E.A. Poe Contos vol 2

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  • Contos de Edgar Allan Poe

    Volume 2

  • Este projeto tem por objetivodisponibilizar livros digitais gratui-

    tos para nossos leitores,agregando assim valor e dissemin-

    ando a cultura.

    Editora Navras Digital25/04/2013

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  • SUMRIO

    INTRODUO

    SOBRE O AUTOR

    O CORAO DENUNCIADOR

    O DEMNIO DA PERVERSIDADE

    WILLIAM WILSON

    IMPORTANTE

    EXPEDIENTE

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  • INTRODUO

    Esta coleo tem por objetivo demo-cratizar a leitura e disponibilizar obrasde qualidade com informaes auto-rais. Que esta seja a primeira demuitas obras gratuitas que iremosdisponibilizar. Peo desculpas por nocolocar os creditos do tradutor, j quea fonte aonde foi buscado os contos,no fazia meno aos mesmos.

    Gustavo GonalvesEditor da Navras Digital

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  • Sobre o Autor

    Edgar Allan Poe destacou-se comocontista,

    poeta e crtico literrio exigente

  • Segundo filho de David Poe e ElizabethArnold, ambos atores, Edgar Poe ficourfo ainda criana e foi adotado porum casal rico de Richmond, Virgnia,Jonh Allan e Frances Kelling Allan. Issolhe permitiu ter uma educao de qual-idade, bem como fazer uma longaviagem pela Inglaterra, Esccia e Ir-landa com os pais adotivos.Regressou aos Estados Unidos em1822 e continuou seus estudos sob aorientao dos melhores professoresdessa poca. Dois anos depois, entroupara a Universidade de Charlotesville,distinguindo-se tanto pela intelignciaquanto pelo temperamento inquieto,que o levou a ser expulso da escola.A seguir, verificou-se um perodo aindapouco esclarecido na vida de Poe, noqual se registram viagens fora dosEstados Unidos. Retornou a seu pasem 1829 e manifestou desejo de

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  • seguir a carreira militar. Foi admitidona clebre Academia de West Point,mas acabou expulso poucos meses de-pois por indisciplina.Com a morte da me adotiva, John Al-lan voltou a casar-se, com uma mulhermuito jovem que lhe deu dois filhos.Isso impediu que Poe se tornasse her-deiro da fortuna paterna e ele seafastou da casa do pai adotivo, deixan-do Richmond. Aps um perodo de re-lativa dificuldade, conheceu uma certaprosperidade ao vencer simultanea-mente os concursos de conto e poesiapromovidos pela revista "Southern Lit-erary Messager".O fundador da publicao, ThomasWhite, convidou-o a dirigir a revistaque rapidamente se imps ao pblico.Durante dois anos, Poe esteve a frentedo peridico, onde pde exibir seu tal-ento, que se manifestava num estilo

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  • novo, no conto e na poesia, bem comopelos artigos de crtica literria querevelavam seu rigor e sensibilidadeesttica.Escritor bem-sucedido, Poe casou-secom Virginia Clemm. Entretanto, aofim de dois anos, White cortou relaescom o escritor, que j desenvolvera adoena do alcoolismo. Poe passou aproduzir como "free-lancer", emgrande quantidade, mas sem ganhar osuficiente para manter uma vida dignae saudvel, o que o levou a afundar-seainda mais na bebida.A morte de sua mulher agravou oproblema. O escritor passou a bebercada vez mais e j sofria os primeirosataques de delirium tremens. Numaviagem a Nova York, para tratar denegcios, parou em Baltimore ehospedou-se numa taberna onde sedistraiu durante horas bebendo com

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  • amigos. Era a noite de 6 de outubro de1849. O escritor morreu na madrugadado dia 7, aos 40 anos.Hoje Poe um escritor estudado e cul-tuado em todo o Ocidente. Entre suasobras destacam-se: The Raven (OCorvo, poesia, 1845), Annabel Lee(poesia, 1849) e o volume HistriasExtraordinrias (1837), onde aparecemseus contos mais conhecidos, como "AQueda da Casa dos Usher", "O GatoPreto", "O Barril de Amontillado","Manuscrito encontrado numa Gar-rafa", entre outros, consideradosobras-primas do terror.

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  • O Corao Denunciador

    verdade tenho sido nervoso, muito nervoso, ter-rivelmente nervoso! Mas por que ireis dizer quesou louco? A enfermidade me aguou os sentidos,no os destruram, no os entorpeceram. Era pen-etrante, acima de tudo, o sentido da audio. Euouvia todas as coisas, no cu e na terra. Muitascoisas do inferno eu ouvia. Como, ento, sou lou-co? Prestai ateno! E observai quo lucidamente,quo calmamente posso contar toda a histria.

    impossvel dizer como a idia mepenetrou primeiro no crebro, uma vezconcebida, porm, ela perseguiu dia enoite. No havia motivo. No haviaclera. Eu gostava do velho. Ele nuncafizera mal. Nunca me insultara. Eu nodesejava seu ouro. Penso que era o

  • olhar dele! Sim, era isso! Um de seusolhos parecia com o de um abutre...um olho de cor azul plida, que sofriade catarata . Meu sangue se enregel-ava sempre que ele caa sobre mim; eassim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida dovelho e assim libertar-me daquele olhopara sempre.

    Ora, a que estava o problema. Ima-ginais que sou louco. Os loucos nadasabem. Devereis, porm, ter-me visto.Devereis ter visto como procedi caute-losamente, com que prudncia, comque previso, com que dissimulao,lancei mo obra!

    Eu nunca fora mais bondoso para como velho do que durante a semana in-teira, antes de mat-lo. todas asnoites, por volta da meia-noite, eugirava o trinco da porta de seu quarto

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  • e abria-a... oh! Bem devagarzinho! Edepois, quando a abertura era sufi-cientemente para conter minhacabea, eu introduzia uma lanternacom tampa, toda velada, bem velada,de modo que nenhuma luz se proje-tasse para fora, e em seguida enfiavaa cabea. Oh! Tereis rido ao ver comoenfiava habilmente! Movia-a lenta-mente, muito, muito lentamente, a fimde no perturbar o sono do velho.Levava uma hora para colocar acabea inteira alm da abertura, atpode-lo ver deitado na cama. Ah! Umlouco seria precavido assim? E depois,quando minha cabea estava bem den-tro do quarto, eu abria a tampa da lan-terna cautelosamente... oh! Bemcautelosamente!... cautelosamente...por que a dobradia rangia... abria-as at permitir que apenas um dbilraio de luz casse no olho de abutre. E

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  • isto eu fiz durante sete longas noites...sempre precisamente meia-noite... esempre encontrei o olho fechado.Assim, era impossvel fazer minhatarefa, porque no era o velho que meperturbava, mas seu olho Diablico. Etodas as manhs, sem temor,chamando-o pelo nome com ternura eperguntando como havia passado anoite. Por a vedes que ele precisariaser um velho muito perspicaz para sus-peitar que todas as noites, justamentes doze horas, eu o espreitava, en-quanto dormia.Na oitava noite, fui mais cauteloso doque de hbito, ao abrir a porta. O pon-teiro dos minutos de um relgiomover-sei-ia mais rapidamente do quemeus dedos. Jamais, antes daquelanoite, sentira eu tanto a extenso demeus prprios poderes, de minhasagacidade. Mal conseguia conter

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  • meus sentimentos de triunfo. Pensarque ali estava eu, a abrir a porta, pou-co a pouco, e que ele nem sequer son-hava com meus atos ou pensamentossecretos... Ri com gosto, entre dentes,e essa idia; e talvez ele me tivesseouvido, porque se moveu de sbito nacama, como se assustado. Pensavatalvez que recuei? No! O quarto deleestava escuro como piche, espesso desombra, pois os postigos se achavamhermeticamente fechado, por medoaos ladres. E eu sabia, assim, que eleno podia ver a abertura da porta;continuei a avanar, cada vez mais,cada vez mais.

    J estava com a cabea dentro doquarto e a ponto de abrir a lanterna,quando meu polegar deslizou sobre ofecho da porta e o velho saltou nacama gritando: "Quem est a?"

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  • Fiquei completamente silencioso enada disse. Durante uma hora inteirano movi um msculo e, por todo essetempo, no o ouvi deitar-se de novo:ele ainda estava sentado na cama, escura; justamente com eu fizera,noite aps noite, ouvindo a ronda damorte prxima.Depois, ouvi um leve gemido e noteique era um gemido de terror mortal.No era um gemido de dor ou pesar,oh no! Era o som grave e sufocado.Bem conhecia esse som. Muitas noites,ao soar a meia-noite, quando o mundointeiro dormia, ele irrompia de meuprprio peito, aguando, com o seu ecoespantoso, os terrores que meaturdiam. Disse que bem o conhecia.Conheci tambm o eu o velho sentia etive pena dele, embora abafasse o risono corao. Eu sabia que ele ficaraacordado, desde o primeiro leve

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  • rumor, quando se voltar na cama. Dapor diante, seus temores foram cres-cendo. Tentara imagin-los semmotivo mas no fora possvel. Disseraa si mesmo; " s o vento na cham-in", ou " s um rato andando pelocho", ou "foi apenas um grilo quecantou um instante s": sim, ele est-ivera tentando animar-se com essassuposies, mas tudo fora em vo.Tudo em vo, porque a Morte, aoaproximar-se dele, projetava sua som-bra negra para frente, envolvendo nelaa vtima. E era a influncia ttricadessa sombra no percebia que olevava a sentir - embora no visse,nem ouvisse - a sentir a presena deminha cabea dentro do quarto.

    Depois de esperar longo tempo, commuita pacincia, sem ouvi-lo deitar-se,resolvi abrir um pouco, muito, muito

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  • pouco, a tampa da lanterna. Abri-a,podeis imaginar o quo furtivamente;at que, por fim, um raio de luz apen-as, tnue como o fio de uma teia dearanha, passou pela fenda e caiu sobreo olho de abutre.

    Ele estava aberto; todo, plenamenteaberto. E, ao contempl-lo, minha friacresceu. Vi-o, com perfeita clareza; to-do de um azul desbotado, com umahorrvel pelcula a cobri-lo, o que meenregelava at a medula dos ossos.Mas no podia ver nada mais da face,ou do corpo do velho, pois dirigira a luzcomo por instinto, sobre o malditolugar.

    Ora, no vos disse que apenas su-peracuidade dos sentidos aquilo queerradamente julgais loucura? Repito,pois, que chegou a meus ouvidos emsom baixo, montono, rpido, como o

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  • de um relgio, quando abafado com al-godo. Igualmente eu bem sabia quesom era. Era o bater do corao dovelho. Ele me aumentava a fria, comoo bater um tambor estimula a coragemdo soldado.

    Ainda a, porm, refreei-me e fiqueiquieto. Tentei manter to fixamentequanto pude a rstia de luz sobre oolho do velho. Entretanto, o infernaltam-tam do corao aumentava. Acada instante ficava mais alto, maisrpido! Cada vez mais alto, repito, acasa momento! Prestai-me bemateno? Disse-vos que sou nervoso:sou. E ento, quela hora morta danoite, to estranho rudo excitou emmim um terror incontrolvel. Contudo,por alguns minutos mais, dominei-mee fiquei quieto. Mas o bater era cadavez mais alto. Julguei que o corao iarebentar. E, depois, nova angstia me

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  • aferrou: o rumor poderia ser ouvidopor um vizinho! A hora do velho tinhachegado! Com um alto berro, escan-carei a lanterna e pulei para dentro doquarto. Ele guinchou mais uma vez...uma vez s. Num instante arrastei-opara o soalho e virei a pesada camasobre ele. Ento sorri alegremente porver a faanha realizada. Mas, durantemuitos minutos, o corao continuou abater, com som surdo. Isto, porm,no me vexava. No seria ouvido at-ravs da parede. Afinal cessou. Ovelho estava morto. Removi a cama eexaminei o cadver. Sim, era umpedra, uma pedra morta. Coloqueiminha mo sobre o corao e ali amantive durante muitos minutos. Nohavia pulsao. Estava petrificado. Seuolho no me perturbaria.

    Se ainda pensais que sou louco, nomais pensareis, quando eu descrever

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  • as sbias precaues que tomei paraocultar o cadver. A noite avanava eeu trabalhava com muita pressa,porm em silncio. Em primeiro lugar,esquartejei o corpo. Cortei-lhe acabea, os braos e as pernas.

    Arranquei depois trs pranchas dosoalho e coloquei tudo entre os vos.Depois recoloquei as tbuas, comtamanha habilidade e perfeio, quenenhum olhar humano, nem mesmo odele, poderia distinguir qualquer coisasuspeita. Nada havia a lavar, nemmancha de espcie alguma, nemmarca de sangue. Fora demasiadoprudente no evit-las. Uma tina tinharecolhido tudo... ah! Ah! Ah! Termin-adas todas essas tarefas, eram quatrohoras. Mas ainda estava escuro, comose fosse meia-noite. Quando o sinosoou a hora, bateram a porta da rua.Desci para abri-la, de corao ligeiro,...

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  • pois que tinha eu agora a temer? En-traram trs homens que se apresent-aram , com perfeita mansido, comsoldados de polcia. Fora ouvido umgrito por um vizinho, durante a noite.Despertara-se a suspeita de um crime.Tinha-se formulado uma denncia polcia e eles, soldados , tinham sidomandados para investigar.

    Sorri... pois que tinha eu a temer? Deias boas vindas aos cavalheiros. Ogrito, disse eu, fora meu mesmo, emsonhos. O velho, relatei, estava aus-ente, no interior. Levei meus visitantesa percorrer toda a casa. Pedi quedessem busca... completa. Conduzi-os,afinal, ao quarto dele. Mostrei-lhe suasriquezas, em segurana inatas. Noentusiasmo de minha confiana, trouxecadeiras para o quarto e mostrei dese-jos de que eles ficassem ali, para

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  • descansar de suas fadigas, enquantoeu mesmo, na desenfreada audcia domeu perfeito triunfo, colocava minhaprpria cadeira , precisamente sobre olugar onde repousava o cadver davtima.

    Os soldados ficaram satisfeitos. Minhasmaneiras os haviam convencido.Sentia-me singularmente a vontade.Sentaram-se e, enquanto eu respondiacordialmente, conversavam coisas fa-miliares. Mas, dentro em pouco, sentique ia empalidecendo e desejei queeles se retirassem. Minha cabea medoa e parecia-me ouvir zumbidos nosouvidos; eles, porm, continuavamsentados e continuavam a conversar.O zumbido tornou-se mais distinto.Continuou e tornou-se ainda mais dis-tinto: eu falava com mais desenfreio,para dominar a sensao: ela, porm,continuava a aumentava sua

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  • perceptibilidade, at que, afinal,descobri que o barulho no era dentrodos meus ouvidos.

    claro que ento minha palidezaumentou sobre posse. Mas eu falavaainda mais fluentemente e num tom devoz muito elevada. No obstante, osom se avolumava... E que podiafazer? Era um som grave, montono,rpido... muito semelhante ao de umrelgio envolto em algodo. Respiravacom dificuldade... E no entanto, ossoldados no o ouviram. Falei mais de-pressa ainda, com mais veemncia.Mas o som aumentavaconstantemente. Levantei-me e fizperguntas a respeito de ninharias, numtom bastante elevado, e com violentagesticulao, mas o som constante-mente aumentava. Por que no se iamembora? Andava pelo quarto acima eabaixo, com largas e pesadas

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  • passadas, como se excitado at a friapela vigilncia dos homens... mas osom aumentava constante. Oh! Deus!Que poderia eu fazer? Espumei...enraiveci-me... praguejei! Fiz girar acadeira, sobre a qual estivera sentado,e arrastei-a sobre as tbuas, mas obarulho se elevava acima de tudo econtinuamente aumentava. Tornou-seento mais alto... mais alto... maisalto! E os homens continuavam ainda apassear, satisfeitos e sorriam. Seriapossvel que eles no ouvissem? DeusTodo Poderoso!... no, no! Eles sus-peitavam!.. Eles sabiam!... Estavamzombando do meu horror!... Istopensava eu e ainda penso. Outra coisaqualquer, porm, era melhor que essaagonia! Qualquer coisa era mais toler-vel que essa irriso! No podia supor-tar por mais tempo aqueles sorrisoshipcritas! Sentia que devia gritar ou

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  • morrer!... E agora... de novo! Escutai!Mais alto! Mais alto! Mais alto! Maisalto! Mais alto...

    - Vises! - trovejei - No fingam mais!Confesso o crime!... Arranquem aspranchas!.. aqui, aqui! ... ouam obater do ser horrendo corao!

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  • O Demnio da Perversidade

    Ao examinar as faculdades e impulsos dosmveis primordiais da alma humana, deix-aram os frenlogos de mencionar umatendncia que, embora claramente existentecomo um sentimento radical, primitivo, irre-dutvel, tem sido igualmente desdenhadapor todos os moralistas que os precederam.Por pura arrogncia da razo, todos ns atemos desdenhado. Temos tolerado que asua existncia escape aos nossos sentidosunicamente por falta de crena, de f, querseja f na Revelao ou f na Cabala. Aideia dessa tendncia nunca nos ocorreusimplesmente por causa de sua superfluid-ade. No vamos necessidade do impulso,nem da propenso. No podamosperceber-lhe a necessidade. No podamos

  • compreender, isto , no podamos ter com-preendido, dado o caso de ter-se este prim-um mobile introduzdo a fora, nopodamos ter compreendido de que maneirapoderia ele promover os objetivos da hu-manidade, quer temporais, quer eternos.No se pode negar que a frenologia e boaparte de todas as cincias metafsicas ten-ham sido planejadas a priori. O intelectualou homem lgico, ainda mais que o homemcompreensivo ou observador, se pe a ima-ginar projetos, a ditar objetivos a Deus.Tendo assim sondado, a seu bel-prazer, asintenes de Jeov, edifica, de acordo comessas intenes, seus inumerveis sistemasde pensamento. Na questo da frenologia,por exemplo, primeiro determinamos o que bastante natural, que fazia parte dosdesgnios da Divindade que o homemcomesse. Ento atribumos ao homem umrgo de alimentao e este rgo o

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  • chicote com que a Divindade compele ohomem a comer, quer queira, quer no.

    Em segundo lugar, tendo estabelecido quefoi vontade de Deus que o homem continu-asse a espcie, descobrimos imediatamenteum rgo de amatividade. E assim por di-ante, com a combatividade, a idealidade, acasualidade, a construtividade, e assim, emsuma, com todos os rgos, quer represen-tem uma propenso, um sentimento moralou uma faculdade do intelecto puro. E nes-sas disposies dos princpios da ao hu-mana, os Spurzheimitas, com razo ou no,em parte ou no todo, no fizeram mais queseguir, em princpio, as pegadas de seuspredecessores, deduzindo ou estabelecendocada coisa em virtude do destino preconce-bido do homem e baseada nos objetivos deseu Criador. Teria sido mais acertado, teriasido mais seguro, classificar (se podemos

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  • classificar) sobre a base daquilo que ohomem, usual ou ocasionalmente, fez e es-tava sempre ocasionalmente fazendo doque sobre a base daquilo que supomos quea Divindade tencionava que ele fizesse. Seno podemos compreender Deus nas suasobras visveis, como ento compreend-lonos seus inconcebveis pensamentos quedo vida s suas obras? Se no podemoscompreend-lo nas suas criaturas objetivas,como compreend-lo ento nas suas dis-posies de nimo substantivas e nas suasfases de criao?

    A induo a posteriori teria levado a frenolo-gia a admitir, como um princpio inato eprimitivo da ao humana, algo de paradox-al que podemos chamar de perversidade, nafalta de termo mais caracterstico. No

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  • sentido que deu , de fato, um mobile semmotivo. Sob sua influncia agimos sem ob-jetivo compreensvel, ou, se isto for enten-dido como uma contradio nos termos, po-demos modificar a tal ponto a proposioque digamos que sob sua influncia ns agi-mos pelo motivo de no devermos agir.

    Em teoria, nenhuma razo pode ser maisdesarrazoada; mas, de fato, nenhuma hmais forte. Para certos espritos, sob de-terminadas condies, torna-se absoluta-mente irresistvel. Tenho certeza de querespiro do que a de ser muitas vezes o en-gano ou o erro de qualquer ao a fora in-conquistvel que nos empurra, e a nicaque nos impele a continu-lo. E no admitiranlise ou resoluo em elementos ulteri-ores esta acabrunhante tendncia depraticar o mal pelo mal. um impulso radic-al, primitivo, elementar.

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  • Dir-se-, estou certo, que, quando ns per-sistimos em atos porque sentimos que nodeveramos persistir neles, nossa conduta apenas uma modificao daquela que ordin-ariamente se origina da combatividade dafrenologia. Mas um simples olhar nosmostrar a falcia dessa ideia. A combativid-ade frenolgica tem por essncia a ne-cessidade de autodefesa. a nossa salva-guarda contra a ofensa. Seu principio diz re-speito ao nosso bem-estar e dessa forma odesejo desse bem-estar excitado, simul-taneamente, com seu desenvolvimento.Segue-se que o desejo do bem-estar deveser excitado, simultaneamente, comqualquer princpio que seja simplesmenteuma modificao da combatividade, mas, nocaso daquilo que denominei de perversid-ade, no somente o desejo de bem-estar

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  • no excitado, mas existe um sentimentofortemente antagnico.

    Afinal, um apelo ao prprio corao ser amelhor resposta ao sofisma que acabamosde observar. Ningum que confiantementeconsulte e amplamente interrogue sua pr-pria alma sentir-se- disposto a negar acompleta radicabilidade da tendncia emquesto. Esta tendncia no menos carac-terstica que incompreensvel. No hhomem que, em algum momento, no tenhasido atormentado, por exemplo, por umagudo desejo de torturar um ouvinte pormeio de circunlquios. Sabe que desagrada.Tem toda a inteno de desagradar. Emgeral conciso, preciso e claro. Luta em sualngua por expressar-se a mais lacnica e lu-minosa linguagem. S com dificuldade con-segue evitar que ela desborde. Teme e con-jura a clera daquele a quem se dirige.

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  • Contudo, assalta-o o pensamento de queessa clera pode ser produzida por meio decertas tricas e parntesis.

    Basta esta idia. O impulso converte-se emdesejo, o desejo em vontade, a vontadenuma nsia incontrolvel, e a nsia ( paraprofundo remorso e mortificao de quemfala e num desafio a todas as conseqn-cias) satisfeita. Temos diante de ns umatarefa que deve ser rapidamente executada.Sabemos que retard-la ser ruinoso. Amais importante crise de nossa vida requer,imperiosamente, energia imediata e ao.Inflamamo-nos, consumimo-nos na avidezde comear o trabalho, abrasando-se toda anossa alma na antecipao de seu gloriosoresultado. foroso, urgente que ele sejaexecutado hoje, e contudo, adiamo-lo paraamanh. Por que isso? No h respostaseno a de que sentimos a perversidade do

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  • ato, usando o termo sem compreender-lhe oprincpio.

    Chega o dia seguinte e com ela mais impa-ciente ansiedade de cumprir nosso dever,mas com todo esse aumento de ansiedadechega tambm um indefinvel e positiva-mente terrvel, embora insondvel, anseioextremo de adiamento. E quanto mais otempo foge, mais fora vai tomando esseanseio. A ltima hora para agir est imin-ente. Trememos violncia do conflito quese trava dentro de ns, entre o definido e oindefinido, entre a substncia e a sombra.Mas se a contenda se prolonga a esteponto, a sombra quem prevalece. Foi v anossa luta. O relgio bate e o dobre definados de nossa felicidade.

    Ao mesmo tempo a clarinada matinal parao fantasma que por tanto tempo nos

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  • intimidou. Ela voa. Desaparece. Estamoslivres. Volta a antiga energia. Trabalharemosagora. Ai de ns porm, tarde demais!

    Estamos borda dum precipcio. Per-scrutamos o abismo e nos vem, a nusea ea vertigem. Nosso primeiro impulso fugirao perigo. Inexplicavelmente, porm,ficamos. Pouco a pouco, a nossa nusea, anossa vertigem, o nosso horror confundem-se numa nuvem de sensaes indefinveis.Gradativamente, e de maneira mais imper-ceptvel, essa nuvem toma forma, como afumaa da garrafa donde surgiu o gnio nasMil e uma Noites. Mas fora dessa nossanuvem borda do precipcio, uma forma setorna palpvel, bem mais terrvel quequalquer gnio ou qualquer demnio defbulas. Contudo no seno umpensamento, embora terrvel, e umpensamento que nos gela at a medula dos

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  • ossos com a feroz volpia do seu horror. ,simplesmente, a ideia do que seriam nossassensaes durante o mergulho precipitadoduma queda de tal altura.

    E esta queda, este aniquilamento verti-ginoso, por isso mesmo que envolve essamais espantosa e mais repugnante de todasas espantosas e repugnantes imagens demorte e de sofrimento que jamais se ap-resentaram nossa imaginao, faz comque mais vivamente a desejemos. E porquenossa razo nos desvia violentamente daborda do precipcio, por isso mesmo maisimpetuosamente nos aproximamos dela.No h na natureza paixo mais diabolica-mente impaciente como a daquele que, tre-mendo beira dum precipcio, pensa dessaforma em nele se lanar. Deter-se, um in-stante que seja, em qualquer concesso aessa ideia estar inevitavelmente perdido,

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  • pois a reflexo nos ordena que fujamos semdemora e, portanto, digo-o, isto mesmoque no podemos fazer. Se no houver umbrao amigo que nos detenha, ou se noconseguirmos, com sbito esforo recuar dabeira do abismo, nele nos atiraremos edestrudos estaremos. Examinando aessemelhantes, como fazemos, descobriremosque elas resultam to somente do espritode Perversidade. Ns as cometemos porquesentimos que no deveramos faz-lo. Alm,ou por trs disso, no h princpio inteligvel,e ns podamos, de fato, supor que essaperversidade uma direta instigao do de-mnio se no soubssemos, realmente, queesse princpio opera em apoio do bem.

    Se tanto me demorei neste assunto foi pararesponder, de certo modo, a pergunta doleitor, para poder explicar o motivo de minhaestada aqui, para poder expor algo que ter,

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  • pelo menos, o apagado aspecto dumacausa que explique por que tenho estesgrilhes e porque habito esta cela de con-denado. No me tivesse mostrado assimprolixo, talvez no me houvsseis com-preendido de todo, ou,como a gentalha, mehouvsseis julgado louco. Dessa forma, fa-cilmente percebereis que sou uma das in-contveis vtimas do Demnio daPerversidade.

    Nenhuma outra proeza jamais foi levada acabo com mais perfeita deliberao. Durantesemanas, durante meses, ponderei todos osmeios do assassnio. Rejeitei milhares deplanos porque sua realizao implicava umapossibilidade de descoberta. Por fim, lendoalgumas memrias francesas, encontrei anarrativa de uma doena quase fatal queatacou Madame Pilau em consequncia deuma vela acidentalmente envenenada. A

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  • ideia feriu-me a imaginao imediatamente.Sabia que minha vtima tinha o hbito de lerna cama. Sabia, tambm, que seu quarto dedormir era estreito e mal iluminado. Mas no preciso fatigar-vos com pormenoresimpertinentes.No preciso descrever-vos os artifciosfceis por meio dos quais substitui, nocastial de seu dormitrio, por uma vela, pormim mesmo fabricada, a que ali encontrei.Na manh seguinte, encontraram-no mortona cama e o veredicto do mdico legista foi:" Morte por visita de Deus." (Death Visitationof God a expresso com que os mdicoslegistas indicam, nos atestados de bito, amorte natural. N.T.)

    Tendo-lhe herdado os bens, tudo correu acontento para mim durante anos. A idia deser descoberto jamais penetrou-me ocrebro. Eu mesmo cuidadosamente

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  • dispusera dos restos da vela mortal. Nodeixara nem sombra de indcio pelo qualfosse possvel provar-se ou mesmosuspeitar-se de ter sido eu o criminoso. impossvel conceber-se o sentimento de ab-soluta satisfao que no meu intimo desper-tava a certeza de minha completa segur-ana. Durante longo perodo de tempohabituei-me deleitao desse sentimento.Proporcionava-me muito mais deleite que to-das as vantagens puramente materiais queme advieram do crime. Mas chegou por fimuma poca na qual a sensao de prazer setransformou, em gradaes quase imper-ceptveis, numa ideia perseguidora.Perseguia porque obcecava. Dificilmenteconseguia libertar-me dela por um instantesequer. coisa bem comum termos assimos ouvidos, ou antes a memria, assediadospelo do som de alguma cantiga vulgar ou detrechos inexpressivos de pera. No menos

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  • atormentados seremos se a cantiga boapor si mesma ou se tem mrito a ria depera.

    Dessa forma, afinal, surpreendia-me quasesempre a refletir na minha segurana e adizer, em voz baixa, a frase: "Estou salvo!"

    Um dia, enquanto vagueava pelas ruas,contive-me no ato de murmurar, meio alto,essas slabas habituais. Num acesso deaudcia repeti-as desta outra forma: "Estousalvo. Estou salvo sim, contanto que nofaa a tolice de confess-lo abertamente!"

    Logo que pronunciei estas palavras, sentium arrepio de enregelar-me o corao. Jconhecia aqueles acessos de perversidade (cuja a natureza tive dificuldade em explicar)e lembrava-me bem de que em nenhumaocasio me fora possvel resistir a eles com

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  • xito. E agora minha prpria e casual auto-sugesto de que poderia ser bastante tolopara confessar o assassnio de que me torn-ara culpado me enfrentava como se fosse oautntico fantasma daquele a quem euhavia assinado a acenar-me com a morte.

    A princpio fiz um esforo para afastar daalma semelhante pesadelo. Caminhei maisapressadamente, mais depressa ainda. . .pus-me por fim a correr. Sentia um desejoenlouquecedor de gritar bem alto. Cadaonda sucessiva de pensamento me acab-runhava com novos horrores, porque, ai!, eubem compreendia, muito bem mesmo, que ,na minha situao, pensar era estar perdido.Acelerei ainda mais a minha carreira.Saltava como um louco pelas ruas cheias degente. Por fim a populaa alvoroou-se eps-se a perseguir-me. Senti ento queminha sorte estava consumada. Se tivesse

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  • podido arrancar a minha lngua, t-lo-ia feito,mas uma voz rude ressoou em meusouvidos e uma mo ainda mais rudeagarrou-me pelo ombro. Voltei-me, resfoleg-ante. Durante um momento senti todos ostranses da sufocao. Tornei-me cego,surdo e atordoado; e depois, creio que al-gum demnio invisvel bateu-me nas costascom a larga palma O segredo h tantotempo retido irrompeu de minha alma.Dizem que me exprimi com perfeita clareza,embora com assinada nfase e apaixonadaprecipitao, como se temesse uma inter-rupo antes de concluir as frases brevesmas repletas de importncia que me en-tregavam ao carrasco e ao inferno.

    Tendo relatado tudo quanto era preciso paraa plena prova judicial; desmaiei. Que meresta a dizer? Hoje suporto estas cadeias e

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  • estou aqui! Amanh estarei livre de ferros!Mas onde?

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  • William WilsonQue me seja permitido, no momento,chamar-me William Wilson. A pgina embranco, que tenho diante de mim, No deveser manchada com meu verdadeiro nome.Esse nome j tem sido demais objeto de de-sprezo, de horror e de dio para minhafamlia. Os ventos indignados No tm divul-gado, at nas mais longnquas regies doglobo, a sua incomparvel infmia? Oh! detodos os proscritos, o proscrito mais aban-donado! ? no ests morto para sempre aeste mundo, s suas honras, suas flores easpiraes douradas? ? e uma nuvemdensa, lgubre, ilimitada, no pende eterna-mente entre tuas esperanas o cu?

    No desejaria, mesmo que pudesse, encer-rar hoje, nestas pginas, a lembrana dosmeus ltimos anos de indizvel misria e

  • crimes imperdoveis. Esse perodo recentede minha vida alcanou subitamente umauge de torpeza. da qual quero apenas de-terminar a origem. Os homens, em geral,tornam-se vis gradualmente. Mas, de mim,toda virtude se desprendeu num minuto, derepente, como um manto. Da perversidaderelativamente comum, encontrei-me, a.passo de gigante, em enormidades maioresque as de Heliogbalo. Permitam-me contaro acaso, o acidente nico que me trouxeessa maldio. A morte se aproxima e asombra que a precede lanou uma influn-cia suavizadora em meu corao. Passandoatravs do sombrio vale, anseio pela simpa-tia ? ia dizer piedade ? de meus semel-hantes. Desejaria persuadi-los de que fui, decerta maneira, o escravo de circunstnciasque desafiavam todo o controle humano.Desejaria que descobrissem para mim, nosdetalhes que lhes vou dar, algum pequeno

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  • osis de fatalidade, num deserto de erros.Queria que concordassem ? se que nopodem recusar-se a concordar que, emboraeste mundo tenha conhecido grandestentaes, jamais um homem foi tentado as-sim e certamente jamais sucumbiu destamaneira. Ser por isso que no conheceu osmesmos sofrimentos? Na verdade no tereivivido num sonho? No estarei morrendo v-tima do horror e do mistrio das mais estran-has de todas as vises sublunares?

    Descendo de uma raa que se distinguiu,em todos os tempos, por um temperamentoimaginativo e facilmente impressionvel; eminha primeira infncia provou que eu herd-ara em cheio o carter de minha famlia.Avanando em idade, esse carterdesenvolveu-se com mais fora, tornando-se, por vrias razes, uma causa de sria in-quietao para meus amigos e de prejuzopositivo para mim mesmo. Tornei-me

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  • voluntarioso, dado aos mais selvagenscaprichos, fui presa de paixes indomveis.Meus pais, que eram de esprito fraco, eatormentados pelos defeitos constitutivos damesma natureza, pouco podiam fazer paradeter as tendncias ms que me caracter-izavam. Fizeram algumas tentativas fracas,mal dirigidas, que fracassaram completa-mente e que para mim trouxeram um triunfocompleto. A partir desse momento, minhavoz foi uma lei domstica e, numa idade emque poucas crianas deixam de obedecer disciplina, fui abandonado ao meu livre ar-btrio e tornei-me senhor de todas as minhasaes exceto de nome.

    Minhas primeiras impresses da vida deestudante ligam-se a uma vasta e extravag-ante casa do estilo elisabetano, numa aldeiasombria da Inglaterra, decorada de numero-sas rvores gigantescas e nodosas e daqual todas as casas eram excessivamente

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  • antigas. Parecia, na verdade, um lugar desonho, essa velha cidade venervel, bemprpria para encantar o esprito. Neste mo-mento, mesmo, sinto na imaginao o es-tremecimento do frescor de suas avenidasprofundamente sombreadas, respiro as em-anaes de seus mil bosques e tremo aindacom uma indefinvel volpia nota profundae surda do sino, rompendo, a cada hora,com seu rugir sbito e moroso, a quietudeda atmosfera sombria na qual se enterrava eadormecia o campanrio gtico tododenteado.

    Encontro talvez tanto prazer quanto me possvel experimentar ainda, demorandosobre essas minuciosas recordaes daescola e de seus sonhos. Mergulhado comome encontro na desgraa ? infelicidade, aide mim! por demais real ?, espero que meperdoem procurar um alvio, bem leve e bemcurto, nesses detalhes pueris e divagantes.

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  • Alis, embora absolutamente vulgares e ris-veis em si mesmos, esses acontecimentostomam, em minha imaginao, uma im-portncia circunstancial, devido sua ntimarelao com os lugares e a poca ondeagora distingo as primeiras advertncias am-bguas do destino, que desde ento me en-volveu to profundamente em sua sombra.Deixem-me pois recordar.

    A casa, como disse, era velha e irregular, osterrenos vastos e um alto e slido muro detijolos, coroado por uma camada de cimentoe de vidro quebrado, os rodeava. Essa forti-ficao, digna de uma priso, formava o lim-ite de nosso domnio. Nossos olhares noiam alm seno trs vezes por semana ?uma vez cada sbado tarde, quando,acompanhados por dois professores, tn-hamos permisso para dar passeios curtosem comum, atravs do campo, nas imedi-aes e duas vezes ao domingo, quando

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  • amos, com a regularidade de tropas emparada, assistir aos ofcios da manh e datarde, no nico templo da aldeia. O diretorde nossa escola era o pastor dessa igreja.Com que profundo sentimento de admiraoe de perplexidade eu costumava contempl-lo, de nosso banco afastado, na tribuna,quando subia para o plpito, com um passosolene e lento! Essa personagem venervel,de rosto to modesto e benigno, de roupato bem escovada e caindo de maneira im-pecavelmente eclesistica, de peruca tominuciosamente empoada, rgida e vasta,seria o mesmo homem que havia pouco,com um rosto irascvel e a roupa manchadade rap, fazia executar, frula em mo, asleis draconianas da escola? Oh! Gigantescoparadoxo cuja monstruosidade exclui todasoluo!

    Num ngulo do muro macio, uma severaporta, ainda mais macia, solidamente

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  • fechada, guarnecida de ferrolhos e encim-ada por espiges de ferro denticulados.Como eram profundos os sentimentos deterror que inspirava! Nunca se abria senopara as trs sadas e entradas peridicas deque j falei; ento, em cada rangido de seusgonzos potentes, encontrvamos uma plen-itude de mistrio ? todo um mundo de obser-vaes solenes ou de meditaes aindamais solenes. O vasto recinto era de formairregular e dividido em vrias partes, dasquais trs ou quatro das maiores constituamo ptio de recreio. Era aplainado e recobertode um saibro fino e duro. Lembro-me bemde que no continha rvores, nem bancos,nada de semelhante. Naturalmente ficavasituado atrs da casa. Diante da fachada,estendia-se um pequeno terrao plantado debuxos e outros arbustos, mas no at-ravessvamos esse recanto sagrado senoem raras ocasies, por exemplo, o dia da

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  • chegada escola, o dia da partida definitiva,ou ento quando um parente ou amigo nosmandava chamar, e seguamos alegrementepara a casa paterna, nas frias de Natal, oude vero.

    Mas a casa! ? que estranha e antiga con-struo! Para mim, que verdadeiro palcioencantado! Realmente, eram infindveis osseus desvios, as suas incompreensveissubdivises. Era difcil dizer com certeza, adeterminado momento, se nos encontrva-mos no primeiro ou no segundo pavimento.De uma pea a outra, tinha-se sempre a cer-teza de encontrar dois ou trs degraus asubir ou descer. Alm disso, as subdiviseslaterais eram inmeras, inconcebveis,giravam de tal maneira umas sobre as out-ras, que nossas idias mais exatas, acercado conjunto do edifcio, no eram muitodiferentes daquelas atravs das quais con-sidervamos o infinito. Durante os cinco

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  • anos de residncia ali, nunca fui capaz dedeterminar, com preciso, em que localidadelongnqua ficava situado o pequeno dorm-itrio que me fora designado em comum,com mais dezoito ou vinte outros escolares.

    A sala de estudo era a mais vasta da escolae ? eu no podia deixar de pensar ? atmesmo do mundo inteiro: longussima, muitoestreita e lugubremente baixa, com janelasem ogiva e teto de carvalho. Num cantoafastado, de onde emanava o terror, haviaum recinto quadrado, de oito a dez ps, rep-resentando o sanctum durante horas donosso diretor, o Reverendo Doutor Bransby.Era uma slida estrutura, de porta macia, e,a abri-la na ausncia do Dominie, teramospreferido morrer, da peine forte et dure. Emdois outros ngulos, dois recintos anlogos,muito menos reverenciados, sem dvida,mas ainda assim de um terror bastante con-sidervel. Um era a ctedra do mestre de

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  • humanidades e o outro a do professor deingls e matemtica. Espalhados atravs dasala, inmeros bancos e cadeiras, terrivel-mente carregados de livros maculados pelosdedos e cruzando-se numa irregularidadesem fim ? negros, antigos, devastados pelotempo, to marcados de letras iniciais,nomes inteiros, figuras grotescas e outrasinmeras obras-primas da faca, que haviamperdido o pouco da forma original que lhesfora designada, em dias muito antigos.Numa extremidade da sala, encontrava-seum enorme balde cheio de gua e na outraum relgio de prodigiosa dimenso.

    Encerrado entre os muros macios dessaescola venervel, passei contudo, sem tdioou repulsa, os anos do terceiro lustro deminha vida. O crebro fecundo da infnciano exige um mundo exterior de incidentespara o ocupar e divertir e a monotonia, apar-entemente lgubre, da escola, era repleta de

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  • excitaes mais intensas do que todas asque minha juventude, mais amadurecida,exigiu volpia, ou minha virilidade, aocrime. Entretanto, julgo dever dizer que meuprimeiro desenvolvimento intelectual foi, emgrande parte, pouco comum e at mesmooutr. Em geral, os acontecimentos da ex-istncia infantil no deixam sobre a human-idade, chegada idade madura, uma im-presso bem definida. Tudo sombra,cinza, dbil e irregular recordao, confusode fracos prazeres e desgostos fantas-magricos. Comigo isso no aconteceu.Devo ter sentido em minha infncia, com aenergia de um homem feito, tudo o que en-contro hoje gravado na memria em linhasto vivas, to profundas e durveis como osexergos das medalhas cartaginesas.

    E contudo, de fato ? do ponto de vistacomum do mundo , como havia la to pou-ca coisa para relembrar! O despertar, de

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  • manh, a ordem para deitar-se, as lies aaprender, os recitativos, as meias frias per-idicas e os passeios, o ptio de recreio,com suas disputas, seus passatempos, suasintrigas, tudo isso, por uma magia psquicadesaparecida, continha em si um desvariode sensao, um mundo rico de incidentes,um universo de emoes variadas e de ex-citaes das mais apaixonadas e em-briagadoras. Oh! Le bon temps que ce siclede fer! Na realidade, minha natureza ar-dente, entusiasta, imperiosa fez de mim,dentro em pouco e entre meus camaradas,um carter marcado, e pouco a pouco,naturalmente, deram-me um ascendentesobre todos os que no eram mais velhosdo que eu ? sobre todos, exceto um. Era umaluno que, sem qualquer parentescocomigo, tinha o mesmo meu nome de bat-ismo, o mesmo nome de famlia ? circun-stncia pouco notvel, em si ? porque meu

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  • nome, malgrado a nobreza de minha ori-gem, era um desses nomes vulgares queparecem ter sido, desde tempos imemoriais,por direito de prescrio, a propriedadecomum da multido. Nesta narrativa dei amim mesmo o nome de William Wilson, fict-cio, porm no muito distante do verdadeiro.Meu homnimo, somente, entre os que, se-gundo a fraseologia da escola, compunhama nossa classe, ousava rivalizar comigo nosestudos, nos jogos e nas discusses do re-creio, recusar uma crena cega em minhasassertivas e uma submisso completa minha vontade ? em suma contrariar minhaditadura, em todos os casos possveis. Sejamais existiu sobre a terra um despotismosupremo e sem reservas, bem o despot-ismo de um menino de gnio sobre as almasmenos enrgicas de seus camaradas.

    A rebeldia de Wilson era para mim origemdo maior constrangimento, tanto mais que,

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  • apesar das bravatas com que eu julgavadever trat-lo publicamente, a ele e s suaspretenses, sentia, no ntimo, que Wilsonme intimidava e no podia deixar de consid-erar a equanimidade que mantinha to facil-mente diante de mim, como a prova de umaverdadeira superioridade ? pois havia deminha parte um esforo perptuo para noser dominado. Contudo, essa superioridade,ou antes igualdade, no era verdadeira-mente conhecida seno por mim; nossos ca-maradas, por uma inexplicvel cegueira,nem mesmo pareciam desconfiar disso. E,de fato, sua rivalidade, sua resistncia e par-ticularmente sua impertinente e irritadia in-terveno em todos os meus desgnios noeram to manifestas, e antes, confidenciais.Ele parecia igualmente desprovido da am-bio que me levava a dominar e da energiaapaixonada que me dava os meios paraisso. Poder-se-ia crer que, nessa rivalidade,

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  • Wilson era dirigido unicamente por umdesejo caprichoso de opor-se a mim, de meespantar, ou mortificar; se bem quehouvesse casos em que eu no podia deixarde notar, com um sentimento confuso, desurpresa, humilhao e clera, que elepunha em seus ultrajes, suas impertinnciase contradies certos ares de afetuosidade,dos mais intempestivos e, sem dvida, maisdesagradveis do mundo. Eu no podiacompreender uma conduta to estranhaseno supondo-a o resultado de uma sufi-cincia perfeita, permitindo-se o tom vulgarda condescendncia e da proteo.

    Talvez fosse por esse ltimo trao, na con-duta de Wilson ? acrescido da nossahomonmia e o fato puramente acidental denossa entrada simultnea na escola ?, quetodos. entre nossos condiscpulos dasclasses superiores, acreditavam que ramosirmos. Habitualmente, esses estudantes

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  • no se informam com muita exatido quantoaos assuntos dos mais jovens. J disseantes, ou deveria t-lo dito, que Wilson noera, nem em grau afastado, parente deminha famlia. Mas decerto, se fssemosirmos, teramos sido gmeos: pouco depoisde ter deixado a escola do Doutor Bransbysoube, por acaso, que o meu homnimonascera em 19 de janeiro de 1813 ? coin-cidncia bastante notvel, sendo esse dia,precisamente, o do meu nascimento.Podeparecer estranho que, malgrado a contnuaansiedade que me causava a rivalidade deWilson e seu insuportvel esprito de contra-dio, eu no era levado a odi-lo completa-mente. Sem dvida, quase todos os dias tn-hamos uma briga, na qual, concedendo-mepublicamente os louros da vitria, ele con-seguia, de certa maneira, fazer-me sentirque eu no os merecera. Contudo, um senti-mento de orgulho, de minha parte, e uma

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  • verdadeira dignidade, da dele, nos mantin-ham sempre em termos de estrita cortesia,apesar de haver muitos pontos de forte iden-tidade no nosso carter, que faziam desper-tar em mim o desejo, reprimido talvez pelanossa posio, de transformar aquilo emamizade. Na verdade, difcil definir, oumesmo descrever meus verdadeiros senti-mentos para com ele: formavam um aml-gama extravagante e heterogneo ? umaanimosidade petulante que no era aindadio, estima, ainda mais respeito, uma boaparte de temor e uma imensa e inquieta curi-osidade. suprfluo acrescentar, para omoralista, que Wilson e eu ramos os maisinseparveis camaradas.

    Foram decerto a anomalia e ambigidade denossas relaes que jogaram todos os meusataques contra ele e, francos ou dissimula-dos, eram numerosos ? moldados de ironiaou de troa (a zombaria no causa tambm

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  • excelentes feridas?) em vez de uma hostilid-ade mais sria e mais determinada. Pormmeus esforos, neste ponto, no obtinhamregularmente um triunfo perfeito, mesmoquando os planos eram mais engen-hosamente maquinados. que o meuhomnimo tinha em seu carter muito dessaausteridade plena de reserva e de calmaque, mesmo deliciando-se com a pungnciade suas prprias zombarias, nunca mostra ocalcanhar-de-aquiles e foge absolutamenteao ridculo. No podia assim encontrar neleseno um ponto vulnervel: era constitudopor um detalhe fsico que, vindo talvez deuma enfermidade de seu organismo, teriasido poupado por algum outro antagonistamenos encarniado do que eu: meu rivaltinha no aparelho vocal uma fraqueza que oimpedia de jamais erguer a voz acima de umsussurro muito baixo. E eu no deixava de

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  • tirar, dessa imperfeio, toda a pobre vant-agem que estava em meu poder.

    Vrias eram as represlias de Wilson; tinha,particularmente, esse gnero de malcia queme perturbava de maneira intolervel. Comotivera, no incio, a sagacidade de descobrirque uma coisa to insignificante podiamortificar-me, eis uma questo que jamaispude resolver; mas, assim que a descobriu,habitualmente me atormentava com isso.Sempre sentira averso por meu infeliznome de famlia to deselegante, e por meuprenome to vulgar ou mesmo absoluta-mente plebeu. Essas slabas eram um ven-eno para meus ouvidos e quando, no dia deminha chegada, apresentou-se na escolaum segundo William Wilson, odiei-o pela fatode ter esse nome e por ser tambm o de umestranho ? um estranho que seria a causade sua dupla repetio, que estaria perman-entemente em minha presena e cujas

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  • atividades, na rotina da vida do colgio, seri-am muitas vezes e inevitavelmente confun-didas com as minhas, devido a essa de-testvel coincidncia.

    O sentimento de irritao criado por esseacidente tornou-se mais vivo, a cada circun-stncia que tendia a focalizar toda a semel-hana moral entre meu rival e mim. Nohavia notado ainda seno o fato ex-traordinrio de sermos da mesma idade;mas via agora que ramos da mesma alturae havia uma semelhana singular em nossafisionomia e nossas feies. Exasperava-meigualmente o rumor que corria sobre nossoparentesco e a que geralmente se davacrdito, nas classes superiores. Numa palav-ra, nada poderia causar-me preocupaomais sria (embora eu ocultasse com omaior cuidado todo sintoma dessa perturb-ao) do que uma aluso qualquer semel-hana entre ns, em relao ao esprito,

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  • pessoa ou ao nascimento. Mas, na verdade,no tinha razo alguma para acreditar queessa semelhana (excetuando o fato do par-entesco e de tudo o que o prprio Wilsonsabia ver) tivesse jamais sido assunto decomentrios ou mesmo notada por nossoscamaradas de classe. Que ele a observasseem todos os sentidos e com tanta atenoquanto eu prprio, era evidente, mas quetivesse podido descobrir em tais circunstn-cias uma mina to rica de contrariedades,no o posso atribuir, como j disse, seno sua penetrao mais do que comum.

    Wilson dava-me a rplica com uma perfeitaimitao de mim mesmo ? gestos e palavras? e representava admiravelmente o seu pa-pel. Meu traje era coisa fcil de copiar, meuandar, minha atitude geral, ele fizera seussem dificuldade e, a despeito de seu defeitoconstitutivo, nem mesmo minha voz lhehavia escapado. Naturalmente, no tentava

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  • os tons elevados, mas a clave era idntica esua voz, apesar de falar baixo, transformou-se em perfeito eco da minha. A que pontoesse curioso retrato (porque no possocham-lo propriamente uma caricatura) meatormentava, o que nem ouso tentar dizer.No me restava seno um consolo: que aimitao, segundo me parecia, era notadaapenas por mim e que eu tinha simples-mente de suportar os sorrisos misteriosos eestranhamente sarcsticos do meu homn-imo. Satisfeito de haver produzido em meucorao o efeito desejado, parecia expandir-se em segredo sobre a ferida que me infli-gira e mostrar um desdm singular pelosaplausos pblicos que os sucessos de suaengenhosidade lhe teriam facilmente con-quistado. Como era possvel que nossos ca-maradas no adivinhassem o seu desgnio,no vissem sua realizao e no partil-hassem de sua alegria zombeteira? Foi isso,

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  • durante muitos meses de inquietao, ummistrio insolvel para mim. Talvez agradao de sua cpia no fosse logo per-cebvel, ou antes, eu devia minha seguranaao ar de maestria do copista, que desden-hava a letra ? coisa que os espritos obtusoslogo notam numa pintura ? e no davaseno o perfeito esprito do original, paraminha maior admirao e pesar.

    J falei, vrias vezes, do desagradvel ar deproteo que assumira para comigo e dasua frequente e oficiosa interveno emminha vontade. Essa interveno tomavamuitas vezes a forma desagradvel de umconselho, que no era dado abertamente,mas sugerido, insinuado. Eu o recebia comuma repugnncia que crescia com os anos.Contudo, nossa poca j longnqua, querofazer-lhe a justia estrita de reconhecer queno me lembro de uma s vez em que assugestes de meu rival tivessem pactuado

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  • com os erros e loucuras to comuns em suaidade, geralmente destituda de maturidadee experincia; que o seu senso moral, ouseu talento e sua prudncia mundana, eramuito mais fino que o meu, e hoje eu seriaum homem melhor se no tivesse semprerecusado os conselhos daqueles sussurrossignificativos que me causavam, ento, tosomente dio cordial e amargo desprezo.

    Por isso tornei-me extremamente rebelde sua odiosa vigilncia e detestava cada vezmais abertamente o que considerava sua in-tolervel arrogncia. J disse que, nosprimeiros anos de nossa camaradagem,meus sentimentos para com ele poderiamfacilmente ter-se transformado em amizade,mas, durante os ltimos meses de minhapermanncia na escola, embora sua habitu-al intromisso tivesse diminudo bastante,meus sentimentos, numa proporo quasesemelhante, tinham-se inclinado para o

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  • verdadeiro dio. Certa ocasio, ele o perce-beu, presumo, e desde ento me evitou oufingiu evitar-me. Foi pouco mais ou menosna mesma poca, se no me falha amemria, numa discusso violenta que tive-mos, na qual ele perdeu sua reserva habitu-al e falava e agia com um desembaraobem diferente sua natureza, que descobri,ou imaginei descobrir, em seu tom, sua atit-ude, enfim, no seu aspecto em geral, algoque a princpio me fez estremecer e depoisme interessou profundamente, trazendo-meao esprito vises obscuras de minhaprimeira infncia lembranas estranhas, con-fusas, precipitadas, de um tempo no qualminha memria no nascera ainda. No po-deria definir melhor a sensao que medominou, seno dizendo que me era difcillibertar-me da ideia de j haver conhecido apessoa que se encontrava diante de mim,em alguma poca muito longnqua, em

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  • algum ponto do passado, mesmo que infinit-amente remoto. Contudo, essa sensaoesvaiu-se to rapidamente como veio; e noa menciono aqui seno para assinalar o diado ltimo encontro que tive com o meu sin-gular homnimo.

    Com suas inumerveis subdivises, a velhae vasta casa tinha vrios e amplos aposen-tos, que se comunicavam entre si e serviamde dormitrio maioria dos alunos. Haviacontudo (como seria inevitvel, num edifcioto impropriamente planejado) uma porode cantos e recantos fragmentos e aberturasda construo, que a engenhosidade doDoutor Bransby transformara tambm emdormitrios. Eram porm simples comparti-mentos, que s poderiam acomodar umapessoa. Um desses pequenos quartos eraocupado por Wilson.Uma noite, ao fim domeu quinto ano na escola e imediatamenteaps a discusso de que falei, aproveitando

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  • um momento em que todos dormiam,levantei-me e, com uma lmpada na mo,dirigi-me, atravs de um labirinto de corre-dores estreitos, do meu ao quarto do meurival. Havia muito planejara pregar-lhe umapea de mau gosto, mas, at ento, semprefracassara. Tive pois a ideia de pr o meuplano em prtica e resolvi faz-lo sentir todaa fora da maldade de que estava possudo.Cheguei porta de seu cubculo e entreisem fazer rudo, deixando porta a lmpadacom um abajur. Avancei um passo e escuteio som de sua respirao tranquila. Conven-cido de que dormia profundamente, voltei porta, peguei a lmpada e aproximei-menovamente da cama. Como os cortinadosestavam cerrados, abri-os de leve e lenta-mente, para a execuo de meu plano, masuma luz viva caiu em cheio sobre o adorme-cido e ao mesmo tempo meus olhos se det-iveram sobre sua fisionomia. Olhei; e um

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  • entorpecimento, uma enregelante sensaopenetraram instantaneamente todo o meuser. Meu corao palpitou, os joelhos vacil-aram, toda a minha alma foi tomada de umhorror intolervel e inexplicvel. Arquejando,baixei a lmpada at quase encost-la noseu rosto. Seriam seriam mesmo asfeies de William Wilson? Vi, sem dvida,que eram os meus traos, mas tremia comoque tomado de um acesso de febre, imagin-ando que no o eram. Que haveria poisneles para me confundir a tal ponto? Eu ocontemplava e meu crebro girava em tornode milhares de pensamentos incoerentes.Ele no me aparecia assim ? seguramenteno parecia tal ? nas horas ativas de suavida acordado. O mesmo nome! Os mesmostraos! A entrada na escola no mesmo dia!E, ainda, essa odiosa e inexplicvel imitaode minhas maneiras, andar, voz e costume!Estaria, na verdade, nos limites da

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  • possibilidade humana que aquilo que eu viaagora fosse o simples resultado dessehbito de imitao sarcstica? Tomado dehorror, estremecendo, apaguei a lmpada,sa silenciosamente do quarto e deixei ime-diatamente o recinto da velha escola, paranunca mais voltar.

    Aps um lapso de alguns meses vividos emcasa de meus pais, em ociosidade absoluta,fui mandado para o colgio de Eton. Essebreve intervalo fora suficiente para enfraque-cer em mim a recordao dos acontecimen-tos na escola Bransby, ou pelo menos oper-ar uma mudana notvel na natureza dossentimentos que essas lembranas mecausavam. A realidade, o lado trgico dodrama, no existiu mais. Encontrava agoraalguns motivos para duvidar do testemunhode meus sentidos e raramente me lembravada aventura sem admirar-me de quo longepode ir a credulidade humana, e sem sorrir

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  • da prodigiosa fora de imaginao que haviaherdado de minha famlia. E a vida que eulevava em Eton no era de molde a diminuiressa espcie de ceticismo. O turbilho deloucura em que mergulhei imediatamente esem reflexo tudo varreu, exceto a lem-brana de minhas horas passadas, absor-vendo imediatamente todas as impressesslidas e srias, no deixando em minhalembrana seno as leviandades de minhaexistncia anterior.

    No tenho, contudo, a inteno de descre-ver aqui a trajetria de meus infames desre-gramentos ? desregramentos que de-safiavam as leis e iludiam a vigilncia. Trsanos de loucuras, gastos sem proveito, spoderiam ter-me dado hbitos de vcio, en-raizados, e haviam aumentado, de maneiraquase anormal, meu desenvolvimento fsico.Um dia, aps uma semana inteira de dis-sipaes embrutecedoras, convidei um

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  • grupo de estudantes, dos mais dissolutos,para uma orgia secreta em meu quarto.Reunimo-nos a uma hora avanada danoite, porque a nossa orgia devia prolongar-se religiosamente at a manh. O vinho cor-ria livremente e outras sedues, mais peri-gosas, talvez, no haviam sido negligencia-das, tanto que quando o alvorecer empalide-cia o cu, no oriente, nosso delrio e nossasextravagncias tinham atingido o auge. Furi-osamente exaltado pelas cartas e pela be-bida, insistia em fazer um brinde estran-hamente indecente, quando minha atenofoi subitamente distrada por uma porta quese abria violentamente e pela voz precipit-ada de um criado. Disse que uma pessoa,que parecia ter muita pressa, pedia parafalar comigo no vestbulo. Loucamente excit-ado pelo vinho, essa interrupo causou-memais prazer do que surpresa. Precipitei-me,cambaleando, e, aps alguns passos,

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  • encontrei-me no vestbulo da casa. Nessasala, baixa e estreita, no havia nenhumalmpada e a nica luz que ali entrava era ado alvorecer, muito fraca, que se infiltravaatravs da janela semicircular. Pisando nasoleira, distingui um rapaz pouco mais oumenos da minha estatura, vestindo umroupo de casimira branca, talhado modado dia, como o que eu usava naquele mo-mento. A luz fraca me permitiu ver tudo isso;mas os traos do rosto, no os pude distin-guir. Mal entrei, ele se precipitou para mime, segurando-me o brao com um gesto im-perativo de impacincia, murmurou em meuouvido as palavras:

    ? William Wilson!

    Num segundo, tornei-me absolutamentesbrio. Havia na maneira do estranho, notremor nervoso de seu dedo, que ergueraentre meus olhos e a luz, qualquer coisa que

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  • me causou um espanto completo: mas noera isso o que me emocionara de maneirato violenta, e sim a importncia, a solenid-ade da admoestao contida na palavra sin-gular, baixa, sibilante, e, acima de tudo, ocarter, o tom, a clave dessas poucas sla-bas, simples, familiares e, contudo, misteri-osamente sussurradas, que vieram, com milrecordaes acumuladas dos diaspassados, abater-se em minha alma comouma descarga eltrica. Antes que eupudesse recobrar os sentidos, ele havia de-saparecido. Embora o fato produzisse semdvida um efeito muito vivo sobre minhaimaginao desregrada, esse efeito, tovivo, contudo, se foi em breve esvaindo. Naverdade, durante vrias semanas, vivi en-tregue a investigaes mais srias, ou en-volvido numa nuvem de mrbida meditao.No tentava ocultar a mim mesmo a iden-tidade da singular criatura que se imiscua

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  • de maneira to obstinada em minha vida eme fatigava com seus conselhos oficiosos.Porm, quem era? Quem era esse Wilson?E de onde vinha? Qual o seu objetivo?Sobre nenhum desses pontos consegui ob-ter resposta satisfatria ? e constateisomente, em relao a ele, que um acidentesbito, em sua famlia, o fizera deixar aescola do Doutor Bransby na tarde do diaem que eu fugira. Mas, depois de algumtempo, deixei de pensar nisso e minhaateno foi inteiramente absorvida pelapartida, projetada, para Oxford. Ali, embreve ? a vaidade prdiga de meus paispermitindo-me levar um alto padro eentregar-me vontade ao luxo, j to domeu gosto ?, vim a rivalizar em prodigalid-ade com os mais orgulhosos herdeiros dosmais ricos condados da Gr-Bretanha. Es-timulado ao vcio por semelhantes meios,minha natureza explodiu em breve com um

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  • duplo ardor e na louca embriaguez de min-has devassides calquei aos ps os vul-gares entraves da decncia. Mas seria ab-surdo demorar aqui em detalhes de minhasloucuras. Basta dizer que ultrapasseiHerodes em dissipaes e que, dando umnome a uma multido de novos desvarios,acrescentei um copioso apndice ao longocatlogo dos vcios que reinavam ento nauniversidade mais dissoluta da Europa.

    Custa a acreditar que eu tivesse decado atal ponto, de minha posio de nobreza,procurando familiarizar-me com os mais visartifcios do jogador de profisso e me tor-nasse um adepto dessa cincia desprezvel,que a praticasse habilmente com o pretextode aumentar meu rendimento j enorme, custa de companheiros cujo esprito eramais fraco. Mas foi o que aconteceu. E aprpria enormidade desse atentado contraos sentimentos de dignidade e honra era,

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  • evidentemente, a principal, se no a nicarazo da minha impunidade. Quem, pois,entre meus mais devassos camaradas, noteria contestado ao mais evidentetestemunho de seus prprios sentidos, adesconfiar de semelhante conduta da partedo alegre, do franco, generoso WilliamWilson ? o mais nobre, o mais liberal doscompanheiros de Oxford ?, aquele cujasloucuras, diziam meus parasitas, eram apen-as as loucuras de uma mocidade e de umaimaginao sem freio, cujos erros no eramseno inimitveis caprichos, e os vcios maisnegros, uma descuidada e soberbaextravagncia?

    Havia dois anos que eu vivia dessa maneira,quando chegou universidade um jovem denobreza recente, um parvenu, chamadoGlendinning ? rico, diziam, como Herodestico e cuja riqueza fora tambm facilmenteadquirida. Descobri bem depressa que era

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  • de inteligncia fraca e, naturalmente,marquei-o como possvel vtima de meustalentos. Convidava-o freqentemente a jog-ar e deixava-o ganhar somas considerveis,a fim de prend-lo mais eficazmente na ar-madilha. Finalmente, com o meu plano bemestabelecido (procurei-o na inteno in-abalvel de que esse encontro seria decis-ivo), no apartamento de um dos nossos ca-maradas, Preston, ntimo igualmente de am-bos, porm, que ? fao-lhe essa justia ?no tinha a menor desconfiana quanto aomeu desgnio. A fim de melhor colorir oacontecimento, tive o cuidado de convidarum grupo de oito ou dez pessoas, tendo omais rigoroso cuidado de fazer com que oaparecimento das cartas parecesse inteira-mente acidental e no se fizesse seno sobproposta daquele a quem eu queria lograr.Para resumir to vil passagem, digo que nonegligenciei nenhuma das infames astcias

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  • praticadas da maneira mais banal em taisocasies e de admirar que ainda existampessoas bastante ingnuas a ponto de car-em como suas vtimas.

    Prolongamos muito a nossa viglia, e j eratarde da noite, quando, afinal, conseguifazer de Glendinning meu nico adversrio.O jogo era o meu favorito: o cart. Os out-ros presentes, interessados pelas pro-pores de nosso jogo, tinham deixado suascartas e se reuniam em torno de ns. comoespectadores. O nosso parvenu, que, dur-ante a primeira parte da noite, eu induzira abeber fartamente, embaralhava, dava ascartas agora de maneira nervosa, estranha,na qual, pensava eu, a embriaguez influade certo modo, porm no explicava inteira-mente. Em muito pouco tempo j se tornarameu devedor de uma grande soma, quando,depois de beber um grande copo de vinhodo Porto, fez justamente o que eu havia

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  • previsto friamente: props que dobrssemosa nossa parada, j absurdamente elevada.Com uma hbil afetao de relutncia, esomente depois que minhas recusas repeti-das lhe haviam provocado algumas palavrassperas, que deram ao meu consentimentoum tom ofendido, acedi finalmente. O res-ultado foi o que devia ser: a presa cara irre-mediavelmente na armadilha e em menosde uma hora quadruplicara a dvida. Haviaalgum tempo, seu rosto comeara a perder orubor produzido pelo vinho, mas agora eupercebia, atnito, que sua palidez era ver-dadeiramente terrvel. Digo atnito, porquetomara sobre Glendinning informaesminuciosas: davam-no como sendoimensamente rico e as somas que ele per-dera at ento, embora realmente vastas,no podiam ? pelo menos eu supunha ?preocup-lo muito seriamente e aindamenos afet-lo de maneira a tal ponto

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  • violenta. A ideia que se apresentou maisnaturalmente ao meu esprito foi que eleficara perturbado pelo vinho que bebera e,antes para salvaguardar o meu carter aosolhos de meus camaradas do que por ummotivo de desinteresse, ia insistir peremp-toriamente para interromper o jogo, quandoalgumas palavras pronunciadas ao meulado, entre as pessoas presentes e uma ex-clamao de Glendinning, demonstrando omais completo desespero, fizeram-me com-preender que eu o levara runa total, emcondies que, tornando-o objeto dapiedade de todos, deveriam t-lo protegido,mesmo contra os maus ofcios de umdemnio.

    Que atitude deveria ter sido ento a minha, difcil dizer. A lastimvel situao de minhavtima lanara sobre ns um ar de tristeza econstrangimento. Por alguns minutos reinouum silncio profundo durante o qual eu

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  • sentia, malgrado meu, o rosto a formigar,sob os olhares ardentes de desprezo e cen-sura que me eram dirigidos pelos menos en-durecidos do grupo. Confessarei, mesmo,que meu corao sentiu-se instantanea-mente aliviado do intolervel peso da angs-tia, pela sbita e extraordinria interrupoque sobreveio. As largas e pesadas portasse escancararam subitamente, com uma im-petuosidade to vigorosa e violenta, que to-das as velas se apagaram como por en-canto. Mesmo no escuro ainda nos foi pos-svel notar que um estranho entrara; umhomem mais ou menos da minha estatura,apertadamente envolvido numa capa. Con-tudo, agora, as trevas eram completas epodamos apenas sentir que ele estavaentre ns. Antes que qualquer dospresentes voltasse a si do extremo espantoem que nos lanara aquele gesto de violn-cia, ouvimos a voz do intruso:

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  • ? Senhores ? disse ele, numa vozmuito baixa, mas distinta, in-esquecvel, que atingiu a medula demeus ossos ?, senhores, no procurodesculpar a minha conduta, por que,agindo assim, no fao mais do quecumprir um dever. Sem dvida, noesto informados sobre o verdadeirocarter da pessoa que ganhou estanoite uma soma enorme no cart,tendo como parceiro Lorde Glendin-ning. Vou assim propor-lhes um meiorpido e decisivo de conseguir essasimportantssimas informaes.Examinem, rogo-lhes, sem pressa, oforro do punho de sua manga esquerdae os pacotinhos que sero encontradosnas algibeiras suficientemente vastasde seu roupo bordado. Enquanto oestranho falava, o silncio era to pro-fundo, que se teria ouvido um alfinetecair sobre o tapete. Terminando, ele

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  • partiu de repente, to bruscamentecomo entrara. Poderia descrever aminha impresso? Ser preciso dizerque senti todos os horrores dos dana-dos, no inferno? Decerto, tive poucotempo para reflexo. Vrios braos meagarraram com violncia,reacenderam-se imediatamente asluzes. Revistaram-me: no forro deminha manga, encontraram todas asfiguras essenciais do cart e, nosbolsos do meu roupo, um certonmero de baralhos exatamentesemelhantes aos que usvamos emnossas noitadas, com a nica exceode que os meus eram daqueles chama-dos, tecnicamente, arrondes: ascartas figuradas ligeiramente convexasnas extremidades mais estreitas e assem figuras tambm imperceptivel-mente convexas, nos lados mais lar-gos. Graas a essa marcao, a vtima

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  • quando corta o baralho ao comprido,como habitual, d, inevitavelmente,uma carta figurada ao adversrio, aopasso que o trapaceiro, cortando nosentido da largura, jamais dar aooutro algo que lhe possa trazervantagem.Uma tempestade de revolta me afetar-ia menos do que o silencioso desdm ea calma sarcstica com que receberamessa descoberta.

    ? Sr. Wilson ? disse nosso anfitrio,baixando-se para apanhar sob meus psuma magnfica capa de pele rara ?, Sr.Wilson, isto lhe pertence.

    Fazia frio e, ao sair de meu quarto, eupusera sobre a roupa que vestira demanh uma capa que tirei, ao chegarao local do jogo.

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  • ? Imagino ? disse olhando as dobras domanto com um sorriso amargo ? queser suprfluo procurar aqui novasprovas de sua habilidade. Realmente,estamos fartos. Espero que com-preenda a necessidade de deixar Ox-ford e, de qualquer modo, de sair ime-diatamente de meus aposentos.

    Aviltado, humilhado at a poeira, comoestava no momento, provvel quetivesse castigado essa linguagem in-sultante com violncia imediata, setoda a minha ateno no estivesse,nesse momento, detida por um fatodos mais surpreendentes. A capa queeu trouxera era de uma pelica superior? de uma raridade e de um preo toextravagantes, que no me atrevo adizer. O modelo tambm era de minhainveno, pois nessas questes frvolaseu era exigente e levava o dandismos raias do absurdo. Por isso, quando

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  • Preston me entregou o que apanharano cho, junto porta da sala ? comum espanto quase terror ?, percebique j tinha a minha capa sobre obrao onde a colocara sem prestarateno, e aquela que agora me dav-am era uma exata reproduo em to-dos os detalhes da minha. A singularcriatura que me denunciara de maneirato desastrosa estava, lembro-mebem, envolta numa capa e nenhumdos presentes, exceto eu, usava capanaquela ocasio. Conservei porm umacerta presena de esprito e recebi acapa que Preston me oferecia,coloquei-a ? sem que ningum pres-tasse ateno ? sobre a minha; sa dasala com um desafio ameaador no ol-har e nessa manh mesmo, antes doalvorecer, fugi precipitadamente deOxford, em viagem pelo continente,angustiado de horror e vergonha. Fugi

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  • em vo. Meu destino maldito meperseguiu, triunfante, provando-meque seu misterioso poder apenascomeava. Mal chegara a Paris, tiveoutra prova do interesse detestvelque esse Wilson tomava pelos meusnegcios. Os anos passaram, e notive trgua. Miservel! Em Roma, comque importuna obsequiosidade, comque ternura, o espectro se interpsentre mim e a minha ambio! Em Vi-ena em Berlim! em Moscou! Na ver-dade, em que lugar no tinha eu umarazo amarga para maldiz-lo do n-timo do meu corao? Tomado depnico, fugi enfim de sua impenetrveltirania, como de uma peste at o fimdo mundo, fugi, e fugi em vo.E sempre, sempre interrogandosecretamente minha alma, perguntavaa mim mesmo: Quem ele? De ondevem? Qual o seu objetivo? Mas no

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  • encontrava resposta. E analisava entocom um cuidado minucioso as formas,o mtodo e os caractersticos de suainsolente vigilncia. Mas a, ainda, noencontrava muita coisa que pudesseservir de base a uma conjetura. Eraverdadeiramente notvel o fato de quedas inmeras vezes em que ele at-ravessara no meu caminho, recente-mente, jamais o fez seno para frus-trar planos ou derrotar aes que, sebem sucedidas, teriam redundado emamarga decepo. Pobre justificativa,na verdade, para uma autoridade toimperiosamente usurpada! Pobre in-denizao para esses direitos naturaisde livre-arbtrio to obstinada e ofens-ivamente negados!

    Fui obrigado a notar que meu algoz, havialongo tempo, mesmo exercendo escrupu-losamente e com hbil destreza a mania dese vestir da mesma maneira que eu, cada

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  • vez que interferira na minha vontade, fizeratudo de maneira que eu no pudesse ver oseu rosto. Fosse l quem fosse esse malditoWilson, sem dvida, semelhante mistrio erao cmulo da afetao e da tolice. Poderiaele supor um instante que, como meu con-selheiro de Eton, destruidor de minha honraem Oxford, aquele que frustrou minha am-bio em Roma, minha vingana em Paris,meu amor apaixonado em Npoles e, o queele chamava, erroneamente, a minha av-areza, no Egito ? nesse ser, meu grande in-imigo e meu gnio mau, eu no reconheciao William Wilson dos meus anos de colgio,o homnimo, o camarada, o rival execrado etemido do colgio Bransby? Impossvel! Masdeixem-me descrever a terrvel cena final dodrama.

    At ento, eu me submetera sem reao aoseu imperioso domnio. O sentimento deprofundo respeito com o qual me

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  • acostumara a considerar o carter elevado,a sabedoria majestosa, a onipresena e oni-potncia aparentes de Wilson, acrescenta-dos a uma certa sensao de terror que meinspiravam alguns outros traos de suanatureza e determinados privilgios, tinhamcriado em mim a idia de minha fraquezaabsoluta, de minha impotncia, me haviamaconselhado uma submisso sem reservas,embora cheia de amargura e de repugnn-cia, sua ditadura arbitrria. Mas, nesses l-timos tempos, abandonara-me inteiramenteao vinho e sua influncia exasperante sobremeu temperamento hereditrio tornava-mecada vez mais relutante a todo controle.Comecei pois a murmurar, a hesitar, a resi-stir. E seria simplesmente minha imaginaoque me induzia a crer que a obstinao demeu algoz diminuiria em razo da minhaprpria firmeza? possvel, mas em todocaso comeava a sentir a inspirao de uma

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  • esperana ardente, e acabei nutrindo, nomais secreto de meus pensamentos, a som-bria, a desesperada resoluo de libertar-medessa escravido.

    Foi em Roma, durante o carnaval de 18;encontrava-me num baile fantasia, nopalcio do Duque Di Broglio, de Npoles.Abusara da bebida, alm do habitual, e a at-mosfera sufocante dos sales apinhadosirritava-me de maneira insuportvel. A di-ficuldade de abrir caminho atravs da mul-tido contribuiu ainda mais para exasperar omeu humor, porque eu procurava ansio-samente (no direi com que motivo indigno)a jovem, alegre e bela esposa do velho e ex-travagante Di Broglio. Com uma confianabastante imprudente, ela me revelara o se-gredo da fantasia com que iria ao baile e,como eu acabava de avist-la de longe,apressei-me para alcan-la. Nesse mo-mento, senti uma mo pousar de leve em

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  • meu ombro ? e depois esse inesquecvel,profundo e maldito sussurro em meu ouvido!

    Tomado de clera e frenesi, voltei-me brus-camente para aquele que ousara me per-turbar e segurei-o com violncia pelo colete.Wilson vestia, conforme j esperava, um tra-je absolutamente semelhante ao meu: capaespanhola de veludo azul, presa por umcinto carmesim do qual pendia uma espada.Uma mscara de seda negra cobria-lhe in-teiramente o rosto.

    ? Miservel! ? exclamei com voz rouca declera, e cada slaba que me escapava eracomo um combustvel acrescentado ao fogode minha ira. ? Miservel! Impostor! Vilomaldito! No seguirs a minha pista nome atormentars at a morte! Segue-me, ouapunhalo-te a onde ests!

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  • E abri caminho, do salo de baile, para umapequena antecmara vizinha, arrastando-oirresistivelmente comigo.

    Entrando, atirei-o com fria para longe demim. Ele cambaleou, de encontro parede.Fechei a porta, com uma imprecao, eordenei-lhe que desembainhasse a espada.Wilson hesitou um segundo; depois, com umleve suspiro, tirou silenciosamente a arma ese ps em guarda.

    O combate foi rpido. Eu estava exas-perado, sentia desvarios de toda a espciee, num nico brao, a energia e o poder deuma multido. Em alguns segundos,dominei-o pela fora, contra o lambril, e ali,tendo-o minha merc, mergulhei vriasvezes, golpe aps golpe, a espada em seupeito, com uma ferocidade de bruto. Nessemomento, algum tentou abrir a porta.Apressei-me em evitar uma intromisso

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  • importuna e voltei-me imediatamente parameu adversrio que expirava. Porm. queser humano poder traduzir suficientementeo espanto, o horror que se apoderaram demim, ante o espetculo que se apresentouaos meus olhos? O curto instante, durante oqual me desviara, fora suficiente paraproduzir, aparentemente, uma mudana ma-terial nas disposies do outro extremo dasala. Um vasto espelho ? em minhaperturbao pareceu-me assim, a princpio ?erguia-se no ponto onde antes nada vira; e,enquanto me dirigia tomado de horror, paraesse espelho, minha prpria imagem, mascom o rosto plido e manchado de sangue,adiantou-se ao meu encontro, com umpasso fraco e vacilante.

    Foi o que me pareceu, repito, mas no era.Era meu adversrio, Wilson, que diante demim se contorcia em agonia. Sua mscara ecapa jaziam sobre o soalho, no ponto onde

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  • ele as lanara. No havia um fio de suaroupa ? nem uma linha em toda a sua figurato caracterstica e to singular ? que nofossem meus: era o absoluto na identidade!

    Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurraragora as palavras, tanto que teria sido pos-svel acreditar que eu prprio falava, quandoele me disse: ? Venceste e eu me rendo.Mas, de agora em diante, tambm estsmorto morto para o Mundo, para o Cu epara a Esperana! Em mim tu existias ev em minha morte, v por esta imagem,que a tua, como assassinaste absoluta-mente a ti mesmo.

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    Gustavo Gonalves do NascimentoEditor, Organizador e capa.

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    IntroduoSobre o AutorO Corao DenunciadorO Demnio da PerversidadeWilliamWilsonImportanteExpediente