levantou-se pouco a pouco sobre o terreno de vrzea, criando uma

    formosa obra em palafitas.

    O sistema de ensino do municpio de Afu composto por escolas ribeirinhas

    divididas em vinte e quatro regionais. Os regionais so agrupamentos de escolas que

    esto localizadas geograficamente prximas. Cada regional possui uma escola Plo

    que responsvel pela administrao de todas as demais que compem o respectivo

    regional. Realizamos a pesquisa no Regional Madeira9 que abrange cinco escolas

    situadas na ilha do Aa10.

    Organizamos o texto destatese em quatro captulos. No primeiro,abordamos a

    construo de um quadro terico para a anlise do dilogo entre o saber escolar e o

    saber popular, que consiste no referencial terico para discutir as categorias

    apriorsticas e no apriorsticas que emergiram da pesquisa de campo. No segundo

    captulo, fizemos uma imerso histrica das populaes ribeirinhas na Amaznia,

    realizamos um mergulho na Amaznia brasileira, com nfase nos povos das guas;

    em seguida,abordamos o municpio de Afunosseus aspectos: histricos, geogrficos

    e econmicos, com destaque paraa dimenso educacional.

    No terceiro captulo, descrevemos o percurso metodolgico com o tipo e local

    da pesquisa, os procedimentos e instrumentos para a coleta de dados, caracterizao

    dos sujeitos e a tcnica de anlise dos dados. No quarto capitulo,apresentamos a

    cartografia, a partir das memrias dos ribeirinhos da ilha do Aa, do saber popular o

    qual classificamos em trs categorias: saberes das guas, saberes da terra e da mata

    e saberes do aa. E,finalizamos o referido captulo analisando como ocorre o dilogo

    entre o conhecimento escolar e o saber popular na prtica pedaggica dos

    professores que atuam em classes multisseriadas nas escolas da ilha do aa,

    classificamos essas prticas em duas categorias no apriorsticas: as colonizadoras

    e as descolonizadoras.

    9 Nome fictcio para preservar o anonimato do gestor e dos professores que atuam nas escolas pertencentes ao regional. 10 Nome fictcio para preservar o anonimato dos sujeitos da pesquisa que residem na ilha.

  • 23

    1ESTUDOS TERICOS DA PESQUISA

    Nestecaptulo, fizemos a discusso do referencial terico da pesquisa que

    balizou as inferncias e interpretaes das categorias apriorsticas e no apriorsticas.

    1.1 A ECOLOGIA DE SABERES

    Nesta seo, com o objetivo de compreendermos a gnese da proposta

    apresentada por Boaventura de Sousa Santos quanto ecologia de saberes, fizemos

  • 24

    uma abordagem referente ao paradigma hegemnico, sua crise e a assuno de um

    novo paradigma, bem como a crtica da razo indolente para chegarmos concepo

    das ecologias.

    1.1.1O Paradigma hegemnico

    Segundo Santos (2008), o modelo hegemnico da cincia moderna oriundo

    do modelo de racionalidade que se constituiu a partir da revoluo cientfica do sculo

    XVI. Grn (2002), considera que esta revoluo, de cunhocientfico e filosfico, sofreu

    marcadas influncias de Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626),Ren

    Descartes (1596-1650) e de Isaac Newton (1642-1727) e guiaram as aes dos

    sujeitos na civilizaoocidental.

    De acordo com Perez Filho(2003), Galileu foi quem primeiro descreveu a

    Natureza em uma linguagem fsico-matemtica. No sculo XVI, estabeleceu

    matematicamente a Lei dos Corpos em seu manuscrito De Motu.Afirma Grn (2002),

    que a qualidade dos os objetos, para Galileu, no eram semelhantes e sim diferentes,

    sendo elas primrias e secundrias. As primrias so concretas e no esto

    diretamente relacionadas ao pensamento. As secundrias por serem subjetivas, esto

    ligadas a sensibilidade. Galileu achava que a experimentao era fundamental para a

    comprovao (MORAES, 1997), assim, determinava a importncia da quantificao

    dos fenmenos.

    Para Francis Bacon, de acordo com Moraes (1997), a experincia nos conduz

    ao correto e exato conhecimento dos fenmenos, logo o empirismo e sua lgica

    dedutiva, criados por Bacon, trouxeram uma nova metodologia baseada na

    experimentao cientfica. Nesse sentido, rompe com o antigo modo de pensamentoe

    fortalece a superioridade do Homem em relao Natureza. (GRN, 2002).

    Diferentemente de Bacon, para Descartes o conhecimento obtido a partir da

    intuio e da deduo; anatureza humana tem suaessnciano pensamento e de a

    verdade est nas coisas que concebemos de forma clara e distinta.A obra Discurso

    do Mtodo apresenta a diviso dopensamento e dos fenmenos em infinitas partes,

    sendo que a disposio delas ocorre a partir de uma sequncia lgica.Na viso

    cartesiana, a nfase nas partes em detrimento do todo caracteriza a divisibilidade do

    objeto que compartimentado em partes infinitas (DESCARTES, 1996).

    Na referida obra, Descartes assinala a oposio entre homem-natureza, na

    qual o homem passa definitivamente a ser visto como centro do mundo e um sujeito

    superior Natureza;sujeito-objeto; mente-corpo e esprito-matria, bem como o

  • 25

    carter pragmtico do conhecimento como recurso infinito e ilimitado no domnio dos

    processos, afirma o autor: [...] conhecimentos que sejam teis vida em vez dessa

    filosofia especulativa que se ensina nas escolas [...] (DESCARTES, 1996, p. 69).

    Isaac Newton, dando continuidade ao pensamento de Descartes, sedimentou

    a viso de mundo como uma mquina governada por leis imutveis, fortalecendo,

    desta forma, o paradigma mecanicista. Para o fsico, o mundo, considerado

    umsistema mecnico, pode ser descrito objetivamenteo que levou a descrio objetiva

    da Natureza como o ideal para a cincia (MORAES, 1996).

    Dentre os pressupostos do pensamento cartesiano-newtoniano est a diviso

    e a modelagem do fenmeno em estudo em diversas partes para compreend-lo. Esta

    forma de conceber a cincia, vai ao encontro dos interesses do capital, que o utiliza

    para organizao da sociedade burguesa. Outro fator de relevncia para o avano da

    cincia moderna, na concepo de Ribeiro (2007, p. 58), foi o movimento iluminista

    na Europa que,

    [...] em meados dosculo XVIII, reforou o pensamento cartesiano-newtoniano.Os iluministas consideram que o Homem um ser dotado de razo e que essedeveria se emancipar atravs do seu saber. O Iluminismo expurga os resqucios religiosos medievais e autentica a visoantropocntrica e pragmtica no imaginrio cultural e no universo ideolgico, apartir do momento em que h uma transposio s regras lgico-formais daperspectiva mecanicista das cincias naturais para as cincias humanas,culminando no movimento conhecido como positivismo.

    Nesse intento, o que no se pode transformar em nmeros desconsiderado

    pelo positivismo moderno e o conhecimento que no tem utilidade e tambm no pode

    ser calculado descartado pela viso iluminista. Desta maneira, s pode ser

    considerado verdadeiro aquilo que quantitativamente medido.

    Desta maneira, a quantificao dos fenmenos pelo emprego rigoroso de

    medies se consolidou, sem levar em considerao as qualidades do objeto, pois o

    objetivo era quantificar e reduzir a complexidade do mundo por meio da diviso,

    classificao e posterior determinao de relaes entre o que foi separado. Assim, o

    conhecimento validado se for dirigido pelos preceitos dessa racionalidade cientfica.

    Para Santos (2008), o paradigma moderno estabelece a separao entre o que

    cientfico e que senso comum; separa natureza e humanidade; no aceita como

    vlidas o conhecimento oriundo das experinciascotidianas.

    Desta forma, a cincia moderna elabora as leis a partir de uma viso do

    conhecimento cientfico como causal, e que guiam as pesquisas nas cincias naturais

  • 26

    e sociais de acordo com os preceitos mecanicistas baseados na segurana,

    previsibilidade, ordem e estabilidade.

    Esse paradigma das cincias naturais, foi aplicado tambm nas cincias sociais

    emergentes, pois tal como foi possvel descobrir as leis da natureza, seria igualmente

    possvel descobrir as leis da sociedade (SANTOS, 2008, p. 45). Tornando-se

    hegemnico, e negando as outras formas de conhecimento que no se guiam

    pelosseus princpios epistemolgicos. Segundo o autor, as pesquisas na rea das

    cincias sociais no sculo XIX abrangem duas vertentes. A primeira com a aplicao

    da metodologia das cincias da natureza, dentre os seus percussores est Durkheim,

    que concebia as cincias sociais como parte das naturais. A segunda preconizava

    uma epistemologia e metodologia de acordo com o objeto de estudo das cincias

    sociais, teve como principais representantes Max Weber e Peter Winch.Para Santos

    (2010),as duas correntes estavam atreladas ao paradigma da cincia moderna, por

    mais que a segunda representasse a crise e inicio da transio para outro paradigma

    cientfico.

    1.1.2 A crise do paradigma hegemnico

    Apenas no desenrolar do sculo XX a soberania da cincia moderna comea a

    ser coloca em discusso, afirma Santos (2008) que o questionamento da soberania

    epistemolgica hegemnica, fruto da sua crise, traz no seu interior o paradigma

    emergente.

    Paradoxalmente, o avano da cincia moderna que a levar a sua crise:

    [] a identificao dos limites, das insuficincias estruturais do paradigmacientfico moderno o resultado do grande avano no conhecimento que elepropiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS, 2008, p. 41).

    Segundo Santos (2008),esta crise profunda e irreversvel, foi paulatinamente,

    gerada por diversas condies tericas e sociais. Dentre as tericas esto, ateoria da

    relatividade de Einsteinque relativizou as leis de Newton; a mecnica quntica; os

    questionamentos da matemtica e os avanos tecnolgicos da microfsica, qumica e

    biologia. Em relao mecnica quntica, para Santos (2008) no possvel no

    interferi no objeto de investigao, mesmo quando estamos observando-o ou

    quantificando-o. Desta maneira, o limite do conhecimento torna-se evidente,

    mostrando que as leis da fsica so meramente probabilsticas,o que demonstra a

    inviabilidade do determinismo mecanicista, fica evidente que: a totalidade do real no

  • 27

    se reduz soma das partes e a distino entre o sujeito e o objeto complexa (idem,

    p. 56).

    Outro fator que evidencia a crise deste paradigma a possibilidade de

    formulao de proposies que no podem ser demonstradas muito menos refutadas

    pela medicao e quantificao. A teoria de Ilya Prigogine, vem revolucionar a

    concepo de matria e de natureza, contribuindo para o avano cientifico da

    microfsica, da qumica e da biologia.

    Segundo Morin (2003), os princpios do paradigma hegemnico se tornaram

    cada vez mais cegos: o princpio de ordem que o determinismo absoluto traduzia no

    reina mais no universo. O princpio da separabilidade ou disjuno encontrou seus

    limites em qualquer acepo terica (2003, p. 43). Em relao ao objeto, o referido

    autor destaca que o seu isolamento do contexto no qual se encontra e a sua incluso

    num ambiente artificial perde a validade para tudo que vivo. A induo e a deduo

    demonstraram seus limites, assim como a contradio no sinaliza mais o erro, o que

    caracteriza a emergncia de um novo tipo de verdade.

    Deste modo, para Morin (2010), a impossibilidade de uma viso global do

    fenmeno dar-se-ia pela disjuno e pela reduo, que constituem uma ignorncia do

    pensamento,

    A cincia clssica havia dissolvido o Cosmo, a Natureza e o Sujeito Humano. O Cosmos, porm, ressuscitou a partir de uma cosmologia oriunda da descoberta da expanso do universo. A Natureza ressuscitou com a cincia ecolgica. Se o sujeito foi expulso da cincia objetiva, o retorno do sujeito indispensvel, isso porque o objeto do conhecimento coproduzido por nossas projees mentais sobre a realidade exterior e pela introduo, via traduo e reconstruo, dessa realidade exterior em nossa mente (MORIN, 2010, p. 244).

    No que concerne s possiblidades de uma viso global, Santos (2008) defende

    a transdisciplinaridade que abrange conjuntamente as cincias da natureza e as

    sociais, que vai de encontro ao modelo mecanicista linear da cincia moderna. O

    questionamento das leis da natureza faz parte da crise do paradigma dominante,

    dentre elas a ideia de que os fenmenos observados independem de tudo,para Santos

    (2008) as leis da cincia moderna simplificam de forma arbitraria a realidade.

    Dentre as condies sociais que contriburam para a crise do paradigma

    moderno destaca: a industrializao da cincia e o seu compromisso com o poder

    econmico, social e poltico, os quais passaram a definir as prioridades cientficas; as

    relaes de poder autoritrias e desiguais entre os cientistas; a proletarizao no

    interior dos laboratrios e centros de estudos; o acesso aos equipamentos,

  • 28

    contribuindo para o aprofundamento do fosso cientfico entre pases centrais e pases

    perifricos (SANTOS,2008).

    1.1.3 O Conhecimento Prudente para uma Vida Decente

    Contrapondo-se ao paradigma da cincia moderna, em 1987, na obra Um

    discurso sobre as cincias, Santos (2008) apresenta um novo paradigma que

    denominou de um conhecimento prudente para uma vida decente que no

    somente cientfico, mas tambm um paradigma social. Quatro teses so defendidas

    pelo autor para justific-lo. Na primeira, afirma que todo conhecimento cientfico-

    natural cientfico-social, aglutinando, desta maneira, as cincias naturais e as

    cincias sociais, com nfase na segunda.

    [] trata-se de saber qual ser o parmetro de ordem, segundo Haken, ou o atractor, segundo Prigogine, dessa superao, se as cincias naturais, se as cincias sociais. [] Para no irmos mais longe, quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, quer a teoria sinergtica de Haken, explica o comportamento das partculas atravs dos conceitos de revoluo social, violncia, escravatura, dominao, democracia nuclear, todos eles originrios das cincias sociais [] (SANTOS, 2010, p. 40-41).

    Assim, o autor esclarece que a superao da dicotomia entre cincias naturais

    e sociais ocorrer com a preponderncia das cincias sociais; a valorizao dos

    estudos humansticos; a rejeio dos preceitos do positivismo;o fim dahierarquia entre

    os tipos de conhecimentos. O sujeito, nesta tese, est como protagonista do

    conhecimento.

    Na tese todo conhecimento local e total, o conhecimento ps-moderno

    caracteriza-se pela pluralidade metodolgica, interdisciplinaridade

    etransdisciplinaridade envolvendo as diversas cincias. Assim, Santos (2010, p.

    46)exemplifica: o direito que reduziu a complexidade da jurdica secura da

    dogmtica, redescobre o mundo filosfico e sociolgico em busca da prudncia

    perdida. A ampliao da medicina com um o olhar mais abrangente, j que a

    hiperespecializao do saber mdico transformou o doente numa quadrcula sem

    sentido (Idem, p. 46). A diviso do conhecimento que passa de disciplinar para ser

    temtica: Ostemas so galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro

    uns dos outros (SANTOS, 2010, p. 76). Temas que so gerados e adotados pelos

    grupos sociais, e assim, tornam-se projetos de vida locais.

    Na terceira tese, o autor explica que todo conhecimento autoconhecimento.

    Deixa claro a ligao entre sujeito e objeto; poisno ato de produo do conhecimento

    as trajetrias de vida, os valores e crenas do pesquisador esto presentes. Desta

  • 29

    forma, o carter autobiogrfico e auto referencivel da cincia plenamente

    assumido(SANTOS, 2010, p. 83). Assim, o objeto passa a ser uma extenso do

    sujeito, implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento sobre o objeto

    e sobre o prprio sujeito.

    Na ltima tese, Santos (2010) afirma que todo conhecimento cientfico visa

    constituir-se em senso comum. O autor destaca que a converso do conhecimento

    cientfico ps-moderno em senso comum, possibilitar a sua valorizao e o seu

    reconhecimento.

    A cincia ps-moderna, ao sensocomunizar-se, no despreza o conhecimentoque produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimentose deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnolgico devetraduzir-se em sabedoria de vida. esta que assinala o marco da prudncia nossa aventura cientfica (SANTOS, 2010, p. 91).

    As quatro teses defendidassuscitam novas formas de racionalidades,

    sustentadasem vertentes holsticas, Inter e transdisciplinar. Em uma reflexo crtica

    feita aps duas dcadas da publicao do Discurso sobre as Cincias11, o autor

    destaca que nas transies as mudanas no paradigma dominante so mais

    evidentes que aemergncia de um novo paradigma.Levanta a hiptese de que o

    paradigma emergente seja, de facto, um conjunto de paradigmas, ou seja, a

    coexistncia de uma pluralidade de epistemologias irredutveis a uma epistemologia

    geral (SANTOS, 2007, p. 2).

    Os conhecimentos que so elaborados e reelaborados pelos ribeirinhos na

    Amaznia, que orientam as suas aes sociais, culturais, econmicas e religiosas,

    fazem parte destas epistemologias que dialogam de forma vertical ou horizontal.

    Verticalmente, quando no so reconhecidos como vlidos, neste caso, a

    epistemologia dominante imposta como a nica maneira de conceber o mundo.

    Horizontalmente, quando h o reconhecimento e a valorizao desse saber, o

    queSantos (2007), chama de conhecimento prudente, poisbrotados dilogos e das

    constelaes de saberes que permitem construir, enquantoque as epistemologias

    dominantes impossibilitam a comunicao entre os conhecimentos, pois O importante

    salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencialque existe nos

    dilogos entre eles. [...] (SANTOS, 2012, p. 3).

    11Em torno de um novo paradigma scio-epistemolgico: Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos. Revista Lusfona de Educao. Lisboa, n.10, p.131-140, 2007.

  • 30

    O mundo, segundo o autor, um arco-ris policromtico com diversidades de

    culturas que produzem infinitas epistemologias, da a importncia de torna-las visveis.

    o que pretendemos, nesta tese, ao dar visibilidade aos saberes dos povos das

    guas12, ao traz-los para a reflexo e problematizao, demonstrar que tais saberes

    possuem uma racionalidade e uma lgica prpria de construo (so prticos,

    construdos e reconstrudos de acordo com as necessidades dos sujeitos),

    socializao (transmitidos por meio da oralidade) e validao (baseada na utilidade,

    crena e nos costumes locais) alm de contriburem para a formao de identidades

    e subjetividades.

    Ao defender a diversidade epistemolgica, Santos (2012) problematiza

    questes referentes ao colonialismo, ps-colonialismo e a interculturalidade, a partir

    da crtica razo moderna que abordamos a seguir.

    1.1.4 A crtica da razo indolente

    A razo indolente, segundo Santos (2007), uma racionalidade que norteia

    nossa maneira de pensar, a forma como concebemos a vida e o mundo, bem como a

    produo da cincia, considerada uma razo nica, eurocntrica e ocidental,

    excluindo outras formas de conhecimento. A excluso dar-se- pela no aceitao da

    validade dos conhecimentos alternativos por no terem passado pelos rigores que

    requer o conhecimento cientfico. O desenvolvimento desta razo, afirma o autor, deu-

    se dentro de contextos que possibilitaram a sua emergncia, dentre os quais

    destacam-se: a consolidao do Estado Liberal na Europa e na Amrica do Norte; as

    revolues industriais; o desenvolvimento capitalista; o colonialismo e o imperialismo.

    A indolncia da razo criticada neste ensaio ocorre em quatro formas diferentes: a razo impotente, aquela que no se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela prpria; a razo arrogante que no sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua prpria liberdade; a razo metonmica que se reivindica como a nica forma de racionalidade e, por conseguinte, no se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade, ou, se o faz, f-lo apenas para torn-los em matria-prima; e a razo prolptica, que no se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superao linear, automtica e infinita do presente (SANTOS, 2002, p. 240).

    A razo indolente, portanto, a hegemnica,de base epistemolgica positivista

    que desconsidera outras epistemolgicas, assim como exclui toda diversidade

    cultural, deixando-as na invisibilidade.

    12 Como so conhecidos os ribeirinhos na Amaznia.

  • 31

    Estermann (2009, p. 54) estabelece a diferena entre colonizao e

    colonialismo,

    Mientras que colonizacin es el proceso (imperialista) de ocupacin ydeterminacin externa de territorios, pueblos, economas y culturas por partede un poder conquistador que usa medidas militares, polticas, econmicas,culturales, religiosas y tnicas; colonialismo se refiere a la ideologia concomitante que justifica y hasta legitima el orden asimtrico y hegemnicoestablecido por el poder colonial.

    Desta forma, o colonizador imps a todos os povos a sua cultura, os seus

    modos de ver o mundo, o seu conhecimento, a sua epistemologia, universalizando-os

    e absolutizando-os; assim, moldou e formatou conscincias, colonizou o pensamento

    por meio de uma nica lgica, a eurocntrica.

    Corroborando com esta viso, Santos (2014, p. 28) afirma que [...] o fim do

    colonialismo, enquanto relao poltica, no acarretou o fim do colonialismo enquanto

    relao social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritria e

    discriminatria. [...]. As contradies geradas pelo colonialismo ainda esto presentes

    e se manifestam na cultura, no racismo, no autoritarismo nas relaes sociais, e

    dominam as relaes internacionais.

    Mas, segundo o autor, no vis epistemolgico que o colonialismo assume

    maior centralidade, por meio da imposio do conhecimento hegemnico, o que

    caracteriza uma perspectiva redutora do conhecimento, que impede o surgimento de

    outras perspectivas epistemolgicas.

    O colonialismo, para alm de todas as dominaes por que conhecido, foi tambm uma dominao epistemolgica, uma relao extremamente desigual de saber-poder que conduziu supresso de muitas formas de saber prprias dos povos e naes colonizados, relegando muitos outros saberes para um espao de subalternidade (SANTOS; MENESES, 2010, p. 11).

    Efetivamente, o conhecimento tornou-se um instrumento imperial de

    colonizao. Desta maneira, uma das tarefas necessrias, segundo Quijano (1994) e

    Mignolo (2003), a de descolonizar o conhecimento, o que requer descolonizar a

    lgica e o modelo de racionalidade excludente, descolonizar o imaginrio,

    reprogramar o pensamento, no sentido de desmantelar a matriz colonial do poder

    (MIGNOLO, 2003, p.12), reconhecendo que em outros lugares tambmocorre

    manifestaes culturais e epistemolgicas.

    Para Santos (2010) o motivo da preponderncia da razo indolente est na

    supresso da diversidade epistemolgica dos outros povos, pela excluso e

  • 32

    silenciamento de toda riqueza presente na diversidade cultural que no atenda aos

    interesses do capitalismo, fato que ocorreu por meio da dominao politica,

    econmica e militar nas sociedades colonizadas. Balandier (1995) acrescenta a ao

    missionria, tambm como forma de dominao ideolgica. O problema da dominao

    colonial foi analisado por Gruzinski (2003) a partir do que ficou oculto, do que se

    passou na esfera do invisvel, da mentalidade, que resultou na colonizao do

    imaginrio e construiu a maneira atravs da qual os povos colonizados veem o mundo

    e a si mesmos.

    O rompimento desta hegemonia requer mudanas profundas na estruturao

    dos conhecimentos, para isso, necessrio comear por mudar a razo que preside

    tanto aos conhecimentos como a estruturao deles (SANTOS, 2002, p. 241). O

    propsito desta pesquisa , exatamente, contribuir para este desafio por meio do

    reconhecimento de outras racionalidades que estruturam os conhecimentos locais a

    partir de pressupostos voltados para as questes culturais, sociais e religiosas, no

    somente as econmicas.

    Aponta o citado autor as consequncias dessa monocultura do saber, assim

    como a possibilidade de outras epistemologias, em outros lugares, onde existem

    manifestaes e epistemologias prprias denominadas de epistemologias do sul.

    Trata-se do conjunto de intervenes epistemolgicas que denunciam asupresso dos saberes levada a cabo, ao longo dos ltimos sculos, pelanorma epistemolgica dominante, valorizam os saberes que resistiram comxito e as reflexes que estes tm produzido e investigam as condies deum dilogo horizontal entre conhecimentos. A esse dilogo entre sabereschamamos ecologias de saberes (SANTOS; MENESES, 2010, p. 7).

    Toda essa diversidade, que caracteriza as epistemologias do sul, foi omitida

    pela dominao capitalista do mundo. Para o autor, as epistemologias so geradas

    nas relaes sociais, por isso, todo conhecimento fruto da relao entre sujeitos

    situados num contexto histrico, politico e cultural. Desta forma, o critrio de validade

    do conhecimento deve est ligado a sua contextualidade. Assim, as experincias

    sociais englobam uma gama de conhecimentos com seus critrios de validade

    individual, sendo institudos por conhecimentos rivais (SANTOS,2008).

    Conclui-se, ento, que se produz e reproduz conhecimento a partir da

    experincia social, por meio de diversas epistemologias, o que ocorre nas

    comunidades ribeirinhas na Amaznia, nas quais os sujeitos, em mtua interao,

    produzem e reproduzem saberes nas suas prticas sociais. Assim, a proposta do

  • 33

    autor dar visibilidade aos conhecimentos construdos nas diversas prticas sociais

    e que foram excludos pelo exclusivismo da cincia moderna.

    O conceito de Sul no geogrfico, o sul anti-imperial, anti-patriarcal, anti-

    colonial, esse sul que se transforma numa experincia fundadora de uma proposta

    mitolgica, que obviamente, se, parte do sofrimento, s tem um objetivo que atacar

    as causas desse sofrimento (SANTOS, 2008, p. 24). Portanto, a metfora do

    sofrimento humano, fruto do capitalismo, que o caracteriza. Aprender com o Sul

    requer um rompimento com o Norte imperial.

    [...] Mas admito que o Sul , ele prprio, um produto do imprio e, por isso, a

    aprendizagem com o Sul exige igualmente a desfamiliarizao em relao ao

    Sul imperial, ou seja, em relao a tudo que no Sul o resultado da relao

    colonial capitalista (SANTOS, 2008, p. 33).

    Neste sentido, o aprender com o Sul requer a descolonizao das nossas

    mentes que foram colonizadas pelo Norte, desta maneira, poderemos eliminar os

    restcios deixados pelo colonizador, assim s se aprende com o Sul [...] na medida

    em que se contribui para a sua eliminao enquanto produto do imprio. (SANTOS,

    2008, p. 33). Isto pede o reconhecimento da diversidade e a afirmao das diferenas,

    bem com o combate da viso, segundo Tavares (2014, p. 1), de um saber

    institucionalizado no Ocidente, a um repositrio axiolgico, esttico e cognitivo que foi

    produzido pela humanidade e que se auto define como universal.

    Essa racionalidade tem grande influncia na nossa forma de pensar, ler e ver

    o mundo, por isso, a leitura que fazemos da realidade est imbricada por uma razo

    que direciona o nosso olhar, que no nos possibilita vislumbrar a riqueza

    epistemolgica presente no entorno. Esta viso unilateral, monocultural, produzida,

    de acordo com Santos (2007), pela razo indolente que se manifesta principalmente

    por meio de duas razes, a metonmica e a prolptica.

    Segundo o autor, a razo metonmica uma figura da teoria literria e da

    retrica que significa tomar a parte pelo todo: E essa uma racionalidade que

    facilmente toma a parte pelo todo, porque tem um conceito de totalidade feito de partes

    homogneas, e nada do que fica fora dessa totalidade interessa (SANTOS, 2008, p.

    25). Ono existente o que est fora desta totalidade, para isso, faz-se a contrao

    do presente porque deixa de fora muita realidade, muita experincia, e, ao deix-las

    de fora, ao torn-las invisveis, desperdia a experincia(idem, p. 26). As experincias

    cotidianas por no estarem atreladas a esta razo, impossibilitam outras leituras do

    mundo que diferem da hegemnica.

  • 34

    Esse reducionismo gerado por ideias aliceradas na simetria dicotmica e a

    hierarquia que impossibilitam vises mais abrangentes do tempo presente, e assim,

    acabam por limitar, condicionar e ate mesmo inviabilizar o conhecimento das demais

    experincias.

    [...] Ento a razo metonmica tem essa dupla ideia das dicotomias e das hierarquias, por isso no possvel pensar fora das totalidades: no posso pensar no sul sem o norte, a mulher sem o homem, no posso pensar o escravo sem o amo. Mas o que devemos inquirir que se nessas realidades no h coisas que esto fora dessa totalidade: o que h na mulher que no depende da relao com o homem [...], ou seja, pensar fora da totalidade [...] (SANTOS, 2007, p. 28).

    Assim, a compreenso do mundo vai alm da viso eurocntrica, h outras

    maneiras de enxergar o mundo que transcende a razo metonmica, na qual as partes

    so pensadas em relao direta com a totalidade. Para pensar fora dessa totalidade,

    que homognea e excludente, o autor prope a sociologia das ausncias, que

    uma sociologia insurgente para tentar mostrar que o que no existe produzido como

    no existente, invisvel realidade hegemnica do mundo (idem, p. 30). O que

    ausente produzido propositalmente para reduzir a realidade ao que existe. As

    ausncias so produzidas, afirma Santos (2008), a partir de cinco monoculturas: do

    saber e do rigor, do tempo linear, da naturalizao das diferenas, da escala

    dominante e a do produtivismo capitalista.

    Na primeira monocultura, a do saber e do rigor, os conhecimentos populares

    no so visibilizados porque no passam pelos rigores da cincia positivista,

    reconhecido como nico critrio de validao; portanto, as prticas sociais aliceradas

    nesses saberes, dentre elas as dos ribeirinhos, no existem luz da cincia ocidental.

    Isso gera o que Santos (2007) denomina de epistemicdio, a morte de conhecimentos

    que no se encaixam nos rigores do mtodo cientifico. Esses saberes so

    invisibilizados, subalternizados, no sendo aceitos como diferentes maneiras de ver,

    ler e interpretar o mundo e que esto ligadas histria e a cultura dos diferentes

    povos. Desta maneira,no faz sentido dizer que esses conhecimentos no so

    cientficos, pois, para o autor, so outras maneiras de fazer cincia, dentro de um

    contexto simblico de que fazem parte os saberes da maioria da populao

    marginalizada pela cincia eurocntrica. O saber popular, neste estudo, os das

    populaes ribeirinhas, tem seus prprios critrios de validao e aceitao. Ao levar

    seus filhos, que foram acometidos por doenas causadas por seres encantados, para

  • 35

    o benzedor benz-los, a crena no poder de cura emanado pelo curandeiro o critrio

    de validao do seu saber.

    A monocultura do tempo linear est relacionada ao capitalismo. Como assegura

    Santos (2002, p. 243), a razo metonmica , juntamente com a razo prolptica, a

    resposta do Ocidente, apostado na transformao capitalista do mundo, pois tem

    como foco o desenvolvimento e a mercantilizao. Nessa tica, os pases menos

    desenvolvidos so inferiorizados e estigmatizados como pr-modernos, primitivos,

    selvagens, dentre outros adjetivos que os tornam inferiores. Por no se inclurem

    totalmente dentro desta lgica capitalista os ribeirinhos so tachados de preguiosos

    e demais adjetivos pejorativos.

    Em relao mercantilizao, o que predomina o tempo linear como

    referencia produo e circulao de mercadorias. As diversas formas de

    organizao temporal que envolve outros mundos que vo alm do terreno, no so

    reconhecidas, o que prevalece a linearidade com presente, passado e futuro. Com

    isso, o tempo das mars que predomina na Amaznia Ribeirinha, o mundo dos seres

    encantados que povoam os rios e as florestas so invisibilizados.

    A diviso da populao nas categorias de raa, sexo e tnica, so maneiras de

    naturalizar as diferenas e justificar as hierarquias. Para o autor, as hierarquias no

    so causa das diferenas, mas suas consequncias. Desta maneira, as diferenas

    so veladas e naturalizadas a partir de uma escala baseada na inferiorizao do que

    difere do padro dominante.

    A monocultura da escala dominante, que mais uma maneira de produzir as

    ausncias, parte do princpio de que o global e universal hegemnico, o particular

    e o local no conta, invisvel, descartvel, desprezvel (SANTOS, 2007, p. 31). Em

    decorrncia disso, os saberes no hegemnicos so tidos como locais, portanto,

    inferiores. O considerado universal valido em qualquer contexto, por isso que o

    hegemnico dominante independente do lugar, da a predominncia no currculo

    escolar de somente uma forma de conhecimento e, a no aceitao por parte de

    alguns professores da incluso dos saberes locais na sua prtica pedaggica, fruto

    de um processo de formao profissional colonizadora.

    No tocante monocultura do produtivismo capitalista, o autor afirma que pode

    ser empregada para o trabalho e para a natureza. A utilizao das novas tecnologias

    so as bases para a organizao da produtividade a partir da lgica hegemnica

    capitalista. As outras lgicas de produo, dentre elas as dos povos das guas, so

  • 36

    consideradas improdutivas. Dessa maneira, so produzidas as cinco formas de

    ausncias: o ignorante, o residual, o inferior, o local e particular, e o

    improdutivo(SANTOS, 2007, p. 32), que so contrapostas a formas universais e

    globalmente reconhecidas: o cientfico, o avanado, o superior, o global e o produtivo.

    Tais monoculturas so responsveis pela produo das ausncias, suprimindo

    as demais experincias, vivncias e conhecimentos que foram e so historicamente

    invisibilizados. Com o objetivo de tornar presente o que est ausente e dar visibilidade

    s experincias, o autor prope a substituio das monoculturas pelas ecologias

    consideradas a prtica de agregao da diversidade pela promoo de interaes

    sustentveis entre entidades parciais e heterogneas (SANTOS, 2008, p. 105). So

    cinco as ecologias: dos saberes13, das temporalidades, do reconhecimento, da

    transescala e das produtividades.

    A ecologia das temporalidades parte do princpio de que, alm do tempo linear,

    existem outras formas de organizao temporal. Na Amaznia Ribeirinha, por

    exemplo, o tempo das aulas em algumas comunidades regido pelas mars; a

    derrubada e a plantao das roas nas comunidades camponesas dependem das

    estaes do ano: no vero, so feitas as derrubadas e a limpeza da rea onde ser

    plantada a mandioca, no inverno realizada a plantao, por causa das chuvas que

    possibilitam o crescimento das manivas14. Em certas comunidades indgenas, a

    presena concomitante de espritos da mata e das guas juntamente com os seres

    vivos constante, a relao com esses entes ocorre de maneira que, para entrar em

    determinadas horas na mata ou no rio, faz-se necessrio pedir licena e solicitar que

    nos acompanhem durante a caminhada na mata ou remada pelo rio, no sentido de

    proteo contra os possveis males. Essas lgicas precisam ser reconhecidas, o

    jeito amaznida de ser e de lidar com o tempo, que vai alm da linearidade. Como

    afirma Santos (2007, p. 34): se vou reduzir tudo a temporalidade linear, estou

    afastando todas as outras coisas que tem uma lgica distinta da minha.

    No tocante ecologia do reconhecimento, que se refere produo das

    desigualdades, faz-se necessrio a descolonizao das mentes que foram

    colonizadas com a imposio de valores e esteretipos gerados por meio da

    categorizao e hierarquizao da populao, tendo como referencia as diferenas

    13 Abordaremos numa seo especfica a ecologia de saberes por ser objeto de estudo do nosso trabalho. 14 Nome dado ao caule do p de mandioca, o qual, cortado em pedaos, usado no plantio.

  • 37

    sexuais, culturais, raciais, sociais, etc. Nesse intento, a ecologia proposta [...] procura

    uma nova articulao entre o princpio da igualdade e o princpio da diferena, abrindo

    espao para a possibilidade de diferenas iguais uma ecologia de diferenas feita

    de reconhecimentos recprocos (SANTOS, 2008, p. 110). Nesta ecologia, a

    pluralidade e a diversidade como parte do reconhecimento dos direitos humanos

    ressaltada. Assim, Temos o direito a ser iguais quando a diferena nos inferioriza;

    temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza (SANTOS,

    1997, p. 31).

    Para ir alm da escala dominante, proposta a ecologia da transescala, que

    parte da integrao do local, do nacional e do global nos projetos contra hegemnicos,

    como estratgia de combate a globalizao, atravs destas ligaes, as formaes

    locais desligam-se da srie inerte de impactos globais e religam-se como pontos de

    resistncia e gerao de globalizao alternativa(SANTOS, 2008, p. 113). Algumas

    experincias j foram e esto sendo desenvolvidas por movimentos sociais com

    atuao local, e que se expandiram a nvel nacional e mundial como frente de luta

    contra a excluso social.

    Em oposio monocultura do produtivismo capitalista, apresentada a

    ecologia das produtividades, que consistem no

    [...] mbito das alternativas que engloba, desde microiniciativas levadas a cabo por grupos sociais marginalizados do Sul global, procurando reconquistar algum controle das suas vidas e bens, at propostas para uma coordenao econmica e jurdica de mbito internacional destinada a garantir o respeito por padres bsicos de trabalho decente e de proteo ambiental, novas formas de controle do capital financeiro global, bem como tentativas de construo de economias regionais baseadas em princpios de cooperao e solidariedade (SANTOS, 2008, p.114).

    A concepo abrangente de economia est no bojo destas iniciativas, pois

    abarcam valores organizacionais e polticos que vo de encontro ao capitalismo

    global, tais como questes relacionadas sustentabilidade ambiental, participao

    democrtica, alm da equidade social, racial, tnica e cultural. a favor dessa

    equidade que precisamos romper com as vises estereotipadas que persistem em

    relao aos homens e mulheres que constituem os povos das guas da Amaznia. As

    pesquisas, realizadas na regio Amaznica, vem tornando visveis as experincias

    que so ativamente produzidas por esses sujeitos, dentre elas o cuidado com os rios

    e a mata, no sentido de preservar a biodiversidade para garantia da sobrevivncia.

    Segundo Boaventura, o objetivo das diversas ecologias [...] revelar a

    diversidade e multiplicidade das prticas sociais e credibilizar esse conjunto por

  • 38

    contraposio credibilidade exclusiva das prticas hegemnicas (2008, p. 115). A

    seguir abordaremos com mais profundidade a ecologia de saberes, por ser nosso

    objeto de estudo.

    1.1.5 Ecologia de Saberes: o reconhecimento dos saberesnascido das lutas dos

    oprimidos

    A ecologia de saberes parte do reconhecimento da diversidade epistemolgica

    que caracteriza o mundo no qual vivemos e de que a cincia no a nica forma de

    explicao da realidade reconhecendo a existncia de outros conhecimentos que

    norteiam as prticas sociais e do sentido nossa vida. Assim, a ecologia de saberes

    um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da

    globalizao contra hegemnicas e pretendem contribuir para as credibilizar e

    fortalecer (SANTOS, 2008, p.154). Fortalecer e credibilizar no intuito de reconhecer

    os saberes das populaes que foram historicamente invizibilizados e excludos,

    dentre eles os dos povos indgenas, populaes do campo, ribeirinhos, em suma, os

    saberes que nasceram da luta dos oprimidos e marginalizados.

    Portanto, no h saber maior ou menor, mais importante ou menos valioso, o

    que existe so conhecimentos que explicam a natureza, a sociedade e os diversos

    fenmenos que diferem ou complementam o cientfico. Nesse sentido, para que

    ocorra o dilogo numa perspectiva intercultural, pois o dilogo no ser somente entre

    esses diferentes saberes, mas tambm entre culturas diferentes, o autor prope a

    hermenutica diatpica15 que no visa atingir:

    [...] a completude objetivo inatingvel mas, pelo contrrio, ampliar ao mximo a conscincia de incompletude mtua, por meio de um dilogo que se desenrola, por assim dizer, com um p numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o seu carter diatpico (SANTOS, 2009, p. 15)

    Neste sentido, a perspectiva intercultural objetiva estimular o dilogo entre os

    diferentes saberes e conhecimentos, partindo do princpio de que a incompletude o

    que os caracteriza. Assim, os conhecimentos cientficos no so considerados

    superiores, e, sim,mais uma forma de expresso epistemolgica. A reciprocidade, o

    respeito e o reconhecimento da diversidade so os alicerces que balizam o dilogo

    intercultural.

    15A hermenutica diatpica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam,

    so to incompletos quanto prpria cultura a que pertencem. Tal incompletude no visvel do interior dessa cultura, uma vez que a aspirao totalidade induz a que se tome a parte pelo todo (SANTOS, 2009).

  • 39

    Para aprofundarmos a nossa compreenso em relao perspectiva

    intercultural, Walsh (2011) estabelece a diferena entre os tipos de interculturalidade:

    a relacional, a funcional e a crtica. A interculturalidade relacional sempre existiu ao

    longo da histria por meio do encontro entre as culturas, mas sem a ocorrncia do

    dilogo entre elas. A interculturalidade funcional existe nas sociedades capitalistas,

    na qual a multiculturalidade encaixada nas estruturas de dominao, mas, nos

    discursos oficiais, so concebidas como prticas interculturais numa viso neoliberal.

    E a interculturalidade crtica que, para a autora, indissocivel do processo de

    descolonizao. Walsh (2011), afirma que no possvel a interculturalidade crtica

    sem a dissoluo das estruturas de dominao, nesse sentido, enquanto estas

    estruturas existirem, no ser possvel o dilogo entre o saber popular e o saber

    dominante ou entre qualquer tipo de saber.

    A perspectiva da interculturalidade crtica, proposta por Walsh (2011), difere do

    dilogo intercultural apresentado por Santos (2009) na ecologia de saberes. Para o

    autor, o dilogo entre as culturas no requer necessariamente a dissoluo das

    estruturas do poder.

    Segundo Catherine Walsh (2006, p.11), a interculturalidade :

    [...] um processo dinmico e permanente de relao, comunicao e aprendizagem entre culturas em condies de respeito, legitimidade mtua, simetria e igualdade. Um intercmbio que se constri entre pessoas, conhecimentos, saberes e prticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferena.

    Esta concepo de interculturalidade necessria para a efetivao da

    construo de um pensamento crtico, pois surge da experincia vivida na

    colonialidade; parte tambm de um pensamento gerado no Sul, e muda os rumos da

    geopoltica do conhecimento dominante (WALSH, 2006). Segundo a citada autora, a

    interculturalidadepode contribuir para a construo de sociedades diversificadas por

    meio da explicitaoe abertura de espaos, conhecimentos e prticas. Para Walsh

    (2006, p. 21),

    mais do que um simples conceito de inter-relao, ainterculturalidade assinala e significa processos deconstruo de conhecimentos outros, de uma prticapoltica outra, de um poder social outro, e de umasociedade outra, formas diferentes de pensar e atuarem relao e contra a modernidade/colonialidade, umparadigma que pensado atravs da prtica poltica.

    Desta forma, a interculturalidade crtica reconhece as desigualdades sociais,

    econmicas, polticas e de poder, bem como, a dominao em que estamos

  • 40

    submetidos pelas condies institucionais. Assim, no dilogo intercultural, numa

    perspectiva crtica as assimetrias sociais, econmicas e polticas sempre estaro

    permeando as discusses entre pessoas e grupos culturais diversificados sem a

    negao ou sobreposio de suas diferenas.

    Corroborando com esta viso, Candau (2006) afirma que a interculturalidade

    indica a edificao de sociedades que assumam as diferenas como constitutivas da

    democracia, bem como a possibilidade de construo de relaes igualitrias entre os

    diferentes grupos socioculturais que foram historicamente inferiorizados.

    Na perspectiva da ecologia de saberes, Santos (2010) prope cinco imperativos

    transculturais que precisam ser aceitos pelos grupos sociais e culturais para o dilogo

    intercultural. O primeiro chama-se Da completude incompletude, que o ponto de

    partidapara o dilogo, e consiste no nosso interesse em conhecer outras culturas,

    como reflexo da necessidade e do descontentamento com a nossa cultura. Assim, A

    hermenutica diatpica aprofunda, medida que progride, a incompletude cultural,

    transformando a conscincia inicial de incompletude, em grande medida difusa e

    pouco articulada, numa conscincia autorreflexiva (p. 46).

    J o segundo, denominado Das verses culturais estreitas s verses amplas,

    o referido autor afirma que, devemos evidenciar dentro de uma determinada cultura

    aquilo que est voltado para o reconhecimento do outro. O terceiro, De tempos

    unilaterais a tempos partilhados, o autor assegura que a deciso em estar aberto para

    o dialogo cabe a cada grupo cultural.

    A cultura ocidental, durante sculos, no teve qualquer disponibilidade para dilogos interculturais mutuamente acordados e agora, ao ser atravessado por uma conscincia difusa de incompletude, tende a crer que todas as outras culturas esto igualmente disponveis para reconhecer a sua incompletude e, mais do que isso, ansiosas para se envolver em dilogos interculturais com o Ocidente(SANTOS, 2010, p.47).

    O quarto imperativo, De parceiros e temas unilateralmenteimpostos a parceiros

    e temas escolhidospor mtuo acordo, parte da ideia de que para o dilogo, os

    protagonistas e o assunto precisam ser acordados mutuamente. Segundo o autor, no

    tocante aos temas, em todas as culturas h temas que necessariamente precisam ser

    includos no dilogo com outras culturas, pois o importante para a

    hermenuticadiatpica a direo, a noo eo sentimento de incompletude da

    cultura. (SANTOS, 2010, p. 47). O ultimo imperativotranscultural,Da igualdade ou

    diferena igualdadee diferena, parte da aceitao de que o direito a igualdade deve

  • 41

    ser garantido quando a diferena nos inferioriza e o direito a ser diferente quando a

    igualdade nos descaracteriza.

    Alm dos imperativos transculturais, essenciais para o dilogo intercultural,

    Santos (2008, p. 154) ratifica que a ecologia de saberes se alicera em dois

    pressupostos: no h epistemologias neutras e as que clamam s-lo so as menos

    neutras; a reflexo epistemolgica deve incidir no nos conhecimentos em abstratos,

    mas nas prticas de conhecimento e seus impactos noutras prticas sociais. Posto

    isso, fica evidente de que no h neutralidade no conhecimento cientfico, pois atende

    aos interesses da ideologia dominante que o produz. Quanto ao segundo pressuposto,

    refere-se prtica dos conhecimentos, sua aplicabilidade na realidade social. Nessa

    lgica,

    No h dvidas de que para levar o homem ou a mulher a lua no h conhecimento melhor do que o cientifico, o problema que, hoje tambm sabemos que, para preservar a biodiversidade, de nada serve a cincia moderna. Ao contrrio, ela a destri. Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade so os conhecimentos indgenas e camponeses (SANTOS, 2007, p. 33).

    Fica evidente que a importncia de determinado conhecimento est na sua

    capacidade e utilidade para resolver os problemas sociais, ambientais entre outros.

    No exemplo acima, cada conhecimento produz um tipo de resultado quando aplicado

    para atingir determinados objetivos. A hierarquia entre eles ocorre pela interveno

    concreta nas prticas sociais.

    A nossa inteno nesta tese, foi conferir legitimidade acadmica e

    epistemolgica aos saber popular dos ribeirinhos, que este possa, juntamente com o

    saber escolar, fazer parte do currculo da escola de educao bsica frequentada

    pelas crianas, jovens e adultos das comunidades ribeirinhas na Amaznia e desta

    maneira contribuir para a formao de identidades e subjetividades.

    1.2 A DESCOLONIZAO EPISTEMOLGICA: UM ESTUDO DAS PROPOSIES

    TERICAS

    Nesta seo, procuramos fazer uma discusso entre autores que discutem os

    conceitos de colonialidade, gnose/pensamento liminar e pensamento fronteirio, com

    o intuito de analis-los criticamente a partir da abordagem terica baseada nos

    Estudos Ps-Coloniais do grupo modernidade/colonialidade, que emerge com a

    finalidade de questionar a constituio da modernidade a partir de suas concepes

    dominantes. Finalizamos com uma discusso referente categoria Dilogo na viso

    Freireana.

  • 42

    1.2.1Os Estudos Ps-Coloniais

    Os estudos ps-coloniais podem ser considerados como um movimento

    intelectual e tambm poltico com a finalidade de questionar a hegemonia

    epistemolgica e fazer emergir os saberes subalternizados dos povos colonizados.

    Segundo Ribeiro e Escobar (2012) os impactos do processo de colonizao so

    abordados por autores oriundos dos pases colonizados como grito de alerta para o

    rompimento das amarras impostas pela colonizao.

    Para Costa (2006, p. 84) o colonialismo alude a situaes de opresso

    diversas, definidas a partir de fronteiras de gnero, tnicas ou raciais. Neste sentido,

    o colonialismo gerou a opresso dos povos dominados que foram classificados de

    acordo com os estigmas impostos pelo colonizador, e ainda reforou as j existentes

    situaes de opresso.

    Ballestrin (2012, p. 4), no tocante ao argumento ps-colonial, apresenta-o como

    um movimento poltico e intelectual no necessariamente linear, disciplinado e

    articulado.

    Neste sentido, defendemos que o argumento ps-colonial em toda sua amplitude histrica, geogrfica e disciplinar percebe a diferena colonial e intercede pelo colonizado. Isto significa dizer que o argumento ps-colonial em maior ou menor grau comprometido. Pelo argumento ps-colonial o resgate da histria, do conhecimento, do discurso, do sujeito e da memria do status colonizado nunca pretende, atravs de sua visibilidade e da vocalizao, fortalecer o outro colonizador. Em termos de teoria poltica contempornea, a relao colonial uma relao antagnica e no agnica.

    Desta forma, o resgate da histria, do conhecimento e do discurso do

    colonizado foram protagonizados por autores como Albert Memmi, Aim Cesrie e

    Franz Fanon que foram os pio