Ecolinguística: uma prática de...

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A letra miúda-nº3 – Revista de sociolingüística da CGENDL Santiago de Compostela- ISSN 2255-0976 Teresa Moure Ecolingüística: uma prática de intervenção 1. O NASCIMENTO DO NOVO CAMPO DA ECOLINGUÍSTICA As pessoas que nos dedicamos à docência temos a obriga de explicar- nos, de fazer que as nossas palavras deitem luz sobre a matéria que instruímos. Essa necessidade de transparência condiciona-nos. Acabamos por apresentar, ao falar, tantos exemplos como um Sancho Pança. E os exemplos em aulas de língua, de qualquer língua, versam sobre semelhanças e diferenças. Explicamos o artigo partitivo em francês, o genitivo saxão em inglês ou, em geral, as peculiaridades gramaticais dum idioma recorrendo ao contraste com a língua veicular em que nos estamos a expressar. Estamos a difundir, involuntariamente, que as línguas são todas diferentes. Estamos a projetar no alunado a ideia de as línguas se regerem por normas caprichosas, que não podem ser conculcadas. Essa óptica comparatista que tendemos a adotar nas aulas predica: "Na língua A diz-se assim, na língua B diz-se dessoutro jeito". E, sem o nós querermos, estamos a transmitir a ideia de as línguas serem puros códigos, como o rodoviário, que funcionam arbitrariamente. Alguém decidiu que todo o mundo devia ir pela direita e assim nos comportamos porque, no caso de irmos pela esquerda, ou de irmos por onde melhor nos pareça, teríamos contínuos acidentes. Porém, quando reflito sobre os nossos procedimentos na aula, faço todo menos criticá-los. Não há tarefa mais dura que a de introduzirmos as ideias novas, que pulam por aí fora, dentro dos cérebros alheios porque para isso as ideias devem atravessar crânios protegidos por

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A letra miúda-nº3 – Revista de sociolingüística da CGENDL Santiago de Compostela- ISSN 2255-0976

Teresa Moure

Ecolingüística: uma prática de intervenção

1. O NASCIMENTO DO NOVO CAMPO DA

ECOLINGUÍSTICA

As pessoas que nos dedicamos à docência temos a obriga de explicar-

nos, de fazer que as nossas palavras deitem luz sobre a matéria que

instruímos. Essa necessidade de transparência condiciona-nos.

Acabamos por apresentar, ao falar, tantos exemplos como um

Sancho Pança. E os exemplos em aulas de língua, de qualquer língua,

versam sobre semelhanças e diferenças. Explicamos o artigo partitivo

em francês, o genitivo saxão em inglês ou, em geral, as

peculiaridades gramaticais dum idioma recorrendo ao contraste com

a língua veicular em que nos estamos a expressar. Estamos a

difundir, involuntariamente, que as línguas são todas diferentes.

Estamos a projetar no alunado a ideia de as línguas se regerem por

normas caprichosas, que não podem ser conculcadas. Essa óptica

comparatista que tendemos a adotar nas aulas predica: "Na língua A

diz-se assim, na língua B diz-se dessoutro jeito". E, sem o nós

querermos, estamos a transmitir a ideia de as línguas serem puros

códigos, como o rodoviário, que funcionam arbitrariamente. Alguém

decidiu que todo o mundo devia ir pela direita e assim nos

comportamos porque, no caso de irmos pela esquerda, ou de irmos

por onde melhor nos pareça, teríamos contínuos acidentes. Porém,

quando reflito sobre os nossos procedimentos na aula, faço todo

menos criticá-los. Não há tarefa mais dura que a de introduzirmos as

ideias novas, que pulam por aí fora, dentro dos cérebros alheios

porque para isso as ideias devem atravessar crânios protegidos por

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ossos bem duros... Todos os procedimentos, todas as formas da

sedução e da captação podem ser empregadas legitimamente: a

altura da tarefa exige-os. O que pretendo com esta argumentação é

simplesmente revistar as ideias a respeito da linguagem que se

depreendem desses procedimentos.

A partir dos trabalhos de Noam Chosmky, na linguística difundiu-se o

pressuposto, contrário a esta prática docente, de que todas as línguas

humanas são em definitivo uma e a mesma língua. Obviamente, cada

código tem umas unidades diferentes (palavras, fonemas, estruturas,

etc.), mas, de alguma maneira essencial, todas as línguas respondem

a um mesmo patrão. Se um marciano, um ser consideravelmente

distinto, visse para a Terra, as diferenças entre as línguas humanas

parecer-lhe-iam uma pura questão de matiz. Esta tendência

aglutinadora ou universalista está a considerar que as diferenças, por

mais visíveis que sejam para os falantes, são pouco importantes

comparadas com um tipo de unidade essencial e recôndita. As

consequências desta ideia notam-se nessa nossa prática docente:

ing.: Do you want any sugar?

fr.: Voulez-vous du sucre?

gal.: Queres açúcar?

Nas aulas de línguas, o professorado exprimirá que, perante um

nome-massa, como açúcar, muitas línguas precisam utilizar

partículas de valor partitivo para indicar assim que se toma uma

parte dessa substância, em quantidade inespecífica, enquanto

noutras línguas, como galego ou espanhol, basta mencionar o

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substantivo a jeito de etiqueta. Num sentido profundo, fortemente

semântico, temos um nome-massa; num sentido mais superficial,

umas línguas tratam os nomes massa antepondo-lhe uma partícula,

outras marcam a sua raridade ao usá-lo sem artigo, e haveria, aliás,

outros tratamentos, todos superficiais, todos dependentes da história

particular de cada língua.

A gramática chomskyana estava a abrir os métodos de fazer

gramática. Já nunca mais se entenderia que um/uma especialista

nesta disciplina apenas teria que conhecer bem essa língua em

particular, os seus textos escritos, a sua lógica interna, mas era

possível e necessário elaborar hipóteses de caráter universalista: era

preciso entender a linguagem humana no seu conjunto. As línguas

não se limitavam a simples códigos de circulação, eram

manifestações duma faculdade geral da espécie.

Enquanto se instalava esta nova óptica, a sociolinguística também

medrava. Ao abrigo de movimentos sociais variados −a luta

feminista, os movimentos de liberação da raça negra, a

multiculturalidade− fortalecia-se a concepção de que as línguas

reproduziam nas sociedades fortes relações de poder. No nosso caso,

a sociolinguística galega tomava da tradição catalã

fundamentalmente alguns conceitos que permitiam explicar por que a

língua própria ficava reduzida à espontaneidade, aos usos

quotidianos, sendo substituída para as situações de prestígio pela

variedade que o poder apoiava. Reparando noutras realidades, para

outros contornos e territórios, o processo repetia-se insidiosamente.

Não fazia sentido, portanto, uma sociolinguística galega −a não ser

para fornecer dados concretos−, mas uma sociolinguística universal,

que atenderia por igual, e com semelhantes parâmetros ao jeito em

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que desaparecem as línguas australianas aborígenes, ao jeito em que

se erradicam as línguas africanas do ensino meio e superior, ou ao

jeito em que as formas "femininas" de fala são consideradas afetadas

ou ridículas em não importa qual língua.

Assim chega-se ao ano 1992, quando Michael Krauss publica um

artigo revelador que faz um chamamento crítico: se não mudarmos o

devir das situações que postergam as línguas situando-as nas

margens, para finais do século XXI terão desaparecido o 90% das

línguas faladas pela humanidade. Ainda mais: a soma das

sociolinguísticas particulares feitas sobre cada língua coincidia com

essa arrepiante conclusão. A voz de alarma estava dada e a

linguística profissional começou a considerar a sério o tema da morte

das línguas.

Neste ponto houve também notável disparidade. Uma parte da

linguística, mais acomodada, desconsiderou essas possibilidades

"militantes" que estavam a agir. Insistia em que as línguas morreram

sempre, em que se tratava dum processo tão operativo como a

seleção natural da biologia e conducente, como aquele, à resistência

dos melhores exemplares. Porém, outro sector da linguística,

proveniente das especulações teóricas da gramática, ou dos dados

esclarecedores da sociolinguística extremou o parentesco entre esta

situação de ameaça que viviam algumas línguas e a desaparição de

espécies biológicas. Dois projetos originalmente diferentes confluem e

este grupo, mais comprometido no ativismo, alistava-se a lutar na

defesa das línguas em perigo de morte. Estava a nascer a

ecolinguistica.

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2. MAS SERÁ QUE SE PRECISA UMA ÓPTICA

ECOLÓGICA QUANDO SE FALA DE LÍNGUAS?

Durante séculos o povo galego distinguiu com clareza muitas das

espécies vegetais que o rodeavam. As pessoas, especialmente as

mulheres idosas, sabiam quando floresciam as ervas e também que

males podiam curar, quer como compressa, quer bebidas em infusão.

Para manejá-las comodamente puseram-lhes nomes, muitos deles

com correlato no mundo, autênticas metáforas, como estes:

agulha-de-pastor / erva-agulheira (scandix pecten-Veneris)

castinheiro-das-bruxas (aesculus hippocastanum)

cebola-das-gaivotas (pancratium maritimum)

erva-da-fome (vicia angustifolia)

erva-dos-burros (oenothera glazioviana)

figueira-do-demo / figueira do diabo (datura stramonium)

escornabois (sorbus aucuparia)

língua-de-boi (echium plantaginium)

língua-de-cervo (phyllites scolopendrium)

língua-de-vaca (plantago major)

mata-lobos (aconitum vulparia)

mel-de-raposo (cytinus hypocistis)

mexação (heracleum sphondylium)

pão do cuco (oxalis pes capreae)

pé-de-lobo / amenta de lobo (lycopus europaeus)

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pé-de-galinha / pombinha (fumaria reuteri)

pirixel-das-bruxas (conium maculatum)

rascacú (ruscus aculeatus)

tolhe-merendas (merendera pyrenaica)

uvas-de-can (tamus communis)

uvas-de-raposo (sedum hirsutum)

A maioria dos/as falantes atuais desconhecemos estas palavras. A

menos que nos especializemos em estudos de botânica, nem sequer

ouvimos nunca tais etiquetas. Esta perda não é um simples problema

léxico; também não reconhecemos os exemplares correspondentes.

Pessoalmente apenas distingo duas ou três destas variedades. Dessa

ignorância nascem algumas reflexões que quisera expor a seguir.

A primeira reflexão passa por reconhecermos que ninguém protege o

que não conhece. As mudanças sociais surgidas ao abrigo da

globalização capitalista explicam por que deixamos de conhecer estas

ervas. Num processo lento mais decidido, certos saberes foram

caindo em desuso, quando não considerados pura superstição. A casa

que se abastece no seu contorno de substancias que sanam males

menores, as dores habituais e conhecidas, já não existe. A indústria

farmacêutica fez bem o seu trabalho; varreu com a concorrência. Não

se trata de que as pessoas trabalhem noutros labores ou de que

permaneçam menos tempo na sua morada particular, quando menos

não só disso. Trata-se de que ninguém acredita já no valor do saber

tradicional: em troca da infusão do fiuncho que o sol madurou nas

beiras dos caminhos, compramos umas cápsulas na farmácia, com a

segurança de que serão mais efetivas como remédio. Isso significa

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que um tipo de conhecimento do contorno imediato que estava ao

nosso alcance há duas gerações, deixou de operar como tal. Para nós

todo o que nos rodeia fica indiferenciado como ervas ou, melhor,

como ervalhada, algo que brota espontaneamente e fora de controlo.

Erva apenas é isso que há que cortar com uma máquina segadora

nos fins de semana. Em simultâneo, essas máquinas cortadoras, que

eram um aparelho apenas presente nos filmes americanos da infância

de quem hoje é adulto/a, estão agora nas nossas casas. Para

cortarmos a relva, mais nada. E voltamos ao começo: ninguém

protege o que não conhece. Ninguém o ama. Nem o valora.

As pessoas nascidas na costa sabem que décadas atrás o peixe-sapo

voltava para o mar quando casualmente entrava nas redes. Só

quando alguma mudança social determinou o seu consumo, pôde

passar a ser bem cotizado. A comunidade que não o valorava não o

via como um peixe específico, não lhe prestava a atenção mínima de

nomeá-lo. Esta nova forma de fazermos linguística, com perspectiva

ecológica vem ocupando-se de olhar para as línguas como

fornecedoras dum determinado conhecimento do mundo. Assim,

Mühlhäusler (2003) indica que os animais australianos com aparência

de rata devem receber com urgência novos nomes para se salvarem

da extinção. Ao serem chamados ratos e ratas, estes mamíferos

padecem certos problemas "de imagem". Embora não pertençam à

família destes roedores que os europeus introduziram com os seus

barcos nos últimos centos de anos, semelham-se muito a eles. O uso

dum mesmo nome serve na prática para desacreditar os animais

autóctones, que a povoação pretende exterminar como se fossem

autênticas pestes. Mühlhäusler, a partir da ecologia e da linguística,

sugeriu uma listagem de duas mil palavras em línguas australianas

para distingui-los. Resuscitar essas palavras quiçá sirva para

conservar animais inocentes, que não comprometem a saúde nem

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concorrem com os interesses dos humanos. Reparo nisto e em que na

Galiza o pobre peixe sapo, raramente recebe a bonita etiqueta que

lhe põem no sul: tamboril. A gente, frequentemente, chama-o pelo

seu nome de monstro, de peixe-que-tem-cara-de-sapo. Ainda não

está na nossa cultura plenamente.

A conexão de cada língua com o seu contorno é um dos eidos menos

estudados pela linguística tradicional, e por tanto, dos menos

atendidos nas aulas. Porém, esta óptica antropológica e

comprometida com a preservação duma riqueza que esmorece,

demanda atenção. Se quisermos modificar as nossas relações com o

planeta, todas as mudanças começarão por aí, por práticas

depurativas semelhantes às que pretendem erradicar o racismo ou o

sexismo na linguagem. Vejamos um exemplo.

Na nossa língua, igual que as mulheres são injuriadas com nomes de

animais −cotorras, raposas, víboras−, a natureza descreve-se em

termos claramente sexuais de domínio: as reservas naturais

descobrem-se, conquistam-se ou tomam-se; a fera selvagem

controla-se, desbrava-se ou doma-se, os seus segredos são

penetrados e o seu seio está ao serviço do homem. Do mesmo jeito,

no galego tradicional as fragas virgens pincham-se, cimbram-se ou,

mui eloquentemente, vergam-se para se converterem em terras

férteis, descartando as estéreis. Esta linguagem está a refletir uma

lógica de dominação de onde sai fortalecido um poder patriarcal

eminentemente avassalador, uma violência que se exerce sobre a

natureza por considerá-la inferior (Moure 2008). Neste sentido e em

relação ao exemplo inicial, nada há mais significativo que a expressão

má erva que transluz uma visão interesseira e produtivista. São más

ervas as que proliferam, embora não sejam cuidadas nem desejadas,

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especialmente num campo semeado. São más, não por envenenarem

o ambiente, como faz a contaminação humana, nem por estragarem

um contorno maravilhoso, como o lixo: são más porque lhe disputam

água e alimentos a uma erva que nos vai dar de comer. A erva-da-

fome é uma planta leguminosa (vicia sativa) de caule trepador e

flores de cor violeta que abunda entre os cereais e que se torna

prejudicial para as sementeiras. Na nossa língua também se chama

ervelhaca, veza ou nichela. O nome é uma imagem tendenciosa.

Obviamente a etiqueta com que a denominamos poderia evocar a

ideia de que os seus frutos leguminosos dão alimento as aves e

chamar-se, por exemplo, pão dos pássaros. Com efeito, enquanto os

humanos ficam sem nomes para as suas ervas, enquanto as cortam

para urbanizar, os pássaros desaparecem da paisagem. Os nomes

levam consigo uma visão do mundo, o que os filósofos idealistas

chamaram uma Weltanschauung, uma cosmo-visão.

A segunda reflexão que surge ao lermos esta listagem de ervas já

desconhecidas passa por nos perguntarmos se essa cosmovisão está

completamente perdida ou se compensa perdê-la. Na fronteira entre

o Canadá e os Estados Unidos, sete mil pessoas ainda falam kalispel.

Em kalispel não se pode dizer lago; tampouco montanha. Não há

substantivos que denominem estes acidentes geográficos; cumpre

usar verbos e dizer algo assim como montanhea ou laguea. Ao

carecerem duma etiqueta com que designar estas entidades

conjuntamente, as pessoas que falam kalispel consideram cada lago

ou cada montanha por separado; não podem pensar neles como mais

um entre tantos. Também eu não considero as montanhas nem os

lagos simples acidentes da paisagem; mais tenho que aceitar a óptica

da minha tribo para poder exprimir-me. Contudo, sinto ás vezes que

o meu dever é alertar de que o nome não é inócuo: as montanhas,

vistas como anedotas insubstanciais, podem ser perfuradas pela

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minaria, podem assolar-se e dinamitar-se, porque as suas entranhas,

se contiverem metais, deverão pôr-se ao serviço do capital.

Igualmente, os lagos poderão dessecar-se e os rios trabalhar para as

centrais elétricas movendo turbinas, se forem acidentes. No kalispel

esta visão instrumental da natureza seria impensável.

A realidade não se apresenta perante os nossos olhos objetiva e

pura. Cada vez que julgamos analisá-la, atuamos constrinxidos/as

por um acervo comum: no meu exemplo esse acervo é linguístico,

mas a realidade também se vê mediada pela história. Estou a primar

a língua entre as forças coletivas que nos modelam porque merece

ser reivindicada como nunca quando impera o desapego para com

ela; finalmente, como dizia Castelao, se ainda somos galegos/as é

por obra do idioma. Em todo o caso, quer nos refiramos à língua,

quer à história partilhada, cada qual tem alojado na sua mente todo

um coletivo. Numa época de máximo individualismo como a que nos

toca viver, cumpre salientar este dado. Mesmo quando uma pessoa

permanece sozinha num quarto, matinando num problema, a

concatenação dos seus pensamentos realiza-se por via linguística e,

nesse sentido, cabo do individuo pensador, estão sentando-se a

pensar os demais falantes da sua comunidade linguística e cultural,

as distinções e as noções comuns na sua época, a bagagem científica,

artística e ideológica que o coletivo amassou ao longo de anos e,

mesmo, a moreia de superstições, prejuízos e conceitos tortos que

poda arrastar. Para bem ou para mal, o pensador sozinho apenas

existe. Avançamos lenta e penosamente, mais em coletivo.

Quiçá muitas das noções que manejamos cada dia, e com que

modelamos o nosso conhecimento sobre o mundo nas nossas

concepções científicas ou artísticas estejam impregnadas de

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gramática. Pensamos, por exemplo, que existem o passado, o

presente e o futuro porque esta divisão tripartite, relativamente rara

nas línguas do mundo, é a forma de contemplar a realidade da nossa

língua ou, em geral das línguas europeias, que têm paradigmas de

passado, presente e futuro, os quais devem ser utilizados

obrigatoriamente. Por muito que a ciência atual teime em assegurar

que esse vetor temporal não existe, que se trata duma metáfora

humana, nós não damos acreditado na teoria da relatividade porque

a gramática que se coce no nosso cérebro perpetua a mesma visão

do mundo que tinha Aristóteles. Mais, com toda probabilidade, as

ideias que diariamente empregamos –e talvez mesmo as teorias

científicas que elaboramos– seriam distintas se Aristóteles, em vez de

grego ático falasse uma língua ameríndia ou uma língua dravídica.

A gramática não deve apresentar-se já, por tanto, como uma

instituição que regula os usos corretos e incorretos, o que se deve ou

não dizer. Nem sequer tem nada a ver com a listagem de todas as

formas duma língua, com esse afã de exaustividade que alberga o

dicionário. Desde esta perspectiva, a gramática passa a ver-se como

um conjunto de instrumentos para captarmos a realidade, sem os

quais não se pode obter da linguagem um conhecimento que

ultrapasse o anedótico, a pura erudição. Como não uso já esses

nomes de ervas, não percebo até o final, a cosmovisão que trazem.

Posso imaginar as cativas procurando a erva chamada mel-de-raposo

para lhe chucharem o mel, posso supor que a erva-das-feridas tem

propriedades antissépticas, que o mata-lobos é tóxico, que a erva-

dos-pobres faz referencia ao uso pelos mendigos para se fazerem

feridas com que induzir à compaixão e que a língua-de-cervo, como a

língua-de-boi e a língua-de-vaca, terá folhas dessa formas. Mais não

sei como é a língua dum cervo. Não sei em que se distingue da língua

dum boi. As nossas avós berram desde o dicionário significados que

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não nos resultam já inteligíveis. E isso, como falante, preocupa-me.

Cada vez o mundo inteiro é mais igual. Perdemos diversidade. Pior do

que isso: essa diversidade não é substituída por outro tipo de

riqueza. A globalização mata mundos prévios e esses mundos prévios

coincidem com o que chamamos normalmente cultura. Peter

Mühlhäusler conta-o com palavras bem sugestivas (2003: 120-1):

O discurso da linguística até há pouco tempo não se diferenciava

muito do discurso dos partidários do desenvolvimento. A redução da diversidade linguística tendeu a ver-se como um processo

“natural”, um modo de sobrevivência dos melhores. Os linguistas sustentavam a hipótese da independência, que nega a

possibilidade de interdependência entre gramática e ambiente. Salientando a base universal de todas as línguas humanas, em

geral subestimaram o efeito da perda de línguas: se todas as línguas são traduzíveis, a sua perda é pouco mais do que a perda

das estruturas superficiais que intercambiam os seus usuários.

[...] Cada língua está funcionalmente integrada dentro dum conjunto de parâmetros externos à gramática e [...] cada

gramática pode ver-se como um depósito da experiência passada, como resultado dum largo processo de adaptação a

condições ambientais específicas. O feito de que diferentes línguas ofertem diferentes perspectivas do mundo significa que

esta diversidade procede, precisamente, de que são necessárias diferentes palavras para viver em diferentes ambientes.

3. ECOLINGUISTAS, NÃO COLECIONADORES/AS

Até aqui as minhas palavras quiçá fossem esperáveis: há um ativismo

implícito na recuperação das línguas. Agora vou imprimir-lhes uma

viragem deliberada. A menção da ecologia tende a produzir nas

mentes a imagem da coleção, de quem recolhe a variedade para

inventariá-la, fazendo elenco, por exemplo, da flora ou da fauna

duma determinada zona. No ativismo ecológico esta atitude é

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frequente e, não por acaso, apoia-se em material linguístico. Quando

queremos saber os nomes das ervas em galego, não deitamos mão

dum manual de filologia, mas de botânica. Observemos que estas

duas disciplinas ficam irmanadas. A atitude da conservadora de

espécies em biologia vai parelha à atitude da conservadora de

variações em filologia. E a botânica com os seus herbolários atua

como a dialetologia com os seus mapas onde se fixam espécies como

a gheada ou a metátese de o tônico. Como não podemos conservar o

que não conhecemos nem amamos, esta atitude é historicamente

básica para trabalharmos contra a extinção, de espécies animais ou

de línguas. O problema está em delimitarmos agora o que

entendemos por ativismo.

Skutnabb-Kangas (2000) publicava a listagem das línguas que

superam o milhão de falantes, algo mais de duzentas, perguntando a

seguir, num exercício acadêmico, quantas delas podiam ser situadas

geograficamente num mapa. Aliás, esta autora, que prefere falar de

assassinato das línguas em vez de simples morte, convidava a quem

estivesse a ler, a procurar num atlas linguístico o número de falantes

de cada uma delas, a fim de avaliar se o próprio conhecimento é

eurocêntrico. Quando uma pessoa estudante de Filologia se enfrenta

a este exercício, percebe rapidamente que não é capaz de colocar no

mapa a maioria das línguas que se lhe ofertam. Embora se trate das

línguas mais faladas do mundo, muitas delas são absolutamente

desconhecidas, mesmo para uma pessoa interessada pelas línguas.

As que remetemos para um território são frequentemente europeias.

Não se trata necessariamente das mais faladas; são línguas oficiais

de países pequenos e se as conhecemos não é porque em linguística

seja habitual citá-las, mas porque o seu nome coincide com o nome

do país correspondente e, ao ser este europeu, sabemos onde se

acha. Tal exercício tira à luz o nosso eurocentrismo. Em primeiro

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lugar, o da disciplina linguística, que quase nunca exemplifica com

línguas africanas ou ameríndias. Em segundo lugar o eurocentrismo

dos sistemas educativos, que perseveraram em que devíamos

aprender os países da Europa e as suas capitais, mais não viram tão

interessante preocupar-se com o resto do mundo. Finalmente,

qualquer um percebe a medida do seu próprio eurocentrismo, do que

está inscrito nas nossas mentes e que nos manipula para pensar que

o dinamarquês ou o sérvio são línguas que poderemos aprender e, no

entanto, o hausa ou o suahili, superiores em número de falantes, não

serão um objetivo interessante para a nossa formação. Estamos

perante um exercício destinado a fomentar a intervenção. Mais do

que nos convidar a uma reflexão em abstrato, provoca o sentimento

de sermos seres com um papel efetivo na transformação do mundo.

Contrariamente a um atlas dialetal, que consistiria num puro

inventário, este estilo de materiais propicia uma reflexão acerca do

poder.

Quando, no início da década de '90, apareceu a revista Linguistic

Typology, o tipólogo Bernard Comrie, no seu número 1 exortava as

pessoas que trabalham na linguística, a abandonarem a via

especulativa ou puramente teórica que caracterizara durante décadas

as discussões entre partidári@s e detractor@s da Gramática

Generativa. No editorial desta publicação, Comrie solicitava com toda

a urgência possível que a linguística se dedicasse a documentar

línguas para tê-las descritas antes da sua desaparição, que julgava

iminente. Mais o afã de inventariar primou sobre a necessidade de

transformarmos a realidade. É completamente certo que as línguas

estão a esmorecer no mundo a um ritmo vertiginoso. É certo que

seremos cúmplices dessa ruína se nos refugiamos em universos

conceptuais mui complexos, evitando o compromisso com a

realidade. Contudo, durante os quinze anos seguintes,

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acrescentaram-se as descrições de línguas exóticas, sem por isso

invertermos na maioria dos casos as forças que atuavam na sua

contra. Acho que o caso galego é bem representativo desta

tendência. Nas últimas décadas o galego tornou-se um objeto de

investigação de primeira magnitude. Contamos com detalhadas

descrições das suas variantes fonéticas, morfológicas e lexicais, às

quais diferentes instituições dedicaram mimos de colecionador/a. O

inventário tem todo o rigor e o detalhe dum herbolário, ademais de

rebordar de princípios da investigação antropológica. Porém, esta

energia parece destinada à pura erudição −a formar especialistas que

conheçam essa variação−, enquanto as duas linhas de ativismo

"ecológico" ficam bastante desatendidas:

a) Por uma parte, falta investigação sobre a linguagem, não sobre a

língua galega, feita desde esta língua. Para quando teses, não sobre

um autor e os seus textos literários, mas sobre a aquisição infantil da

linguagem feita desde o galego, ou feita desde o contexto de

comunidades com línguas em conflito? Para quando trabalhos sobre

sintaxe teórica −que regras atuam para produzirmos determinados

enunciados− abordados desde o galego e não desde o inglês que

tristemente ocupa todo o espaço da investigação "generalista", ou

seja, não referida a dados de línguas particulares?

b) Uma segunda linha de ativismo ecológico seria a da planificação

linguística, destinada a elaborar medidas para estimular o uso da

língua, para pôr em prática todo o conhecimento acumulado pela

sociolinguística. De certo esta linha não é inédita, mas, em geral,

tendemos a ver esse trabalho como parte duma reivindicação política

ou administrativa, dum "temos direito a...", e não como uma prática

ecológica −e por tanto ética−, a verdadeira prática ecológica porque

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o conservacionismo de variantes em si mesmo não é mais que puro

ambientalismo.

4. SOBRE ECOLOGIA (VERDADEIRA) E

AMBIENTALISMO (OU ECOLOGIA FALSA)

No campo da ecologia pratica-se uma distinção básica entre

ambientalismo e ecologismo que agora quiçá cumpra desenvolver.

Ainda que às vezes se confundam os termos, o primeiro surgiu como

uma aproximação, administrativa e pouco sistemática para enfrentar

os problemas da natureza; não é uma ideologia, nem um corpo de

conhecimento, apenas um remendo. Num sentido bem diferente, a

ecologia é uma forma de pensamento que faz referencia à

necessidade de se empreenderem mudanças profundas e de maneira

urgente tanto no âmbito da organização social como nas atitudes

respeito do mundo natural não humano (Moure 2008). Igual que o

feminismo e que o pacifismo, o ecologismo esteve nas bases da

contracultura para ir-se depois adaptando às peculiaridades de cada

situação. Ocasionalmente aspira a vir a ser num eixo articulador da

vida social, além das organizações políticas convencionais que

procuram fagocitá-lo; noutras ocasiões aspira a transformar a partir

de dentro estas organizações. Aliás, enquanto o pacifismo e o

feminismo podiam trazer raízes de antigo, o ecologismo, como crítica

do produtivismo industrialista das nossas sociedades opulentas, era

uma total novidade, aqui como em toda a Europa e a América.

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Fronte a este calado profundo do ecologismo, pode julgar-se

ambientalista uma praxe política que se ocupe da natureza sem

provocar uma mudança fundamental nos atuais valores de produção

e consumo. Porque o ecologismo mantém que uma existência

sustentável e satisfatória precisa transformações radicais na nossa

relação com o mundo natural não humano e na nossa forma de vida

social e política. Usando o exemplo de Dobson (1995), a rainha de

Inglaterra não se torna ecologista por adaptar as suas limousines à

gasolina sem chumbo. Esta decisão seria ambientalista, destinada a

contemporizar com a época que vivemos porque, se fosse ecologista,

a rainha de Inglaterra teria de deitar fora as limousines.

Neste sentido, pode pensar-se que o ecologismo é um ambientalismo

mais radical. Decerto, é mais radical, mas não se trata só duma

diferença de grau. Se fosse um problema de grau, o ambientalismo e

o ecologismo não concordariam, simplesmente, na quantidade de

CO2 que pode admitir-se circulando pela atmosfera ou remediariam

este problema usando filtros diferentes. Mas as diferenças entre as

duas opções surgem de contemplarem a realidade a partir de duas

ópticas. No caso do ambientalismo trata-se de ver quanto podemos

puxar da corda sem que parta e, pontualmente, evitar as situações

que põem em risco o difícil equilíbrio da biosfera. No caso do

ecologismo trata-se de por em causa o domínio que os humanos

vimos exercendo sobre a biosfera. É possível que estas duas noções

produzam políticas diferentes em grau, mas essa diferença de grau

gera um salto qualitativo. As medidas verdes que todos os partidos

políticos desenham nas suas campanhas eleitorais formam parte

duma sociedade de serviços opulenta e tecnológica: na realidade os

filtros de dióxido de carbono em chaminés industriais, os aerossóis

sem CFC e os tubos de escape com catalizadores não desafiam o

consenso do que resulta desejável para a sociedade do século XXI; ao

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contrário, acabam por reforçar a opulência e a tecnologia em vez de

as porem em causa. No entanto, o ecologismo pretende uma

revolução não violenta que derrube a atual sociedade poluente,

saqueadora e materialista e, no seu lugar, implante uma nova ordem

social que permita os seres humanos viverem em perfeita harmonia

com o planeta. Nesta perspectiva o movimento verde pretende ser

uma força cultural e política realmente transformadora.

O ecologismo tenta explicitamente trasladar o ser humano como

centro do mundo, questionar a ciência mecanicista e as suas

consequências tecnológicas, recusar-se a acreditar em que o mundo

esteja feito em exclusiva para os seres humanos e todo isto

matinando se o projeto de opulência material dominante é desejável

ou se pode continuar mantendo-se. Todas estas componentes de

procura e análise omitem-se se decidimos restringir a política verde a

um ambientalismo que persiga uma economia mais limpa, sustentada

por uma tecnologia mais limpa e produtora duma opulência mais

limpa. Além disso, muitos dos artigos que consumimos respondem a

carências que convertemos em necessidades pelas poderosas forças

persuasivas que nos rodeiam. Se uma sociedade ecológica pode

substituir o atual modelo de consumo será por proporcionar

satisfações mais fundas que possuir ou esgotar objetos materiais. A

propaganda duma vida frugal e a exortação a conectar com a Terra

combinam-se no ecologismo para produzir esse ascetismo espiritual

que constitui uma parte tão importante do perfil do ecologista. A

diferença entre ambientalismo e ecologismo tem, pois, correlato

ético. Na primeira opção os seres humanos devem cuidar a natureza

porque isso redunda nos seus próprios interesses; na segunda

afirma-se que a natureza tem um valor intrínseco, que ultrapassa os

fins humanos e continua a ter importância além da nossa existência.

Que as florestas tropicais se devam conservar porque proporcionam

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oxigênio, ou matérias primas para medicinas ou porque impedem a

terra de erodir não é uma razão ecológica radical; é uma

preocupação por nós e pelo nosso futuro. Que algumas pessoas

clamem pela necessidade de preservarmos a natureza como fosse

uma reserva de diversidade genética, para fins agrícolas ou médicos,

como matéria de estudo científico, ou pelas oportunidades que nos

fornece de prazer estético e inspiração espiritual não tem nada de

estranho. O que se nota a faltar neste estilo de argumentações é uma

óptica imparcial, que não olhe pelo “nossinho”, uma ética menos

antropocêntrica e mais biocêntrica ou, melhor ecocêntrica, que

contemple os valores intrínsecos ao mundo não humano.

5. OS RISCOS DUMA LINGUÍSTICA AMBIENTALISTA

Com o passar dos anos, o ambientalismo foi aceite na política,

usurpando o nome à ecologia e, a partir de aí, foram introduzindo-se

argumentos práticos sob o nome de políticas "verdes". Deste jeito,

chegado um momento viu-se que para deter os abates massivos na

floresta amazônica, não chegava com tornar públicos os dados sobre

a desflorestação ou a morte dos animais porque a opinião pública não

se mostrava sensível a estas questões. Começaram por tanto a

elaborar-se argumentos para a captação: com a perda dessas

florestas vão-se muitas substâncias que a medicina tradicional dessas

comunidades amazônicas usa para a cura de enfermidades e vão-se

antes de a farmacopeia as analisar. Aliás, entre as espécies

desaparecidas podem estar os antídotos para as enfermidades que

nos podam invadir no futuro, quiçá o segredo para acabar com a

SIDA, por exemplo. O medo coletivo acabou por desembocar em

políticas ligeiramente verdes. Este estilo de argumentos ruins,

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orientados a gerar soluções práticas em troca de soluções éticas,

também se apresenta na ecolinguística. Como a sociedade é pouco

propicia a interessar-se pela morte das línguas, revirasse o

argumento: Provavelmente a ideia de linguagem não possa ser

abordada se não contarmos com suficiente base empírica. Como é

que poderemos saber se o conhecimento que elaboramos, sobre

fonemas, sobre o tempo verbal ou sobre o gênero neutro, não está

determinado por termos abordado umas poucas línguas procedentes

todas da mesma área geográfica?

Quando se fala de extinção massiva das línguas, uma opinião mui

estendida aceita que, mesmo se o problema é real, dista muito de ser

catastrófico. Com um exagerado otimismo supõe-se que poderemos

acomodar-nos paulatinamente a esta redução da variedade cultural:

perderemos o anedótico mais permanecerá o essencial. Esta atitude

apresenta um grau de colonialismo porquanto trata como

insignificante a perda de pequenas línguas face à riqueza conceptual

e formal de inglês, árabe ou espanhol. Ademais do racismo linguístico

implícito nessa proposta, o argumento continuaria carecendo de

validade ainda que se recorresse na comparação ao japonês, o suaíli

ou o euskera. A defensa das línguas que se pratica desde a linguística

profissional não é precisamente desinteressada: advoga-se a

conservação para manter o campo profissional, o qual é tanto como

pôr em causa o futuro e o interesse da conservação. Nos últimos

vinte anos apareceram diferentes iniciativas para trabalhar a meio

caminho entre princípios ecológicos e linguísticos −como a Fundação

para as línguas ameaçadas (www.ogmios.org), o grupo Terralingua, o

arquivo multimedia sobre línguas do Instituto Max Planck e tantos

outros−. O problema é que em todos estes casos parece que a

linguística profissional pretende dar uma lavadela e sacudir-se a mala

reputação com uma ação empreendida tardiamente e de escassa

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efetividade, que tenha como resultado uma magnífica coleção de

línguas... mortas.

Levando este assunto ao âmbito da língua galega, que é a que nos

importa neste lugar do mundo, seria pouco apropriado propormos

uma sobredocumentação como a que temos que não fosse

acompanhada de medidas efetivas de introdução da língua na

investigação sobre a linguagem e de normalização para todos os

efeitos na sociedade. Não trabalhamos para conservar documentada

esta língua, mas para mantermo-la viva. E com isso questionamos

todo um sistema de valores. Questionamos, por um lado, a

globalização que nos homogeiniza e nos reduz a simples

consumidores/as, em lugar de ver-nos como seres que pensam e

sentem dum jeito em parte universal, no sentido de partilhado por

todos/as, e em parte modelado culturalmente. Mas questionamos

também, a partir do galego, protegendo-o e amparando-o, a

conversão da língua num eido profissional alienado e afastado da

realidade histórica, uma tecnocracia carente de ideologia.

Obviamente, se quisermos fazer ativismo linguístico com base

ecológica, quereremos salvar o galego da substituição pelo espanhol

que o ameaça na Galiza. E quereremos salvá-lo porque é nosso,

porque se o não fizermos nós, quem o há de fazer? Mas o nosso fim

não é a pura erudição, o afã de apanhar um nutrido inventário, mas o

de nos reconhecermos como cultura diferenciada e, nesse sentido,

poder escutar as vozes que desde o dicionário ainda berram: tolhe-

merendas, mata-lobos, rabo-de-raposa, trevo-das-pozas, erva-

moura.

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Num sentido parcialmente diferente, a ecolinguística atende à perda

de línguas no mundo. Poderíamos argumentar sobre o direito dos/as

falantes de qualquer tribo a manterem a sua riqueza cultural e o seu

jeito habitual de interação. Mas, depois de estudarmos a hipótese de

relatividade linguística, sabemos que cada língua leva implícita uma

cosmovisão, de forma que a morte de línguas significa a morte

doutras tantas formas de ver o mundo. Ademais de perdermos os

conhecimentos que cada comunidade tenha acumulado, deixamos de

aceder a ideias que, talvez, não estejam na visão própria, de jeito

que a morte duma língua não é só uma catástrofe para a comunidade

que a fala, mas para toda a humanidade.

Olhemos para nós. Um indício de morte duma língua é a perda da sua

riqueza expressiva, que se vai limitando a certos usos. O galego,

ninguém o negará, está melhor assentado em usos coloquiais e

irrelevantes que em registos cultos. A qualidade do galego

reconhece-se em traços concretos: o uso do futuro do conjuntivo, do

infinitivo flexionado, das interpolações pronominais, entre outros

aspectos que não detalharei agora, serve para recuperarmos um

potencial idiossincrático do idioma hoje esmorecente (Freixeiro Mato

2009). Muitas destas formas são reconhecíveis na fala das pessoas

idosas; não são algo inventado, ou alheio, ou exclusivo das gentes da

escrita, mas o seu uso é tão escasso por parte da maioria que

devemos renaturalizar estas formas diferenciais, para não passarmos

a falar um galego que, curiosamente, coincide na sua gramática

ponto por ponto com o espanhol.

Para insuflar-lhe vida à língua temos que ser conscientes de tanto

como a história nos roubou e afrontarmos com um esforço deliberado

todos os problemas duma transmissão entre gerações interrompida.

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Porque a língua não nos vem dada de graça como o ar que

respiramos, nem requer pedigree rural. Temos que aprender a

chuchá-la dos que a conservam, a amassá-la como sarilho com que

nos nutrir cada dia, a expurgá-la. Lutarmos pela língua com que a

nossa tribo enxergou desde antigo o mundo é tanto como nos

assegurarmos a dignidade, como reconstruirmos a identidade

coletiva, em nome de quem vier atrás. Lutarmos pela língua é

lutarmos pela liberdade.

A gramática é a componente fundamental da língua. A gramática

humanizou a espécie. A gramática exige uma localização cerebral

específica, que não funciona nos parentes símios nem nos seres

humanos afásicos. A gramática é um conjunto de regras que nunca

equivocamos durante o processo de aquisição que percorremos em

solidão; é a ordenação essencial que faz a língua e, se admitirmos

que a língua traz uma forma de ver o mundo, será essa gramática a

que nos dá os tijolos para o construirmos. Por isso, se perdemos o

futuro de conjuntivo, um exemplo, perdemos uma forma acabada de

nomear a realidade que não está na maioria das línguas do mundo;

uma forma de pensar no futuro como algo real: Se fores à praia

verás que grande é o mar, quando fores, que iras. E pensar no futuro

como algo real é dar valor as utopias. Se calhar só por isso o povo

galego não se pode permitir perder o futuro de conjuntivo... Ao

visitar a gramática com este matiz revolucionário, a ecolinguística

vem demonstrar que a língua, por riba de instrumento de

comunicação e mesmo de objeto estético é, sobretudo, uma peneira

da realidade e um projeto coletivo. A dignificação completa desta,

como de qualquer outra, língua passa por reconhecer a sua condição

de instrumento criador da realidade mental e, então, a investigação

sobre a cosmovisão implícita na língua galega é um assunto urgente

e necessário, ecologicamente irrenunciável.

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6. COSMOVISÃO E FUTURO

Quiçá possa surpreender esta teima de procurarmos o que é

idiossincrático do galego. Explicarei, para rematar, como chegamos a

esta via. Durante anos um grupo de investigadores da Universidade

de Santiago de Compostela tivemos um projeto para desenharmos

um atlas das línguas do mundo, visto que, contra o que possa

pensar-se, a linguística continua a ser uma disciplina fortemente

eurocêntrica, cujos dados quase não incluem as línguas da nossa

área cultural imediata. Pensávamos que, mesmo um grupo pequeno,

numa universidade afastada dos grandes centros de investigação,

poderia assumir essa tarefa numa época em que os dados podem

publicar-se na internet para serem verificados ou contrastados

rapidamente em qualquer lugar do mundo. Na primeira fase

recolhemos informação das línguas com mais de 100 mil falantes,

comparando todo o que sobre elas aparecia nos manuais e atlas

usuais.

O surpreendente resultado desta primeira etapa revelava que os

principais recursos que a linguística utiliza sobre o seu campo de

saber não coincidem. A nossa hipótese inicial −o desinteresse com

que a linguística trata as línguas da humanidade− verificava-se.

Tentamos a seguir elaborar parâmetros sobre o grau de ameaça que

afeta as línguas e começamos uma procura diferente. Procuramos

nas publicações especializadas as menções que se faziam de línguas

não ocidentais e obtivemos que a linguística faz referência a mui

poucas línguas. Mesmo aquelas que menciona são remetidas sempre

para os mesmos fenômenos: o dyirbal, uma língua australiana

praticamente extinta, por exemplo, aparece mencionado apenas para

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ilustrar um fenômeno sintático, a construção ergativa. Não é, pois,

que o dyirbal se tornasse um autêntico objeto de investigação, mas

que vale como exemplo de borboleta rara. Com semelhantes

conclusões, víamo-nos em disposição de provar que o conhecimento

que a linguística tem das línguas humanas é excessivamente curto e

que está trivializado. Se se desse uma situação semelhante em

biologia (para continuarmos com o exemplo ecológico) teríamos que

a diversidade dos seres naturais ficaria resumida nos textos

especializados da zoologia nas duas ou três espécies mais frequentes

nos ambientes humanos. Em vez de falar de leões, a zoologia diria

"um tipo de gato", em vez de girafas, teríamos "um tipo de ovelha de

pescoço longo"; em vez de condores, os especialistas conformar-se-

iam com um "tipo de galinha". O nosso plano de trabalho passou na

seguinte fase por dar forma, coerência e difusão para essa

investigação prévia. Pensávamos estar em disposição de elaborar um

atlas sociolinguístico que não só publicasse dados, mas também

explicasse a situação ecolinguística da humanidade: as divergências

entre as línguas, as ameaças que estas devem superar, as

possibilidades para resgatar algo dessa diversidade. Tratar-se-ia de

comover a linguística e a opinião pública. Como tantas vezes

acontece no ativismo, nessa fase ficamos sem financiamento. Isso

significa que a investigação se deteve, e que não conseguiremos com

ela chegar aos grandes centros de irradiação do saber. Mas a

semente foi lançada. Ninguém a esta altura permaneceria em calma

se um grupo de pessoas quisesse derrubar a muralha chinesa ou

queimar o museu de Louvre. O compromisso da humanidade com os

bens culturais que tem produzido é alto, como corresponde aos seres

bastante ensoberbecidos que somos −tendemos a dar um valor

superior as nossas produções do que ao trabalho lento da natureza−.

Por isso, no século XXI, parece obvio que uma atitude responsável

passa por evitarmos a perda das línguas, uma vez que estas são

patrimônio cultural e intelectual da humanidade. Mais esse

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argumento exige ativismo, e deve mover as pessoas que o assumam

para a defensa das línguas em pior situação.

Referências bibliográficas

Dobson, A. (1995): Green political Thought, London Routledge. Trad.

esp, Pensamiento político verde, Barcelona, Paidós, 1997.

Freixeiro Mato, X. R. (2009): Língua de calidade, Vigo, Xerais.

Moure, T. (2008): O natural é político, Vigo, Xerais.

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Mühlhäusler, P. (2003): Language of environment. Environment of

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