Ecoética e aquecimento global

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Revista Tecer - Belo Horizonte – vol. 8, nº 14, agosto de 2015 66 Ecoética e aquecimento global http://dx.doi.org/10.15601/1983-7631/rt.v8n14p66-74 Manuel Alfonso Díaz Muñoz * Resumo O presente artigo pretende apresentar os dados científicos mais recentes sobre a questão do aquecimento global e discutir suas implicações políticas e éticas. Destaca- se a centralidade da questão ética e a necessidade de um novo paradigma biocêntrico, pois a vivência de uma nova ética ambiental global ou ecoética aparece como condição necessária para a sobrevivência humana e planetária. Conclui-se o artigo com o que se entende é a expressão concreta dessa referência ética comum: a Carta da Terra. Palavras-chave: aquecimento global; eco ética; carta da terra. Introdução Na década passada, Al Gore ex-vice-presidente dos Estados Unidos e prêmio Nobel da Paz em 2007, alertava que o nível do mal poderia subir por acima dos seis metros em um futuro próximo. Esta previsão foi criticada por muitos como exagerada, mas a realidade parece lhe estar dando a razão. Novos estudos confirmam o progressivo aquecimento da temperatura global e a elevação do nível marino, revivendo as funestas previsões feitas pelo Painel Intergovernamental das Nações Unidas para o Câmbio Climático (IPCC) em 2007. Estes fatos colocam a questão ética em pauta, embora deva ser pensada desde um novo paradigma que deixe de lado a visão antropocêntrica tradicional. A vivência de uma nova ética ambiental ou ecoética aparece como condição necessária para a sobrevivência humana e planetária. No presente artigo, pretende-se discutir esta questão a partir dos dados científicos mais recentes sobre o tema, destacando a dimensão política e ética do problema e apresentando as razões da necessidade de um novo paradigma ético global. Concluímos o artigo com o que entendemos é a expressão concreta dessa referência ética comum: a Carta da Terra, ratificada pela UNESCO em março de 2000. A dimensão ética do aquecimento global O Painel Intergovernamental das Nações Unidas para o Câmbio Climático * (IPCC, 2001), que compartilhou o prêmio Nobel com Gore, calculou que o nível do mar * Psicólogo e teólogo com mestrado em Teologia (Religião e Educação) e em Psicologia (Social) e doutorado em Teologia (Religião e Educação). Professor da disciplina Meio Ambiente e Consciência Planetária e pesquisador na área de Direitos Humanos e Educação, com ênfase na temática da educação para a paz. [email protected]

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Artigo da revista Tecer do Instituto Izabella Hendrix, Belo Horizonte-MG

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Revista Tecer - Belo Horizonte – vol. 8, nº 14, agosto de 2015 66

Ecoética e aquecimento global http://dx.doi.org/10.15601/1983-7631/rt.v8n14p66-74

Manuel Alfonso Díaz Muñoz*

Resumo

O presente artigo pretende apresentar os dados científicos mais recentes sobre a

questão do aquecimento global e discutir suas implicações políticas e éticas. Destaca-

se a centralidade da questão ética e a necessidade de um novo paradigma

biocêntrico, pois a vivência de uma nova ética ambiental global ou ecoética aparece

como condição necessária para a sobrevivência humana e planetária. Conclui-se o

artigo com o que se entende é a expressão concreta dessa referência ética comum: a

Carta da Terra.

Palavras-chave: aquecimento global; eco ética; carta da terra.

Introdução

Na década passada, Al Gore ex-vice-presidente dos Estados Unidos e prêmio Nobel da

Paz em 2007, alertava que o nível do mal poderia subir por acima dos seis metros

em um futuro próximo. Esta previsão foi criticada por muitos como exagerada, mas a

realidade parece lhe estar dando a razão.

Novos estudos confirmam o progressivo aquecimento da temperatura global e a

elevação do nível marino, revivendo as funestas previsões feitas pelo Painel

Intergovernamental das Nações Unidas para o Câmbio Climático (IPCC) em 2007. Estes

fatos colocam a questão ética em pauta, embora deva ser pensada desde um novo

paradigma que deixe de lado a visão antropocêntrica tradicional. A vivência de uma

nova ética ambiental ou ecoética aparece como condição necessária para a

sobrevivência humana e planetária.

No presente artigo, pretende-se discutir esta questão a partir dos dados científicos

mais recentes sobre o tema, destacando a dimensão política e ética do problema e

apresentando as razões da necessidade de um novo paradigma ético global.

Concluímos o artigo com o que entendemos é a expressão concreta dessa referência

ética comum: a Carta da Terra, ratificada pela UNESCO em março de 2000.

A dimensão ética do aquecimento global

O Painel Intergovernamental das Nações Unidas para o Câmbio Climático* (IPCC,

2001), que compartilhou o prêmio Nobel com Gore, calculou que o nível do mar

* Psicólogo e teólogo com mestrado em Teologia (Religião e Educação) e em Psicologia (Social) e

doutorado em Teologia (Religião e Educação). Professor da disciplina Meio Ambiente e Consciência

Planetária e pesquisador na área de Direitos Humanos e Educação, com ênfase na temática da educação

para a paz. [email protected]

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elevou-se a um ritmo de 1,7 milímetros anuais durante o século passado. A previsão

para o séc. XIX era de uma elevação do nível do mar, em média, entre 0,22 e 0,44

cm. em relação a 1990 (VELAYOS, 2008).

Estes dados foram contestados em um artículo publicado no dia 22 de janeiro na

prestigiosa revista Nature (HAY; MORROW; KOPP; MITROVICA, 2015) onde uma equipe

de pesquisadores da Universidade de Harvard, usando novos modelos matemáticos,

calcula que o nível do mar subiu “apenas” 1,2 milímetros ao ano entre 1901 y 1990.

Mas, igualmente, afirma que a velocidade da subida do nível do mar nos últimos 20

anos é maior do que se pensava, chegando a ser de 3 milímetros anuais entre 1993

e 2010. Isto é, o mar passou de ascender 1,2 milímetros por ano até 1990 para 3 até

2010.

O crescimento do nível dos oceanos está diretamente relacionado com o aumento da

temperatura terrestre, que provoca o derretimento do gelo principalmente concentrado

nos dois casquetes polares do planeta. Contudo, essa elevação não é uniforme, pois

depende de múltiplos padrões geográficos estudados pelos pesquisadores de Harvard

através de dados enviados por satélite e o registro histórico das marés.

O Painel Intergovernamental das Nações Unidas para o Câmbio Climático (IPCC)

calculou que, após o último período glacial que viveu a Terra faz uns 21 mil anos

atrás, o nível do mar ascendeu 120 m. Nos últimos dois mil anos estabilizou-se até a

chegada da Revolução Industrial, que disparou as emissões de CO2 e provocou o

aumento da temperatura planetária e o Aumento do nível marino. As consequências

futuras de novas elevações podem ser catastróficas para as populações litorâneas.

Segundo analistas independentes da NASA e da Administração Nacional Oceânica e

Atmosférica dos EUA (NOAA), a temperatura média da superfície da Terra no ano de

2014 foi 0,69ºC superior à média do séc. XX, 0,04ºC a mais do que os anteriores

recordes observados em 2005 e 2010 (ANSEDE, 2015). Isto é, desde que começaram

os registros em 1880 2014 é o ano mais quente. Vejam o gráfico dos recordes de

calor (vermelho) e de frio (azul) em 2014 (Figura 1).

Segundo os estudiosos da NASA, a subida média de 0,8ºC da temperatura terrestre

desde 1880 é devida, em grande parte, ao aumento das emissões humanas de gases

à atmosfera, principalmente CO2, sobretudo nos trinta últimos anos. De fato, com

exceção de 1998, os dez anos mais quentes tem se registrado no séc. XXI. Gavin

Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, declarou num

comunicado:

Este é o último de uma série de anos quentes, de uma série de

décadas quentes. Enquanto que um ano isoladamente pode se ver

afetado por padrões meteorológicos caóticos, as tendências em

longo prazo podem-se atribuir a fatores geradores da mudança

climática, dominados, agora, pelas emissões humanas de gases de

efeito estufa (NASA, 2015).

* O IPCC foi constituído pela ONU e a Organização Meteorológica Mundial em 1988 para recolher

informação sobre a mudança climática no mundo e elaborar informes que ajudem os governos na tomada

de decisões.

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Figura 1 - Gráfico dos recordes de calor (vermelho) e de frio (azul) em 2014.

Fonte: Ansede, (2014).

Os dados foram tomados em 6.300 estações metereológicas terrestres e marítimas

(barcos e bóias), além de registros na Antártida. Os analistas da NASA salientam,

contudo, que os fenômenos El Niño e La Niña, responsáveis pelo aquecimento e

esfriamento das águas oceânicas da região tropical provocarão flutuações nas

temperaturas nos próximos anos. Eles são os responsáveis de que nos últimos 15

anos as temperaturas não tenham subido mais e de que tenham acontecido

fenômenos climáticos extremos em diferentes regiões do planeta.

Como consequência da elevação da temperatura planetária houve uma diminuição de

50% (em relação ao registro histórico) da extensão da cobertura de neve do

hemisfério norte do planeta, atualmente na faixa dos 65 milhões de Km2. A cobertura

de gelo da região ártica, de 28 milhões de Km2 em média, foi a menor dos últimos

36 anos. Esta perda triplica o volume de gelo ganho, paradoxalmente, na Antártida em

2014 e por segundo ano consecutivo (34 milhões de Km2).

Sendo assim, embora alguns dos seus dados serem corrigidos em pesquisa recentes

como temos visto anteriormente, as previsões do Painel Intergovernamental das

Nações Unidas para o Câmbio Climático continuam sendo válidas. O Quarto Informe

do IPCC (2007) elaborou um mapa de possíveis cenários em função das medidas

sociais e políticas tomadas pelos diversos governos. Ao mesmo tempo, classificou a

probabilidade de cada efeito estudado. Estas são suas previsões:

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1. Elevação nos próximos cem anos da temperatura média da Terra dentre 1,8ºC

e 4ºC (100 milhões de anos atrás a elevação de 3ºC provocou a desaparição

doe 90% das espécies vivas).

2. É provável que a circulação meridional de retorno do Atlântico norte diminua

de velocidade durante o séc. XXI em 25%. É muito improvável que se produza

uma transição brusca.

3. Muito provavelmente aumentará a frequência das ondas de calor, o que

prejudicará as lavouras nas áreas mornas e aumentará os incêndios florestais.

A qualidade do ar diminuirá em muitas cidades.

4. Aumentará com muita probabilidade a ocorrência de tempestades e chuvas

torrenciais. Mudanças nos processos de evaporação/condensação da água

trarão mudanças no regime dos ventos, na frequência e intensidade de

furacões, tornados e tufões, no regime hidrológico e perturbações em

fenômenos como El Niño e La Niña.

5. A fusão dos casquetes polares, mesmo parcialmente, provocará a subida do

nível do mar entre 15 e 95 cm. ao longo do séc. XXI, com o consequente

alagamento das terras e populações litorâneas.

6. Inundações, especialmente no sudeste asiático, do Paquistão ao Vietnam. Risco

de desaparição de ilhas no Caribe, no Oceano Índico e no Pacífico. As 200

ilhas do delta dos Sundarbans, entre a Índia e o Bangladesh estão gravemente

ameaçadas.

7. Escassez de água no sul da Europa e África, na Austrália e Nova Zelândia,

Índia e Oriente Médio, sobretudo a partir de 2030.

8. Consequências negativas para a saúde humana causadas por ondas de calor,

aumento da desnutrição, inundações, propagação de doenças endêmicas,

incremento da asma, maior concentração dos níveis de ozônio, com incidência

nas doenças cardiorrespiratórias.

9. Mudanças substanciais nos ecossistemas e desaparição de espécies animais e

vegetais (30% até 2050).

10. Diminuição da produtividade agrária e pesqueira, especialmente na África (até

2020 uma diminuição do 50% nas colheitas).

11. Perdas importantes no turismo. Vulnerabilidade maior das pequenas ilhas mar.

12. Incremento dos fluxos migratórios: 200 milhões de refugiados até 2050.

A partir destes dados devemos salientar que a questão da mudança climática e,

especificamente, do aquecimento global não é apenas um problema científico, técnico

ou econômico, é também um dos problemas políticos e morais mais graves da nossa

época ao colocar em perigo a própria sobrevivência da espécie e aumentar a injustiça

e desigualdade entre os habitantes do planeta. Dentre os grupos humanos, as

comunidades economicamente deprimidas são as mais vulneráveis, especialmente as

concentradas em zonas de alto risco e que dependem exclusivamente de recursos

fortemente afetados pelas mudanças climáticas como a água e o alimento local. Por

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faixa etária, são as crianças as mais afetadas, e por sexo, as mulheres (VELAYOS,

2008, p.28-29).

Ecoética: do paradigma antropocêntrico ao paradigma biocêntrico

O reconhecimento do aquecimento global como um problema derivado direta ou

indiretamente da atividade humana e não apenas da natural variabilidade climática o

converte num dano produzido pelo próprio ser humano. Não sendo um mal inevitável

e necessário surgem as perguntas sobre a responsabilidade e a justiça, pois esse

dano não é produzido igualmente por todos, afeta a todos os seres no presente e no

futuro e se origina desde um bem comum: a capacidade do planeta Terra de absorver

emissões de gases estufa. Conhecer o problema e suas variáveis ajuda a encontrar

caminhos de solução, mas não basta. Faz-se necessário o agir político e ético de

governos e cidadãos. Faz-se necessário um novo paradigma que coloque a vida do

planeta, e não apenas a humana, no centro da questão ética.

Impõe-se retomar o diálogo e o consenso ético, mas desde um novo paradigma. A

razão é obvia e foi colocada de forma simples pelo pastor batista Martin Luther King:

“precisamos aprender a viver juntos como irmãos, ou pereceremos todos juntos como

loucos” (Apud CONIC, 2005, p. 97). O sociólogo francês Alain Touraine, no seu livro

Poderemos viver juntos?, considera que é possível a coexistência de diferentes culturas

sem precisar anular a diferença unificando as culturas. Isto, para o autor, é uma

necessidade do ser humano. Necessitamos estar juntos com nossas diferenças, mas

somente vai acontecer se nos reconhecermos mutuamente como sujeitos e, “o

reconhecimento do outro só é possível se a partir da afirmação que cada um faz de

seu direito de ser sujeito. Complementarmente, o sujeito não pode se afirmar como tal

sem reconhecer o outro como sujeito e, em primeiro lugar, sem se livrar do medo do

outro, que leva à sua exclusão” (TURAINE, 1999, p.203).

Considerando esta perspectiva parece ser evidente qual é a resposta à pergunta

inicial. Mas... a vida humana é a única forma de vida do planeta com a que podemos

e devemos coexistir? Estamos sozinhos? Os únicos seres que merecem nosso respeito,

com os quais devemos nos comportar bem (de um modo ético) são os humanos? Eles

são os únicos sujeitos morais e, por tanto, merecedores de consideração ética? Os

danos causados no meio ambiente não somente vão prejudicar os seres humanos,

agentes ativos da crise ambiental, mas também a outros seres que, evidentemente,

não são responsáveis, mas são pacientes, vítimas. Assim, é lógico que desde uma

ética ambiental, ou ecoética, se exija garantir a sobrevivência e o bem-estar de outros

seres e o reconhecimento do valor ético da natureza não humana. O conceito

clássico e antropocêntrico da disciplina chamada ética sofre uma ruptura conceitual

ao incluir a pergunta sobre o valor moral da natureza não humana que leva ao

alargamento da comunidade dos agentes morais.

Uma nova relação do ser humano com a natureza, cooperativa, respeitosa e não

agressiva, exige uma mudança de paradigma ético, que não é mais antropocêntrico e

sim biocêntrico, pois a relevância moral vai além da comunidade humana e é

estendida a toda a criação. Isto é, desde a ética ambiental a natureza não humana

(consciente ou não) tem valor intrínseco e merece, por esta razão, consideração ética.

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Razões para uma ética ambiental.

Seguindo a filósofa espanhola Carmen Velayos (2008), podemos destacar três tipos de

argumentos, ou razões, básicos fundamentam esta opção ética:

1. Razões de luxo: não existe justificativa para destruir e dominar a natureza não

humana. Organismos e ecossistemas não existem em função dos interesses humanos,

que não são “donos e senhores absolutos”. Cada espécie ocupa um determinado

nicho ecológico, uma determinada área de especialização no ecossistema geral, sendo

a humanidade “a única espécie que não respeita os nichos e as fronteiras naturais,

que garantem a todos a sobrevivência e ao ecossistema global a sustentabilidade”

(SOROMENHO-MARQUES, 2005, p.14). Deste modo, o cuidado da natureza reclama do

ser humano o dever de não interferência abusiva e de não dominação, pois:

a) não contamos com razões necessárias para perturbar a subsistência de um ser

biológico ou dos ecossistemas em que estão inseridos;

b) a dominação e a violência carecem de sentido em si mesmo;

c) não sabemos o suficiente sobre a natureza e seus processos;

d) a vida que floresce ao nosso redor não é nossa, não nos pertence.

2. Razões de necessidade: por sermos agentes éticos temos a necessidade de

respeitar e cuidar o meio ambiente, pois destruir a vida que nos rodeia significa, ao

mesmo tempo, destruir nossa própria vida. A preservação da natureza supõe a

garantia de múltiplas experiênciaS humanas (psicológicas, transcendentais, estéticas...)

ligadas a sua manutenção. A consequência econômica imediata desta atitude é a

troca do modelo de crescimento ilimitado pelo de desenvolvimento sustentável, no

nível macro, e a adoção de formas de vida quotidianas mais moderadas no consumo

e uso dos recursos naturais, no nível micro.

3. Rações de mérito:

a) o valor estético da natureza como valor inerente: complexidade, riqueza,

raridade...

b) o valor derivado do caráter do “outroriedade” da natureza, isto é, possui valor

intrínseco porque é independente e autônoma com respeito aos seres

humanos. Neste sentido, embora se afirme que existe por si e para si (mesmo

sendo tão útil para os seres humanos), não para os fins e necessidades

humanas, vale a pena lembrar que o meio ambiente é um conjunto inter-

relacionado de diversos ambientes parciais (físico, biótico, social e cultural) e

que qualquer uma resposta à crise ambiental deve ter em conta os nexos

existentes entre o ambiente natural e o humano.

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c) a relevância ética dos seres vivos não humanos. O bem inerente dos

organismos estaria na consecução das suas finalidades respectivas,

independentes das finalidades humanas. Desde esta perspectiva, um

determinado objeto adquire relevância ética quando possui um bem ou uns

interesses vulneráveis à interferência humana, isto é, quando com sua ação

pode favorecê-lo ou prejudicá-lo. E para ter interesses basta estar vivo.

Considerações finais

O discurso ético se concretiza em normas morais concretas*, em pautas de ação

conformes com os princípios postulados. Na questão ambiental não poderia ser

diferente. A presente crise ambiental global remete a uma crise fundamental de

relações do ser humano com seu entorno físico e social. Impõe-se retomar o diálogo

e o consenso, mas desde um novo paradigma, construir um novo ethos que permita

uma nova convivência entre os seres humanos e os demais seres da comunidade

planetária. O desafio vem dessa realidade multicultural e plural que coloca ao redor

da mesa planetária homens e mulheres com os mais diferentes rostos, filosofias e

tradições culturais e religiosas.

A Carta da Terra aparece como uma tentativa real de referência ética comum.

Ratificada pela UNESCO em março de 2000, é fruto de um processo de

amadurecimento que se estendeu durante muitos anos a partir de um amplo debate

mundial que tem sua origem remota na criação da ONU em 1945 e sua origem

próxima na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento

celebrada em 1992, no Rio de Janeiro.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff (2008, p. 196-198) considera este documento um

princípio civilizador benéfico para o futuro da Terra e da Humanidade. Já que a

limitação do presente texto nos impede transcrever o documento todo, apenas

citaremos os 4 princípios fundamentais e os 16 pontos de referência do modo

sustentável de vida afirmados na carta. Fica como conclusão e “para casa” deste

artigo a leitura completa dela.

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DE VIDA

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.

2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e

amor.

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas,

sustentáveis e pacíficas.

4. Assegurar a generosidade e a beleza da Terra para as atuais e às

futuras gerações.

II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA

* Embora os termos ética e moral sejam sinônimos (heranças do grego e do latim respectivamente) podem

ser atribuídos significados diferentes, mas sempre complementares, às duas palavras, Assim, podemos

chamar de moral os comportamentos, normas e valores que devemos aceitar como válidos ou coletivamente

aceitos como bons e desejáveis. Isto é, as leis que orientam nosso agir. A ética, nesta perspectiva, será a

reflexão sobre o porquê os consideramos válidos. Isto é, os ideais que dão sentido a vida. A moral

responde à pergunta como agir? A ética à pergunta como viver?

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5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da

Terra, com especial atenção à diversidade biológica e aos processos

naturais que sustentam a vida.

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção

ambiental e, quando o conhecimento for limitado, assumir uma

postura de precaução.

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam

as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o

bem-estar comunitário.

8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover o

intercâmbio aberto e aplicação ampla do conhecimento adquirido.

III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social e ambiental.

10. Garantir que as atividades e instituições econômicas em todos os

níveis promovam o desenvolvimento humano de forma equitativa e

sustentável.

11. Afirmar a igualdade e a equidade dos gêneros como pré-

requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso

universal à educação, assistência de saúde e às oportunidades

econômicas.

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a

um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade

humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, com especial

atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.

IV. DEMOCRACIA, NÃO-VIOLÊNCIA E PAZ

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e

prover transparência e responsabilização no exercício do governo,

participação inclusiva na tomada de decisões e acesso à justiça.

14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da

vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um

modo de vida sustentável.

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.

16. Promover uma cultura de tolerância, não-violência e paz.

Ethics ecological and global warming

Abstract

This article aims to present the latest scientific data on the issue of global warming

and discuss their political and ethical implications. It highlights the centrality of ethics

and the need for a new paradigm biocentric, as the experience of a new global

environmental ethics or ethics ecological appears as a necessary condition for human

and planetary survival. We conclude the article with what is meant is the concrete

expression of this common ethical reference: the Earth Charter.

Keywords: global warming; ethics ecological; earth charter.

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