E foge o ar

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E FOGE O AR *** Susumu Yamaguchi

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O incrível relato da aventura vivida pelo Andarilho e Cronista Susumu Yamaguchi, do município de Joanópolis/SP, atravessando de um grande sertão a outros. Assim, percorrendo do norte de Minas até o nordeste da Bahia, chegando aos sertões de Antônio Conselheiro, marcado pela história e pela literatura brasileira, e com boas histórias na mochila!E-mail de contato do autor: [email protected] Ano de Publicação: 2011/2012

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FOGE

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AR

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Susumu Yamaguchi

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Referências:

[1] – Grande sertão: veredas – João Guimarães Rosa

[2] – Os sertões: campanha de Canudos – Euclides da Cunha

[3] – O recado do Morro – João Guimarães Rosa

[4] – Dão-Lalalão (O devente) – João Guimarães Rosa

[5] – A hora e vez de Augusto Matraga – João Guimarães Rosa

[6] – Minha gente – João Guimarães Rosa

[7] – Serrano de Pilão Arcado: a saga de Antônio Dó – Petrônio Braz

[8] – O Candeeiro – Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas – Ano 5, nº

57, Junho 2011 – Janaúba MG

[9] – O itinerário de Riobaldo: espaço geográfico e toponímia em Grande sertão: veredas –

Alan Viggiano

[10] – O Candeeiro – Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas – Ano 5, nº

58, Junho 2011 – Janaúba MG

[11] – A segunda morte de Ramon Mercader – Jorge Semprun

[12] – Navegação no Rio São Francisco: da canoa ao último vapor – Ermi Ferrari Magalhães

[13] – A guerra do fim do mundo – Mario Vargas Llosa

[14] – Na vala comum do desperdício – Breno Costa; Folha de São Paulo, 04/09/2011

[15] – Sobradinho – Sá e Guarabyra

[16] – Canudos: diário de uma expedição – Euclides da Cunha

[17] – A erva do diabo – Carlos Castaneda

[18] – Zen e a arte da manutenção de motocicletas: uma investigação sobre valores –

Robert M. Pirsig

[19] – Anna de Assis: história de um trágico amor – Judith Ribeiro de Assis em depoimento a

Jeferson de Andrade

[20] – Duelo – João Guimarães Rosa

[21] – A viagem definitiva – Juan Ramón Jiménez

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[22] – Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 2009.3

[23] – História e interpretação de Os sertões – Olímpio de Souza Andrade

[24] – A caminho: por uma Teologia da Peregrinação – Anselm Grün

[25] – Paixão e guerra no sertão de Canudos – Documentário; direção, roteiro e produção de

Antonio Olavo

[26] – Guia do cenário da guerra – Parque Estadual de Canudos

[27] – Os sertões – Edeor de Paula; GRES Em Cima da Hora, Samba de enredo 1976

[28] – Viagem a Ixtlan – Carlos Castaneda

[29] – A nossa Vendeia – Euclides da Cunha

[30] – Guerra de Canudos – Filme de Sergio Rezende; produção de Mariza Leão e José Wilker

[***] – Foto de capa – Portal do Parque Estadual de Canudos

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“Nonada.”[1]

Por uma nonada atravessei de um grande sertão a outros. Mergulhei na primordial

de Riobaldo para emergir na testemunhal do Barão de Jeremoabo: “Causava dó verem-se

expostos à venda nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc.,

além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era

vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.”[2] Ao perseguir um

rio alcancei desde os pequizeiros, cerrados e gerais de Guimarães Rosa até os umbuzeiros,

caatingas e a silva horrida de Euclides da Cunha. E no súbito mar de Sobradinho, quando “o

Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé,

enorme...”[1] se deita e suas águas passam a correr ligeiras, afastei-me em busca do que Fr.

João Evangelista do Monte Marciano chamou “a terra da promissão, onde corre um rio de

leite e são de cuscuz de milho as barrancas.”[2]

Assim, percorrendo do norte de Minas até o nordeste da Bahia, cheguei aos sertões

de Antônio Conselheiro.

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Minas Gerais – Guia Quatro Rodas 2009

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I

Ao sertão primeiro cheguei dias antes, quando o ônibus deixou a BR 040 e o rumo

de Brasília e seguiu direção norte paralelo ao rio São Francisco, umas quinze léguas a leste.

Eu atravessava a região da gruta do Maquiné e de Cordisburgo e Araçaí, cidades finais de

minha passagem pelo circuito Guimarães Rosa no ano anterior. Não pude ver o caminho

que percorrera, mas logo avistei a basílica de São Geraldo Majela à direita, o que indicava

que em algum trecho ali da rodovia eu a cruzara para entrar em Curvelo. E já me pus à

esquerda no ônibus à procura de um morro e, de repente, lá estava!... “Lá – estava o Morro

da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide.”[3] Era de lá que eu viera andando

para Curvelo e avistara, do alto de uma estradinha de terra, muitos veículos passando por

esta rodovia. Agora, do lado de cá, eu me via me vendo desde o lado de lá.

Avistar Corinto foi a última visão daqueles caminhos que percorrera a pé. Montes

Claros era o próximo destino, e um perfil conhecido insistia em me acompanhar pelo lado

esquerdo: a serra do Cabral, que parecia querer barrar meu caminho cruzando com a do

Espinhaço que chegava pela direita. Outro conhecido, de poucas horas e com poucos anos

de vida, passava mal com o balanço do ônibus. O pequeno Eduardo só aceitou um remédio

contra enjoo oferecido por uma passageira quando ela lhe disse que era de sabor morango.

Ela perguntou se eu ia para Janaúba e disse que voltava para enterrar o pai, na esperança

de chegar a tempo. Tinha deixado sua terra há trinta e três anos e morava em Guarulhos, e

raramente voltava. Antigamente tinha feito essa viagem de trem, mas se fosse um caso de

morte só chegaria para a missa de sétimo dia. E estava satisfeita com a rapidez dos ônibus,

mas achava que não voltaria mais a Janaúba. A essa altura Eduardo já brincava, pulava no

banco e fazia sinais de positivo para ela. Olhei pela janela e vi que subíamos por uma serra,

já chegando perto de Montes Claros.

“Montes Claros! (...) Mas, Montes Claros! A já naquele tempo nosso, se alembra? Foi

contado, Surupita: 1.600 mulheres na alegria...”[4] Soropita havia levado Doralda da casa da

Clema, na Rua dos Patos, deixara a vida de boiadeiro matador de valentões e se casara com

ela. Tinham se mudado para o distante povoado do Ão e levavam uma vida respeitável. O

grande sobressalto veio quando Soropita reencontrou um amigo ao voltar de Andrequicé,

aonde fora fazer compras, conversar e ouvir novela do rádio para contar aos outros. “Mas

a ideia o sufocava: quem sabe o Dalberto conhecia Doralda, de Montes Claros, de qualquer

tempo, sabia de onde ela tinha vindo, a vida que antes levara?”[4] Ao observar a mulher e o

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amigo em sua casa, e mesmo não vendo sinal algum de que eles se tivessem conhecido um

dia, Soropita se angustiava. “Doralda tinha aceitado conversa com o Dalberto, a respeito de

Montes Claros! Bem que ele Soropita se punia, de antes não ter dado a ela um aviso. Não

falar em Montes Claros... Por tudo que fosse, não falar em Montes Claros.”[4] A desconfiança

reinava dentro dele, até mesmo quando Dalberto lhe pedia conselhos a respeito de levar a

sua amada Analma da casa da Quelema, na Rua dos Patos, em Montes Claros, para com ela

começar uma vida nova em lugar desconhecido.

Mas enquanto isso acontecia lá no Ão, para os lados da represa de Três Marias, eu

chegava enfim a Montes Claros. Deixei Soropita com seu horror crescente e me despedi da

mulher que ia enterrar o pai em Janaúba; para ela, embora o sertão tivesse ficado mais

perto, ainda faltavam mais de duas horas para chegar. Eduardo desceu em Montes Claros,

e para ele não haveria mais enjoos nem milagres sabor morango. Terra de passagem para

uns, de chegada para outros – mas, para mim, Montes Claros continuaria sendo sempre a

terra de Doralda, e assim, mesmo quando ela “discorria tão fiada, tão sem guarda de si: ‘Sou

de lá não, nasci nas Sete-Serras...’”[4]

*

Depois de se apresentar a apenas dois passageiros na rodoviária de Montes Claros,

Rosalvo deu instruções sobre a viagem e conduziu o ônibus por muitas ruas – qual, nessas

baixadas, a dos Patos? Rumamos para leste, direção de Juramento, ao encontro das serras

que cresciam, e subimos suas primeiras encostas quando a tarde chegava ao fim. Perto de

Pau d’Óleo, no alto da serra do Espinhaço, o sol nos enviava lá de baixo apenas um calor de

brasa quase cinza. Aí, pensei pela primeira vez em Nhô Augusto: “... para rezar perto de um

pau-d’arco florido e de um solene pau-d´óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os

sinais da mão de Deus. (...) Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do

poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo

alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo.”[5] Sim, havia solenidade nos

finais de dia no sertão. Mais tarde, no escuro, vi apenas pequenas luzes lá embaixo e senti

que o ônibus descia bem devagar para entrar na calma da cidade.

Rosalvo apontou para a igreja matriz de Itacambira – motivo de minha viagem –

fez o contorno na praça e parou junto a sua casa, ao lado da pousada de Toni. Depois de

jantar subi a rua principal, cheguei pela parte de trás da igreja, passei ao lado, coloquei-me

de frente e olhei pela porta aberta: à esquerda, o púlpito; à direita, um grupo reunido; e ao

fundo, o altar-mor que reunia memórias de muitos ocidentes e orientes. Eu sabia que se

passasse pela soleira poderia ver a pia batismal, mas não o fiz. E olhando do escuro da rua

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para o interior mal iluminado, era como se aquela nave ganhasse o brilho de uma lanterna

mágica em sua proa e me conduzisse, pelos céus abertos do sertão, para a banda da mão

esquerda do rio São Francisco, para os campos acolhedores do Paredão de Minas. “Daí,

fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.”[1]

Eu estivera lá no ano anterior, onde Diadorim fora revelada após a vida. Agora estava ali, a

poucos passos de sua pia batismal.

Na manhã seguinte convenci-me de que a cidade ficava mesmo na encosta da serra

e não, no vale. Esse local fora escolhido por Santo Antônio, cuja imagem amanhecia sempre

ali ainda que os fiéis a levassem todos os dias para a baixada. Descíamos pela rua e Toni

dava instruções, combinava ensaios, marcava reuniões; depois me mostrou um centro de

esportes em reformas; e na prefeitura, fez pequenos despachos antes de seguirmos nosso

roteiro pela cidade. À noite ele me falara – após um ensaio de dança para a próxima festa

religiosa – do processo de inclusão de Itacambira no circuito da Estrada Real, que seria

estendida além de Diamantina; das dificuldades encontradas nas reformas da matriz; da

impossibilidade de repatriamento das três múmias que estavam depositadas na Fiocruz,

Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, por falta de câmaras de conservação na cidade;

do lento despertar da população para receber com adequação os turistas; e também de sua

pousada, concebida dentro dessa visão, que ele e sua jovem filha levavam adiante apesar

do falecimento da esposa e mãe, especialmente “por ser um projeto dela”.

Na igreja, Toni mostrou as precárias condições da parede atrás do altar-mor com

seus buracos que aumentavam sempre. As largas paredes laterais tinham sido reformadas,

mas pelo teto eu ainda podia ver inúmeros pontos de céu azul. O prédio vinha inclinando

bastante e tinha sido aprumado em meados do século passado, mas ainda pendia um

pouco de lado. E deixando para trás o altar multicor chegamos à pia batismal, em madeira

verde, amarela, azul e rosa sobre um piso avermelhado de grandes tijolos. “Só um letreiro

achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira, onde tem tantos

mortos enterrados. Lá ela foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da

era de 1800 e tantos...”[1] Depois da pia batismal de Diadorim, Toni levou-me para ver os

mortos enterrados debaixo do assoalho da sala do altar lateral, onde um pequeno alçapão

permitia ver vários crânios amontoados; e com largo gesto indicou que ali havia muitos

ossos, aos pedaços. Uma explicação para tantos mortos enterrados ali era a existência de

um antigo cemitério em frente, cujas ossadas tinham sido transferidas; outra, que além

dos clérigos habituais, leigos foram aceitos por conta de doações feitas à igreja, inclusive

fiéis de outras freguesias; e por fim, que para a ressurreição no dia do juízo final o melhor

lugar para se esperar seria no próprio corpo da igreja. De qualquer modo, ali na matriz de

Itacambira, caminhar da pia batismal até a antessala do paraíso – ainda que se passe pelo

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purgatório e pelo inferno em vida – requer apenas alguns passos. Mas foi também ali, após

o fim de tudo, que Riobaldo encontrou o todo início. “O senhor lê. De Maria Deodorina da

Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para

muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor por essa minha alma.”[1]

Apoiado no conforto de seu balcão no cartório da cidade, seu Geraldo dizia que

tudo começara com a capela erigida pelo bandeirante Fernão Dias Paes Leme, que chegara

nestas terras após perambular por mais de seis anos pelos sertões em busca de pedras

preciosas. Ele tinha enfrentado até uma rebelião ali perto, e como jurara os responsáveis

pela traição acabou por executar também o seu filho natural. Tal local – onde eu tinha

passado no dia anterior me indagando sobre o nome – passou a ser chamado Juramento.

Dizia que Fernão Dias não encontrara esmeraldas como sonhava, mas apenas turmalinas e

maleita; e que essas serras, antigamente pertencentes à província da Bahia, guardavam

mesmo muitos tesouros, tanto era que, tempos depois, a matriz de Santo Antonio do

Itacambira já sediava paróquia, emancipada de Serra do Grão-Mogol.

Dona Coló convidou-me para ir até sua cozinha ver a serra que era Resplandecente

por causa do reflexo do sol quando ficava molhada, o que levou Fernão Dias a achar que se

tratava, enfim, do brilho das almejadas pedras. Um lugar muito bonito, com quantidades

de cachoeiras, ela disse. Na sala, reparei em um quadro com três pessoas e uma igreja que

representava a sua vida na visão de uma amiga: ela e seu Geraldo recebendo mais um

padre que chegava. Dona Coló fazia concessões ao marido e citava também bandeirantes,

mas a sua paixão maior era outra: a literatura de Guimarães Rosa. Disse que os registros

da igreja, que em uma época ficavam no cartório, voltaram para lá; e que já vasculhara

aqueles papéis, mas que não achara nada que lembrasse Diadorim – só se alguém retirara

a página do livro. “Este papel, que eu trouxe – batistério. Da matriz de Itacambira...”[1]

Sorrimos. E ela: em épocas antigas meninas eram criadas como meninos por necessidade,

mas esse caso devia ser lá da imaginação de Guimarães Rosa. Mas os sentimentos de dor e

amor que ele descrevia, ainda que não pessoalmente, tinham de ter sido vividos de alguma

forma. E aqueles lugares que ele citava existiam mesmo todos por ali. “Rumamos daí então

para bem longe reato: Juramento, o Peixe-Crú, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-

Chumbo.”[1]

Despedi-me de dona Coló e de seu Geraldo no meio da rua, tendo a igreja atrás de

mim: eu no lugar do padre do quadro da sala da casa de cuja cozinha se podia maravilhar

com a serra Resplandecente. E eu ria e subia devagar a rua – e ria. De repente, lembrei-me

que mais para baixo ficava o restaurante onde uma delicada moça que me atendera à noite

parecia encarnar a presença de Otacília, a moça da fazenda Santa Catarina, em terras de

Diadorim. “Toda moça é mansa, é branca e delicada. Otacília era a mais. (...) Desde esse

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primeiro dia, Diadorim guardou raiva de Otacília.”[1] Então por aqui passaram, em busca de

uma vida descoberta na morte, Riobaldo mais o Alaripe e mais o Quipes. E eu só aterrissei

dessa viagem desnorteada dos ex-jagunços já na prefeitura, ao ouvir o contar galopante de

Edivaldo de uma jornada que fizera a pé com o tio Afonso e um grupo de amigos, de Belo

Horizonte a Itacambira, pela serra do Espinhaço. O tio, natural da cidade e empresário na

capital, criou e mantinha a organização Itaverde, que promovia vários cursos e campanhas

ambientais na região. Mas o que Edivaldo gostava mesmo era de caminhar pelas serras de

Itacambira, só com seu tempo e lanche e acompanhado de seu cachorro. E assim, do alto

do mais alto de uma ou outra “pedra pontuda que sai do mato fechado” ele contemplava,

esquecido, muitas outras Itacambiras.

E subi, para deixar Itacambira e voltar para Montes Claros. E do alto de onde tinha

visto apenas as luzes da cidade no escuro da noite, o mundo se abriu em vastidão de luz. A

meus pés, Itacambira; à esquerda, abaixo, a serra Resplandecente; às minhas costas, rumo

do Juramento; da direita para frente, em cada lugar que não sabia dizer, a Terra Branca, o

Peixe Cru, o Jequitinhonha; e a serra do Grão-Mogol, na curvatura do céu no fim da terra.

Então, bem podia ter sido ali: Nhô Augusto, a caminho de se tornar Augusto Matraga, “ficou

a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de

duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada...”[5]Depois de

acompanhar toda essa movimentação fui pela estrada plana de altitude, em cujas margens

eucaliptos se multiplicavam com os quilômetros. E antes de descer a serra pude avistar, à

distância, muitas duas mil boiadas de outras tantas duas mil cabeças se transmutarem em

inumeráveis eucaliptos, em vasto tropel sem fim.

*

“Meu pai era muito comunista!... E como nasci nos dez anos da revolução russa,

recebi o nome do grande líder. Mas o que fizeram depois que ele morreu não é comunismo!”

Eu tinha pensado algo assim ao saber de seu nome, mas não imaginava que seu pai tivesse

sido tão comunista. Fiz as contas mentalmente: ele chegara aos oitenta e quatro anos com

muito entusiasmo. Sua mãe morrera lúcida aos noventa e nove, e ele só se ensombrara ao

falar do filho que viveu até aos quarenta, menos da metade do que já alcançara. Mas logo

seus olhos me reencontraram já brilhando e, assim, me perguntou como eu descobrira sua

cidade. Então, naquela mesa de calçada, no calor da praça, no fim de tarde, no centro de

Januária, junto a seu Lenine, tomei um grande gole de água de coco.

Eu chegara a ele através de Jurandir, da loja de jornais, revistas e livros. Com a Casa

da Memória fechada nos finais de semana, procurei quem me contasse histórias. Jurandir

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já havia dito que antigamente duas escolas da cidade ofereciam educação de alta qualidade

e com isso atraíam estudantes de uma larga região. E também, que muitos baianos subiam

o rio São Francisco, o que fez do sotaque de Januária um misto de falares de Minas e Bahia.

“Baianeiro”, diria depois seu Lenine. E ambos se lembravam bem da grande cheia de 1979

que inundou todo o centro antigo da cidade. Eu tinha visto no restaurante do hotel um

quadro que mostrava um barco de grande calado atracado ao cais, mas andar pela orla do

rio era como se a cidade não ficasse em sua margem: do nível da rua até o areal devia ter

uns cinco metros de descida; depois, uma prainha de uns cem metros de largura; e por fim,

mais uma queda de uns dois metros até a água. Seu Lenine dizia que sua mãe gritava pelo

barqueiro do outro lado do rio, que era bem mais fundo e estreito; que em Manga, cidade

que ficava a cerca de cem quilômetros abaixo, ainda era assim, sem o assoreamento que

mudava constantemente de lugar o canal do rio, coisa que só os práticos de navegação

enfrentavam com segurança; e que, antigamente, o São Francisco não era um rio tão triste.

“Um mito, essa nossa Januária!...”, exclamou seu Lenine ao ouvir como eu soubera

dela. A primeira vez, há mais de trinta anos, de um januarense também chamado Jurandir,

que bebia muito e divulgava a “branquinha potabilíssima de Januária que está com um naco

de umburana macerando no fundo da garrafa!...”[6] Seu Lenine fez entrega por muitos anos

da cachaça de Januária em Minas, Goiás e Bahia, mas nunca soube bem as razões de sua

grande fama; só sabia dizer que era diferente. A segunda vez que Januária me chamou foi

através de magníficos livros sobre os grandes sertões. Euclides da Cunha diz do jagunço do

vale do rio São Francisco: “Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade

mineira de Januária que conquistaram, tornando a Carinhanha, de onde haviam partido,

carregados de despojos.”[2] Riobaldo também se refere: “Demais falasse, tendo conhecido o

Neco, se lembrava de quando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas eras do ano de 79:

tomou todos os portos – Jatobá, Malhada e Manga – fez como quis...”[1] E durante o cerco dos

hermógenes na fazenda dos Tucanos, depois de um quase duelo por conta de divergências

e suspeitas de traição, Zé Bebelo diz a Riobaldo como se selasse uma suposta cumplicidade

através de um grandioso sonho em comum: “Ah: o Urutú Branco: assim é que você devia de

se chamar... E amigos somos. A ver, um dia, a gente vai entrar, juntos, no triunfal, na forte

cidade de Januária...”[1] E o que eu falava a seu Lenine era de sua Januária cidade cobiçada,

sonho de conquista de todo jagunço.

E cheguei a esse mito não pelo rio ou andando, como ela merecia, mas de ônibus

que partiu de Montes Claros e cruzou o rio São Francisco em Pedras de Maria da Cruz. E vi

veredas, buritizais e pequizeiros em flor com o seu branco arrepiado. Passei por cidades

pequenas e, em especial, por Lontra, onde Riobaldo abandonou o bando de Zé Bebelo: “No

entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo. Aí, vi, aprendi. (...) Fugi. (...) Não sei se era porque eu

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reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na

constante brutalidade.”[1] Seu Lenine dizia que até Montes Claros o pequi era aproveitado,

mas não para cá porque a oferta já era grande de um fruto demasiado substancioso. E que,

aqui, tudo era devagar: desmatamentos sem que se plantem sequer eucaliptos; retomada

dos cuidados com a tradicional cachaça; revalorização do centro antigo da cidade e – a

partir de Lula – um começo de revitalização do rio. Um ônibus de estudantes de Bocaiúva

parou e dezenas de jovens saltaram e mergulharam no turbilhão da praça no começo de

noite. Perguntei se era sempre assim e ele disse que até estava pouco, pois não havia festa

prevista para o fim de semana. Por meu lado, entre um gole e outro de água de coco, previa

uma noite de muito calor – e também, de muita agitação ao lado do hotel.

Atravessei a praça vazia pela manhã, caminhei até a rodoviária e parei em frente a

uma placa que indicava o rumo de Chapada Gaúcha, porta de entrada do Parque Nacional

Grande Sertão Veredas. Por ali também se ia para Serra das Araras, Arinos, Buritis e, já em

Goiás, para as cabeceiras do rio Urucuia. Senti uma tentação, mas esse sertão devia ser

guardado para longas travessias, a pé e com largo tempo. Na volta, Jurandir me apresentou

a Mauro, que me levou à casa de Maura, diretora da Casa da Memória. Mas ela saía para

uma reunião cultural sem hora de término, e fiquei sem ouvir uma real memória da cidade.

Outra professora, Vera, contestava a versão correntemente aceita de que o nome da cidade

teria sido uma homenagem a uma filha do imperador Pedro II. Para ela, Januária era uma

escrava fugitiva de Vila Rica que esbarrou no rio São Francisco e passou a comerciar e a

“fazer a alegria dos bandeirantes”. Por isso, defendia a troca, no brasão da cidade, da coroa

real por algemas partidas. Quanto ao nome da antiga Pedras de Baixo, era aceito que Maria

da Cruz foi uma rica fazendeira casada com descendente de bandeirantes. Muito religiosa e

sensível, promoveu a educação e melhoria de vida dos mais pobres, sendo considerada

uma santa pelos locais e uma traidora pela corte por causa de divergências sobre o quinto,

o imposto real. Também aqui, a kardecista Vera era controversa: “Maria da Cruz sou eu!”

Mauro se lembrava, de suas memórias e de outros. Nos anos 1960, Januária tinha

economia forte com produção de mamona, algodão, arroz e por causa do comércio pelo

porto do rio São Francisco. Nessa época, até no futebol era mais forte que Montes Claros,

mas logo a cidade vizinha empatou e virou o jogo com os incentivos recebidos da SUDENE,

Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Sua cidade não fora contemplada por

causa de desavenças da política local. Meio século depois, Januária já perdia de uns 5 x 1

para Montes Claros no placar do desenvolvimento. Tudo começou em um lugar chamado

Brejo do Salgado – nome decorrente da água salobra local – situado longe do rio por causa

das enchentes. O crescimento do porto levou à emancipação do povoado ribeirinho com o

nome de Januária, ato constitutivo que foi negado inúmeras vezes pela câmara do Brejo e

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que foi igualmente reiterado por Dom Pedro II. Essa obstinação do imperador justificaria o

nome da cidade, pois ele era pai de uma princesa chamada Januária. Posteriormente, o

núcleo original passou a se chamar Brejo do Amparo e transformou-se em distrito de uma

cidade que ainda procura sua identidade de origem, alimentando acesas polêmicas entre

suas linhagens escrava e imperial.

E Mauro também se lembrava de ter ouvido em sua casa histórias sobre jagunços.

Certa ocasião, um boato de que Antônio Dó ia invadir Januária com seus homens provocou

um grande pavor e correria para esconderijos nas bocas de matas, e muitos levaram o que

puderam e até mataram os galos para que seu canto não os denunciasse. Não se lembrava

de ouvir dizer que tenha havido realmente essa invasão. Falei-lhe de um livro[7] que tinha

visto na livraria de Jurandir. Historicamente, Antônio Dó – de batismo, Antônio Antunes de

França – nunca invadiu Januária e nem, para valer, São Francisco. Mas seu nome infundia,

além de terror, muita admiração e respeito em toda a região. Fugindo da seca inclemente

na Bahia, sua família subiu o rio São Francisco e se estabeleceu em São Francisco, a antiga

Pedras de Cima. Mais de duas décadas de trabalho trouxeram prosperidade que despertou

a cobiça dos vizinhos e a ira dos políticos. Ao tentar defender de usurpação terras de sua

companheira Arcângela foi agredido, humilhado e preso; foi julgado e declarado inocente,

mas partes de suas terras tinham sido interditadas; teve o seu gado, de sua irmã e de

Arcângela roubados; teve uma nascente de água cercada indevidamente, com o aval das

autoridades; e, por fim, teve seu irmão Honório assassinado, impunemente.

Revoltado com o não pagamento dos prejuízos – pelos quais negociara e aguardara

pacientemente – formou um grupo de jagunços para lutar contra desmandos de coronéis e

autoridades a quem classificou de “cachorros-do-governo”. Estabeleceu-se na serra das

Araras, fez justiça com as próprias mãos e armas e por quase vinte anos nunca foi vencido

nos embates com as forças legais. Naquele sertão ele era a lei, e a sua fama só crescia. Saul

Martins descreve um aspecto dessa lei: “O respeito às famílias legalmente constituídas e aos

velhos e crianças, todavia, ainda marcava suas ações. Aqui não se descaiu nem permitia o

menor deslize de seus seguidores. A honra de uma virgem era e sempre foi para Antônio Dó

um reduto impenetrável.”[7] Citando homens de nomeada do sertão que queriam consertar

o mundo concertando a seu modo, Riobaldo desfila nomes de Medeiro Vaz, seu Joãozinho

Bem-Bem, Joca Ramiro, Zé Bebelo, Sô Candelário, Titão Passos, Andalécio e outros, e diz:

“Antônio Dó – severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja.”[1] Quando

seu Joãozinho Bem-Bem encontra pela primeira vez Nhô Augusto, de quem será o porrete

que o levará para o céu, ele é descrito, entre outros atributos de fama, como “maior do que

Antônio Dó ou Indalécio”[5] E no reencontro com Nhô Augusto, seu Joãozinho Bem-Bem diz

que está “indo de rota batida para o Pilão Arcado...”[5], mas morre ali mesmo, em duelo. Em

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avançada idade, o natural de Pilão Arcado Antônio Dó morreu assassinado, em 1929, por

dois homens infiltrados em seu bando e que aproveitaram um momento vulnerável de seu

corpo fechado. Sua fama se tornou lenda que ainda hoje corre pelos sertões dessedentados

pelo rio São Francisco.

Sol no meio do céu, sombra na praça, sorvete; e eu pensava nas histórias afluentes

que viajavam nas águas desse rio, em murmúrios ou turbilhões. Em breve aconteceria a

festa dos Santos do Rio – procissão luminosa, da catedral Nossa Senhora das Dores até o

cais; São Francisco e São Pedro, em procissões de barcos iluminados, se encontram na

praia; missa campal; cantorias ao rio; shows, pirotécnico e de violeiros. E voltei do brilho

noturno das águas para o do sol, de súbito, com um aceno que me vinha de um carro que

passava rápido: acenei de volta a tempo de reconhecer Maria da Cruz em seu corpo atual.

E movi meu corpo em busca do restaurante de dona Lucia, prima de seu Lenine. Seguindo

uma engenhosa e labiríntica disposição de placas indicativas, pela qual eu podia conhecer

quarteirões de ruas e calçadas estreitas com casas antigas que brilhavam no silêncio do

calor, cheguei finalmente ao restaurante, onde reencontrei Jurandir e seu Lenine que me

apresentaram dona Lucia. Seu bisavô viera do Ceará e fora comandante do barco Saldanha

Marinho. Na parede havia uma biblioteca com muitos livros, o que fora motivo de várias

matérias de jornais. E ela me mostrou, a um canto da parede, uma fotografia de formatura

com dezenas de médicos, de 1930: “Este é meu pai; e este daqui, João Guimarães Rosa.”

Por essa época, seu Lenine já corria solto por essas ruas e nem sequer imaginava

que dali a mais de oitenta anos ainda estaria por aqui. No restaurante já vazio, copo de

cerveja na mesa, ele assistia na TV a um filme antigo que já devia ter passado, em tempos

bem passados, na tela do cine Januária, que era vizinho do lado e ainda preservava, sem

mais sessões, suas poltronas e projetores. Despedi-me dele e o deixei entretido com seu

tempo, imerso em suas memórias. Antes de deixar a cidade eu ainda tinha tempo para,

mais uma vez, caminhar pela orla do rio São Francisco.

*

Das cadeiras de espera da rodoviária de Montes Claros eu podia ver muitos ônibus

que iam para vários lugares do país, e outros tantos que chegavam. A visão se abria clara

do terraço em que me encontrava e eu podia ver por cima deles, à distância, os montes que

guardavam a cidade, se é que eram os claros. Passagem obrigatória para quem vai ou vem,

regional ou nacionalmente, passei muito tempo aqui e ouvi muitos falares. Um ruidoso

grupo de dúzia ou dezena, jovens quase todos, vinha de Patrocínio e fazia baldeação em

Montes Claros. Montei um mapa mental para tentar entender esse meu encontro com eles,

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mas quando os segui de Patrocínio, na boca do triângulo mineiro, para Patos de Minas a

viagem clareou: claro! Linha direta até aqui, passando pelo trevo Pira-Patos – por onde eu

entrara no sertão de Guimarães Rosa no ano anterior, vindo de Brasília – e depois por

Pirapora. Eles voltavam para casa, para suas cidades na Bahia, após a colheita do café.

Felizes, falavam das condições de trabalho e da vida de cada dia descontraidamente, pela

pura alegria de não mais estarem lá. A rodoviária de Montes Claros era um ponto radiante

nesta estação, que era invertido em outra, quando daqui eles seguiam para os meses de

solidão nas fazendas de café do cerrado. E até mesmo os atrasos de muitas horas dos

ônibus eram motivos de regozijo: “O bom da viagem é a demora!...”

Atravessar a rua e penetrar no shopping ao lado era como deixar o porto seguro

que era a rodoviária de Montes Claros para ser catapultado para qualquer dos destinos das

linhas de ônibus que passavam por aqui, independentemente de vontade. As mesmas lojas,

produtos, fachadas, nomes, praças de alimentação e o mesmo e frio “ar tificial” – e de

repente, por instantes, não saber mais onde se estava: se em cidade grande ou não, se na

praia ou no sertão. Mas se Montes Claros era cidade grande que se tornava apenas uma a

mais, qualquer, no mundo grande, perto daqui a pequena Bocaiúva ainda se debatia frente

às pressões que vinham de fora e de dentro da comunidade. Apesar de sua localização e

arquitetura próprias, os motéis de alta rotatividade de beira de estrada eram identificados

como pousadas, ao mesmo tempo em que apresentavam pequenas faixas promocionais:

“R$ 15,00 por hora”.

Mas o sertão era mesmo muito grande – como reiterava Riobaldo – e comportava, e

deglutia, e digeria esse mundo. E em suas longas estradas eu sentia, e nem me lembrava

mais onde nem quando, sua presença na pura e simples forma de uma placa fincada no

chão, sem adornos, adjetivos ou explicações:

FRANGO

ANGU

QUIABO

Exultei! Embora eu não comesse frango e outras carnes, o sertão me recolocara no

mundo: sabia que estava nas Minas Gerais!

*

“Sindicato dos trabalhadores rurais?!...”, exclamou a recepcionista, pondo especial

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ênfase na categoria. Claro, eu não queria ser provocativo, mas aquela pareceu ser a melhor

e a mais rápida fonte de informações. Eu tinha visto um palacete branco com detalhes em

azul quando o ônibus chegara, e a seu lado um portal indicava um parque de exposições

que parecia ocupar o quarteirão inteiro. Não, a moça não sabia e parecia mesmo duvidar

da existência de tal entidade. Mas ela perguntou a um funcionário, que disse que era só ir

duas quadras à direita, virar à esquerda e seguir até ver a Acijan, Associação Comercial e

Empresarial de Janaúba, e me informar. Com esses dados, e esperando chegar lá a tempo,

desci a escadaria do Sindicato dos Produtores Rurais de Janaúba.

“Ah, os patrões!...”, sorriu Zé Marques, presidente do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Janaúba. E eu acabei demorando. Quando entrei em um salão vi vários grupos de

mulheres em reunião, que Zé disse ser um encontro de dois dias de agricultoras discutindo

questões específicas. Alguns homens faziam o suporte e naquela hora preparavam o jantar.

“Em Janaúba, município do semiárido mineiro, há 30 anos atrás, agricultores e agricultoras

lutaram para que seus direitos fossem reconhecidos. A mobilização de homens e mulheres do

campo deu origem à fundação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município.”[8] O

sindicato se fortaleceu e hoje, além da defesa dos direitos dos trabalhadores, promove

ações pela qualidade de vida no campo através de programas de uso de água da chuva. Nas

casas, ela é captada pelo telhado e armazenada em cisternas de 16 mil litros, para cozinhar

e beber; nas hortas, é captada em calçadões e armazenada em cisternas bem maiores. Zé

mostrou fotografias de diversas fases do projeto: mutirões cavando buracos para receber

as cisternas ou preparando os calçadões; os trabalhos de concretagem; os acabamentos; e,

por fim, as comemorações. O sindicato adquire todo o material, contrata a mão de obra e

acompanha o processo; os recursos são obtidos através de fundações, programas oficiais e

doações de particulares; e, além disso, há a necessidade de insumos agrícolas, sementes e

mudas, mas a disponibilização da água é essencial. Há muito ainda por se fazer, mas Zé se

mostra animado e confiante nos trabalhos de parcerias. A chegada de uma associada na

sala indicava que já era noite, e ele ainda tinha de ultimar as acomodações e providenciar

mais alguns colchões. Ao sairmos, ele foi convidado a voltar para jantar com elas.

“Poder voltar a estudar é uma coisa muito boa, e ainda mais por não ser obrigação,

mas por gostar de aprender mais.” Helenice voltou à escola após as três crianças crescerem

e assim pôde dividir o tempo entre casa, trabalho e faculdade. O mesmo ocorreu com Zé,

cuja recente formatura em administração era vista pelos filhos em DVD, com brincadeiras

e evidente orgulho, quando chegamos a sua casa. A família viera da zona rural e retornava

para lá nos finais de semana depois de trabalho e muito estudo, inclusive de catecismo e

libras. Tinham relutado muito em vir para a cidade, mas um dia todos eles teriam mesmo

de estar ali. Mas no município existiam muitos casos de pessoas que vinham para a cidade

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sem ter uma ocupação, o que criava um grande desafio para o sindicato: fixar moradores

proporcionando renda e qualidade de vida no campo. Essas foram algumas questões que

perpassaram o jantar que partilhei tendo à mesa hortaliças, frutas e água de coco que eles

traziam do sítio – rotina de uma família que não queria perder as suas origens rurais.

Era ainda seis horas da manhã e ouvi muitos rojões perto do hotel. Mais tarde, Zé

disse que eram romarias que voltavam de Bom Jesus da Lapa. Na cálida manhã de Janaúba,

bicicletas levavam pelas ciclovias pessoas ao trabalho, escolas e outros destinos. Seguimos

pelo asfalto de Montes Claros por dez quilômetros e mais seis de poeira até a Barroquinha,

onde eu ficaria e Zé voltaria para o lançamento de um programa do governo federal. O

território centralizado em Janaúba era um dos três do país selecionados para experiências

piloto de combate a miséria. Essa área englobava treze municípios e formava um grande

triângulo tendo por vértices Janaúba ao sul, Matias Cardoso e Manga a noroeste e Espinosa

a nordeste; seus lados seguiam a serra da Jaíba, a BR 122 e a serra do Espinhaço, e os rios

Verde Pequeno e Verde Grande, nos limites da Bahia. O poder público chegava, enfim, a

territórios abandonados aos poderes privados, como este, que foi palco de lutas entre os

jagunços de Joca Ramiro e Zé Bebelo. “Dentre os locais em que se dão esses combates, podem

ser identificados Angicos (Angicos de Minas), distrito de Brasília de Minas; serra da Jaíba,

que acompanha o rio Verde Grande, à altura do município de Janaúba, e Poço Triste, rio que

deságua no Verde Pequeno, divisa com a Bahia, município de Espinosa.”[9]

Durante o trajeto Zé apontou pontos de desertificação que, segundo estudos, serão

grandes áreas de deserto nos próximos vinte anos. Há pouco mais de um século, Euclides

da Cunha, após declarar que o homem “fez, talvez, o deserto. Mas pode extingui-lo ainda,

corrigindo o passado.”[2], citava o exemplo de combate ao deserto dos antigos romanos

depois de terem destruído Cartago. Corrigiram a devastação das chuvas torrenciais e mal

distribuídas fazendo pequenas represas para domar a fúria das águas. Elas mantinham a

água por mais tempo na terra, irrigavam áreas vizinhas por interligação e sua evaporação

acabava por modificar o clima. E concluía: “Não há alvitrar-se outro recurso. As cisternas,

poços artesianos (...) têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a

última das consequências da seca – a sede; e o que há a combater e a debelar nos sertões do

Norte – é o deserto.”[2] Em Janaúba, a média anual de chuva fica em 800 mm, concentrada

em poucos meses e com seca total no restante do ano.

Zé ficou de me buscar à tarde, e assim tive um bom tempo para visitar as famílias

que receberam cisternas para armazenar água da chuva. Ele me mostrara uma cisterna:

grande caixa circular de concreto com tampa em cone, semienterrada e pintada de branco

para manter amena a temperatura interna. Um alçapão com cadeado dava acesso para

tratamento e limpeza; havia um filtro no cano de entrada de água; uma bombinha na saída

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desestimulava desperdício e possibilitava água até o final da seca. As instruções eram para

manter a cisterna limpa, branca, sem nada em cima, sem tubulação e bomba nos períodos

de seca, além de limpar o telhado antes da época chuvosa e descartar as primeiras chuvas.

As recém-concluídas recebiam um pouco de água para evitar rachaduras, compromisso a

cargo da prefeitura que, no caso dessas, não tinha sido cumprido. Uma queixa do povoado,

assim que chegamos à Barroquinha, era que o carro-pipa da prefeitura há semanas não

enchia a cisterna comunitária, que era um buraco no chão forrado e coberto com lona, o

que não garantia assepsia da água. O que salvara da situação crítica tinha sido a mulher da

fazenda próxima deixar apanhar água em sua caixa. Zé ficou de averiguar quando voltasse

para a cidade, pois era inconcebível a prefeitura fornecer água para o fazendeiro e negar

para o bairro. Na escola, uma cisterna de 51 mil litros também servia à vila, mas quando a

seca prolongava ela passava a depender também dos carros-pipa. Assim, as dez novas

cisternas domiciliares doadas eram um reforço considerável para o armazenamento e

distribuição de água para beber e cozinhar, já que a água de poço da região era salobra,

imprópria para o consumo.

Zé me apresentara à família que morava mais longe da vila, uns três quilômetros. O

número de moradores, em especial de crianças e idosos, e a distância da fonte pesavam na

escolha do local de instalação da cisterna. Havia na varanda dessa casa alguns corotes que

eram usados para buscar água. Mais ao fundo moravam parentes que passariam a pegar

água ali, totalizando sete pessoas beneficiadas. Daquela casa comecei a andar de volta para

a vila com mochila completa, no primeiro ensaio de aclimatação para uma caminhada que

queria fazer nos próximos dias na Bahia, na região de Monte Santo e Canudos. O cenário ali

era propício, com áreas de caatinga que predominavam sobre o cerrado, sol pleno, calor,

poeira, vegetação sem folhas, ramagens desgrenhadas e pardacentas debaixo de um céu

muito azul. E assim, caminhando devagar por aquela estradinha cheguei à segunda casa,

onde houve uma grande confusão quando perguntei pelo total de moradores. Pai, mãe e

filha começaram a discutir ruidosamente, e quando pareciam chegar perto de um número

final alguém se lembrava de mais um, e aí tudo recomeçava, até que conseguiram concluir

o recenseamento: doze moradores. Com tudo calmo, perguntei da única árvore verde que

avistava dali e me disseram que era um pé de juá, juá-bodê, que indicava a existência de

água bem naquele lugar. E a respeito de mudanças no tempo, apenas disseram: “Quando

chega o tempo que o homem fica mais sabido que Deus, Deus muda o tempo.”

O nome Idair José Chies – gravado em cerâmica como doador – provocava efeitos

variados nas pessoas. Para algumas, a garantia de água parecia ser recebida com o mesmo

fatalismo de sua falta, tão incompreensível quanto. Para outras, era como Papai Noel: não

existia, mas se sentiam gratas. E ainda para outras ele tinha existência real, mas em outras

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esferas: empresário em Montes Claros, deputado na capital, e mais outras caracterizações

imaginárias. Zé relatara um testemunho: “Não sei quem é, mas rezo por ele todos os dias!” E

eu vinha caminhando e ouvindo famílias que esperavam as chuvas para crer. Depois das

primeiras habitações havia um longo trecho deserto, mas elas reapareceram perto da vila.

E em uma delas encontrei cenário diferente: havia certo verde, pouco, mas era um alento

no meio de tudo aquilo. Dona Ana, eu a conhecera de manhã ao chegar com Zé em uma

vizinha, mas não o seu marido – de nome Noel – que logo me apresentou duas caixas que

tinha feito e as tubulações que levavam e traziam a água do alto de uma pequena encosta.

Disse que tinha mudado aquela terra com muito trabalho e que agora os outros queriam

comprar o que antes tinham desprezado. Mostrou que tudo em volta estava seco, até lá no

Boi Velhaco, um povoado distante. Perguntei se não poderia haver um veio de água na

encosta já que ali estava verde, mas sua explicação foi simples e cristalina: “Não é isso... e

sabe por quê? Porque essa terra não é minha, tudo isso é de Jesus Cristo: eu só tomo conta!...”

E como bom zelador, mostrou o restante do terreno e levou-me até a porteirinha: “Diga ao

seu amigo que estamos muito agradecidos pela cisterna, e que nada falte a ele e esposa.”

Mais tarde, tomando lanche debaixo da copa em treliça de uma árvore, olhei para o sítio de

Ana e Noel no alto da colina. Lá, eles cultivavam também a gratidão. Olhei para o lado: um

umbuzeiro brilhava em flores.

Cheguei à vila com sol forte, cinco horas depois do início da caminhada. Enquanto

descansava fiz as contas de quantos usufruiriam da água potável das dez cisternas doadas:

setenta e quatro pessoas, que poderiam passar da centena em caso de precisão. Zé dissera

que buscavam otimizar o potencial pelas dificuldades de obtenção. A maioria dos recursos

chegava de entidades de trâmites demorados, o que inviabilizava eventuais descontos de

fornecedores de material. No caso de Idair, único doador individual até o momento, foi

possível obter reduções que chegaram a um quarto do valor previsto, apelando-se para a

responsabilidade social das empresas, busca de areia em local mais próximo e contratação

de trabalhadores na própria comunidade. Tais benefícios a tantas pessoas, de um bem tão

escasso, ensejaram a doação de mais um lote, já em andamento no bairro da Terra Branca.

Do total de duas centenas de cisternas realizadas pelo sindicato na zona rural da semiárida

Janaúba, cerca de dez por cento foram proporcionadas pela vontade e ação de um único

doador. Isso muda vidas, dizia Zé. No início, desconhecimento e desconfiança exigiram

muitas conversas, mas os primeiros resultados foram convincentes e houve aceitação de

eles mesmos abrirem os buracos para colocação das cisternas e, em alguns casos, de trocar

telhados de amianto por telhas de barro: “Participando, eles zelam.” Houve um caso em que

na última visita o dono da casa recuou, sem explicar suas razões. A esposa e as filhas, que

haviam acompanhado outras visitas em silêncio, começaram a chorar e acabaram por se

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rebelar, dizendo que se ele não tinha coragem de abrir o buraco elas mesmas o fariam. E

Zé sorria, ao lembrar: “O homem abriu a cova!...”

O suco de tamarindo me fez lembrar a casa da infância, onde tinha um pé que dava

bastante. Tínhamos voltado do calor da horta e estávamos à sombra no quintal da casa de

Eva. “Começou que o Zé veio perguntar se sabia de alguém com água para uma horta, e eu

disse que meu sogro tinha um poço.” A água do poço começou então a subir por uma bomba

até uma caixa e a descer para a horta. Assim, ela começou a produzir alimentos. Através do

sindicato, fez cursos de capacitação e recebeu kit de equipamentos, insumos e sementes do

projeto PAIS, Produção Agroecológica Integrada e Sustentável, e arcou com a construção

da base da caixa. Sua horta tinha canteiros circulares com um galinheiro no centro, que

fornecia esterco, carne e ovos em troca de restos de frutas, legumes e verduras: tomate,

pepino, cenoura, brócolis, cebola, mandioca, couve, mamão, banana, e outros. Ela estava

com alguns tomates e pepinos que murchavam e apodreciam, e ao perguntar a razão ela

deve ter me achado com cara de quem entendia do assunto. Mas, além de decepcioná-la, o

máximo que pude fazer foi sugerir que ela entregasse alguns exemplares para o Zé levar

para alguém do projeto avaliar.

Entre um suco e outro, uma menina vizinha veio comprar cenouras e tomates. Eva

os vendia na própria vila, mas Zé me havia mostrado fotos de uma feira orgânica realizada

com sucesso, e agora iam inaugurar um ponto na cidade com os produtos do projeto. A

atividade trouxe renda para ela e família, além do trabalho por dia do marido; mas o mais

importante foi que mexer com a terra a tornou mais calma, com menos crises, embora

continuasse a tomar medicamento controlado. Mesmo quando perdeu o filho de dez anos,

ela achou que o cuidar da terra a ajudou a suportar sua dor. Ela me chamou a outro canto e

mostrou seu mais novo mister: cuidar de uma família de porcos, também do projeto, com

alguns pequeninos para engordar até o Natal. Dali era possível ver a horta mais para baixo,

com suas galinhas, legumes, verduras, frutas, uma que outra árvore, a água que subia e

descia. Acompanhei o seu olhar que saía de mim e viajava em calma: vi que voava, planava,

e pousava. Sem pressa, em círculos, Eva ia formando seu jardim.

Já estava escuro quando chegamos à horta de Valter, e do milharal da entrada vi só

a folhagem dançando no vento à luz dos faróis. Com a lanterna vi um galinheiro no centro

de canteiros circulares, mas diferente do de Eva: dele saía um túnel de tela que cortava os

canteiros até o mais externo. Zé disse que era uma passarela para as galinhas passearem e

estercarem a área; e mostrou que à volta do galinheiro, no primeiro canteiro, era plantado

capim-de-cheiro. Como atleta em provas de pista, Valter mostrava tomateiros carregados,

sem estacas, deitados sobre extensas camas de capim. “Todo dia tem que colher, e olhe só o

tanto que tem!”, exclamava maravilhado, e pulava para outras raias. “Até onde isso vai?”, e

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21

eu jogava a luz da lanterna. “Até o mandiocal, antes da cerca!” Trocamos a pista pelo campo

e passamos por duas mil pimenteiras que produziam e quinhentas que cresciam. Mesmo

no escuro senti que descíamos levemente e, de repente, vi Valter se equilibrando em uma

travessa na beira de uma cacimba. E do escuro apareceu um caju, e depois outro, e mais

outro: era Zé que, rápida e certeiramente, os achava no meio da folhagem. Eram grandes,

doces e nada adstringentes – acho que até perdi a conta!

Na cacimba, Zé contou a história de uma mulher que puxava água do poço na base

do muque, sem sarilho. Plantava, sustentava quatro filhos e encarava a vida com confiança.

Um dia, Zé lhe perguntou se achava que com bomba podia ser melhor. Ela se assombrou.

Ele conseguiu ajudá-la pelo projeto, mas o que agora matutava era coisa mais complexa:

conseguir água para os gorutubanos, e para isso pedia a Valter seu pensar. “Gorutubanos é

como são chamados os agricultores familiares descendentes dos escravos refugiados na

região do Quilombo do Gorutuba. Para eles, a terra onde se vive é muito mais que um bem ou

um pedaço de chão. É nessa terra que seus antepassados viveram, sendo passada de geração

em geração. É nessa terra que se celebra a cultura, a fé e os costumes de seu povo.”[10] Berço

das lutas que há mais de trinta anos resultaram na criação do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Janaúba – por causa de um projeto de irrigação pela barragem Bico da Pedra que

as desalojava de suas terras – as comunidades gorutubanas que não foram desagregadas

ainda abrigavam famílias que tinham de usar a água de modo clandestino. “Os gorutubanos

sabiam que esse projeto seria só para beneficiar os ricos, isso era também um grande motivo

para não aceitarem.”[10] A água, em especial a sua falta, e mais para uns que para outros,

continuava sendo uma preocupação central do sindicato presidido por Zé Marques.

“Dá sempre tristezas algumas, um destravo de grande povo se desmanchar. Mas,

nesse dia mesmo, em nossos cavalos tão bons, dobramos nove léguas. § As nove. Com mais

dez, até à Lagoa do Amargoso. E sete, para chegar numa cachoeira no Gorutuba. E dez,

arranchando entre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre.”[1] As

referências de Zé e Valter ao Gorutuba levaram-me a acompanhar a passagem de Riobaldo,

Diadorim e bando, sob comando de Titão Passos, por essa região, logo após o julgamento

de Zé Bebelo na fazenda Sempre-Verde. “Nessa caminhada rumo sul, podemos identificar os

seguintes topônimos: Gorutuba, distrito de Porteirinha, próximo a Janaúba; Quem-Quem,

distrito de Janaúba...”[9] Mas tudo isso aconteceu em outras eras. Em anos recentes, aqui,

Valter mudou o modo de se relacionar com a terra. Por intermédio do PAIS e do sindicato,

trocou a agricultura convencional pela orgânica e passou a produzir uma variedade de

produtos que ele e Zé listaram como se fosse um jogral: “Abóbora, acerola, alface, berinjela,

beterraba, brócolis, caju, cebola, cenoura, couve, coentro, feijão catador, goiaba, jiló,

mandioca, maracujá, mamão, melancia, milho, mostarda, pepino, pimenta, pimentão, quiabo,

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rúcula, salsa, tomate, tomate cereja.” E também plantou recentemente laranja, café, cajá,

coquinho, manga, maracujá do mato, nim e outras árvores. E também criava, integrados na

produção de hortaliças e frutas, algumas vacas, porcos e galinhas.

Valter prosseguia entusiasmado enquanto provávamos alguns maracujás do mato:

pequenos e parecidos a jilós, e mais saborosos que os comuns, eu os encontrara também à

venda em pequenos pacotes nas calçadas de Januária. E Valter dizia que desde que trocara

adubos químicos e venenos por compostos, caldas e todo o arsenal orgânico, tinha que

correr muito para dar conta da produção, o que não tem sido fácil mesmo contando com o

trabalho da esposa e de dois filhos. Para outros produtores que o consultavam ele fazia

demonstrações, explicava e dava um pouco do que usava para eles experimentarem. “Ah! E

óleo de nim; uso óleo de nim em tudo, até na pinga que tomo de vez em quando no fim do

dia!”

E já era mais que o fim do dia. Quando Zé telefonara anunciando nossa visita Valter

já estava na estrada, mas voltara para nos esperar. Mostrou-me um pequeno cômodo com

o indispensável para passar o dia na lavoura, e também a noite se fosse preciso – ou dias e

noites. Dentro de poucas horas ele estaria de novo ali, pelas três da manhã. Em dezessete

anos trabalhando para os outros nunca conseguira abrir uma só caderneta de poupança;

agora, tinha contas e poupança em mais de um banco. Achava que isso era assim porque

deixara de só tirar da terra, e que agora cuidava dela e ela lhe dava frutos, e ele conseguia

assim transformar em crédito a dívida que tinha com ela. Ouvindo-o falar assim considerei

que, afinal, talvez eu estivesse certo em achá-lo bem semelhado com um amigo, também

nascido no norte de Minas, de sobrenome Bonsucesso. No caminho de volta para a cidade,

Zé apontou a casa de Valter: lá, sua família ainda o esperava.

*

Muitos anos antes de tudo isso, os jagunços Riobaldo e Sesfrêdo passaram por este

território em busca de notícias dos bandos de Sô Candelário e de Titão Passos. “Novidade

não houve. Passamos, numa barca. Só sempre bater para o nascente, diretamente em cima de

Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: um pessoal nosso perpassava por lá, na

Jaíba, até à Serra Branca, brabas terras vazias do Rio Verde-Grande.”[1] Eles tinham varrido

essa região que ainda hoje era campo experimental de combate a miséria, que continuava

igual do lado da Bahia e que tornava a divisa uma linha verdadeiramente imaginária. Sobre

essa continuidade, descreve o Atlas das Representações Literárias de Regiões Brasileiras,

do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em nota de edição[7]: “Estão nela

presentes o rio, os chapadões, os jagunços, o gado, as grandes distâncias sem povoamento

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algum. Estão também as disputas dos fazendeiros da região, entre si e com os poderes do

Estado. Mantém-se viva a relação do norte de Minas com a Bahia, surgida nos primórdios

desse povoamento. Enfim, para os que não conhecem, grande parte do Grande sertão:

veredas espraia-se pelo norte de Minas e passa pelos currais da Bahia, ainda que se possa

sempre discordar da localização do sertão.” Os bandos de jagunços entravam e voltavam da

Bahia percorrendo o mesmo grande sertão e travando os mesmos combates, tendo sempre

como referência o rio São Francisco e não, a divisa entre estados.

No século passado, três amigos que ainda não se conheciam, todos do ano de 1952,

cruzaram a divisa da Bahia por três caminhos de Minas – hidrovia, ferrovia e rodovia –

muito embora a via preferencial para a busca da terra dos sonhos fosse então a BR 3. Fosse

hoje a preferida seria a aerovia, na qual se ganha tempo e se perde o presente. Mas não

havia pressa para que tais jovens chegassem aos quase sessenta anos de hoje. Jorge Nagao

desceu as águas do rio São Francisco no balanço de uma gaiola, de Pirapora a Juazeiro, viu

Januária desde o rio e, seguramente, tomou uma pinga no cais ou na praça por onde andei

neste século. Quanto a mim, cruzei a divisa pela rodovia Rio-Bahia no balanço das Águas de

março, em uma das quarenta caronas de uma viagem de seis mil quilômetros. E entrando

pelo caminho do meio como um centroavante, Carlão Marques veio até aqui no balanço de

um trem, aquele mesmo da mulher de Janaúba que só chegaria para a missa de sétimo dia.

Dessa sua viagem, eu podia ver um trecho dos trilhos que seguiam ao lado da estrada e

passavam perto de casas que não deviam existir naquela época. E da janela do outro lado

do ônibus eu mirava uma testemunha remanente de sua passagem por aqui: um belíssimo

monte – azul. Deste Monte Azul até a Bahia eram sete léguas, ainda para lá de Espinosa.

Em Urandi, a ferrovia dobrava à direita, driblava a serra do Sincorá e descambava rumo ao

litoral; e a rodovia quebrava para a esquerda, passava por Guanambi e buscava o rio São

Francisco. Sim, quisera eu ter seguido pela linha férrea ainda que em direção ao mar, e

também, atravessado o sertão pelo rio São Francisco, mas tudo isso já eram dormentes e

águas passadas. Agora, eu me encontrava em um emaranhado imaginário entre Minas e

Bahia. Ouvia a voz de Riobaldo e olhava para todos os lados: estava em Minas; estava na

Bahia; estava, sim, no baianeiro de seu Lenine. “Sertão é isto: o senhor empurra para trás,

mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera;

digo.”[1] Sim, claro, eu estava no meio do sertão.

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24

Bahia – Guia Quatro Rodas 2011 – (1)

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25

II

“Todavia, no silêncio, ele contemplaria esta cidade, familiar, conhecida desde sempre

e, contudo, imprevisível, surpreendente, e se perguntaria talvez, na completa quietude de sua

contemplação embevecida, sobre o sentido dessa surpresa...”[11] O personagem diante do

quadro Vista de Delft, de Vermeer, veio a mim subitamente quando vi em um livro[12] uma

fotografia com a legenda Vapor São Francisco ancorado no Porto do Santuário do Bom Jesus

da Lapa. Como naquele quadro, a foto mostrava a superfície da água em primeiro plano

refletindo edificações de um porto, cobertas por grandes nuvens brancas em um fundo

azul. A foto era em preto e branco, mas eu só podia imaginar como azul aquele infinito.

Perto de três séculos distanciavam essas visões, mas a diferença estava, sobretudo, na

localização do sol, não visível em ambas: encoberto na cidade holandesa, o que provocava

imagens escuras na água do canal; e inteiramente derramado sobre o porto do santuário

baiano, cujos reflexos faziam brilhar as águas do rio São Francisco. Porém, enquanto uma

estreita faixa de areia no canto inferior esquerdo do quadro proporcionava uma solidez de

terra firme ao observador, na foto a linha d’água inclinada para a esquerda indicava um

autor em delicado equilíbrio sobre o rio. E era esse balanço instável que moldava a minha

sensação de familiaridade com a cidade que nunca tinha visto, muito mais que a impressão

de ver a figura de um homem acenando com água pela cintura ou um rosto gigantesco de

uma menina índia emprestando olhos e boca para as janelas e porta da gruta do santuário

incrustado na rocha. Esses detalhes finais por certo deviam ser consequência da qualidade

técnica de uma foto antiga – disse me convencendo – e fechei a página 58 do livro.

Mas isso só aconteceria dias depois, quando eu receberia o livro das mãos de Rosy

Luciane, diretora da Fundação Museu Regional do São Francisco, sediada em Juazeiro. Ao

chegar a Bom Jesus da Lapa eu vinha apenas com algumas informações que não tinha

entendido muito bem, passadas por um romeiro da Barroquinha, em Janaúba. Enquanto eu

esperava por Zé sentado em um banco à porta da casa de Eva, ele me mostrava muitas

fotos da romaria da qual acabara de voltar. “Então, foram os seus rojões que me acordaram

hoje!”, exclamei. Mas, mesmo com os registros e explicações, só fui começar a entender o

que ele dissera – subir por dentro e descer por fora – ao passar pela escadaria que conduzia

ao cruzeiro no alto do morro. Depois dos primeiros degraus o caminho mudava para um

piso de pedras variadas, algumas soltas, seguia ao encontro dos paredões e entrava pelo

meio deles. Fui andando e atravessei túneis e salões espaçosos e também passagens bem

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estreitas, e seguia tranquilo porque havia, a distâncias regulares, lixeiras feitas de grandes

latas de óleo pintadas de verde e zelosamente colocadas ao longo do caminho. De vez em

quando o céu aparecia e logo sumia, até que finalmente se eternizou: eu tinha completado

a subida do morro por dentro.

O cruzeiro estava lá, a alguns passos depois do fim do túnel. Era bem cedo e eu nem

tomara o café da manhã, mas já tinha companhia no alto do morro: um pequeno grupo de

romeiros, o pessoal da banca de lembrancinhas e macacos – pequenos, rabudos e exímios

conhecedores de romeiros. Do alto, olhando-se para os lados – desconsiderando a cidade –

tinha-se a certeza de que a Terra era realmente chata: apenas o rio São Francisco diferia

da uniformidade da vegetação, mas ele, ali, era também plano. Olhei-o à distância, onde

parecia bem pequena a ponte que o atravessava e encaminhava o viajante rumo a Santa

Maria da Vitória, e pensei no romeiro da Barroquinha: “O rio antigamente batia as águas,

assim, bem na pedra da gruta; depois é que apartou.” Desse movimento das águas, de seu

desequilíbrio, talvez viesse essa imagem que me daria depois, através da foto do livro, a

impressão de reconhecimento de uma cidade desconhecida desde sempre. Muitos pareciam

ser os rios São Francisco compondo sempre novas identidades perante seus ribeirinhos.

Desci atrás dos romeiros pela encosta do morro, por fora, e ouvia um deles descrevendo a

visita ao cruzeiro para alguém distante, do outro lado da divisa de estados, em seu lar, em

Porteirinha, cidade próxima a Janaúba, sede do bairro da Barroquinha, terra do romeiro

que me falara com entusiasmo do Santuário do Bom Jesus da Lapa.

Centros de peregrinação católicos mostravam uniformidades que contemplavam,

em seus espaços externos e internos, tanto alegrias profanas quanto regozijos sacros. Tal

como ocorria na basílica nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida com o Centro

de apoio ao romeiro, e na catedral de Santiago de Compostela com o Centro europeu de

peregrinação, no monte do Gozo, no santuário de Bom Jesus da Lapa havia uma espécie de

feira que se esparramava a partir de seu portão, tomava todas as ruas que levavam ao

centro da cidade e se dissolvia na agitação de bares e sons da praça. Mas, uma vez vencidos

esses sedutores cercos, penetrávamos no silêncio e solenidade atemporal do interior das

igrejas. E esta do Bom Jesus da Lapa, em particular, impressionava apesar das estalactites

de gesso colocadas acima das imagens e, se não nos oferecia imensas abóbadas que nos

chamavam para o alto, acolhia-nos na intimidade da terra em uma grande caverna com

dois salões. Alguns bancos tinham sido esculpidos nas pedras das paredes laterais da nave

principal, e ao lado do altar-mor uma grande abertura natural tinha sido transformada em

janela e sacada, que depois eu identificaria como sendo o olho esquerdo da pequena índia

na fotografia. Não consegui encontrar no verso de um santinho referências a um propalado

convívio de um monge com uma onça na gruta, mas somente “As datas de Francisco de

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Mendonça Mar – 1657: Nascimento em Lisboa / 1691: Chega ao morro Itaberaba, gruta da

lapa / 1702: O representante do arcebispado da Bahia faz uma visita a gruta e oficializa o

Santuário / 1706: Francisco é ordenado e torna-se Padre Francisco da Soledade.” Procurei

no folheto Recomendações aos Romeiros, item localizações, e achei: “Sala das Promessas:

Fica atrás do altar de Nossa Senhora da Soledade.” Olhei em volta e localizei, à esquerda do

altar-mor, a entrada da Gruta da Soledade.

Como em Itacambira, cheguei a Bom Jesus da Lapa atraído por palavras encantadas

por igrejas. “É a Meca dos sertanejos. (...) Ora, entre as dádivas que jazem em considerável

cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante observa, de par com as imagens e

as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.”[2] Não que eu

esperasse ver tais oferendas, mas queria visitar a sala de promessas do estranho templo a

que se referira Euclides da Cunha ao buscar a gênese da têmpera dos defensores do arraial

de Canudos. Entrei na gruta e fui direto contornar o altar de Nossa Senhora da Soledade,

mas encontrei uma grade fechada com cadeado. Através das barras eu podia ver a entrada

de outra gruta menor, de onde transbordavam os ex-votos habituais. Tentei novamente na

manhã seguinte bem cedo, antes de subir ao cruzeiro, e outra vez o cadeado estava lá – e

ainda por cima, tinha convocado uma missa naquele altar para me desencorajar de vez.

Pensei na facilidade encontrada pelo rastejador e tentei imaginar como ele agiria nessa

situação: “Rufino examina facas, facões, bacamartes e escolhe uma faca pontuda, deixada ali

há pouco. Depois vai ajoelhar-se ante o altar, onde só há uma cruz, e explica ao Bom Jesus

que leva essa faca emprestada. (...) Garante-lhe que não quer tirar o que é seu e promete

devolvê-la, junto com outra nova, como agradecimento.”[13] Mas essa cena não acontecia

nem aqui e nem agora, e sim, no início de 1897, depois da derrota da segunda expedição

contra Canudos, comandada pelo major Febrônio de Brito; e o rastejador Rufino voltava

para casa, em Queimadas, após ter sido roubado por um bando de desertores do exército.

Para Queimadas eu também estava indo, embora ainda tivesse muito sertão pela

frente. De lá partiram três expedições militares contra Canudos e também deveria ser o

ponto inicial de minha caminhada rumo a Monte Santo. Por enquanto, muito longe ainda,

mais uma vez junto ao rio São Francisco, na praça de Bom Jesus da Lapa, ao contornar o

morro da gruta para descer em direção à rodoviária eu passava por um pequeno grupo de

pessoas reunidas em volta de uma tosca banca: eram devotos que faziam uma fezinha –

uma pequenina fé – apenas por uma garantia qualquer.

*

“Lamarca morreu aqui”, disse Andreza subitamente, fazendo um gesto com o braço

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que tornava indefinível o local. Diante de meu olhar interrogativo, ela completou: “perto de

Brotas de Macaúbas.” Fiquei na mesma; não sabia onde era. Ela discorria sobre os atrativos

naturais e culturais do município, além de sua convivência com o rio São Francisco, e de

repente surgiu esse Lamarca morreu aqui dito com um distanciamento inerente a um fato

histórico. Para a jovem secretária municipal de Ibotirama, algo ocorrido há quarenta anos

não teria nada mesmo a ver com a sua existência. Eram outros tempos, outras as estações.

Da mesma forma, ela falou de uma grande enchente do rio que inundou a região do cais e

do mercado e chegou até a escadaria da Matriz, acontecimento de uma época em que ela

nem era nascida. Imaginei que fosse a mesma cheia de que falaram Jurandir e seu Lenine

em Januária, a mais de trezentos quilômetros rio acima.

“Lamarca morreu aqui”. Para mim, que em setembro de 1971 tinha apenas alguns

anos a menos do que ela devia ter agora, sua frase soou como se uma névoa se abrisse de

repente e trouxesse de volta imagens reveladas e depois veladas pela censura, pelo tempo

e pela memória: sua perseguição e morte no sertão da Bahia, e morte – oficialmente por

suicídio, versão finalmente desmentida mais de trinta anos depois – de sua companheira, a

psicóloga Iara Iavelberg, em Salvador. Andreza me reconduzira àquele longínquo sertão do

tempo através do que me era até então apenas um distante sertão do espaço: o aqui. Eu já

tinha passado pela ponte de Ibotirama sobre o rio São Francisco – e até estado mais perto

de Brotas de Macaúbas – indo para a Chapada Diamantina sem me dar conta desse aqui; e

estava, portanto, mais distante do que agora embora no tempo eu estivesse mais próximo,

em 1993. Assim como eu realmente só vi Fernão Dias quando passei por Juramento e pela

serra Resplandecente em Itacambira, embora os possa muito bem ter estudado em livros,

o sertão da Bahia onde o ex-capitão do exército Carlos Lamarca foi morto juntamente com

o ex-metalúrgico José Campos Barreto, o Zequinha, só adquiriu uma real existência para

mim através da recordação do acontecido e com a minha presença aqui.

“Navegar é preciso”. Eu ainda viajava pelo sertão e via Lamarca e Zequinha sendo

mortos debaixo de uma árvore – depois de uma perseguição de trezentos quilômetros em

três semanas – quando ouvi de Andreza o nome do projeto que levava educação ambiental

e cultural ao povo ribeirinho através do São Salvador, transformado em um barco escola. A

prefeitura de Ibotirama se encarregava da manutenção do barco e de sua tripulação e as

cidades interessadas arcavam com combustível para visitas através do rio São Francisco. O

São Salvador, a que seu Lenine tinha se referido em Januária, navegou em sua atual missão

até Bom Jesus da Lapa, a cento e cinquenta quilômetros rio acima, e também por povoados

rio abaixo. O problema era que algumas prefeituras ainda deviam o valor do combustível,

o que dificultava o trabalho de valorização das manifestações culturais ao longo do rio São

Francisco. O barco escola ficava atracado no cais quando não estava viajando, à disposição

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de estudantes, população e visitantes.

Do alto da arquibancada de uma quadra de esportes eu via, de um lado, a rampa do

cais, a prainha, o São Salvador, o rio São Francisco e a ponte de mais de um quilômetro que

levava em direção a Barreiras; de outro, o centro esportivo, a matriz de Nossa Senhora da

Guia e o centro antigo da cidade, que se encontravam atualmente protegidos das cheias do

rio pelo extenso paredão sob meus pés. Desci em direção ao São Salvador em busca de seu

Severino, o comandante do barco, de quem Andreza falara com entusiasmo e recomendara

ouvir suas experiências. Mas quem me recebeu foi um jovem instrutor do projeto, de nome

Jackson, que me apresentou os compartimentos do barco: uma pequena sala equipada com

seis computadores; outra, pouco maior, com uma pequena biblioteca e brinquedoteca; e na

popa, sanitários e a casa de máquinas, onde ele mostrou um grande e reluzente motor da

Scania especialmente adaptado para substituir o sistema de propulsão a vapor. No andar

de cima, um grande convés ocupava mais da metade do barco e era usado como auditório

para atividades de público numeroso. Mais para trás, Jackson apresentou a cozinha e os

camarotes da tripulação. E ainda havia mais: no terceiro piso, o barco reformado e pintado

de branco com detalhes em azul abrigava a cabine de comando, de onde se tinha uma larga

e magnífica visão da água, da terra e do céu.

Voltamos ao convés e então encontramos seu Severino em animada conversa com

outros visitantes. Contava ele que há mais de vinte anos deixou de derrubar matas com

arrastões de tratores e correntes, aposentou-se e agora, de certa forma, se penitenciava

através desse projeto de conscientização de jovens sobre a importância dos cuidados com

a natureza. E Jackson ia me descrevendo o que acontecia naquele momento ali no rio:

pequenos barcos sugavam areia do fundo, levavam até a margem e carregavam caminhões

basculantes. Ele dizia que as pequenas embarcações não tinham a estabilidade necessária

e por isso corriam grandes riscos nessas operações; e mostrava, do outro lado do rio, uma

estrutura de dragagem firmemente ancorada em tratores fixos na margem, que retirava

grandes quantidades de areia. Ouvindo Jackson falar assim e olhando o deslizar das águas

do São Francisco, lembrei-me de seu Lenine dizendo que antigamente esse rio não era tão

triste. E nessa tristeza a areia continuava a se mover constantemente, para lá e para cá, de

acordo com os movimentos da água, e a mudar de lugar o canal do rio. E as curvas, para

dentro ou para fora, continuavam a formar, ou não, os bancos de areia, as coroas, as croas.

“Mas, melhor de todos – conforme o Reinaldo disse – o que é o passarim mais bonito e

engraçadinho de rio abaixo e rio acima: o que se chama o manuelzinho da croa.”[1] Diadorim

feito Reinaldo havia ensinado a Riobaldo “o bem-querer sem propósito”[1] ao que para ele

era apenas “para se pegar a espingarda e caçar.”[1] Bem-querer sem propósito, bem-querer

com propósito: o bem-querer. Eu tinha deixado o São Salvador e estava de novo sobre o

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paredão entre o rio São Francisco e a cidade. Olhei rio acima e vi na margem da última

curva o que Jackson dissera ser um porto de soja, um gigantesco depósito que engolia filas

intermináveis de caminhões carregados e que esperava, empanzinado, as águas subirem

para embarcar a carga. Rio abaixo, eu vi as águas passando por baixo da ponte e seguindo

em busca da represa de Sobradinho, o grande mar do sertão. E em frente, rio presente,

olhei para o barco: a barca humana. Na proa, no alto da testa, escoltada por duas carrancas

de uns dois metros, renitente rio abaixo e rio acima no São Francisco, o São Salvador exibia

com orgulho a sua alta divisa azul-celeste: BARCO ESCOLA.

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Bahia – Guia Quatro Rodas 2011 – (2)

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A primeira impressão foi de uma miragem – e cheguei a me agachar para passar a

mão naquela grama tão bela quanto inesperada. Desde o frágil quase verde aos cuidados

de Ana e Noel no bairro da Barroquinha, em Janaúba, eu tinha atravessado dias e centenas

de quilômetros acompanhado, além do verde vivo ocasional dos juazeiros, apenas pelo

verde esmaecido das lãs de seda, ou lonas, como disseram chamar aqui. Elas lembravam

chuchus surreais, redondas e no alto de hastes de um metro de altura, que explodiam e

lançavam pelo ar sementes aladas de finíssima lã que quase as tornavam onipresentes no

sertão. E abrigado do sol do meio do dia no frescor de uma padaria em frente à rodoviária

de Sobradinho, eu contemplava o brilho de sua intensa luz refletida na água girante que se

esparramava por aquele gramado público. E pensava nas pequenas palmeiras de Montes

Claros, regadas parca e apressadamente por um tanque a reboque de um carro de passeio,

quando a mocinha que me atendia disse que o ano inteiro era verde assim, só que na época

de chuvas não precisava regar. “Água é que não faltava.”

Mas eram ilhas verdes em um grande mar sem água. Fora da cidade, eu tinha visto

da estrada canais secundários de irrigação que possibilitavam plantações de melões e de

cebolas que apareciam aqui e ali, pontilhando de verde a monotonia cromática da caatinga

em época de seca. Além disso, uma única coisa me sobressaltara o coração, ainda perto de

Juazeiro: uma grande mancha branca na vegetação à beira da estrada me levara ao delírio

de ver neve no sertão. E na súbita confusão, uma imagem se impôs sem me pedir licença:

“Perto do Rancho do Vigário, por requinte de lúgubre ironia os jagunços cobriram de

floração fantástica a flora tolhiça e decídua: dos galhos tortos dos angicos pendiam restos de

divisas vermelhas, trapos de dólmãs azuis e brancos, molambos de calças carmezins ou

negras, e pedaços de mantas rubras – como se a ramaria morta desabotoasse toda em flores

sanguinolentas...”[2] Eram os restos da derrotada expedição Moreira César que recebiam a

quarta expedição na chegada a Canudos. Mas se os que ocupavam essas vestimentas eram

invasores que foram mortos em sua tentativa, o que eu tinha visto eram invólucros da

invasão de um estilo de vida que contaminou o sertão feito uma chaga branca: milhares de

sacos plásticos que o vento levantou do lixão e prendeu no emaranhado de ramos finos,

tortos e secos da caatinga. Cumpria-se, finalmente, a visão tupi: “kaa’tinga – mato branco”.

O tom lúgubre era dado pelo crepitar plástico no bater do vento.

Mas na padaria não havia ventos ou barulhos, apenas o encanto pela água clara que

jorrava refrescando a espera da saída do ônibus. Não podia ver sua origem, mas sabia que

ela vinha da “represa de Sobradinho, o maior lago artificial da América Latina”[14], situada a

minha esquerda, se é que eu podia servir de referência a tão grandes águas. A matéria do

jornal, em um caderno especial sobre corrupção, mostrava uma obra paralisada há mais de

dez anos por causa de irregularidades e dizia: “O que era para ser um canal que irrigaria o

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sertão e beneficiaria 3.000 famílias na Bahia hoje é mais uma obra abandonada, por onde

escoaram ao menos R$ 64 milhões.”[14] Água era o que não faltava, tinha dito a jovem. Fiquei

tentando imaginar esse mar de água doce que inundou cidades, vilas e vidas no sertão por

centenas de quilômetros rio São Francisco acima.

”O homem chega, já desfaz a natureza Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar (...) E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar

O sertão vai virar mar, dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão

Adeus Remanso, Casa Nova, Sento-Sé Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir Debaixo d'água lá se vai a vida inteira”[15] E eu conseguia localizar no mapa a nova Sento Sé, transplantada; o Remanso que

não era mais o natal de Vera, de Januária, a Maria da Cruz reencarnada; o Pilão Arcado que

não era mais o da seca de Antônio Dó, pois aquele primeiro tinha morrido afogado; e a

nova Casa Nova, onde se desenvolvia uma florescente produção vinícola conforme dissera

Edízio, secretário municipal de Sobradinho. Ele tinha me recomendado tomar o ônibus que

passava pela barragem e observar o canal da eclusa, a criação de tilápias na represa – “as

nossas são diferentes” – e depois, as produções irrigadas de uvas, mangas e cocos antes de

chegar a Petrolina. Sim, tudo isso estava lá, mas o que mais abalava era a visão do rio São

Francisco – “que de tão grande se comparece”[1] – inchado de tanto mar.

Mas eu ainda estava na padaria e a jovem me dizia não ter sorvete de umbu, mas

ensinava como fazer umbuzadas: ferver o umbu, tirar o caroço e bater com muito açúcar e

leite. Dos umbuzeiros de Janaúba, em plena florada, até os daqui, ainda em floração, todos

esperavam o fruto que sempre os refrescava no verão. E era nessa extensa região – desde

o norte de Minas e sul da Bahia até perto do extremo sul da represa de Sobradinho: “desta

vila [Carinhanha] para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até

Xiquexique...”[2], e desde a Chapada Diamantina e serra do Sincorá até os limites de Goiás e

Tocantins, ultrapassando o rio São Francisco: “todo o vale do rio das Éguas e, para o norte,

o do rio Preto, formam a pátria original dos homens mais bravos e mais inúteis da nossa

terra.”[2] – que Euclides da Cunha buscava uma parte dos protagonistas da resistência de

Canudos: “O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra.”[2] E

depois de proclamar que “os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido

na própria transigência das leis (...) porque o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco, é um

produto idêntico, com diverso nome” [2], ele conclui, antes de descrever as causas imediatas

de um conflito duradouro que resultou na morte de milhares de pessoas e na destruição

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de uma cidade: “A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas

estas forças desvairadas, perdidas nos sertões.”[2] E outras forças, ainda não completamente

desvairadas, iniciariam em 1896 uma convergência em direção ao Belo Monte de Antônio

Conselheiro a partir de Juazeiro, situada pouco São Francisco abaixo de onde eu ainda me

encontrava sentado, à sombra, no silêncio, contemplando sua fonte de águas luminosas e

sonhando com umbuzadas.

*

“Do lado de lá do rio tudo é mais arrumadinho, são gente boa, mas os baianos aqui

são mais acolhedores.” Tomei essa declaração do rapaz do hotel como mera manifestação

de uma habitual rivalidade entre vizinhos, entre moradores de duas cidades separadas por

um rio como divisa estadual e unidas por barcos e uma ponte. Sobre a alimentação, ele foi

também taxativo: “O pessoal aqui só come carne de bode: é bode assado, é bode cozido, é

bode frito, é bode no bafo, é buchada de bode, é bode de qualquer jeito. Agora, peixe, só se

você achar num chinês que tem aqui.” Uma das primeiras coisas que reparara ao descer na

rodoviária de Juazeiro tinha sido justamente um anúncio de bode assado no restaurante,

além dos inúmeros que vira pela estrada. Eu sabia por onde andava, mas a presença do rio

São Francisco me dava esperanças de alternativas culinárias. Devo ter feito uma cara de

desalento, pois ele me disse indicando com um gesto de cabeça: “Do outro lado tem, ali na

orla.” E explicou que lá tinha até um bodódromo, uma praça de alimentação especializada

em carne de bode, mas que ficava apartado em outro lugar da cidade. E recomendou não

atravessar a ponte a pé porque poderia ser assaltado.

Do outro lado do São Francisco, em Petrolina, em Pernambuco, olhei pela primeira

vez realmente para Juazeiro, na Bahia, para seu centro antigo, seu cais, sua catedral. Cruzei

o rio várias vezes pelos barcos e, quando em Juazeiro, olhava para Petrolina, para seus

prédios novos, sua orla, sua catedral. Durante as travessias, olhando a ponte que juntava e

separava essas populações tão próximas e ouvindo o chapinhar das águas verdes do São

Francisco, pensava na justeza das palavras do rapaz do hotel. Mesmo o interior das igrejas,

embora eu tenha estado em ocasiões diferentes, pareciam refletir atmosferas próprias: em

uma, silêncio e refúgio para suplicantes; em outra, o calor de uma missa concorrida. E o

que eu achara que podia ser só uma presunção foi corroborado, após pensar um pouco,

por um taxista de Petrolina a quem perguntei o que achava da declaração do rapaz: “É... os

baianos são mais acolhedores, mesmo.” Havia concordância, embora em universo bastante

limitado: um de cá, outro de lá. Mas eles bem poderiam ser porta-vozes de uma concepção

generalizada, ainda que eventualmente não manifestada, da qual eu me aproximava mais e

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mais a cada vez que desembarcava no cais de Juazeiro.

Dentre as datas históricas da cidade, listadas em um quadro na parede de um salão

da Fundação Museu Regional do São Francisco, uma me atraiu particularmente: 24 de

fevereiro de 1896, assinalada como a inauguração da Estrada de Ferro Salvador ao Rio São

Francisco, em Juazeiro. Eu não tinha essa informação quando visitara a estação a poucos

minutos a pé da rodoviária, mas pelo seu estado era de se imaginar que estava desativada

há um bom tempo, não tendo sobrevivido a um século de atividades. De estilo semelhante

ao do palacete que abrigava o museu – neoclássico, me instruía o catálogo – a estação tinha

várias e imensas janelas e portas vedadas com blocos vermelhos, e arrombadas, algumas.

Poucos metros adiante havia outro prédio mais recente que eu soube ser a nova estação

que substituiria a antiga, mas que nunca chegou a ser inaugurada porque poderia ruir.

“Mudei para cá em 1959, ela já existia e até hoje não caiu”, disse um senhor. “A estação

original ficava aqui no centro, na beira do rio e de frente para Petrolina. O que você viu lá

era apenas um depósito, nunca foi estação”, contestou a diretora do museu, Rosy Luciane. E

acrescentou: “Demoliram por causa da ponte. Não havia necessidade; bastava que as pistas

contornassem a estação, e com ela estariam preservadas importantes memórias da história

de Juazeiro.” Com efeito, memórias preciosas, conforme o catálogo do museu: “Quase 5.000

peças, entre fotografias, estandartes, documentos, medalhas, quadros de pinturas, carrancas

e mobiliários do século XIX. Acervo dos vapores do rio: pratos em porcelana inglesa,

lâmpadas centenárias em cobre e diversos objetos da criatividade do barranqueiro.” E um

óleo sobre tela de 1963, de Francisco Santos, O trem e a ponte, antecipava em quase meio

século o registro de minha máquina: as águas do São Francisco, azuis no pincel e verdes

nos pixels, a ponte branca, os dois grandes portais retangulares no meio do percurso e o

mesmo ângulo de visão, pela perspectiva de seus vãos. Mas ele tinha o trem: comprido de

tanto vagão, fumegando, por certo apitando, passando pelos portais do São Francisco.

“Aquele punhado de soldados foi recebido com surpresa em Juazeiro, (...) ponto

terminal da estrada de ferro, na margem direita do rio São Francisco, (...) onde chegou a 7 de

novembro, pela manhã.”[2] O que me havia chamado a atenção na data de inauguração tinha

sido aquele ano – 1896 – o mesmo do 7 de novembro em que chegaram os integrantes da

primeira expedição regular contra os conselheiristas, com “o bravo tenente Manuel da Silva

Pires Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria, (...) comandando 3 oficiais e 104 praças de pré

daquele Corpo...”[2] Daqui de Juazeiro partiu a tropa no dia 12 para “uma travessia de 200

quilômetros, em terreno agro e despovoado (...) No sertão, mesmo antes do pleno estio, é

impossível o caminhar de homens equipados, ajoujados de mochilas e cantis, depois das dez

horas da manhã. (...) A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia

penosíssima.”[2] E daqui também eu deveria partir a pé, cheguei a imaginar quando comecei

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a pensar, distraidamente, em visitar Canudos. Com o tempo, porém, fui reformulando as

alternativas de aproximação da região entre Monte Santo e Canudos, especialmente depois

de saber que mesmo ônibus de linha entre Uauá e Juazeiro costumavam ser assaltados. Em

Uauá, a tropa do tenente Pires Ferreira também tinha sido assaltada, não por bandidos,

mas por uma multidão que ia “à luta como tinham ido os Cruzados para resgatar Jerusalém:

cantando, rezando, dando vivas à Virgem e a Nosso Senhor. (...) Precisaram andar dez léguas

para encontrar os soldados. E eles as percorreram cantando, rezando e dando vivas a Deus e

ao Conselheiro.”[13] Depois de uma insana batalha de quatro horas de modernas armas de

repetição contra espingardas de carregar pelo cano, foices, facões, ferrões de vaqueiros,

pedras, paus, cantos e rezas Uauá estava coberta de combatentes caídos: das tropas, dez

mortos e dezesseis feridos; de parte dos sertanejos, de acordo com os militares, cento e

cinquenta mortos e feridos. Além desses, o confronto tinha terminado com uma baixa

significativa: “O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-

se, inútil, ante os feridos, alguns graves.”[2] E com a chegada, em quatro dias, do que restou

de uma tropa derrotada e aterrorizada a Juazeiro em busca do trem da salvação, as “forças

desvairadas, perdidas nos sertões”[2] começavam a desvairar os entendimentos de um país

e de uma época.

Saindo do cais, tomei uma rua perpendicular ao rio e em poucos minutos cruzava a

avenida que levava à rodovia. Havia ainda mais cidade à frente, mas há mais de um século

seguramente Juazeiro não chegava até aqui, de modo que naquela época eu já estaria no

campo, no sertão, e poderia avistar a chegada daquela tropa que saíra duas semanas antes

para tentar impedir a concretização dos “boatos mais ou menos fundados de que aquela

florescente cidade seria por aqueles dias assaltada por gente de Antônio Conselheiro...”[2] A

maioria dos soldados nem devia ser nascida na época em que o cearense Antônio Vicente

Mendes Maciel começara a peregrinar pelos sertões do norte, construindo e reformando

igrejas, levantando muros, limpando e pintando cemitérios, fazendo aguadas e pequenos

açudes, pregando e aconselhando. Mas eles tinham ciência de que seus acompanhantes

haviam aumentado para milhares de devotos, que já tinham derrotado várias diligências

policiais encarregadas de prendê-lo, e que agora deviam confrontá-los no sertão e destruir

a ameaça de invasão a Juazeiro. Essa situação teria se originado da não entrega, por má-fé,

de madeiras adquiridas por Antônio Conselheiro para a igreja nova de Canudos, e como ele

tinha afirmado que as buscaria à força, as autoridades da cidade pediram proteção militar.

“Depois inventaram histórias, disseram que mandaram as madeiras pelo São Francisco para

que eles as pegassem lá embaixo, mas que elas teriam ficado presas em alguma curva do rio”,

disse Rosy Luciane mostrando um novo aspecto, pelo menos para mim, desse episódio que

precipitou uma sucessão de acontecimentos inimagináveis. E que marcou o início da fase

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de extermínio de uma luta que vinha desde muito tempo.

Caminhando pela orla do rio eu podia ver reflexos das luzes de Petrolina nas águas

mansas do São Francisco, que vim reencontrando algumas vezes desde Januária. Recordei

uma visão semelhante de olhar Buritizeiro a partir de Pirapora, ainda mais rio acima, e

imaginar Paredão de Minas para além daquelas luzes, no escuro do meio do sertão. E aqui,

Canudos ficava do lado de cá do rio, na banda da mão direita do São Francisco, às minhas

costas. E apesar da magnitude dos acontecimentos, Juazeiro aparentemente não guardou

lembranças de sua participação no cenário da guerra. Mas o cenário para as filmagens de

Guerra de Canudos foi escolhido no sertão do município de Juazeiro, há mais de quinze

anos, pelo diretor do filme Sérgio Rezende, para cuja produção Rosy Luciane emprestou

sanfonas e outros instrumentos musicais e objetos da época. Desde aqui, como as tropas

que partiram de Juazeiro, também as águas do rio São Francisco deixavam os murmúrios

indolentes que as embalavam desde Pirapora e se precipitavam descendo rumo ao mar. Eu

ainda os ouvia na lenta caminhada da última noite junto ao rio São Francisco antes de ir

para Queimadas, mas à medida que me reaproximava do cais os perdia na balbúrdia de

sua multidão, por entre as mesas nas calçadas, debaixo dos sons estridentes e ao peso dos

cheiros de frituras escorrendo pelo ar quente. Mas eu podia atravessar o cais me valendo

de um precioso salvo-conduto: a fiel lembrança da recém-finda missa, do silêncio que a

perpassava, dos meus companheiros de assento – três casais de namorados bem jovens e

uma jovem mãe com o pequenino filho no colo – e de sua austeridade eucarística. Sim,

assim eu podia passar incólume pelo cais de Juazeiro e me transportar para os sertões que

me aproximavam aos poucos, e ao largo dos montes santos que o guardavam, do que tinha

sido uma velha fazenda chamada Canudos, da “Troia de taipa dos jagunços”[2] de Euclides

da Cunha e, sobretudo, do sonho sagrado do Belo Monte de Antônio Conselheiro.

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Bahia – Guia Quatro Rodas 2011 – (3)

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III

“Itiúba é a única cidade onde Lampião nunca entrou.” Dona Zenaide disse isso sem

vanglória, com a confiança que têm os que se sentem naturalmente protegidos. E apontou

pela janela do ônibus: ao olhar a serra que tentávamos vencer para deixar a cidade pude

compreender a razão – eu e Lampião. E completou: “Tinha medo de ser encurralado, e só

atacava lugares de onde podia fugir rapidamente.” Ela ouvia essas histórias desde criança e

agradecia à serra sempre que a transpunha, de uma a duas vezes por mês, indo e vindo de

Serrinha, cidade em que morava e de onde trazia folheados para sua clientela conterrânea.

Disse que sua cidade já tivera movimento maior quando os trens circulavam normalmente,

com transporte de gente e de carga. Então foi por ali que passaram, deixando Queimadas

para trás e seguindo no rumo de Juazeiro, aqueles soldados que acabaram confrontando os

conselheiristas em Uauá. Vencida a serra, ela procurou me mostrar o açude Jacurici – que

de tão baixo tinha se afastado da estrada – que era a praia do sertão para a população de

Itiúba e da região. Quando uma mulher entrou no ônibus para vender cuscuz e pastel ela

disse que não podia nem ver, porque tinha feito um prato com óleo de licuri e ainda se

sentia empachada. E entre inumeráveis mandacarus e ouricuris ao longo da estrada, eu me

aproximava da região do “aspérrimo vale do Vaza-Barris que, das vertentes orientais da

Itiúba até Jeremoabo (...) é o trecho da Bahia mais assolado pelas secas.”[2] Para lá desse vale

ficava o raso da Catarina, reduto de Lampião; do lado de cá, Canudos, reduto de Antônio

Conselheiro.

“Lampião chegou aqui, cortou os fios do telégrafo e fuzilou sete soldados na praça da

estação; só deixou um vivo porque este cumpriu um acordo que tinha sido feito.” Valdir

Fiamoncini, secretário de planejamento e meio ambiente de Queimadas, resumiu assim a

ação dos cangaceiros na cidade quando lhe falei do que ouvira de dona Zenaide. Ela tinha

me indicado seu Regis do ponto do ônibus, mas ele não conhecia estradas de terra que iam

de Queimadas para Cansanção ou Nordestina. O ônibus viera de Itiúba por Cansanção, de

modo que eu tinha feito o caminho inverso ao que queria fazer a pé e não gostara nada

daquele asfalto. Para quem caminha, prefeituras eram como arcas que guardavam mapas

do tesouro: os mapas de estradinhas de terra que irrigavam municípios e levavam a vários

outros por inesperados caminhos. Valdir e sua equipe – Edival, Lielson, Ademilson e mais

alguns – se puseram a procurar nos arquivos virtuais, mas nada encontraram que me fosse

de alguma ajuda. Eles sabiam que havia alguns caminhos por dentro para Nordestina, mas

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eram tantas as quebradas no meio da caatinga alta e deserta que o risco de se perder era

muito grande. Nordestina, antes distrito de Queimadas, estava crescendo em ritmo bem

maior que o da antiga sede, o que era entendido pela população como fruto da maldição de

Santo Antônio. O padroeiro de Queimadas conquistara essa condição pela insistência de

sua imagem – como aquela de Santo Antônio do Itacambira – em amanhecer sempre onde

desejava que fosse erigida sua capela. Porém, um dia ela apareceu junto a um morto, o que

a levou a ser julgada e condenada à reclusão por crime de assassinato. Daí, a soberana

maldição. Há mais de um século, Queimadas era apenas um vilarejo que foi descrito assim

por Euclides da Cunha: “É pequeno e atrasado, vivendo em função da estação da estrada de

ferro, este arraial obscuro – último elo que nos liga, hoje, às terras civilizadas.”[16]

O improvável caminho por terra para Nordestina era uma alternativa para fugir do

asfalto tanto quanto a esquecida rota das expedições militares contra Canudos que saíram

de Queimadas. O professor Roberto Dantas, da Universidade do Estado da Bahia, UNEB de

Salvador, havia me informado que o traçado da rodovia acompanhava mais ou menos o

caminho seguido pelas tropas, ora aproximando, ora se afastando, mas que a trilha original

havia desaparecido tanto na caatinga quanto da memória histórica. Apenas alguns lugares

nomeados que receberam acampamentos podiam servir de referências para uma eventual

reconstituição do trajeto. Ele coordenou um projeto intitulado Canudos: novas trilhas, que

deu origem a um livro e a um documentário recentemente lançados e que se encontravam

disponíveis em escolas públicas e bibliotecas das unidades da UNEB na região pesquisada.

Ao ouvir meu comentário, Valdir imediatamente telefonou para o professor José Plínio de

Oliveira, da UNEB em Serrinha, que me instruiu de maneira entusiasmada e reafirmou as

palavras-chave indicadas por Roberto Dantas e assinaladas no mapa Esboço Geográfico do

Sertão de Canudos, elaborado pela comissão de engenharia da quarta expedição militar:

Contendas, serra Branca, Tanquinho. E me recomendou que procurasse em Cansanção seus

amigos Renan e Esquerdinha que poderiam indicar um caminho todo por terra para eu

poder alcançar Monte Santo. Valdir e o seu pessoal me deram outras referências: “Porque

você terá de ir pelo asfalto até o açude Monteiro e sair para estradas de terra, mas aí terá de

ir perguntando.” Pude assim fazer um esboço simplificado com os vários pontos que teria

de encontrar pelo caminho – ou sentir, sobretudo. Estradas de terra eram caminhos nos

quais percorríamos todas as curvas e em que tínhamos sempre de fazer escolhas em suas

inúmeras bifurcações, ao passo que estradas de asfalto eram somente rodovias que nos

levavam de um ponto a outro, direta, curta e necessariamente – e que distavam, para a

jornada do dia seguinte, quarenta e um quilômetros.

“A estação antiga era mais para lá”, apontou seu Regis. Eu o reencontrara por acaso

em uma padaria e ele acompanhou-me até a estação de trem, que eu imaginava ser um dos

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únicos vestígios daquela intensa movimentação de militares e armamentos de há mais de

um século. Com a igreja, ela formava as referências para quem passava por aqui, indo ou

voltando de Canudos. Além dessas, para mim, as outras eram a prefeitura, acima da igreja,

e o hotel, ainda mais para o alto; e entre a praça da matriz e a estação, a padaria onde eu

procurava mantimentos para a caminhada do dia seguinte. Através da estação atual – tão

somente paredes em ruínas que ainda guardavam gravado o nome QUEIMADAS, qual fosse

testemunha da desaparição do telhado e de todo o madeiramento – eu tentava imaginar

como devia ser aquela original, em volta da qual todas as coisas “delatavam a passagem

dos lutadores, que lá armaram as tendas, a partir da expedição Febrônio. Naquele chão

batido dos rastros de dez mil homens, haviam turbilhonado na vozeria dos bivaques –

paixões, ansiedades, esperanças, desalentos indescritíveis.”[2] E seu Regis acompanhava em

silêncio o meu olhar que buscava – por entre o largo que já não existia e o descampado

desaparecido sob as casas de novas vilas – os trilhos que indicavam a direção de onde eles

vieram. E por ali chegaram milhares de soldados, oficiais, os comandantes de expedições

major Febrônio de Brito, coronel Moreira César, general Artur Oscar e até o secretário de

estado dos negócios da guerra, marechal Machado de Bittencourt. E também voluntários

estudantes de medicina, correspondentes de imprensa e, em especial, um jornalista míope;

e um aventureiro escocês, perseguido, preso, condenado à morte por duas vezes, fugitivo

em vários países e continentes: “Seu verdadeiro nome não era Galileu Gall, mas era, de fato,

um combatente da liberdade, ou, como ele dizia, revolucionário e frenólogo (...) A revolução

libertará a sociedade de seus flagelos e a ciência, o indivíduo. A lutar pelas duas, dedicara

Galileu sua existência.”[13] Mas não Jurema: ela não chegara por aquela ferrovia. Jurema de

Calumbi já morava nos arredores de Queimadas.

“Você não gostaria de continuar vindo aqui?” José Carlos Patines não precisava mais

fazer longas sessões de quimioterapia, mas a pergunta que era também um convite não lhe

pareceu descabida. Afinal, tinha sido um tempo em que os sofrimentos pessoais tinham se

mesclado aos sentimentos partilhados com outras pessoas e se diluído, sem alardes, até

desaparecerem. E se sua presença poderia representar um alento a outros pacientes, por

que não? Mas ele tinha também outras tarefas e só poderia dividir seu entusiasmo quando

estivesse na cidade. E ele estava bem longe. Pude estimar a distância pelo seu sotaque ao

trocarmos as primeiras palavras no restaurante, horas depois de um rápido cumprimento

na recepção do hotel. Ele terminara sua caminhada diária, feita em qualquer cidade em

que estivesse, e tomava um lanche quando cheguei para jantar. Incorporou hábitos que de

alguma forma pudessem ajudar a evitar novos sustos quanto a sua saúde, especialmente

depois que seu irmão mais novo sofreu um enfarte fatal aos quarenta anos de idade. No

interior da Bahia ou em Porto Alegre, locais que alternava a cada três semanas, lá estava

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ele caminhando. Patrocinado por sindicatos da indústria do setor, fazia seleção de pessoas

para cursos de capacitação, realizados em Salvador, no manejo de computadores. Depois

elas voltavam a suas localidades e retransmitiam os conhecimentos básicos, multiplicando

assim a inclusão de moradores longínquos em um mundo bem apressado. A caminho de

Canudos, Euclides da Cunha proclamava a impaciência dessa pressa: “são os restos de uma

sociedade velha de retardatários, tendo como capital a cidade de taipa dos jagunços.”[16] E,

antecipando a sua completa destruição, sonhava com o complemento da vitória: “Que pelas

estradas, ora abertas à passagem dos batalhões gloriosos, que por essas estradas amanhã

silenciosas e desertas siga depois da luta, modestamente, um herói anônimo sem triunfos

ruidosos, mas que será, no caso vertente, o verdadeiro vencedor: o mestre-escola.”[16] Sem

pressa, Patines seguia pela área coberta do posto de combustíveis, fugindo da leve garoa, e

desaparecia rumo ao hotel. Ainda teria de procurar outro para o dia seguinte, pois o nosso

já estaria lotado. Também sem pressa, eu esperava vir o jantar. Mas eu não me preocupava

com outro hotel em Queimadas: depois do descanso, sairia bem cedo a pé por esta rodovia

rumo a Cansanção. Olhei para a noite: a garoa prosseguia, refrescante.

*

“Você diz que não é promessa, mas eu sei que aí tem um compromisso com Deus. Que

siga em paz, irmão.” Com essa bênção, tão inesperada quanto bem-vinda, voltei ao calor

que fazia tremular o asfalto que meus pés pisavam devagar. E mais uma vez sentia que eu

só me tornava compreensível – e aceito – na medida em que conseguiam me ver como um

penitente. O inesperado desta vez é que ele aceitara minhas explicações – as justificativas

usuais e obrigatórias de alguém que viaja a pé – sem qualquer contestação, mas ao se

despedir foi além e deixou entendido saber algo tácito, inominado. Antes, tinha me servido

arroz, feijão, farinha, ovo e salada que pedira à mulher para preparar. Sentado em um alto

banco junto ao balcão do bar à beira da estrada, eu olhava o que me disseram ser o Mari:

algumas casas, uma lan house que colocava o minúsculo povoado no mundo e pessoas à

espera do ônibus buscando uma sombra que também fugira do sol. “Andando assim, você

não tem medo?”, tinha perguntado um homem que contava casos à sombra do bar. “Tenho

medo, sim.” Ele ficou me olhando calado, até que um rapaz disse: “Mas por aqui não tem

bandido, só perto de cidade grande.” E outro rapaz estava com o carro estacionado em

frente, à espera de completar passageiros para uma corrida até Nordestina; e, acredito,

com a esperança de que esse um fosse eu.

Mas eu tinha ainda muito a caminhar depois da pausa de quase uma hora no meio

do dia. Quando olhei para a longa reta que tinha pela frente assim que saí do bar, procurei

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refúgio no frescor da manhã – há quanto tempo! – ao deixar o hotel em Queimadas pouco

antes das seis horas, ocasião em que o ar ainda guardava alguma umidade daquela garoa

da noite. “Mais abaixo, caindo para a direita, uma vereda estreita e sinistra – a estrada para

Monte Santo.”[16] Deixei a parte central da cidade à minha esquerda e desci pela estrada

vazia em direção ao rio Itapicuru, que cruzei com vinte minutos de caminhada. O leito era

de um rio que podia ser bem volumoso, mas nessa época mostrava apenas algumas poças

de água no meio de um capim de um verde intenso. Uma longa subida me levou até a um

ponto de onde pude ver Queimadas pela última vez. Em pouco mais de uma hora e meia

após o primeiro rio cheguei a um povoado perto do segundo, o Jacurici, aquele da represa

de Itiúba. Ainda não dera oito horas e já começava a esquentar, e eu ouvia de um homem a

indicação da localização da fazenda Contendas: “Depois do rio, tem mais lá na frente uma

entrada para a direita, e aí é só seguir em frente.” Ele conseguiu rapidamente uma carona

para Queimadas, mas eu demorei mais de uma hora para alcançar o marco que assinalava

a entrada para a Contendas. A hora era quase nove da manhã, e eu tinha atingido a minha

primeira referência do dia.

“Quer pegar uma ponte?” A pergunta veio de um carroceiro que me ultrapassou em

um ritmo só um tanto maior que o meu. Não compreendi de imediato o significado do que

dizia, mas ele percebeu isso e completou: “Quer subir para ir mais logo adiante?” Agradeci

e expliquei-lhe brevemente o meu propósito, ao que assentiu e seguiu com a mesma calma

com que tinha chegado. Isso fora ainda bem cedo e tinha sido meu primeiro diálogo depois

de deixar o hotel. Mais adiante, foi a vez de um motoqueiro que parou para conversar,

curioso por ver alguém caminhando com mochila naquela estrada deserta de gente. Mas

depois foi a minha vez: avistei de longe alguém em pé no acostamento em que eu seguia, e

assim ele continuou, parado, enquanto eu me aproximava. Só quando cheguei mais perto é

que vi que ele velava algumas cabeças de gado que pastavam no capim ralo e seco ao lado

da estrada. “Não, elas não têm outra ração. Elas ficam ali e eu não deixo que venham para a

estrada. Tem dias que a gente anda muito.” Ele achava que as chuvas ainda iam demorar

bastante para chegar. Olhei mais adiante e avistei, ainda longe, outra figura parada no meu

lado do acostamento. Caminhei em sua direção pensando que, afinal, essa estrada não era

tão deserta assim.

Mais ou menos às dez horas parei em um bar no povoado do Ponto Novo. O calor já

era bem forte e tirei a mochila para me refrescar e descansar um pouco. E ali obtive uma

informação que destoou das anteriores que vinha acumulando desde Queimadas: a de que

a saída para o Tanquinho era pela esquerda da estrada. O dono do bar foi convincente:

“Tem muita gente que não sabe das coisas e diz o que não é certo.” Coloquei esse dado novo

no mesmo balaio e segui adiante. Em mais quase uma hora de caminhada cheguei perto do

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açude Monteiro, local previsto para a minha saída do asfalto. O que vinha embaralhando a

visão do caminho a seguir não era tanto a questão de que lado sair da estrada, o que foi

resolvido pela presença de uma serra – branca – à direita, a razoável distância, mas a de

como atingir o Tanquinho do outro lado. Valdir e o pessoal tinham dito para perguntar, e o

que eu obtivera até ali era uma série de informações bem desencontradas: de atravessar a

serra diretamente por cima, mas não encontrei quem soubesse o caminho ou mesmo se ele

existia; de contornar a serra pela direita, procurando não se perder nas encruzilhadas; de

dar uma grande volta, chegar até perto de Nordestina e pegar a estrada principal de terra

para Cansanção; e a informação de que, por ali, o Tanquinho ficava bem longe. “Tanquinho

é positivamente um lugar detestável e o viajante que vence as cinco léguas que o separam de

Queimadas tem a pior das decepções ante esta lúgubre tapera de duas casas abandonadas e

estruídas...”[16] Fiquei ali, parado, bem debaixo daquele sol, olhando o asfalto que fazia uma

longa subida em curva, contornava a serra pela esquerda e desaparecia. Olhava também a

estrada de terra que saía a partir de meus pés, passava por algumas casas, se embrenhava

pelo meio da caatinga, desaparecia naquele ermo, perdida, para ressurgir sabe-se lá onde,

e quando. E no meio dos dois caminhos reinava a serra Branca, minha segunda referência

do dia. E em algum lugar, um além, não alcançado, devia estar o Tanquinho, minha terceira

referência. “Chegamos à uma hora da tarde, depois de cinco horas de viagem sob um sol

abrasador, através das caatingas intermináveis, por uma estrada magnífica, é certo, mas

cujo leito arenoso multiplica enormemente os ardores da canícula.”[16] Acabei optando, com

pesar, pela canícula da estrada de asfalto e, depois de mais quase uma hora de caminhada,

cheguei enfim no Mari.

Retomado o caminho, antes de chegar ao final da reta fui ultrapassado pelo lotação

de Nordestina. O motorista buzinou e aquele que perguntara sobre o medo acenou. Fiquei

afinal sem saber se ele tinha conseguido sair da sinuca – seu olhar assim o delatava – a que

minha resposta o conduzira. Mas sua caçapa seria ainda mais improvável se eu lhe tivesse

dito que “quando o homem preenche esses quatro requisitos – estar bem desperto, ter medo,

respeito e segurança absoluta – não há erros que ele tenha de explicar.”[17] Tinha sido o

único momento em que ele deixara de contar seus casos amorosos. A plateia parecia estar

habituada a suas histórias, e brincadeiras o atingiam de todo lado. Dizia sempre ter duas

ou três mulheres, mesmo casadas, pois ele não era de ficar criando caso. E achava até graça

de alguém querer matar a mulher, ou outros, por causa disso; se não desse certo com uma

ou outra, era só procurar mais uma porque o mundo estava cheio de mulheres. E dali ia

para Nordestina se encontrar com uma de suas mulheres, que queria até lhe emprestar

algum, mas isso ele não aceitava por uma questão de honra. Nesse momento, recebeu um

inesperado conselho de um espectador: “É bom aceitar, porque quando você tiver a minha

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idade vai precisar de muita ajuda, até de forquilha para fazer xixi!” E no meio da algazarra

que se esparramou pelo bar pude perceber, chegando de outro longínquo e mesmo sertão,

a voz de Riobaldo com sábio conselho: “O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte

por demais com a baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de

rebuliço.”[1]

O carro desapareceu e eu voltei para o silêncio do sertão. Essa conversa de boteco

me fez voar do calor do asfalto para o frescor de um ônibus, dias antes. Também era uma

conversa – na verdade, um monólogo – sobre homens, mulheres e, no caso, uma criança.

Embora de caráter íntimo, tornava-se pública devido ao silêncio de antes da partida – do

motor e do ônibus. A jovem mãe, sentada, falava controladamente para o jovem pai, em pé,

que tinha nos braços o filho de apenas alguns meses: “Antes de amar outra mulher, ama

primeiro o teu filho, que é sangue do teu sangue!” O pai nada dizia, apenas beijava a cabeça

da criança. Mais tarde, durante a viagem, de meros passageiros tornamo-nos espectadores

de suas vidas devido ao volume com que ela falava ao telefone com uma amiga, ou com a

mãe: “Ele conheceu o Emanuel e ficou com a gente até o ônibus sair. Eu tinha vontade de

chorar, mas não chorei, não na frente dele – era uma questão de honra!” Bem mais tarde, no

escuro do começo de noite em algum lugar de uma estrada deserta qualquer no sertão da

Bahia, mãe e filho desceram. Olhei pela janela para a escuridão em que apareciam fracas

luzes, mas só conseguia mesmo era ver o encantamento que iluminava seu rosto, durante

todo o tempo de espera na rodoviária, inteiramente alheio aos carinhos do pai: o pequeno

Emanuel olhava com grandes olhos – e descobria, e redescobria, apartada de si, sua mãe!

“As chautauquas eram séries de palestras populares (...) espetáculos itinerantes

realizados no interior de tendas (...) que visavam edificar, divertir, aprimorar o raciocínio e

fornecer cultura e informação ao espectador.”[18] As longas caminhadas, especialmente por

lugares em que não há muitos encantos que distraiam a atenção, levam ao recolhimento e

propiciam boas condições para o exercício de pequenas chautauquas internas – pessoais e

intransferíveis – apenas compartidas com eventuais leitores. Nos quinze minutos que se

passaram do Mari ao trevo para Nordestina vi que já havia um tema em andamento, que

eu poderia acompanhar enquanto seguia adiante. O primeiro personagem a entrar na roda

foi Antônio Vicente Mendes Maciel antes de se tornar o Conselheiro, que Euclides da Cunha

situa no tema em uma página e meia. Responsável por três irmãs solteiras após a morte do

pai, ele “somente depois de as ter casado procurou, por sua vez, um enlace que lhe foi nefasto.

Data daí a sua existência dramática.”[2] Ele passa a mudar seguidamente de domicílio e de

profissão, vivendo em várias cidades, vilas e povoados, indo de comerciante a caixeiro,

escrivão de juiz de paz e rábula, mas sempre procurando honestamente reencontrar a vida

ordenada que tivera até então. Mas um dia sua esposa abandona o lar fugindo com um

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sargento de polícia. “Fulminado de vergonha, o infeliz procura o recesso dos sertões (...)

graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens natais breve resquício de sua

lembrança. Morrera por assim dizer.”[2] Aqui, separam-se em definitivo duas existências,

dois caminhos nesta vida: enquanto ela sobreviverá como prostituta no interior do Ceará,

ele sobreviverá tão somente pela penitência no interior dos sertões humanos.

E o que Euclides da Cunha descreveu como sendo “algo ridículo” na vida pregressa

do Conselheiro repetiu-se, meio século após os acontecimentos, como algo trágico em sua

própria vida. Em 15 de agosto de 1909, no subúrbio carioca da Piedade, em troca de tiros

com o rival que lhe conquistara a esposa, o autor de Os sertões morreu. “Por toda a sua vida

Dilermando de Assis foi um exímio atirador”[19], e disparou seis tiros contra sete desferidos

por Euclides ao invadir sua casa à procura de Anna. Em depoimento, o cadete do exército

relatou que o doutor Euclides dissera “vim para matar ou morrer”[19], e que depois, caído,

ainda pronunciava confusamente “Bandidos... Odeio... Honra...”[19] O irmão de Dilermando

que morava com ele, o cadete de marinha Dinorah de Assis, acabou ferido por Euclides na

coluna vertebral, junto à nuca. Os rivais tiveram quatro ferimentos cada um, e Anna disse

depois que o marido pretendia matá-la também. Euclides da Cunha não matou, mas os fios

da tragédia sobreviveram a ele. Em 4 de julho de 1916, o aspirante de marinha Euclides da

Cunha Filho acertou quatro tiros no tenente Dilermando de Assis, que revidou e matou o

filho de sua esposa com três tiros. Anos depois, ao descobrir que seu marido tinha uma

amante, e sair mais uma vez de casa, Anna de Assis sentenciou: “Você é o único homem que

não tinha o direito de prevaricar.”[19] Em 1921, Dinorah de Assis se suicidou nas águas do

cais de Porto Alegre: o outrora garboso militar, o outrora respeitado zagueiro do Botafogo

do Rio de Janeiro, não suportou a decadência física e moral decorrente do ferimento na

nuca provocado por uma bala do revólver de Euclides da Cunha.

Também um tiro na nuca: “Turíbio não era mau atirador; baleou o outro bem na

nuca.”[20]; também um irmão atingido por acidente: “... eliminara não o Cassiano Gomes,

mas sim o Levindo Gomes, irmão daquele...”[20]; e também um lugar chamado Piedade, só

que do Bagre. Assim teve início o duelo entre o seleiro Turíbio Todo e o ex-anspeçada da

força pública Cassiano Gomes, amante de sua esposa; a esta, ele nem pensou em matar “...

porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra

mais exigente.”[20] A perseguição de um ao outro continuou por muito tempo, entre o rio

Paraopeba e o das Velhas, por vezes quase se topando, e se distanciando, até que um dia

Turíbio Todo se juntou a uma turma de “baianos são-pauleiros”[20] e foi lavourar café no

sul; e Cassiano Gomes, mal do coração, quis se despedir da mãe no Paredão do Urucuia e

continuar a caçada, mas acabou morrendo no caminho. E foi para o Céu, mas seu tiro fatal

alcançou Turíbio Todo através da garrucha de seu compadre devoto Timpim Vinte-e-Um,

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cujo “... cavalinho pampa se meteu, de galope, por um trilho entre os itapicurus e os canudos-

de-pito, fugindo do estradão.”[20] Os canudos-de-pito deram origem ao nome do arraial de

Canudos, e Itapicuru é também o nome de batismo de um rio que cruzei esta manhã ao sair

de Queimadas. Os desencontros passionais do sertão de Minas deram uma volta, refletiram

outros em terras do Rio e me alcançaram no árido sertão da Bahia, a caminho de Canudos,

nessa mesma rota por onde passou Euclides da Cunha, doze anos antes de seu duelo fatal.

Eu prosseguia por um caminho paralelo ao seu, e à minha direita não conseguia ver

a maioria dos locais por onde ele deve ter passado. A serra Branca, porém, esta, ambos a

vimos. Entre nós havia a distância de mais de um século, mas também uma proximidade

através da mesma caatinga que imitava morrer para sobreviver. De suas profundezas, sem

quaisquer avisos, surgiam outros personagens que reivindicavam atenção ao tema. Depois

de quase ter sido morto e de ter conseguido matar dois dos três homens que o atacaram,

Galileu Gall se inquietava com “esse brusco arrebatamento, incompreensível, incontido, que

o fez violar Jurema depois de dez anos sem tocar em uma mulher”[13] Ele violara também o

seu compromisso de manter uma vida celibatária para que toda a sua força fosse dirigida

para a luta libertária. E Rufino, o rastejador que Gall tentava contratar para levá-lo até

Canudos, estava condenado: sua mãe, antes de ir para o Belo Monte, o intimava a limpar “a

sujeira que ela atirou em cima de você”[13]; seu amigo Caifás só não matara Gall para não

ofendê-lo, dizendo-lhe que “a morte não chega, não lava afronta. Só mão ou chicote na cara.

Cara é coisa tão sagrada quanto mãe e mulher”[13]; e sua esposa Jurema repetia para Gall: “é

Rufino que deve matar você.”[13] E para Rufino, assim devia ser, assim era, e assim seria.

Pajeú perguntava-lhe se não queria se salvar: “Primeiro preciso salvar minha honra”[13]; e

Jurema perguntava por que ele não a matava de uma vez: “Vou matar. Mas não aqui, em

Calumbi. Pra que vejam você morrer.”[13] O encontro marcado e inevitável entre Rufino e

Gall finalmente aconteceria nas cercanias de Canudos, em meio a canhonaços, toques de

corneta, apitos, fuzilarias da batalha entre as tropas da expedição Moreira César e os

conselheiristas. O rastejador dizia que não ia matá-lo ainda, antes ia bater em sua cara

para desonrá-lo. Fuzilados por soldados durante a briga, agonizantes, continuavam a se

bater em câmera lenta, indiferentes ao mundo em chamas. A mão de Gall “se aquieta sobre

a cabeça”[13] de Rufino, como se fosse um estudo frenológico interrompido; por sua vez, o

tapa de Rufino “perde a força ao tocar na cara de Gall”[13], feito um carinho interrompido.

Coisas de homem, explicava Pajeú a Jurema.

Antônio Vicente Mendes Maciel nunca invocou a honra dos homens, mas sempre

altas saudações: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Para sempre seja louvado tão bom

Senhor! Ele chegou a ser preso acusado de ter matado a esposa e a própria mãe, porém

investigações mostraram que ele era órfão de mãe desde criança e que nunca mais vira a

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esposa desde que ela fugira com um sargento. A lenda dizia que a mãe não gostava da nora

e contou ao filho que ela o traía. Para provar, sugeriu que ele simulasse uma viagem e

ficasse à espreita de sua casa à noite. Quando um vulto tentou entrar pela janela ele o

baleou, correu para seu quarto e matou a esposa infiel. Ao desmascarar o rival viu que era

a própria mãe disfarçada de amante. Daí, segundo a imaginação culturalmente arraigada

na população, o seu vagar errante pelos sertões penitenciando-se por ter matado a mãe e

não, pelo crime de honra. Esse crime, embora desdenhado com cinismo pelo conquistador

do bar do Mari, continuava a ser praticado através dos séculos com graus variáveis de aval

institucional, tanto em comunidades brutas dos sertões quanto em sociedades polidas dos

centros urbanos. Repetia-se o crime, repetia-se o lamento de Jurema: “Você já botou a mão

na cara dele, Rufino (...) ganhou o quê com isso, Rufino?”[13] E repetia-se a preparação das

crianças para a ideia do crime de honra. Mas esse processo, que vem desde remotas eras,

traz consigo uma possibilidade que é também uma expectativa: uma falha de repetição a

cada novo pequeno Emanuel. “Um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...”[1]

Esta pequena chautauqua chegou ao final ao mesmo tempo em que atingi o topo de

uma pequena subida e avistei ao longe as primeiras casas de Cansanção. Estavam ainda a

légua e meia, mas eram bem reconfortantes. Parei e olhei o panorama da caatinga que me

fazia ser um ponto a mais no meio de tudo aquilo. Sabia que a cidade ia desaparecer nessa

primeira ondulação e que só voltaria a vê-la quando já estivesse bem maior, pois eu faria

com que ela crescesse a cada passo. E foi aí que eu vi: bem para lá de Cansanção, aonde se

chega ao céu andando pela terra sem fim, no fundo azul embaçado do mundo, um brilho

alumiou meu olhar para além do sol do sertão e tive a primeira visão do Monte Santo. Foi

só por causa daquela luz refletida na parede branca da capela da Santa Cruz que localizei a

minúscula verruga no horizonte, a serra do Piquaraçá, cuja sombra – eu saberia depois –

àquela hora avançava sobre a praça de Monte Santo. Mas eu tinha primeiro de chegar a

Cansanção e segui caminhando apenas pelo asfalto, pois já tinha desistido de intercalar as

trilhas intermitentes ao lado da estrada. Imaginei que fossem vias por onde passavam

animais, interrompidas com poucos metros e cuja areia fofa dificultava o andar e enchia os

tênis de grãos bem chatinhos. Quando faltavam um cinco quilômetros, um motoqueiro que

vinha da cidade parou e gritou: “Eh, tá chegando!...” Era o rapaz do Ponto Novo que já tinha

parado para conversar comigo de manhã e voltava para casa. Era um estímulo e tanto na

reta final. Na reta final mesmo, descendo para pegar a última longa subida antes de entrar

na cidade, troquei breve cumprimento com duas pessoas que estavam com o carro parado

em uma clareira logo ao lado do acostamento. Com portas e porta-malas abertos, o carro

estava abarrotado de mercadorias que eles espalhavam pelo chão para – imaginei – retirar

o estepe. Somente mais adiante me dei conta de que o que tinha visto no quadril esquerdo

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do rapaz que sorrira e logo voltara a se ocupar com os objetos, enfiado em sua bermuda,

era um revólver. E sem apressar o passo, entrei na cidade às cinco e meia da tarde. Quase

doze horas depois de sair de Queimadas cheguei, enfim, a Cansanção. Cansadão.

*

“Não tem jeito. Você tem que ir mesmo pela pista.” Com essas palavras, ditas de seu

carro ligado no meio da rua, Esquerdinha arruinou minhas esperanças de chegar a Monte

Santo indo por estrada de terra, possibilidade aventada pelo professor Plínio, de Serrinha.

“Seu Herval estava muito doente. Nem sei se ele ainda está vivo.” E com essas, sepultou de

vez a chance já remota de eu me decidir a seguir por dois dias consecutivos pelo asfalto no

meio da caatinga. Quem me falara de seu Herval Santana, de 93 anos de idade, morador do

povoado do Quirinquinquá que contava casos presenciados e emocionantes das passagens

de Lampião por sua região, tinha sido outro professor da UNEB, Roberto Dantas. E olhando

o carro de Esquerdinha se afastar considerei que, afinal de contas, seria bom até demais

poder ir de Cansanção a Monte Santo por uma estradinha qualquer de terra e, ainda por

cima, ouvir seu Herval. E havia uma última alternativa para fugir do asfalto – fazer dois

lados de um triângulo em vez de um, seguindo para Quijingue e, no outro dia, para Monte

Santo – mas essa ficaria comigo apenas como possibilidade até o final do dia, quando então

teria de tomar uma decisão.

O que estava decidido era que o dia seria para descanso de caminhadas. Eu tinha

chegado com uma dor na lateral do pé esquerdo, possivelmente pela inclinação do asfalto,

e outra que se manifestou nas coxas após o banho, ao descer e subir as escadas do hotel.

Resolvera aproveitar o dia para ir de ônibus até Euclides da Cunha e voltar à tarde, para

retomar de Cansanção a caminhada na manhã seguinte. Descendo para a rodoviária eu via

a ampla caatinga por onde tinha chegado, porque estava em uma “... breve colina de onde se

descortinam horizontes indefinidos (...) sucessão ininterrupta de tabuleiros imensos.”[16] E

também nesta localidade, o coronel Moreira César mostrara seu cartão de visitas que não

deixava dúvidas: Corta-cabeças. Depois de mandar degolar dois homens que estavam com

duas carabinas e munições, ele falou ao jornalista míope e a seus colegas correspondentes:

“No fundo, o homem só teme a morte. (...) Soa duro, eu sei. (...) Tiveram hoje o seu batismo de

fogo. Agora sabem do que se trata, senhores.”[13] Se para esses correspondentes a passagem

por Cansanção fora chocante, para outro, alguns meses depois, esse lugar foi “o único que

não desperta, nas narrativas da campanha, recordações dolorosas.”[2] E para mim foi muito

restauradora, em um hotel com um clima de pensão familiar onde os hóspedes semanais,

trabalhadores no local ou viajantes, eram tratados com muito mimo e alegria por uma

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baiana arretada de nome Goreth, que cuidava de tudo ali e que prontamente me colocara

em contato com Esquerdinha.

Soube na rodoviária que o ônibus seguia por Monte Santo para Euclides da Cunha e

voltava para Cansanção no meio da tarde pela mesma rota, passando por Quirinquinquá.

Por ali passara Moreira César: “Um dia antes a inervação doentia do comandante explodira

numa convulsão epileptiforme, em plena estrada, antes do sítio de Quirinquinquá.”[2] Depois,

passou Euclides da Cunha: “Aqui chegamos às sete horas e trinta e oito minutos da noite,

andando, a partir de Cansanção, cinco léguas extensas, léguas de tabaréu, que valem oito

quilômetros cada uma.”[16] E passei eu, de ônibus, olhando para o cenário da estrada e me

felicitando por ter decidido não vir a pé por aquele asfalto. E quando entramos na praça de

Monte Santo vi, à esquerda, imensa, guardando a cidade, a serra do Piquaraçá. Reverente,

fiquei olhando a linha de pequenas capelas brancas que subia a encosta e virava para a

esquerda e depois para a direita, e à medida que meu olhar seguia pela crista até alcançar

a capela maior da Santa Cruz o ônibus acompanhava devagar o sentido, até virar à direita e

deixar para trás a serra. Seguíamos mais ou menos pelo caminho percorrido pela terceira

expedição contra Canudos, cuja “vanguarda chegou em três dias ao Cumbe sem o resto da

força (...) com o comandante retido numa fazenda próxima por outro ataque de epilepsia.”[2]

Assim, no final da manhã, cheguei a Euclides da Cunha, que muitas pessoas antigas ainda

chamavam de Cumbe.

“Antenor Júnior!...”, exclamou a professora Ivete, e passou a telefonar a sua procura.

A UNEB de Euclides da Cunha ficava bem perto da rodoviária, o que me permitiu chegar

antes que todos saíssem para almoçar. Fui direto para a biblioteca procurar o Canudos:

novas trilhas, mas encontrei apenas o livro; o documentário ainda estava na catalogação,

mas de qualquer modo eu não teria mesmo tempo para ver. No livro, fui direto para a rota

da quarta expedição, que apresentava o que Roberto Dantas já me informara e indicava em

que altura o caminho cruzava a BR 116 Norte, que era a rodovia que passava por Euclides

da Cunha e prosseguia por Bendengó em direção ao rio São Francisco e a Pernambuco. O

caminho da terceira expedição seguia mais ou menos paralela a essa estrada desde Cumbe

até Canudos, então situado pouco à direita de Bendengó. “Esta parte do sertão (...) é menos

revolta e é mais árida (...) Quem por ali se aventura, tem a impressão de varar por uma

roçada enorme de galhos secos e entrançados...”[2] A professora Ivete se lembrou de Antenor

Júnior quando eu indagava de possíveis caminhos para uma viagem a pé até a região de

Canudos, mas ela não conseguiu encontrá-lo apesar da boa vontade do pessoal da UNEB.

Antes de deixar a cidade no ônibus para Cansanção ainda passei pela Prefeitura, mas não

consegui obter sequer um mapa com as estradas do município. Fiquei umas três horas no

Cumbe, uma estada talvez mais breve que a dos 1.281 homens da expedição comandada

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pelo coronel Moreira César, que passou ali “tendo cada um 220 cartuchos nas patronas e

cargueiros, à parte a reserva de 60.000 tiros no comboio geral.”[2]

Quando o ônibus parou novamente na praça de Monte Santo, agora com a serra do

Piquaraçá à minha direita – pico do araçá, pico araçá, piquaraçá, de acordo com Sandra –

desci e fiquei. Decidira não mais voltar até Cansanção para chegar aqui a pé, um ou dois

dias depois: já estava na base de operações das tropas invasoras do Belo Monte. Antes de

descer em Monte Santo e indicar-me uma pousada, Sandra explicava diferenças e tentava

mostrar para mim mandacarus, palmatórias do diabo, macambiras, xiquexiques, cabeças-

de-frade que surgissem ao longo da estrada e, entre uma indicação e outra, contou o caso

de uma avó sua que quase perdeu a cabeça por causa de Lampião. Certa ocasião, ele e seus

cabras apareceram e todo mundo fugiu correndo com tudo o que podia carregar, e ela, que

cozinhava o feijão, apavorada, colocou a panela na cabeça sem forrar nada: “queimou o

tampo da cabeça, mas salvou o feijão”. Eu já vira na passagem pela manhã que aquela praça

era imensa. “A estrada vai até a praça, retangular, em declive, de chão estriado de enxurros

(...) Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo (...) Ali acantonaram as 543 praças, 14

oficiais combatentes e 3 médicos”[2] que compunham a expedição Febrônio de Brito. E pela

ampla janela do terceiro piso da pousada eu podia avistar a praça em toda a sua extensão e

também – continuando o seu declive, por cima dos telhados – a estrada pela qual viera do

Cumbe; e do corredor aberto que dava para as escadas, crescendo subitamente atrás da

pousada, a imensa serra. Estava, enfim, em Monte Santo.

E mais tarde, após não conseguir falar por telefone com Dedega Cordeiro, indicado

por Roberto Dantas, e nem encontrar o professor Eduardo na EBDA, Empresa Baiana de

Desenvolvimento Agrícola, indicado por Esquerdinha, sentei-me em sua praça e vi como

ela podia ser magnífica. O Piquaraçá já tinha sombreado e arrefecido um pouco o largo,

mas o sol ainda iluminava e dourava o mundo lá fora. E o céu continuava azul. E o alarido

dos jovens que saíam das aulas compunha um alegre contracanto com o dos pássaros, em

mais uma tarde calma no sertão. Foi ali, naquele preciso instante, mas podia ter sido em

algum outro lugar – ou tempo.

“... E eu partirei. E ficarão os pássaros cantando; (...)

Todas as tardes, o céu será azul e plácido; e tocarão, como tocam esta tarde, os sinos da torre.

Morrerão aqueles que me amaram; e o povoado se renovará a cada ano; e naquele recanto de meu jardim florido e caiado, meu espírito vagará, nostálgico...”[21]

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Levantei-me e caminhei devagar pela praça, aproximando-me de três personagens

do conflito de Canudos: o busto do marechal Machado de Bittencourt, ministro da guerra;

o canhão Withworth 32, chamado Matadeira pelos defensores do Belo Monte; e Antônio

Conselheiro, o maior desses monumentos dispostos em um simples elevado e guardados

pelas bandeiras nacional, estadual e municipal. Andei em volta e subi uma pequena rampa

que me colocou de frente para o Conselheiro: sobre um pedestal simples, tinha na mão

esquerda uma cruz pouco maior que ele, apoiada junto a seus pés, e um olhar inflexível no

eterno. Alguns metros atrás, a Matadeira estava apontada para ele, para suas pernas, para

um ponto um pouco abaixo de suas magras nádegas. “O homem era alto e tão magro que

parecia sempre de perfil.”[13] Bem mais para trás, a torre caiada da igreja matriz ladeava sua

cabeça pela direita. E ao fundo, bem distante, no alto da serra, pendurada no céu, a capela

da Santa Cruz, ainda iluminada pela luz do sol, pairava sobre sua cabeça. E mais tarde,

quando ela se apagou e outras se acenderam na serra, eu fiquei olhando o caminho de luz

que subia reto, virava para a esquerda, depois para a direita, subia ainda um pouco mais,

passava pelo seu brilho maior e – da escuridão da terra – alcançava o céu.

*

A luz da manhã me revelou um bulício na praça. Um caminhão parado em frente à

sede do programa Saúde Família era cercado por uma multidão que quase saqueava sua

carga, com algumas pessoas subindo na carroceria e pegando, à revelia dos encarregados

da distribuição, vários pacotes de suco de laranja congelado. Fiquei um tempo olhando

aquela movimentação crescente antes de subir as escadas do prédio da prefeitura. Estava

vindo da EBDA, onde conseguira falar com o professor Eduardo apenas por telefone. Ele

não me podia ajudar quanto a caminhos por dentro para Canudos, pois levava seus alunos

pela estrada de asfalto por Euclides da Cunha, mas sugeriu que eu procurasse Conceição,

secretária executiva da prefeitura, que era esposa de Dedega Cordeiro, a quem eu vinha

buscando desde que chegara à cidade. Mas toda a minha esperança de encontrá-lo foi logo

desfeita por Nelson Senna, secretário de administração, que informou que estavam ambos

em Salvador. Mas se essa porta se fechou tão logo entreaberta, outras se escancararam à

frente logo na sequência. Tomando como base as anotações apressadas que fiz do livro em

Euclides da Cunha e as informações de Roberto Dantas, Nelson tentou traçar um mapa dos

caminhos da região, mas além da rota usual do asfalto ele conhecia apenas a estrada de

terra que ia para Uauá passando pelo povoado do Acaru, e que em algum ponto teria saída

pela direita em direção a Canudos. E então ele se lembrou: Zué da Bateria!

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Seu Dino confirmava o que Zué dizia para mim e que eu colocava no papel. Assim,

na sala da casa de Zué, pai e filho me faziam ver um caminho surgindo no território de sua

origem, que era ainda o lugar da morada de seu Dino e a base eleitoral de Zué na tentativa

de se eleger vereador. Nelson o provocara sugerindo que ele poderia caminhar comigo até

Canudos como guia, mas ele recusara lembrando ser o dia seguinte o da feira semanal, a

qual não poderia estar ausente. Ambos sabiam não ser nem um pouco provável a sua ida

dessa forma, mas vislumbraram a possibilidade. Posteriormente, Zué refletiu e disse que o

certo seria alguém do local me acompanhar porque o povo podia estranhar um forasteiro

andando sozinho em suas terras, mas seu Dino minimizou a chance de eu encontrar algum

problema no caminho. Não era como nos tempos de Lampião e, antes, das tropas que iam e

voltavam de Canudos. Seu Dino rememorou um episódio envolvendo os coronéis Moreira

César e Tamarindo, citado também por Euclides da Cunha, mas acrescido de detalhes que a

tradição oral aperfeiçoou com o tempo. Quando ponderou ao chefe da expedição, coronel

Moreira César, sobre as execuções de soldados que este ordenava durante as paradas da

marcha, o coronel Tamarindo ouviu como resposta: “Depois que eu destruir Canudos, o

próximo será você!” Assim, jurado de morte, providenciou a execução do chefe maior por

um soldado durante o assalto a Canudos: fogo amigo em meio ao fogo inimigo. E seu Dino

repetiu, imagino que não a partir do livro, mas das mesmas fontes de abundância das quais

também bebeu Euclides da Cunha:

“É tempo de murici Cada um cuide de si...”[2]

“Percorri-a toda, hoje (...) Começa investindo francamente contra a montanha,

seguindo a normal de máximo declive, com uma rampa de cerca de 20 graus;”[16] Comecei a

subir ainda na rua, devagar, antes de pisar os primeiros degraus. Conversei um pouco com

duas mulheres e um menino que desciam da capela de Nossa Senhora das Dores; depois

prossegui, virando-me amiúde para a vista que se abria por cima dos telhados da cidade.

Demorei uns dez minutos até o caminho mudar de direção. “... na quinta capela inflete à

esquerda e progride com uma inclinação menor;”[16] Agora, eu tinha a cidade a minha

esquerda, sempre diminuindo, e seguia pisando leve por onde o Conselheiro, juntamente

com seus seguidores, “limpou e restaurou todas as capelas da montanha, construiu um

duplo muro de pedras para a Via Sacra.”[13] Levei uns seis minutos até virar de novo, pois o

caminho “volta depois, mais adiante, bruscamente para a direita”.[16] Desse ponto mais à

esquerda de quem olha da cidade alcancei, em mais uns cinco minutos, a crista por onde

deveria seguir para chegar até o cume da serra, “espécie de ligeira garganta do espigão.

Segue por este horizontalmente...”[16] Ali eu podia caminhar com mais calma ainda, olhando

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para o vasto horizonte para a direita e, mais adiante, também para a esquerda, para a face

oculta, aonde o sol se recolhe nas tardes de Monte Santo. Mais uns onze minutos se foram

até que eu me visse “investindo afinal contra a última subida íngreme e dilatada até a Santa

Cruz, no alto.”[16] E com o passo manso dos reverentes, demorei ainda uns doze minutos

até passar pelo portão que abria os muros brancos em volta da capela da Santa Cruz.

Nos últimos séculos, multidões subiram por esse caminho até ali, desde que ao Frei

Apolônio de Todi pareceu a montanha semelhante ao calvário de Jerusalém. “Ao chegar à

Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca

escada de pedra, e queda-se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas...”[2] E

ao se aproximar do altar, à frente de uma procissão, lágrimas de sangue rolaram dos olhos

da Virgem. Mas eu cheguei só e sentei-me no último banco, e fiquei contemplando as rezas

e cantorias de um grupo grande. Acima do altar havia uma data, 1775, e outra, 1786, acima

do pórtico de entrada da primeira câmara. Na sala lateral, ex-votos pendurados lotavam o

teto e pareciam ter virado o mundo pelo avesso, tal a profusão de cabeças e mais pernas e

braços de madeira com os dedos esticados e abertos. No quintal da capela, no canto caiado

dos muros, mais ex-votos: montes. Voltei e saí dos limites do muro. “Do alto descortina-se

um horizonte de vinte léguas.”[16] Podia ver as capelas e o caminho branco que vinha pela

crista da serra e, no prolongamento, desaparecendo na lonjura, a estrada de asfalto para

Cansanção; e pouco à esquerda, chegando à cidade quase junto com a outra, uma estrada

de terra reta e larga me fez pensar que por ali eu teria chegado andando se tivesse tomado

o rumo de Quijingue. Entre as duas, uma estradinha cheia de curvas devia levar a algum

povoado próximo. E virando-me mais um pouco pude ver toda Monte Santo a meus pés.

Para leste, além, a estrada do Cumbe; para o norte, várias estradas levavam para os rumos

de Canudos. Aquela mais à esquerda, saindo diretamente da praça, eu sabia que levava

para Pedra Vermelha, Nelson me havia dito. Entre uma e outra, estaria aquela que buscava.

Como naqueles belos labirintos de jardim, procurei em meu mapa real – e encontrei –

como referências o cemitério ali, uma escola mais adiante e ruas e quadras que levavam

para a estradinha almejada. E antes de descer do alto da Santa Cruz olhei mais uma vez em

torno. “Ali estava – defronte – o sertão...”[2]

Desci lentamente pela linha branca e retorcida que era “uma coisa assombrosa. Tem

três mil metros aproximadamente e, em certos seguimentos, foi rasgada através da rocha

duríssima e áspera.”[16] Era como uma aterrissagem com sobrevoos lentos sobre mutantes

telhados que cresciam e mudavam de lugar. Um rapaz que me alcançou no terço inicial da

descida era um dos dois que trabalhavam na capela, zelando e prestando assistência aos

devotos que lá chegavam. Para ele, Antônio Conselheiro foi um falso profeta. Disse-o com

firmeza, acrescentando que muita gente morreu na guerra por causa dele; e confirmou que

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essa era uma impressão reinante entre os jovens quando lhe perguntei a respeito. Mais

presentes, porém, para sua geração, pareciam ser as histórias de Lampião, que eram mais

reais porque envolviam, em seu caso particular, o bisavô, que devia ser para ele o que se

podia conceber como a mais antiga das coisas palpáveis. Por não gostar de Monte Santo,

Lampião matou todos de um grupo em que estava seu bisavô, mas, por alguma coisa do

olhar, o cangaceiro disse para ele desaparecer sem olhar para trás. E ele se meteu no meio

das macambiras e xiquexiques e acabou se salvando: não morreu de tiro, mas quase se

finou por causa da febre das feridas zangadas dos espinhos. “Lampião era perverso, muito

perverso!” O jovem continuou calado por bastante tempo e por muitos degraus, e parecia

compenetrado no flagelo enquanto nos aproximávamos das últimas capelas. Por fim falou,

despedindo-se ao pé da escadaria: “Mas era revoltado porque quando era menino a polícia

lhe matou o pai e a mãe na sua frente.” Cheguei enfim à praça e sentei-me junto a Antônio

Conselheiro. Acompanhei com o olhar o rosário de linha e capelas brancas que subia a

serra e seguia por sua crista até o alto da Santa Cruz: “saindo da praça, a mais bela de suas

ruas – a via-sacra dos sertões”[2], que eu acabara de percorrer, subindo com Euclides da

Cunha e Antônio Conselheiro, e descendo com Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

“Bendengó Datação: sXX

Regionalismo: Brasil. 1 coisa imensa, pesadíssima 2 Regionalismo: Nordeste do Brasil. tipo de penteado (us. por mulheres ou homens)

Sinônimos/Variantes: bedengó, bendegó Etimologia: palavra dada como tapuia, que se crê significar ‘meteorito’ “[22]

Entrei na recepção do Museu do Sertão e dei de cara com o meteorito de Bendengó,

o maior já caído em território brasileiro. Claro, era uma réplica e estava sustentado por um

banquinho que poderia muito bem servir em um boteco. O que veio do céu encontra-se no

Museu Nacional do Rio de Janeiro, pesa 5,3 toneladas, tem dimensões de 2,15 m x 1,50 m x

0,66 m e é composto por 92% de ferro, 6% de níquel e o restante por mais alguns poucos

minerais. Meus olhos observavam esses dados em um pequeno quadro na parede, mas o

meteorito de Bendengó levantava voo e me transportava para o ano de 1968, quando caiu

abruptamente sobre mim pelas palavras vertiginosas do professor Paulo, da Geografia, em

Brasília. Só havia um nome que o empolgava ainda mais: Delmiro Gouveia, e sua luta pela

indústria nacional que resultou em seu assassinato pela inglesa Machine Cotton, fabricante

das Linhas Corrente, conforme sua dura convicção. Eram os únicos e gloriosos momentos

em que suas trêmulas mãos etílicas passavam a vibrar de exaltação e indignação. Mais de

quarenta anos depois de suas vibrantes aulas, em um museu do sertão, nas proximidades

de Bendengó, da cachoeira de Paulo Afonso que abrigou a fábrica da Pedra, e da cidade de

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nome Delmiro Gouveia, eu ainda podia ouvir silvos de meteoritos que caíam e apitos que

chamavam ao trabalho, lançados pela força do professor Paulo ao éter de nossa memória.

Passei por sertanejos em grandes painéis que ocupavam toda a parede – o horror,

suas feições expressavam – e segui entre utensílios cotidianos, cerâmicas e outros objetos

de muitos povos do sertão, além de um surpreendente violão de Alceu Valença, até chegar

à sala dedicada à guerra de Canudos. Armas, munições, fardas, apetrechos e, nas paredes,

imagens feitas por Flávio de Barros, fotógrafo que chegou a Canudos nos últimos dias da

guerra, tudo envelhecia em silêncio. Suas fotografias nos tornavam testemunhas do que

ficou visível do massacre. Uma, em particular, podia perfeitamente receber como legenda a

identificação de um campo qualquer de refugiados de catástrofes naturais ou políticas do

século vinte e um, em um país pobre. Sentada no chão e cercada pelas tropas, “uma legião

desarmada, mutilada, faminta e claudicante”[2] formada por mulheres, crianças, velhos e

doentes do Belo Monte representava o único grupo de prisioneiros de guerra em poder do

exército nacional em toda a campanha de Canudos. Mas eles não foram capturados, vieram

seguindo um trapo por bandeira branca. “O Beatinho voltou (...) seguido de umas trezentas

mulheres e crianças e meia dúzia de velhos imprestáveis. (...) Dera – quem sabe? – um golpe

de mestre. (...) Do mesmo passo poupara às chamas e às balas tantos entes miserandos e

aliviara o resto dos companheiros daqueles trambolhos prejudiciais.”[2] O olhar daquelas

criaturas, capturadas na fotografia de nome Mulheres e crianças, prisioneiras da guerra,

acompanhou-me quando deixei a sala e voltei para a recepção do museu.

Lá, uma moça falava de coisas da terra e um rapaz, de coisas do céu. Ela me dizia

que gostaria de morar e trabalhar em São Paulo como tantas pessoas da região que vão

para lá, muitas vezes sem sequer conhecerem Salvador. Ele me dizia que a serra de Monte

Santo era sagrada e estava cheia de água, e que não se podia tirar nem uma pedra do seu

lugar porque ia vazar sem parar e inundar a cidade toda. E ela ria e dizia: “Vai descer toda

essa água da serra...” E ele abria bem os olhos e explicava: “Vieram uns americanos tirar

ouro da serra e não deixaram por causa disso!” E ela ria ainda mais e exclamava: “Então, vai

inundar todo esse sertão aí para baixo!” E ele arregalava os olhos e me dizia: “Onde o senhor

passou, lá em cima, tinha uma bacia de pedra que sempre brotava água; um dia, uma mulher

agachou e fez xixi lá – nunca mais deu água!” E ela ria: “É assim que o sertão vai virar mar!”

E ele dizia: “Não se brinca com as coisas de Deus!” E ela ria. E eu ficava entre o céu e a terra

na companhia daqueles jovens do museu do sertão, subindo e descendo, quando Euclides

da Cunha interveio, falando de Monte Santo: “De fato, a vila – erecta no sopé da serrania de

onde promana a única fonte perene da redondeza – contrasta, insulada, com a esterilidade

ambiente.”[2] Deixei o museu e caminhei alguns metros pela mesma rua em direção à serra,

que empinava subitamente. Ali, a água brotava – entre o céu e a terra.

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Entrei no labirinto pela praça e fui em direção ao cemitério, de acordo com o que

tinha visto do alto da Santa Cruz: agora, eu era o observador e aquele que era observado.

Saí em busca da escola depois de passar pelos muros brancos e via lá de cima que estava

indo no rumo certo por aquela rua reta. Depois – e agora não tinha muita nitidez na visão

aérea – entrei por uma rua que fazia uma curva suave, onde cruzei com a companheira do

ônibus do Cumbe, Sandra. A surpresa foi mútua ao nos reencontrarmos aqui, assim, como

ela comentou. Prosseguindo por mais algumas quadras e ruas chegamos – aquele que via e

aquele que era visto – ao que parecia ser o final da cidade. Naquele lugar, três homens que

trabalhavam no encanamento da rua confirmaram que ali era a saída para Poço Dantas. No

mesmo instante, lá do alto da Santa Cruz eu disse a mim mesmo ali em baixo que tinha

encontrado a saída do labirinto. Mas labirintos possuem muitos caminhos, e na volta fiz o

meu próprio para que pudesse sair de Monte Santo na manhã seguinte sem vacilações. Na

segunda quadra, um homem sentado em frente a sua casa contemplava o final da tarde.

Tinha vivido por quase cinquenta anos em São Bernardo do Campo e trabalhado como

metalúrgico, levara muitos parentes e amigos para lá e voltara enfim para sua cidade. E

agora conservava, com orgulho, na parede frontal de sua casa, por mais de um ano, um

cartaz da última campanha eleitoral: uma foto de Dilma Rousseff com Lula de um lado e

Jaques Wagner de outro, apresentados como Três Irmãos de Fé.

“Terras grandes – frase vaga com que os matutos (...) abrangem o Rio de Janeiro, a

Bahia, Roma e Jerusalém – que idealizam próximas umas de outras e muito afastadas do

sertão.”[2] O que a moça do museu tinha vontade de fazer – enfrentar as terras grandes – ele

fizera em quase meio século de vida no ABC paulista. E no caminho de volta para a praça

lembrei-me de uma gritaria que ouvira na rodoviária de Juazeiro: o porteiro dos sanitários

e um vendedor que armava sua banca ao lado gesticulavam, avançavam um em direção ao

outro e se afastavam, seguidas vezes. Só então entendi que não era uma briga, mas uma

discussão que parecia decidir o destino de cada um: suas vidas dependiam do resultado do

futebol, mas esse bate-boca não se referia a um clube de Juazeiro e nem mesmo da Bahia.

Tratava-se do Vasco da Gama carioca, que acabava encarnando um longínquo apelo que se

derramava pelas barrancas do rio São Francisco e pelo mais árido sertão. A paixão pelo

futebol vinha do Rio de Janeiro tanto quanto a esperança de trabalho levava a São Paulo,

ambas pelo caminho que apontava para as terras grandes. De volta à praça, vi que a subida

da Santa Cruz já estava iluminada. O Conselheiro não olhava para as luzes e nem tampouco

em direção a Canudos, mas parecia brandir a cruz do Bom Jesus na direção sudeste, no

rumo das terras grandes, de onde chegavam os invasores. “E por transformar lobos em

ovelhas, porque deu razões para mudar de vida a uma gente que só conhecia o medo e o ódio,

a fome, o crime e a pilhagem, por espiritualizar a brutalidade destas terras, mandam contra

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Canudos exércitos e mais exércitos, para que os exterminem.”[13] Sentei-me novamente na

praça, junto a Antônio Conselheiro, e fiquei olhando o largo por onde passaram milhares e

milhares de soldados, por muitos e muitos dias e noites, chegando e partindo. Na manhã

seguinte, seria a minha vez de partir. No alto do Piquaraçá, ao final do caminho ascendente

de luz, a Santa Cruz testemunhava.

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Comissão de Engenharia da Quarta Expedição 1897 – (1)

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“Se não fosse a feira eu ia com você.” Zué já estava a postos às seis horas. Era o dia

da semana que vivia por inteiro, ouvindo e falando a pessoas de todos os lugares da região,

circulando pelo meio das bancas espalhadas pela praça, recebendo e passando notícias em

uma teia de comunicação que abarcava tudo o que realmente interessava a toda a gente. O

mais vivo dos dias, o mais aguardado durante todos os outros, cuja movimentação inicial

eu tinha ouvido durante a madrugada e confirmara sua presença ao atravessar a praça

ainda escura para tomar o café na padaria. Lá, complementei com bolo e pão com queijo os

mantimentos que comprara na tarde anterior no mercado, ao final de um leve passeio pelo

entorno da praça: maçã, banana, torrada, pão de mel, uma bebida isotônica e três litros de

água. Levava também minha reserva permanente de castanhas e frutas secas, e farinha

solúvel feita de extrato de soja, levedo de cerveja e cacau. Saía carregado assim por não

saber o que encontraria na caminhada pelo sertão até Bendengó, uma distância estimada

por Roberto Dantas em setenta e dois a setenta e oito quilômetros, que esperava percorrer

em dois dias. Zué disse que eu certamente encontraria umas parentadas suas no caminho,

o que era um motivo a mais para ele lamentar não poder ir comigo; e deu-me o número de

seu telefone para o caso de eu precisar de alguma ajuda. Agradeci mais uma vez e despedi-

me sentindo que ele realmente teria gostado de ir. A finíssima garoa que revoara de leste

precedendo o sol, que eu vira na última visão pela janela da pousada, já nem chegava até

nós depois de uma breve existência. Ela viera e cobrira a cidade, umedecera levemente as

encostas do Piquaraçá e desaparecera deixando na manhã um quase nada de cheiro de

terra molhada. Tomei como um bom augúrio para a jornada que se abria – incomensurável

– a minha frente.

Em vinte minutos deixei as últimas casas de Monte Santo e tomei a estrada de terra

que levava para Poço Dantas. Outro Dantas, Roberto, já me tinha dito que as tropas não

deixaram a cidade por esse caminho, mas por Trapagó e Acaru, e por suas informações eu

sabia que me encontraria com a rota dos soldados mais adiante, em Caldeirão Grande. Eu

tinha a estrada só para mim, mas logo comecei a cruzar com muitas motos que iam para a

cidade, carregando duas pessoas em sua maioria, havendo uma que puxava uma pequena

carreta com objetos, talvez levando para a feira. No ar ainda fresco da manhã eu olhava

seguidas vezes para trás para ver o Piquaraçá ficando sempre menor, e desaparecendo por

breves momentos em alguma curva com alguma vegetação que crescia, mas quase sempre

me acompanhando do alto da Santa Cruz. E no meio de macambiras que se multiplicavam,

conversei apenas com dois rapazes que refaziam uma cerca e com o motorista de um

caminhão que parara para oferecer carona. A estrada tinha trechos com cascalho miúdo

que prendia um pouco os passos, mas seguia andando bem e, em mais ou menos uma hora

após deixar a praça de Monte Santo, passei por Poço Dantas. Em uma das poucas casas que

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avistei confirmei com uma jovem o nome do lugar, e o do próximo. Em mais uns cinquenta

minutos passei por um sítio e, desconfiando que poderia ser ali, gritei da estrada para um

homem que fazia uma capina nos fundos do terreno: sim, ali era Xiquexique.

“Depois da escola você quebra à direita”, tinha dito Zué. Escola, que escola? Andei

mais um bocado até que a avistei, mas não havia sinal de saídas pelo lado direito. Depois

de mais dez minutos de marcha cautelosa cheguei a uma curva da estrada para a esquerda,

da qual saía uma vereda em tangente acompanhando uma cerca. Na dúvida, tirei a mochila

e esperei. A experiência de caminhadas por lugares ermos me atestava que, sempre que

precisamos de informações, quase sempre alguém ou sinal surgem como que por encanto,

por mais improvável que possa parecer. Nesse caso, não demorou mais que um minuto

para eu ver o segundo carro do dia, cujo motorista confirmou que era mesmo por ali que

se ia para Laje Grande dos Coelhos e Caldeirão Grande. Em meia hora andando através de

um relevo diferente das cercanias de Monte Santo, agora com pequenos morros fechando

o horizonte, passei por uma cancela. Esses morrecos separados por algumas centenas de

metros me faziam lembrar os ataques instantâneos que os jagunços lançavam contra as

tropas, embora isso se tenha dado com frequência mais à frente, nas serras próximas a

Canudos. Em mais três quartos de hora atingi outra cancela, à direita, em uma bifurcação

junto a uma pequena represa e uma construção aparentemente abandonada. Dessa vez

esperei pouco mais de dois minutos, inspecionando o local, até ouvir um barulho de moto

que chegava. Corri para me informar, mas nem era preciso porque o motoqueiro esperava

o carona urinar depois de abrir a cancela. Sim, eles vinham da Laje dos Coelhos. Demorei

uns quarenta minutos até chegar a umas casas junto a uma grande pedra do lado esquerdo

da estrada, que imaginei que fosse a tal laje, onde um menino disse que da pedra da Testa

Branca dava para ver a fazenda Caldeirão Grande. Com efeito, após dez minutos cruzei

uma cancela e vi, à esquerda, um morro que terminava abruptamente em uma imensa e

larga pedra esbranquiçada voltada para a estrada; e à direita, a uma distância talvez entre

dois e três quilômetros, o que pareciam ser ruínas da fazenda onde acamparam as tropas.

Eu voltava a cruzar com elas, com seu caminho assinalado, algumas horas depois de deixar

Monte Santo.

“Decampando de Monte Santo, (...) gastando três dias para percorrer três léguas,

chegou o canhão retardatário ao Caldeirão Grande.”[2] Claro, eu seguia leve por estradas

desimpedidas, com mochila de menos de dez quilos, enquanto a comissão de engenharia

da quarta expedição tinha de abrir caminho na caatinga para arrastar os 1.700 quilos do

“aterrador 32, que por si só requeria estrada de rodagem, consolidada e firme.”[2] Seu Dino

tinha dito que no Caldeirão Grande as tropas ficaram sob os cuidados do coronel Dedé, e

esclarecera: “Coronel de patente comprada, como era de costume.” E dissera também que a

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artilharia treinava disparando tiros de canhão contra a pedra da Testa Branca, em frente à

qual eu deveria passar por cima da barragem de uma represa. Parei no meio da travessia

para ver se conseguia distinguir algum sinal de bombardeio sofrido pela rocha, mas o que

acabei apreciando foi uma composição de flores silvestres lilases em primeiro plano, bem

próximas a mim, seguidas pela água da represa, gramíneas verdes e amarelas na outra

margem, uma árvore verde, caatinga seca e, por fim, um cinturão esverdeado de árvores

abraçando com esmero o surgimento da imensa testa branca de dentro da terra do sertão.

A hora, 10:45. Depois segui adiante, em busca de minha próxima referência no caminho de

Canudos, recomendada por Roberto Dantas e confirmada por Zué da Bateria e seu Dino.

Demorei ainda mais de uma hora para chegar lá. O calor crescia e a água pouca que

via era esverdeada, estagnada em rasas poças que mostravam o que devia ser um regato

em outras épocas. À medida que prosseguia não encontrava mais sinais de água, apenas

cavas rasas que aguardavam as chuvas. De início contornava-as seguindo a vereda quase

apagada, mas depois passei a atravessá-las por dentro, indo direto em direção à fazenda

que avistava ao longe. O que eu via: áreas de pastagens, secas, divididas por cercas; um

curral e duas casas, a maior no meio; cavaleiro tangendo gado, à direita; movimentação no

curral, de animais e gente; porteira que eu abria; leve subida para chegar às construções;

cachorro na casa da direita me mirando e latindo; última cerca antes das casas; cachorro

mais amistoso ao meu falar; e uma moça que apareceu na varanda. Ela conversou com o

cachorro e me convidou a chegar e sentar no banco à sombra. A ela citei alguns nomes:

Valfredo, o proprietário; Zequinha, o gerente; Roberto Dantas, o professor da UNEB; Zué, o

da Bateria; seu Dino, o pai. Sim, eu tinha realmente chegado à fazenda Sagarana.

Da mesma forma como se movimentava no largo espaço circular do sertão, a jovem

Eliete foi para São Paulo e se sentiu à vontade circulando por ruas cheias de quinas e em

ônibus e vagões apertados de gente. Nos quatro meses que passou lá, para admiração de

parentes, saía pela cidade grande e se orientava sem vacilações nas conduções e saídas de

estações. Gostou muito e sonhava um dia voltar lá – mas de avião. Minha atenção decolou e

pousou em um ônibus que seguia de Montes Claros para Januária, onde um jovem dizia,

como quem revelava descobertas, que uma viagem de avião para São Paulo não custava

mais que de ônibus. Nos sertões de Minas e Bahia, em inesperados momentos, eu ouvia

jovens falando com a pressa de seus sonhos. E eu estava ali, em outro espaço e tempo,

viajando de ônibus e a pé. Eliete entrou para ajudar a mãe e eu fiquei sentado na varanda,

a mochila no banco e o cachorro a meus pés, olhando e tentando imaginar por onde teriam

passado as tropas da quarta expedição rumo ao próximo acampamento. “Prosseguiria na

manhã subsequente para a Gitirana, distante oito quilômetros da estação anterior, com a

mesma marcha fatigante e remorada.”[2] O caminho para a fazenda Gitirana: era o que eu

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queria perguntar a Valfredo ou Zequinha, os que tinham sido citados por Roberto Dantas e

a quem ainda não pudera ver.

Dona Alice apareceu na varanda e disse para esperar um pouco, pois desde as dez e

meia eles estavam em negociações com um comprador de gado. O patrão chegara de Feira

de Santana pela manhã e desde então estavam por conta dessa venda, mas achava que a

coisa devia terminar pela hora do almoço. Ela era prima de seu Dino e comentou que às

vezes ele ia para Monte Santo, mas ficava quase o tempo todo em sua casa, ali pela Laje e

Caldeirão. Era a confirmação das palavras de Zué quanto a eu encontrar suas parentadas

no caminho que ia passar, sem contar algumas pessoas com quem cruzei e que também

podiam ser. Não demorou muito para Zequinha aparecer, mas a notícia que ele trazia era

que o negócio ia continuar durante o almoço. Dona Alice e Eliete se apressaram em servir a

refeição na casa principal enquanto Zequinha e eu nos sentávamos à mesa em sua casa,

convidado que tinha sido para almoçar com a família. Inesperado e agradável almoço, com

rapadura por sobremesa. De vez em quando, Eliete saía correndo para ver se estava tudo

bem no outro almoço. O professor Roberto Dantas sempre passava pela região, conforme

lembrança de Zequinha, que também me deu as informações que eu buscava para seguir

no rumo da Gitirana e do Juá. Outra coisa que pensava era reabastecer meu cantil ali, mas

nem cheguei a mencionar isso porque soube durante a refeição que a água que usavam era

trazida por Valfredo de uma bica quando vinha de Feira. Ao me despedir agradeci a eles

pela acolhida e pelo almoço, ao que dona Alice disse sorrindo: “Não foi nada, só cumprimos

nossa obrigação.” Pedi-lhes que também estendesse a Valfredo os meus agradecimentos.

Zequinha acompanhou-me até a ponta da varanda e indicou um atalho para que eu não

tivesse de voltar para pegar a estrada. “Depois, é só seguir o caminho da plaina.” De uma

cancela antes de começar a subir uma colina, olhei para trás: seu vulto alto, magro e forte

na sombra da varanda se destacava contra o brilho do calor do começo de tarde no sertão.

O gerente era Zequinha, mas era grandão; a fazenda era Sagarana, mas ele fazia lembrar

era Manuelzão.

Deixei a trilha no ponto onde estava parado o trator. Ele tinha vindo da divisa com

o município de Canudos raspando o que era caminho e, em alguns trechos, redescobrindo

a estrada. Caminhei durante pouco mais de uma hora por dentro de uma caatinga cerrada

na qual apareciam constantemente, à beira da estreita estrada, macambiras, palmatórias

do diabo e outras cactaceae. De repente, em uma cancela, o mundo se abriu e me vi em um

imenso descampado. Virei à esquerda acompanhando o caminho da plaina, que em alguns

pedaços desistira de nivelar as voçorocas que tinham tomado o lugar da estrada e fizera

desvios mudando seu traçado. Era mais uma área de caatinga derrubada para a criação de

pastagens, pois além da cerca a minha esquerda ela continuava tão fechada como por onde

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eu tinha acabado de passar. Na quarta expedição contra Canudos, estando em Gitirana, “a

artilharia imobilizava-se nesta última escala aguardando que a comissão de engenheiros

ultimasse a abertura de picadas e trabalhos de sapa.”[2] E ao chegar a uma elevação onde

havia um paiol, dentro do qual um cachorro latia como quem pedia para ser solto, avistei a

fazenda Gitirana. Parei junto ao prédio para fugir um pouco do calor enquanto falava com

o cachorro. Da primeira até a segunda cancela foram mais trinta minutos de calor pelo

descampado; virei à esquerda e em dez minutos passei pela entrada da fazenda, onde um

vaqueiro que galopava atrás de um cavalo teimoso confirmou ser ali a Gitirana. Sim, a

partir de agora eu podia tentar chegar até a minha próxima referência. “... o comandante-

geral seguia rapidamente naquele dia chegando em pouco tempo com a vanguarda a Juá,

7.600 metros além de Gitirana.”[2]

A impressão geral agora era de leve e contínua descida pelo descampado que devia

abrigar, há pouco mais de um século, forte caatinga. O trator havia traçado a estrada com

suaves e irregulares curvas de onde pude avistar, ainda de meio alto, algumas casas de um

povoado à direita, lá embaixo. Em meia hora após a Gitirana atingi, já na baixada, o final do

caminho, que desembocava perpendicularmente em outra estrada. Como minha sombra

chegou diretamente antes de mim na encruzilhada, concluí que para a direita devia ficar o

sul, para o lado que tinha visto as casinhas. Virei à esquerda e em vinte minutos vi que me

aproximava de algumas casas. Antes de chegar, porém, ouvi à direita, dentro de uma densa

mata de caatinga, sons de chocalhos. Parei e fiquei escutando, lembrando-me do episódio

em que o exército invasor de Canudos ficara encurralado na Favela, com comida esgotada

e tendo de caçar gado e cabritos desgarrados e saquear roças de milho ou mandioca para

tentar sobreviver, à espera dos comboios que não chegavam: “... o valente faminto dava

tento, afinal, de um ressoar de cincerros (...) a um lado, nos recessos da caatinga, em vez do

animal arisco, negaceava, sinistro e traiçoeiro, procurando-o por sua vez, o jagunço.”[2] Mas

não era um jagunço que ouvi, depois, chamando os bodes também de dentro da caatinga.

Gritei pedindo informação para chegar ao Juá. “Você está subindo ou descendo?” Como não

sabia suas referências de subir ou descer, respondi: “Você está a minha direita, o sol está a

minha esquerda; estou indo para o norte!” Depois de um breve tempo se posicionando no

universo, ele gritou de volta: “Está certo, é por aí mesmo!” Na Vargem Comprida, que assim

se chamava aquele grupo de casas que alcancei em seguida, havia o bar do Dão, que estava

fechado. Soube que só abria nos fins de semana, mas que no Juá, a uns cinco quilômetros

adiante, havia dois ou três bares. Uma hora batida, pensei, e me sentei à beira do caminho

para comer o último pedaço de bolo. Do outro lado, uma pequena plantação estava sob os

cuidados de um espantalho engalanado com uma camisa branca de mangas compridas. “À

margem esquerda do caminho, erguido num tronco – feito um cabide em que estivesse

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dependurado um fardamento velho – o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços

pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas... Jaziam-lhe aos pés o crânio e as

botas.”[2] E o boneco que eu olhava era feito apenas da cintura para cima, como se alguém

tivesse sido cortado ao meio e – com sua roupa amarelecida pela suave luz das cinco horas

– estava pendurado em um galho seco, girando lentamente com a aragem do fim de tarde.

Achei que o bolo pudesse ter azedado.

Alcancei o Juá com as últimas luzes do dia e fui direto para o primeiro bar. Um jogo

de sinuca estava sendo disputado na penumbra e a plateia, constituída por meia dúzia de

homens e crianças, aumentou sobremaneira com a minha chegada. Naturalmente, passei a

ser a atração principal ali, motivo de curiosidade de todos e em especial das crianças. Fiz

minha apresentação e disse ter vindo de Monte Santo a pé seguindo um mapa que o Zué da

Bateria tinha feito para mim. Ouvi um murmúrio que me soou como de certo alívio e vi que

ele era conhecido ali, o que me tornava também não tão inconcebível. Um rapaz exclamou:

“São oito léguas!” Claro, ele não devia se referir a léguas de tabaréu, mas contemporizei:

“Mas saí bem cedo, pelas seis da manhã.” Na falta de água pedi um refrigerante, que estava

morno porque ali não havia energia elétrica. Iluminei a mesa com minha lanterna e assim

Valdemar e Zé de Penedo – eu saberia depois seus nomes – puderam terminar sua partida

de sinuca. Expliquei que pretendia seguir no dia seguinte para Bendengó e necessitava

dormir aquela noite no Juá; e que, como achava que não devia haver pensão ou pousada

ali, queria saber se poderia dormir na escola que tinha visto no outro lado do largo. Houve

um silêncio em que todos se entreolharam, até que Valdemar, o dono do bar, falou que

achava que não tinha problema, mas que as chaves ficavam com a merendeira que morava

na Vargem Comprida, cinco quilômetros para trás. Eu lhes disse que de minha parte não

haveria problemas para me instalar na varanda da escola, pois trazia algumas coisas que

me permitiam encostar e dormir lá fora. Além dos mantimentos, minha mochila continha

um conjunto de equipamentos de pouso de emergência: lona, isolante térmico, saco de

bivaque e uma pequena manta. Zé de Penedo convidou então para ir ao pirão de peixe que

o pessoal estava fazendo no outro bar; podia ficar lá até tarde, e depois era só pular para a

escola, bem ao lado. Fui até a porta e olhei: no escuro, uma luz brilhava, intensa.

Atravessei o largo escuro e entrei no segundo bar. Uma grande tigela de alumínio

bem cheia me foi passada assim que retirei a mochila. Pedi que a esvaziassem pela metade

porque era muita coisa para a primeira rodada. Sentei-me encostado a uma parede e tive

de colocar a tigela de pirão no banco por estar quente demais – isso no sentido universal,

mas apenas morno, no baiano. Mas em pouco tempo eu já estava suando como nas horas

mais quentes da caminhada do dia, e disse-o àquele que me servira e que estava sentado a

meu lado. Era o Dão, aquele do bar da Vargem Comprida que encontrei fechado. Ele me

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disse que eu tivera sorte, ao contrário do que pensara, pois uma vez por semana ele vinha

para o Juá fazer o pirão. Concordei, enquanto ele me servia mais um pouco. Havia cerca de

uma dúzia de comensais espalhados pelos bancos e cadeiras, encostados no balcão ou

circulando com pratos e tigelas na mão. Depois que a grande panela estava vazia e todos

tinham terminado de comer, os utensílios foram recolhidos e desapareceram no escuro:

acho que devia haver um esquema já consagrado de limpeza do material utilizado em seus

encontros semanais. Prossegui tomando refrigerantes, desta vez gelados, tentando repor o

relativamente pouco líquido que tomara durante o dia. E como é que só ali havia energia

elétrica? João do Bar mostrou a geladeira que funcionava com gás e um rapaz disse que a

iluminação vinha das placas de energia solar no telhado. Como a linha de energia elétrica

não tinha chegado até o Juá, havia um programa de implantação de baterias solares. Não

era uma luz muito clara, mas na escuridão do sertão iluminava o bastante.

Assim, acolhido e alimentado, eu falava para uma plateia silenciosa e atenta sobre a

minha caminhada para Bendengó e dos caminhos possíveis a partir dali, indo pela estrada

do Rosário ou pela do Calumbi. Então eles me informaram que a do Rosário era só seguir

reto na estrada que eu tinha chegado antes de virar à esquerda e entrar no Juá, até chegar

na BR e virar à esquerda, e andar quase vinte quilômetros no asfalto até Bendengó. A do

Calumbi era mais perto e pegava só uns nove quilômetros de asfalto, o que me fez decidir

definitivamente por esta. “Partia de Juá, onde bifurcava com a do Rosário, derivando à

esquerda desta no rumo certo do norte...”[2] Falei também do papel da localização do Juá no

movimento das tropas na guerra de Canudos; da passagem de Euclides da Cunha por ali;

da importância de não se esquecer da história e do sonho do Belo Monte de Antônio

Conselheiro; e da retomada do interesse pelo acontecido na região com novos estudos de

muitos pesquisadores, entre eles o professor Roberto Dantas, da Universidade do Estado

da Bahia. Não sei se faziam ideia do que eu falava, e eles apenas me olhavam em silêncio.

De repente, quase todos se levantaram, saíram do bar e foram confabular do lado de fora,

no escuro. Ficamos ali apenas o João do outro lado do balcão, dois ou três sentados e eu.

Continuamos a conversar um tempo, até que o bar ficou novamente cheio e em silêncio.

Então, um rapaz – que depois eu soube ser o João de Euclides – dirigiu-se a mim do outro

lado da sala: “Amigo, você não vai dormir no relento! Vai ficar na casa aqui do João do Lalau,

que vai receber você sem nenhum problema!” O terceiro João confirmou. E quando aceitei e

agradeci, o bar voltou a ser mais um bar em mais uma noite no sertão.

O caminho para a casa de João do Lalau era mais escuro para mim com lanterna do

que para ele sem nenhuma luz, naturalmente. “Aqui é a estrada que você vai pegar amanhã

para o Calumbi”, disse ele a certa altura da caminhada de alguns minutos. Consegui achar,

e olhei para trás na tentativa de me localizar: lá estava o bar, a única luz na escuridão além

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da minha lanterna – estrada entre o bar e a casa, era o que eu registrava mentalmente. E

no céu havia luz, mas não era da lua; era das estrelas que guiavam João até sua casa. Com

uma lamparina a querosene ele me mostrou o quarto onde dormiria; o outro era o seu e o

terceiro, de sua filha. Ela pegara suas coisas e fora dormir na casa da mãe ao saber que ele

iria até o bar ver o desconhecido que chegara. “Você não vai abrir a porta de casa para um

estranho, não é?”, ela perguntara. Ele respondera que ia decidir depois de ver, pois “a gente

só sente como é uma pessoa, no olhar.” Senti que isso confirmava a minha impressão de que

estava sendo avaliado por todas aquelas pessoas o tempo todo, desde o momento em que

cheguei ao primeiro bar. Não somente pelo que eu dizia ou aparentava, mas em especial

por minha presença, vista por eles, sentia que fora aprovado, aceito e acolhido sem que

sequer me perguntassem o nome. Desculpei-me pelo transtorno que lhe causara em casa,

mas ele disse que a filha dormia tanto ali como na mãe, dependendo da vontade dela.

Ao chegar a sua casa eu tinha percebido algo esbranquiçado ao lado, e ao lançar a

luz da lanterna vi que era uma cisterna de captação de água de chuva. E ao ver, dentro de

casa, um barril cheio e uma caneca especialmente reservada para pegar aquela água limpa

e colocar em copos e outros recipientes, senti um calor de familiaridade que irradiava dali,

transbordava e me transportava até o sertão do norte de Minas, até Janaúba, até o bairro

da Barroquinha, até as famílias contempladas com cisternas similares – até a expressão de

gratidão de Ana e Noel. Tantos dias, tanta distância, tanto sertão: água, a venerada água. E

ao me deitar rendi e paguei tributos a ela: por conservá-la o mais possível em meu cantil e

por trocá-la por refrigerantes disponíveis nos fundos sertões. Eu tinha me acostumado

nesses últimos dias a comer angu e cuscuz de milho nos sertões de Minas e Bahia, mas por

não ter o hábito de tomar refrigerantes demorei muitas horas para cair no sono reparador

de um dia bem puxado. Mas não penoso – do amanhecer em Monte Santo ao anoitecer no

Juá, com suas estrelas que faziam sonhar sem dormir. E enquanto eu tentava dormir, por

aqui passava Euclides da Cunha iluminado por essas mesmas estrelas. “Quando nos vamos

pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos, encantados, que só podemos

caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados...”[23]

*

Despertei o relógio às cinco horas dizendo-lhe que não me precisava acordar. João

já se movimentava no outro quarto, preparando-se para mais um dia de trabalho. Ele ia

andar um bocado até chegar lá, atrás de uma serra que me mostrou para os lados do fundo

de sua casa, depois de uma larga caatinga seca. Eu segui para o outro lado, para o norte,

após mais um agradecimento e um abraço. Era cinco e meia e já estava claro, anunciando

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um dia mais quente que o anterior, e logo cruzei com uma família que me confirmou que

era só seguir a estrada que chegaria a Penedo. Caminhava sem pressa por saber que esse

dia prometia uma distância menor, de acordo com informes convergentes que obtive de

várias pessoas. E em uma hora e meia cheguei a uma bifurcação onde havia um sítio, bem

no momento em que um homem saía de uma plantação de palmas. Informou ser melhor

pegar à direita embora os caminhos acabassem se encontrando mais à frente, sendo que o

outro dava uma volta bem maior. Convidou para chegar e tomar um café, mas agradeci e

disse que ia indo porque tinha ainda muito chão para andar, até Bendengó. Mais quarenta

e cinco minutos e cheguei a uma encruzilhada que, pela disposição aparente das coisas em

volta daquele ponto, considerei ser o reencontro dos caminhos depois da casa do homem

das palmas. Saí pela direita e mais adiante, em uma reta que sumia na caatinga, avistei lá

na frente uma cena inesperada: alguém parecia fazer acrobacias no galho de uma árvore

na beira da estrada, junto a um carro parado, como se fosse um trapezista de circo. Ao me

aproximar vi que era um casal que recolhia, com certa indolência, galhos secos para usar

no fogão. Existia um carro, afinal de contas, mas eles não tinham nenhuma aparência de se

dedicarem a estrepolias. Convidaram-me a passar na casa deles, na descida para Penedo,

do lado direito, onde tinha muitas crianças e cachorros. Lá adiante, olhei para trás: seriam

miragens de caatinga?

Em mais três quartos de hora cheguei a mais uma Penedo. A primeira que conheci

era uma bateria de cozinha; a segunda, reduto de colônia finlandesa aos pés do maciço de

Itatiaia, na serra da Mantiqueira, no vale do Paraíba fluminense, em nada se parecia com

essa, tão diferente de uma, quanto de outra. Em projeto de bar permanente que até então

funcionara apenas em feriados, um homem dizia ter confiança no negócio pois ali era um

ponto de passagem para Bendengó da Pedra, ou de Cima, como era chamado o local onde

caíra o meteorito. Mas minha surpresa maior foi saber que ele sabia de minha cidade, no

interior de São Paulo: “Sempre vejo a placa de Joanópolis quando vou com meu amigo de São

Paulo no sítio dele em Piracaia, encostado na divisa. Mas tem de ser com um 4 x 4.” Feito

miragens frutos de associações, passaram entre mim e ele dois personagens recorrentes

dessa jornada no sertão. De novembro de 1895 até setembro de 1896, um ano antes de

passar ali em direção a Canudos, “Euclides andou envolvido em orçamentos, fiscalizações e

estudos de terrenos destinados a várias obras públicas (...) em Atibaia, ocupado com a

construção de uma estrada entre essa cidade e Santo Antônio da Cachoeira.”[23] O homem do

bar não deveria saber, mas Santo Antônio da Cachoeira era o nome original de Piracaia; e,

claro, que por essa estrada administrada por Euclides da Cunha ele já passara algumas

vezes; e, muito menos, que eu a tenho utilizado com frequência nos últimos quinze anos. A

segunda figura que apareceu ali nasceu no vale do Paraíba paulista, em Pindamonhangaba,

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não muito distante de Piracaia, Joanópolis e da Penedo fluminense, e morreu na invasão de

Canudos, em março de 1897. Seu nome batizara uma estação de trem na terra natal, cujo

bairro em torno cresceu muito e virou um grande distrito, quase cidade, de nome Moreira

César. E então, nessa Penedo do sertão de Canudos, inesperadamente, eu evocava aquelas

minhas paradas diante de um supermercado, durante peregrinações no Caminho da Fé,

para me refrescar com frutas e sucos sentado na calçada e me perguntando se o nome do

lugar se referia ao comandante da terceira expedição contra Canudos, o Corta-cabeças.

E assim como haviam aparecido, Euclides da Cunha e Moreira Cesar desvaneceram

rapidamente de minha visão e cederam lugar ao major Febrônio de Brito, comandante da

segunda expedição, composta por quinhentos e sessenta homens, de janeiro de 1897. “De

sorte que na antemanhã seguinte, rumo firme, ao norte, a tropa prosseguiu para Penedo,

salva de uma posição dificílima. (...) Até Mulungu, duas léguas além de Penedo...”[2] Se não se

referiam exatamente ao mesmo lugar, pelo menos, essas nossas Penedo deviam ser apenas

uma só, aqui por essa região. Daqui as tropas seguiram em direção à serra do Cambaio,

enquanto eu seguia para os lados da do Calumbi. Mal tinha andado alguns quilômetros fui

alcançado por Zé de Penedo, o companheiro de pirão do Juá, que em sua moto levava um

bujão para comprar gás em Bendengó. Eu caminhava por uma suave e contínua descida

em direção às serras que via distante, e em uma hora cruzei o leito de um rio seco de uns

dez metros de largura, já na baixada. E em meia hora cheguei a um bar onde reencontrei

Zé de Penedo, jogando sinuca e já cheio de gás; ali, fiquei sabendo que o rio que eu tinha

cruzado era chamado de Salobo, e que quando chovia muito era preciso esperar as águas

baixarem para atravessá-lo. A promessa de um dia quente se cumpria plenamente quando

cheguei, meia hora depois, à BR 116. Era meio-dia e sentei-me em um banco à sombra

vazada de uma árvore na beira da estrada, sentindo o bafo ainda mais quente que vinha do

asfalto. Mais duas horas de caminhada e eu deveria chegar a Bendengó. Comi a última das

maçãs que me acompanhavam desde Monte Santo e saí pela esquerda, mantendo à direita,

eu imaginava, a serra do Calumbi.

Eu seguia por uma estrada que, se comparada aos caminhos que percorrera, podia

até ser vista como autopista. Não que tivesse muitas faixas para cada lado e nem acessos

limitados, mas é que eu não precisava me preocupar com orientações: bastava deixar-me

conduzir indolentemente por ela. “Naquelas paragens o meio-dia é mais silencioso e lúgubre

que a meia-noite (...) não havia ecos nos ares rarefeitos, irrespiráveis.”[2] Apenas o que eu

sentia naquele torpor eram ocasionais rajadas de ventos provocadas pelos caminhões. E

nessas condições, eu também me ausentava do asfalto e voltava para outros momentos do

dia, ou de outros dias, como aqueles em que fora acolhido ou convidado a casas sendo um

desconhecido. “Fiz minha obrigação”, dissera João do Lalau quando eu reiterara, de manhã,

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o desejo de retribuir de alguma forma pela sua hospitalidade. Dona Alice tinha sentenciado

com a mesma e serena determinação, horas e quilômetros antes, na fazenda Sagarana. E o

pessoal do pirão, ainda que não utilizasse essa palavra, acenou com o mesmo gesto ao me

alimentar e não me deixar no relento. Que obrigação é essa, de onde e como ela chegou a

toda essa gente? “Para todas as religiões antigas, um preceito para receber o estrangeiro

como pobre indivíduo à margem da lei e conceder-lhe hospitalidade. O estrangeiro está sob

particular proteção dos deuses.”[24] Para o homem que me convidara para chegar e tomar

um café, na primeira encruzilhada, e também para os catadores de lenha que me disseram

para passar em sua casa, onde havia crianças e cachorros, eu devia representar o portador

de mensagens desconhecidas do mundo lá de fora, especialmente pelo modo como viajava.

“A hospitalidade desempenha um papel de grande importância no cristianismo. (...) Para os

cristãos, a hospitalidade passa a ser amor por Cristo. Em pessoas desconhecidas encontram o

próprio Cristo e o acolhem em sua casa.”[24] Desconhecido em terra desconhecida, parti de

Monte Santo com a perspectiva de não achar alimentos e pouso em troca de pagamentos,

mas fui contemplado com almoço, jantar e hospedagem sem que precisasse pedir e – com

exceção dos refrigerantes, e a exemplo dos moradores do Belo Monte – sem usar dinheiro

da república. Tinham sido, sem dúvida, momentos muito especiais da travessia da terra

prometida através dos sertões de Canudos, nos quais até mesmo a preciosa água, de que

não me servi, estava disponível a quem tivesse sede.

Terminei essa brevíssima chautauqua de asfalto quando vi ao longe, no alto de uma

planura elevada, os primeiros sinais de Bendengó. Mais um pouco e cheguei ao restaurante

Belo Monte, cansado, com fome e sede, com um pouco de dor na lateral do pé esquerdo e

com o tornozelo direito um pouco manchado. Bastaram duas horas no asfalto para que as

coisas não fossem tão bem quanto em todo o período de um dia e meio nos caminhos de

terra. Mas com a farta refeição servida por Mané Travessa senti-me restaurado. “Fritei logo

dois ovos porque um só não dá para nada”, disse ele, sentando-se e me fazendo companhia.

Amigo de infância de Dedega Cordeiro, também me fora indicado pelo professor Roberto

Dantas, que informara que no povoado de Alto Alegre, nas margens do açude de Cocorobó,

perto de Canudos Velho, ele tinha edificado um museu com material histórico de Canudos.

Mané Travessa me disse que se eu quisesse ir até lá teria de continuar pela mesma estrada

ainda por uns dez quilômetros, e entrar à direita. Entre uma garfada e outra, descartei a

ideia por não querer andar mais pelo asfalto. Como alternativa, colocou suas instalações à

disposição para que eu pudesse tomar um banho, descansar e depois ir até lá de mototáxi.

Pela cara que devo ter feito, e sabendo de meu desejo de ir para Canudos novo, informou

que um ônibus que vinha de Feira de Santana passaria mais tarde ali no entroncamento. E

então permaneci ali mesmo, abrigado do sol do meio da tarde e olhando para o quadrante

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formado pelo cruzamento daquelas duas estradas. “Assim chegaram, ao fim de três horas de

marcha, a Bendegó de Baixo. Salvou-os a admirável posição desse lugar, breve planalto em

que se complana a estrada, permitindo mais eficazes recursos de defesa.”[2] Assim era a

retirada da expedição Febrônio que eu via chegando, aquela com que eu tinha cruzado em

Penedo na vinda e que agora vinha fugindo dos sertanejos de Antônio Conselheiro, depois

de batidos em “Tabuleirinhos, quase à orla do arraial.”[2] Seu Dino tinha dito que o primeiro

fogo se dera na lagoa do Sangue, como passou a ser chamada a lagoa do Cipó depois que as

suas águas se tingiram de vermelho com o sangue de centenas de mortos nesses combates.

“A expedição no outro dia, cedo, prosseguiu para Monte Santo. § Não havia um homem

válido.”[2] Então tinha sido naquela direção – em algum lugar qualquer de onde chegavam

aqueles sobreviventes da segunda expedição derrotada antes de alcançar Canudos – que

existira algum dia o Belo Monte, pelo qual eu vinha caminhando desde Monte Santo, desde

Queimadas a Cansanção, e antes, de ônibus, desde o sertão do norte de Minas.

“Eu tenho que acreditar no que a minha avó contava e não, no que vieram escrever

depois Euclides da Cunha e os outros.” A avó de Carlinho de Pepeda foi a única sobrevivente

da família depois da destruição de Canudos, e ali viviam desde muito antes da chegada de

Antônio Conselheiro com seguidores. Tinham seus roçados, suas criações e suas gerações,

mas perderam seus espaços, seus bens e, por fim, suas vidas. Fiel aos ensinamentos da avó,

Carlinho tinha posição contrária ao beato e a sua obra. “Como é que ia viver aquele mundo

de gente, amontoado na segunda maior cidade da Bahia? Ele era contra o imposto: pode-se

questionar o quanto se paga e como se utiliza, mas como é que uma sociedade pode viver sem

imposto? Há mais de dois mil anos os romanos já cobravam impostos!” E ele dizia que em

Canudos tinha uma parte do povo que era por Antônio Conselheiro, e outra era contra.

Pela paixão com que Carlinho falava, eu via que não existia uma terceira parte. Ainda nos

dias atuais ele não deixava ninguém indiferente, impregnava tanto admiradores quanto

detratores. Cruzar com alguém que tivesse uma relação pessoal com o Belo Monte – no

caso, Carlinho de Pepeda, através de sua avó – só ocorreu no quarto Canudos, para onde eu

viera de ônibus depois de sair do restaurante em Bendengó. O Canudos Velho, aquele do

museu de Mané Travessa, era o terceiro, surgido às margens do açude de Cocorobó e que

tinha como população as famílias de pescadores que trabalhavam nas águas da represa. Só

fui apreendendo essa multiplicidade de Canudos à medida que me aproximava do local da

origem de toda a história, mas eu sabia que ainda me faltava um bocado nessa contagem

regressiva.

E uma coisa que podia ajudar a lidar com essa sequência era o Memorial Antônio

Conselheiro, da UNEB, indicado que me fora por Roberto Dantas, situado a poucas quadras

do hotel de Carlinho. Corri para lá, mas já estava fechado. Fiz um reconhecimento da área

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central da cidade e, entre picolés de umbu fabricados na já distante Petrolina, decidi visitar

o Parque Estadual de Canudos no dia seguinte. Nos entremeios da história de sua vida de

metalúrgico por muitos anos em São Paulo, de seu retorno para assumir o encargo de sua

mãe – lembrei que Mané Travessa tinha se referido à pensão de Pepeda – e da metalúrgica

que montou na cidade, Carlinho me deu duas alternativas de visita ao parque: de mototáxi

ou tomar o ônibus para Feira de Santana às seis horas da manhã, descer na entrada, andar

quatro quilômetros e cerca de mais dois lá, e depois voltar até a estrada e esperar por um

ônibus que passasse para Canudos. Não existia ônibus da prefeitura para o parque porque

não havia passageiros, e além do mais, dizia ele, quem é que ganhava dinheiro com essa

história? “Eram escritores... pesquisadores...”, ia enumerando. “... Donos de hotel...”, sugeri,

lembrando-lhe que eu deveria desocupar o aposento dali a dois dias porque ia chegar um

ônibus lotado de estudantes de Feira de Santana. “... Sim, o turismo também...” E Carlinho se

entusiasmou com o assunto, saiu da sala e voltou em seguida com um objeto que, com um

brilho nos olhos, me colocou nas mãos. O que me espantou foi o peso inesperado daquilo:

“quatro quilos!” Devia ter cerca de vinte centímetros de altura, umas duas polegadas de

diâmetro e o formato de uma bala de arma. Estava intacta. “Bala da Matadeira!”, disse ele,

olhando-me e sorrindo. E tudo isso por causa de um homem, pensei, por causa de Antônio

Conselheiro, contra quem foram feitas quatro expedições militares que, por fim, lograram

destruir os primeiros sonhadores do sonho da terra prometida do Belo Monte. “Haverá

quatro fogos. Os três primeiros serão meus; o quarto, eu entrego nas mãos do Bom Jesus.”[25]

Devolvi aquela bala de canhão que não explodiu, que não espalhou ainda mais a morte – a

que fora entregue nas mãos do Bom Jesus – e preparei-me para dormir, finalmente, em um

dos multiplicantes Canudos.

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Comissão de Engenharia da Quarta Expedição 1897 – (2)

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“Era o alto da Favela.”[2]

Cheguei ao alto da Favela em vinte e cinco de setembro de dois mil e onze, cento e

quatorze anos e nove dias depois de Euclides da Cunha. “... E vingando a última encosta

divisamos subitamente, adiante, o arraial imenso de Canudos. § Refreei o cavalo e olhei em

torno.”[16] As visões que se mostraram a ele e a mim, subitamente, diferiam não apenas pela

distância que separava as nossas posições de chegada, nem pelas situações de guerra e de

paz, e nem pelo tempo decorrido entre o final do século dezenove e o início do vinte e um,

mas sobretudo pela então existência do arraial de Canudos abrigado no seu sertão, por um

lado, em contraponto à inexistência, agora, tanto do Belo Monte quanto do sertão protetor.

“ ... Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão; então o sertão virará praia e

a praia virará sertão.”[2] O que eu via era um mar, a represa de Cocorobó: a profecia, enfim,

cumprida. Ajeitei a mochila e olhei em torno. “Olhando para a direita, avultam as cumeadas

da Canabrava, Poços de Cima e Cocorobó, ligando-se à esquerda com as do Calumbi, Cambaio

e Caipã.”[16] Estavam lá, as serras no horizonte, convergindo nossos olhares, ele no alto da

trincheira Sete de Setembro e eu, no da Favela. Se diferenças havia, eram imperceptíveis à

distância. Mas se para ele o arraial “alevanta-se sobre oito ou nove colinas, suavemente

arredondadas umas, terminando outras em rampas fortíssimas”[16], o que eu podia ver era

apenas uma superfície plana e calma achatando e fazendo desaparecer aquelas colinas sob

as águas. Era o dilúvio universal no sertão. “Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí

será o fim do mundo.”[2] Com efeito, muitos anos antes das águas houve uma grande chuva

de fogo, saindo dos canhões e das tochas e caindo sobre o casario do Belo Monte, enquanto

soldados do exército da república queimavam tudo e presenciavam cenários de “mulheres

precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos...”[2] Do

alto da Favela, eu olhava e tentava imaginar como teria sido sentar-me aqui e ver a vida

acontecendo lá embaixo, mas a água da represa era uma barreira na qual eu ricocheteava e

saltava longe, e não conseguia mergulhar e alcançar Canudos. Primeiro pelo fogo, e depois

pela água. “Em 1900 se apagarão as luzes.”[2] Aqui, o fim do mundo chegou antes da hora.

Eu tinha passado por um vale antes de chegar ao alto da Favela. Um pequeno vale,

discreto. E para chegar até ali acordara cedo, cinco horas, como no dia anterior no Juá. O

homem da padaria me garantira que às 5:20 já estariam atendendo, mas vi que baianos de

Canudos não eram como baianos de Monte Santo. Um cliente habitual me ensinou a entrar

pela porta dos fundos e assim consegui comprar um lanche para levar e pegar o ônibus das

seis para Feira de Santana. Quinze minutos depois, já tinha descido na estrada e olhava

para a entrada do Parque Estadual de Canudos, a algumas centenas de metros e ligada por

uma pista recente de asfalto que terminava como piche derramado sob o portal. No trevo e

ao longo da pista tinham sido plantadas mudas de árvores nativas que estavam protegidas

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por cercados cônicos da altura de um homem, feitos de feixes de galhos e troncos finos da

vegetação local. Após preencher o formulário de visitas e adquirir um livreto na portaria

sentei-me para tomar o café da manhã, pois teria uma boa caminhada pela frente debaixo

de um sol que ameaçava esquentar bastante. Passei pelo estacionamento cujas vagas eram

demarcadas por fileiras de pedras – que ficava logo após a entrada e até onde os feixes das

mudas me acompanhavam feito um comitê de recepção – e tomei a longa e reta estrada no

meio da caatinga que me conduziria ao local dos dois primeiros Canudos. Quase uma hora

depois, e tomando uma curva acentuada para a esquerda e um longo arco para a direita, a

estrada começou a descer suavemente. Até então eu vinha caminhando leve, no silêncio da

manhã de brisa intermitente e quase imperceptível, quando no meio da descida estaquei

de repente: senti que os pelos dos braços arrepiavam e cessava todo o movimento de ar, e

aí me dei conta do peso que o silêncio tomou ali. Absurdamente, pensei: “Bem, pelo menos

a nuca não arrepiou...” Movi-a devagar e olhei para uma colina adiante, onde aparecia a

parte de cima de um cruzeiro: era o alto da Favela. Continuei a descer, devagar, e quando

fiz uma suave curva, já embaixo, vi uma placa colorida no meio de um mundo cinza e

marrom, com letras brancas em fundo azul-celeste: Vale da Morte. Com marcadores em

verde, e em letras bem menores, estavam listados seus outros nomes: Vale Sinistro, Gruta

da Favela, Toca da Favela, Boca do Lobo. Não imaginava que passaria por aquele lugar

antes de chegar ao alto da Favela, mas certamente foram aquelas curvas que me levaram

inevitavelmente para a boca do lobo. “Este local (...) foi usado como cemitério durante a

expedição Artur Oscar e nele estão enterrados não só militares, mas, também, mulheres e

crianças, companheiras e filhos dos soldados.”[26] Olhei para o outro lado da estrada: as

fileiras de pedras do estacionamento do vale da morte pareciam demarcar jazigos.

Comecei a descer do alto da Favela pela estrada da esquerda, seguindo a indicação

de uma placa, e em poucos minutos o caminho levou-me a uma cancela. Segui com o olhar

a estrada que continuava do outro lado e vi, à distância, do lado esquerdo, uma casa que

parecia estar habitada, qual uma vivenda habitual de zona rural. Então acompanhei a cerca

pela direita até o alto de um pequeno morro – seguindo por um chão folheado de pedras e

coberto com arbustos miúdos e resistentes – de onde vi que o caminho que deveria tomar

era pela direita, desde lá de cima. Em pouco tempo já descia por ali e parei em frente a um

marco de concreto com um painel de Antônio Conselheiro, que confirmava que a via era “a

vereda sagrada de Maçacará – por onde seguia o Conselheiro nas suas peregrinações para o

sul.”[2] Continuei a descer, passando ao lado do alto do Mário e chegando à Fazenda Velha,

local da sede da antiga fazenda denominada Canudos. E para frente, havia ainda mais uma

extensão de terra que não fora tomada pelas águas da represa de Cocorobó. Andei por esse

trecho até outro marco de concreto com outro painel. Desse limite das águas para trás, até

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o alto da Favela, eu ainda podia compreender, embora fosse muito diferente do que tinha

imaginado durante tantos anos. Eu podia ver a terceira expedição – após o coronel Moreira

César ter feito o convite no Angico: “Vamos almoçar em Canudos!”[2] – chegar confiante e,

depois de cinco horas de batalha, desbaratada, com o comandante agonizante, decidir pela

retirada. E podia visualizar também a primeira coluna da quarta expedição chegar, ficar

encurralada nessa encosta e ser socorrida pela segunda coluna, proveniente de Aracaju e

Jeremoabo, que após enfrentar dura resistência desde a serra do Cocorobó até o Trabubu

também ficaria imobilizada na Favela e cercanias. E eu podia ver seus dias e noites – de 27

de junho a 5 de outubro de 1897 – cadenciados pela fome, ferimentos, mortes e desespero,

desde o alto da Favela até aqui. Mas quando eu olhava para frente, para onde deveria estar

o Belo Monte, via apenas a água que me impedia até de imaginar essa descida abrupta do

terreno, daqui até o rio Vaza-Barris. E nem podia imaginar, abaixo, a infantaria de Moreira

César se dividindo e se perdendo nos becos de Canudos, e a cavalaria se debatendo para

cruzar um rio já avermelhado; e tampouco, as tropas de Artur Oscar invadindo e logrando

ocupar uma pequena parte do arraial; e muito menos – olhando à esquerda e seguindo a

margem até o Pelados – me aproximando de Euclides da Cunha e olhando por cima de seu

ombro para um desenho que fazia em papel milimetrado, e para o qual dava o título de

Vista de Canudos (de uma encosta do morro da Favela). E nem me ajudava a imaginar, ali,

uma fotografia como a Vista geral de Canudos, de Flávio de Barros, com a casa em primeiro

plano, isolada, e tendo atrás ruas e grupamentos de outras moradias contra um fundo

distante de montanhas. E como ouvir, no cair da noite, o sino chamando à pausa na luta, o

disparo de uma última descarga e o toque da Ave-Maria? “Os soldados escutavam, então

misteriosa e vaga, coada pelas paredes espessas do templo meio em ruínas, a cadência

melancólica das rezas...”[2] A água aos meus pés abafava a memória das vidas que um dia

existiram ali. Um século depois da destruição, uma grande seca retomou o sertão do fundo

do mar e fez emergir as ruínas de Canudos, assombrando todo o esquecimento. Mas elas

eram do segundo Canudos e não, do Belo Monte primordial de Antônio Conselheiro.

“Os ossos apareciam assim, de tanto que tinha!...” Pedro de Tuté, sendo Tuté seu pai,

esticou e entrelaçou todos os dedos das mãos para mostrar como o Vaza-Barris descobria

as ossadas toda vez que ficava empanzinado com as chuvaradas de cabeceira. E quando as

águas baixavam os meninos tinham muitos novos ossos com que brincar, pois os mais

velhos não falavam muito dessa fábrica sem fim de brinquedos. Eu tinha me afastado mais

um pouco da água e voltado para perto da Fazenda Velha, onde morreram o comandante

Moreira César e também quantidades de conselheiristas naquelas circulares, eficientes e,

hoje, rasas trincheiras. Tinha me sentado em uma pedra e tirado os óculos para reforçar o

protetor solar, e de repente pareceu-me que não estava mais só, ali. O mundo fora de foco

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trazia o vulto embaçado de um homem saindo de dentro da caatinga, e achei que ele bem

podia estar com um chapéu de couro; saudei-o, imaginando não ouvir resposta caso fosse

uma obra da miopia ou uma aparição solitária do local em uma quente manhã de domingo.

Respondeu. Coloquei os óculos e vi que Pedro de Tuté, como se apresentou, usava mesmo

chapéu de couro. Sua avó e bisavó sobreviveram à invasão, tendo sido levadas presas para

Salvador juntamente com outras mulheres, crianças, velhos e inválidos. Estariam elas ali,

estabelecidas na eternidade, em uma das fotos de Flávio de Barros? Seu pai levava para

negociar na feira do Rosário muitos quilos de balas da guerra que eles recolhiam em todo

lugar ali. Perguntei-lhe sobre a estrada do Rosário e ele disse que saía de uma curva das

Umburanas, por onde eu tinha passado, mas que indo para lá existiam muitas cercas e que

os proprietários não gostavam muito que se passasse por ali. “Vê, nós dois estamos aqui em

paz, mas se vier outro pode ser que a gente combine e junte para ir contra ele”, exemplificou.

E Tuté levava também balas da Matadeira, que muita gente usava até como trempe para

cozinhar. Mas o pior veio depois, com a represa: todos tiveram de sair de suas terras e se

ajeitar mais ali para cima, mas ninguém recebeu indenização por isso. “Até o lugar que

degolavam os presos ficou debaixo d’água”, disse ele apontando para o lado direito, onde

pude ver algumas árvores na margem. “Um pouco para baixo, para a esquerda delas, era

onde cortavam o pescoço de todo conselheirista.” E continuou, mostrando para todo lado:

“Morreu um mundo de gente, lá no Mário, aqui na Favela...” Como se esperasse meu ar de

estranhamento explicou que, na verdade, “o alto do Mário é lá em cima e o da Favela é aqui

embaixo, sempre foi. Era ali que tinha um capão de favelas, mas cada governo que chega

muda o nome de lugar.” E levou-me até uma favela, que eu sempre havia imaginado como

um arbusto pequeno – mas era uma árvore bem mais alta do que eu com o braço esticado.

E contou uma história final: a de um camarada que sonhara com um tesouro enterrado sob

uma determinada favela, e quando a achou e cavou encontrou uma farda de soldado com

um pouco de dinheiro no cinturão. E Pedro de Tuté saiu à procura de um bode que andava

buscando, embrenhando na matinha. E desapareceu, como se nunca tivesse existido.

“O que tinha deixado de ser Canudos e era o que viam, compreenderam que aquele

fragor eram o adejar e as bicadas de milhares de urubus, desse mar interminável, de ondas

pardacentas, negruscas, devoradoras, abarrotadas, que tudo cobria...”[13] Eu subia devagar

pela estrada de Massacará e pensava naqueles dias do início de outubro de 1897 – também

um começo de primavera – olhando para o céu aberto e puxando fôlego do ar seco. “E aí

estava, também, o poderosíssimo odor que desarranjava o estômago.”[13] O exército já não

estava mais aqui, tinha deixado apenas a sua obra para ser completada e retomada pela

natureza. E também não estavam mais aqui o jornalista míope, nem Jurema, e nem o Anão.

Se o Repórter Esso, muitos anos depois, se intitularia “Testemunha ocular da História”, ele

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foi uma espécie de testemunha visceral em mais de meio ano que passou em Canudos,

desde que chegara acompanhando a expedição Moreira César. “Na verdade, não vi nada.

Quebrei os óculos no dia em que dizimaram o 7º Regimento. (...) Mas embora não as tenha

visto, senti, ouvi, apalpei, cheirei as coisas que aconteceram lá. E o resto, adivinhei.”[13]

Jurema e o Anão foram seus guias por entre escombros, incêndios, correrias, mortos e por

busca de água e comida, e também durante as cerimônias religiosas diárias no Belo Monte.

Improvavelmente vivo, o jornalista míope contava para o Barão de Canabrava que não

deixaria que o que fora feito em Canudos fosse esquecido, uma promessa que fizera a si

mesmo, “pela única maneira como se conservam as coisas – escrevendo-as.”[13] Da mesma

maneira outro correspondente, que chegou aqui acompanhando o ministro da guerra no

final do cerco a Canudos, registrou e não permitiu que fosse esquecido o que aconteceu

neste sertão da Bahia: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. § E foi, na

significação integral da palavra, um crime. § Denunciemo-lo.”[2] Cheguei e emparelhei com

Antônio Conselheiro na subida junto ao marco de concreto, onde sua figura apoiada no

cajado seguia na mesma direção que a minha, para o alto da Favela. Lá, o silêncio tinha

terminado por causa do alarido de dezenas de jovens estudantes de dois ônibus de uma

excursão de Uauá, guiados por Izailton Almeida e acompanhados por um funcionário da

recepção do parque. Para que não seja esquecido. Acompanhei um pouco, meio de lado, a

movimentação das descobertas juvenis: “Cortaram a cabeça de Antônio Conselheiro,

botaram em cal e levaram para estudar em Salvador!” “Estão vendo aquela árvore lá

embaixo? Naquela direção, dentro da água, é onde ficava Canudos” “Era uma sociedade

igualitária, podemos dizer, socialista?” E corriam, e gritavam, e brincavam, e fotografavam.

Para que não seja esquecido. Enquanto eles eram chamados para uma reunião no ponto de

conforto do parque, bem ali ao lado, afastei-me em direção ao local onde funcionavam os

hospitais de sangue da quarta expedição, um morrinho protegido da visão de Canudos pelo

alto da Favela. O lugar de onde a segunda coluna saiu em socorro da primeira, e parte

desse caminho, estavam cobertos pelas águas da represa e nem dava para imaginar os

trechos percorridos, mas uma placa indicava o local em que eram atendidos os feridos,

graves ou não, da tropa comandada pelo general Cláudio Savaget: “Hospital de Sangue da

Segunda Coluna – ativo até 13 julho de 1897”. Cinco dias depois as tropas invadiram e

conseguiram montar acampamentos dentro de Canudos, mas a luta ainda demoraria mais

de dois meses e meio para chegar ao fim. Eu ainda perambulava por ali quando os ônibus

passaram levantando muita poeira, e de suas janelas os estudantes gritavam e acenavam

para mim. Não esqueçam, meus jovens! Ficamos ali, o silêncio e eu.

E de volta ao alto da Favela ainda pude assistir à retirada da terceira expedição, a

de Moreira César: “E foi uma debandada. (...) Entre os fardos atirados à beira do caminho

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ficara, logo ao desencadear-se o pânico – tristíssimo pormenor! – o cadáver do comandante.

Não o defenderam.”[2] O choque causado pelo aniquilamento do poderoso 7º de Infantaria

levou a imaginação popular a idealizar episódios de heroísmo para não sucumbir à ameaça

de insanidade por tanta realidade. O cadáver de Moreira César tivera, sim, um defensor fiel

na figura de seu ordenança, o cabo Roque, que morreu lutando a seu lado, sozinho, depois

de abandonados “por um exército.”[2] Entre arrebatadoras homenagens de toda espécie, “o

soldado obscuro transcendia à História quando – vítima da desgraça de não ter morrido –

trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários supérstites, em

Queimadas.”[2] Esse cabo Roque foi o primeiro, o fabuloso precursor dos protagonistas da

peça teatral O berço do herói e da telenovela Roque Santeiro, ambas do escritor baiano Dias

Gomes. E nesse sertão baiano, sentado no alto da Favela – ou do Mário – eu via multidões

em procissões passando e se dirigindo lá para baixo em busca da terra prometida do Belo

Monte. Tinham despovoado vilas, paróquias, terras de latifúndio e chegavam, incontáveis,

pelas estradas do Uauá, de Jeremoabo, do Cambaio, do Calumbi, do Rosário, da Canabrava.

E aproximavam-se da represa de Cocorobó, tocavam de leve suas águas como um lava-pés,

submergiam feito atlantes remanescentes do sertão e alcançavam a antessala do paraíso. E

eu os podia ver a todos, desfilando, tecendo esperança com fé, enquanto atravessávamos

grandes sertões, desde o distante norte de Minas até o tão perto – e tão intangível! – solo

sagrado do Belo Monte. E cantava com eles.

“Marcado pela própria natureza O Nordeste do meu Brasil Oh! Solitário sertão De sofrimento e solidão A terra é seca Mal se pode cultivar Morrem as plantas e foge o ar A vida é triste nesse lugar

Sertanejo é forte Supera miséria sem fim Sertanejo homem forte Dizia o poeta assim

Foi no século passado No interior da Bahia Um homem revoltado com a sorte Do mundo em que vivia Ocultou-se no sertão Espalhando a rebeldia Se revoltando contra a lei Que a sociedade oferecia

Os jagunços lutaram Até o final Defendendo Canudos Naquela guerra fatal”[27]

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Voltei devagar, demorando mais de uma hora para chegar do alto da Favela até a

portaria do parque. O ar já estava bastante quente, dificultando a respiração mesmo com

um passo lento em lugar plano. Avistei uma ou outra casa distante do caminho, que Pedro

de Tuté tinha dito ser de moradores anteriores à criação do parque que permaneceram em

suas propriedades, e que colaboravam na manutenção não retirando mais nada da área. A

cerca com a qual eu deparara na descida do alto da Favela era a marcação da divisa de uma

delas. Na recepção, os dois funcionários estavam às voltas com os preparativos para seu

almoço. Um deles sempre acompanhava as excursões que visitavam o parque, tendo sido

Jomar que estava com os estudantes de Uauá que eu encontrara no alto da Favela. Antes de

trabalhar no parque, ele tirava sustento como pescador na represa de Cocorobó e morava

no Canudos de Mané Travessa, visível do outro lado das águas a partir do alto da Favela. Já

Francisco, nas longas horas que se passavam sem que aparecessem visitantes, aproveitava

para estudar para o curso de direito que frequentava nos finais de semana em uma cidade

perto de Sergipe. Ele e Jomar me mostraram um ser que lhes fazia companhia no arrastar

do tempo à espera de pessoas que se interessem pelo cenário de Canudos: um preá, que

estava sempre por ali na expectativa de conseguir alimentos, sendo que na guerra ele fora

também caçado como alimento pelos combatentes. Depois de comer mais um bocado de

lanche, instalado em uma rede na varanda da portaria, preparei-me para ir até a estrada e

esperar um ônibus que passasse, sem horário preciso, na direção daquele Canudos em que

estava hospedado. Passei pelo portal e olhei para trás. Na capa final do Guia do Cenário da

Guerra, na última linha, estava escrito: “Divulgue para alguém a sua emoção”. Para trás de

mim, do outro lado do asfalto, desembocava a estrada que vinha do Rosário, por onde

chegaram as duas únicas expedições que lograram alcançar Canudos. Passaram por aqui

correndo para o triunfo e nada viram, mas se tivessem percebido e atravessado esse portal

do tempo saberiam que “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu

até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo,

caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram.

Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam

raivosamente cinco mil soldados.”[2] Voltei a passar pelo portal depois de esperar por mais

de uma hora por um ônibus improvável. O calor era bem maior quando se estava parado, e

esperando. Um rapaz que trabalhava no hotel passou e ofereceu carona, mas não me atrevi

a ir à garupa da moto, ainda mais, sem capacete. Por fim desisti, e voltei para a sombra da

portaria a fim de esperar o horário daquele ônibus que eu tinha tomado no dia anterior em

Bendengó. Se mesmo esse não passasse, por ser domingo, eu ainda tinha a alternativa de,

mais tarde, quando o calor diminuísse um pouco, andar pela margem da rodovia em obras

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por umas duas horas e chegar a Canudos. Mas veio: não um ônibus, mas um carro-pipa que

saía do parque. Um dos meus companheiros de espera – a deles, muito mais eterna, me fez

lembrar vagamente a espera do protagonista de O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati –

correu e providenciou uma carona para mim. O motorista tinha saído de manhã para fazer

uma entrega de água para um sítio dentro do parque, e até aquela hora não tinha parado

porque outras casas foram pedindo. Tinha ficado sem almoçar, mas era preciso aproveitar

essa época para trabalhar enquanto houvesse procura, pois quando chegasse o tempo das

chuvas seu caminhão é que ficaria seco. Eu lhe disse que não conseguia imaginar aquela

caatinga toda verde quando chovesse, e ele começou a apontar os umbuzeiros e suas flores

à espera das águas. Não sei se conhecia todos os pés que ficavam dos lados da estrada, mas

mal eu olhava para um que tinha mostrado ele já apontava para outros. Olhos na estrada e

nos umbuzeiros, mãos no volante e nos umbuzeiros, ele descrevia as maravilhas do sertão

que se escondiam debaixo daqueles galhos secos que mais se pareciam com lenha para se

queimar. Não existia mundo melhor! E as umbuzadas!... “E o sertão é um paraíso...”[2] E eu,

então, quase conseguia imaginar! Chegando à cidade ele me deixou na esquina do hotel,

porque “minha mulher trabalha na cozinha aí.” Depois, Carlinho me disse: “É João Crente,

marido de Ana Lucia.” Compreendi, então, a alegria com que ele falava das umbuzadas! E

Carlinho me apresentou ao seu amigo Jeferson, professor que, por divergências político-

administrativas, fora exilado por um tempo para lecionar na escola do Juá. Pela distância e

inviabilidade de locomoção diária ele passava a semana lá, e quando falei que tinha me

hospedado na casa do João do Lalau ele disse que também ficara lá. E completou: “O João é

gente boa.” Mais tarde, já deitado, viajei nos carros-pipa de Janaúba e de Canudos; suspirei

com as umbuzadas da moça de Sobradinho e de João Crente, de Canudos; e vi confirmada a

imagem de gente boa do João do Lalau, do Juá, em Canudos. Canudos, Canudos, Canudos.

Mas não alcancei Canudos; menos ainda, o Belo Monte de Antônio Conselheiro. “E agora

ele vagueia em seus sentimentos; e, às vezes, como ele diz, quase alcança Ixtlan.”[28] Fechei os

olhos, fechei o dia.

*

“Mas é o padre do Cumbe!...” O homem exclamou, saiu do canteiro central e veio se

aproximando. Olhei para trás procurando o motivo da surpresa, mas vi que só estava eu ali

na rua. “Mas nunca vi igual!...” Ele chegou junto a mim, colocou a mão no meu ombro e, com

a certeza de ter cativado a minha atenção, colocou as mãos para trás, olhou para um tempo

bem remoto e recitou: “No dia dezoito de outubro de mil novecentos quarenta, o Presidente

Getúlio Dornelles Vargas visitou Canudos. Foi recebido pelo coronel Canário, que lhe solicitou

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a construção de um açude na região.” Seriam memórias pessoais? Perguntei-lhe a idade

quando fez a primeira pausa. Disse estar com setenta e seis anos e se chamar Manoel, ou

Nelinho, como era conhecido – isso lhe dava cinco anos de idade na época. E continuou,

dizendo que viera gente de toda a região para ver o grande acontecimento desse mundo

esquecido por Deus. “E então, não era de se ver, um presidente da república?” Mas teve uma

pessoa que não veio: “Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos

guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo

de tropelias.”[2] Mais de quarenta anos depois daquela guerra, ele respondia aos enviados

oficiais que foram buscá-lo para um encontro com o presidente Getúlio Vargas: “Diga ao

Governo que já tou véio e cansado pra i té lá.”[23] Mas rapidamente tive de deixar a década

de quarenta para acompanhar seu Nelinho, que já falava que o Canudos onde estávamos

havia sucedido ao povoado do Cocorobó, que tinha nascido do acampamento do DNOCS,

Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, mais os moradores expulsos pelas águas

que afundaram o segundo Canudos, que se formara no mesmo lugar onde fora destruído o

original, o Belo Monte de Antônio Conselheiro. Mas se a memória fora afogada, atualmente

havia a represa de Cocorobó, e por sua causa existia o perímetro irrigado que permitia a

produção agrícola, especialmente de banana e coco, que sustentava a economia da região.

E seu Nelinho foi relacionando vários itens que Canudos tinha, até que disse que só não

tinha... – e aqui, ele abaixou a voz e falou uma coisa que não entendi. “Só não tem o quê?...”

Ele olhou bem para mim, começou a rir e revelou: “Corno!... Só se vier de fora...” Perplexo

com o inesperado, logo o acompanhava e ria também; ria dele e de suas artimanhas, e me

recordava que era a segunda vez que me via no lugar de um padre nessa viagem, desde o

quadro da amiga de dona Coló que retratava a igreja matriz de Itacambira. Seu Nelinho e

eu, em Canudos, no meio da rua.

“O jagunço é uma tradução justalinear quase do iluminado da Idade Média. O mesmo

desprendimento pela vida e a mesma indiferença pela morte dão-lhe o mesmo heroísmo

mórbido e inconsciente de hipnotizado e impulsivo.”[29] O termo jagunço fora utilizado de

forma indistinta para designar todos os seguidores de Antônio Conselheiro, fossem velhos,

homens, mulheres, crianças ou inválidos que se encontravam em Canudos. Para a opinião

pública, eles eram apresentados pela imprensa e fontes oficiais como elementos fora da lei

e inimigos da república, devendo, portanto, ser combatidos e destruídos. E foi essa mesma

expressão que me chamou a atenção logo nos primeiros passos ao adentrar o Memorial

Antônio Conselheiro: O jaguncinho de Euclides. A legenda acompanhava uma fotografia de

um jovem de traços agrestes e cabelos domados por brilhantina – atrás de óculos de aros

redondos e imobilizado dentro de um colarinho alto e duro, gravata, colete e paletó – e

apresentado como Ludgero Prestes. Como tantas crianças órfãs do massacre de Canudos

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que foram arrancadas do sertão e levadas para as terras grandes, o pequeno Ludgero saiu

de sua terra pelas mãos de Euclides da Cunha, como troféu de guerra, e foi doado para ser

criado por uma família Prestes. Coerentemente com a ordem oficial de se destruir Canudos

não deixando pedra sobre pedra, os militares promoveram uma diáspora sertaneja com a

entrega de seus pequenos filhos à prostituição, ao abandono, à doação, à morte, para que

se aniquilasse toda a memória do Belo Monte de Antônio Conselheiro.

Deixei o corredor com painéis fotográficos e passei para as salas de exposição dos

objetos recolhidos em áreas de combates atualmente compreendidas pelo Parque Estadual

de Canudos. Ali, encontrei pequenas e tocantes memórias em forma de balas, fragmentos

de granadas, fivelas e botões de fardas, vidros de Linimento de Sloan, de tintas para

canetas, latas de Granulate of Oleocal, de Calceose, de Emplastro de Tapsia, de Vitaminas do

Instituto Bioquímico Italiano; e tijolos com dimensões de 30 cm x 15 cm x 10 cm e lajotas,

de 22 cm x 22 cm x 4 cm; e também, fragmentos de louças finas de procedências inglesa,

holandesa e portuguesa; e ainda, cerâmicas de barro pré-colonial e algumas peças líticas

pré-históricas. E perambulando pelos corredores e pelo amplo pátio interno do Memorial

reencontrei Izailton, que me apresentou no largo quintal um jardim com exemplares da

vegetação nativa de Canudos que incluía, entre outras, angico, catingueira, palmatória do

diabo, macambira, xiquexique, mandacaru e as célebres favela e canudo-de-pito. E depois,

ele mostrou em tela grande – e comentou sobre os locais apresentados – o documentário

Canudos: novas trilhas, do professor Roberto Dantas, ao qual finalmente pude assistir e,

então, reconhecer alguns lugares desse sertão de tantas vidas e de múltiplas vias.

“Madeiras da discórdia, não. Isso foi só um pretexto. O que houve foi uma discórdia

entre monarquistas e republicanos.” Dessa forma Carlinho de Pepeda respondeu ao meu

comentário de que no IPMC, Instituto Popular Memorial de Canudos, se encontravam as

madeiras que Antônio Conselheiro comprara, pagara e não tinha recebido do comércio de

Juazeiro, o que provocou o primeiro confronto oficial da guerra de Canudos, ainda em fins

de 1896. No IPMC pude ver, além das próprias madeiras guardadas como relíquias, a cópia

do documento de sua doação à comunidade de Canudos por pessoas que descobriram que

as vigas de um galpão de sua propriedade eram mesmo aquelas, as históricas. A tese de

uma grande conspiração político-religiosa, inclusive com o apoio de armas e agentes do

exterior com o fito de restaurar a monarquia, sustentou a justificativa da necessidade de se

destruir Canudos. Galileu Gall, cujo cadáver era cobiçado como prova do envolvimento de

estrangeiros em uma conspiração antirrepublicana, também analisava as questões entre

religião e política ou – mais precisamente – entre religião e revolução: “A religião era, no

melhor dos casos, o que David Hume escrevera – um sonho de homens doentes – sem dúvida,

mas em certos casos, como no de Canudos, podia servir para arrancar as vítimas sociais de

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sua passividade e empurrá-las à ação revolucionária...”[13] E quando encontrei mais uma vez

seu Nelinho a questão voltou a pairar, desta vez, envolvendo religião e um militar. Assim

que me viu, convidou-me para sentar no banco à porta de sua casa e retomou: “O coronel

Antônio Moreira César, comandante da terceira expedição, morreu no dia três de março de

mil oitocentos noventa e sete, antes de poder almoçar em Canudos.” E disse que em Monte

Santo, ao ver a capela da Santa Cruz no alto da serra do Piquaraçá, o coronel Moreira César

exclamou: “Povo ignorante! Quando eu acabar com Canudos vou voltar aqui e botar abaixo

aquilo lá!” E também, que no Cumbe ele mandou prender o padre. Seu Nelinho me olhou

com indignação: “Já se viu isso, prender o padre do Cumbe?” Fiquei pensando se ele saberia,

e se falaria em seguida, que o coronel Moreira César era filho de um padre. “Você acha que

isso é bom?” Mas ao ouvir essa pergunta percebi que ele acabara de falar que estava com

câncer e que o médico tinha pedido para voltar em seis meses. Antes que eu pudesse dizer

qualquer coisa, ele continuou: “A mãe de Antônio Conselheiro não gostava da nora e lhe

disse para fingir uma viagem e ficar de tocaia para ver que a mulher o traía...” Mais tarde, ao

passar em frente a sua casa em direção à rodoviária para deixar em definitivo o sertão de

Canudos, não o vi. Parei na esquina e olhei para trás, motivado por uma sensação de que o

poderia ver surgir de repente, junto a um tronco tão fino quanto ele, ou caminhando pelo

canteiro central, ou mesmo sentado em seu banco favorito. Mas a rua continuava vazia, no

silêncio do calor da tarde. Seu Nelinho continuava a me surpreender.

“Adeus, povo... Adeus, aves... Adeus, árvores... Adeus, campos... Aceitai a minha

despedida que bem demonstra as gratas recordações que levo de vós, que jamais se apagarão

da lembrança deste peregrino que aspira ansiosamente a vossa salvação e o bem da

Igreja.”[30] Morto o Bom Conselheiro, para seus seguidores o fim do mundo chegou logo em

seguida pelo fuzilamento, pelo estripar das baionetas, pelo canhoneio, pelo dilacerar das

granadas, pela degola, pelo fogo e, muitos anos depois, pela água que afundou o sertão do

Belo Monte nas profundas do mar – mas não, pelo esquecimento. Dona Lucia se lembrava.

Enquanto eu esperava o ônibus atrasado, ela me mostrava a pesada chaleira de ferro que a

avó lhe dera e com a qual a bisavó fazia chás para servir ao Conselheiro. Memórias fugidias

que se viram fundidas em fogo brando e que permaneceram aquecendo novas gerações, e

que me acompanhavam no ônibus que deixava Canudos no final da tarde.

E na miscelânea de imagens do sertão iluminadas pelo sol poente, eu me lembrava

em especial, vindas de tempos já remotos, da brilhante claridade da fraca luz do interior

da matriz de Itacambira; da Januária de seu Lenine que navegava no escuro do triste rio

São Francisco; dos frutos ocultos colhidos nas hortas de Eva e de Valter, brotados pela

água possibilitada pelo empenho de Zé Marques e outros trabalhadores rurais de Janaúba;

da gruta compartilhada por Francisco de Mendonça Mar com uma onça, às margens do rio

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São Francisco, que viria a ser o Santuário do Bom Jesus da Lapa; do barco escola de seu

Severino e Jackson irradiando descobertas, a partir de Ibotirama, pelas águas do rio São

Francisco; das travessias do rio São Francisco no brilho de suas águas, entre as catedrais

de Petrolina e de Juazeiro; da pena de apartar do rio São Francisco, que vi tão grande em

Sobradinho; da alegria de enfim começar a caminhar no sertão, saindo de Queimadas; da

acolhida que tem por nome Goreth, em Cansanção; da sempre luz que iluminava o Monte

Santo; do calor do pessoal do pirão semanal do Dão, no Juá; e da aproximação, a cada tardo

passo, de Canudos renitente.

Mas agora eu me afastava. E ao ver o primeiro dos piquetes de demarcação, soube

que estava para passar em frente à entrada do Parque Estadual de Canudos. E lá estava!...

Na frágil luz do fim do dia, ainda pude ver o seu portal e suas fileiras de mudas de árvores

cercadas por galhos e troncos finos. No balanço do ônibus, difusamente, elas começaram a

se movimentar e se transformaram em legiões de jagunços camuflados. Pisquei e voltei a

olhar rapidamente, mas eles já haviam desaparecido na noite do sertão. No Belo Monte, o

sineiro Timotinho anunciava o sagrado cessar-fogo de cada dia, de mais um dia, de um dia

a mais – era a hora da Ave-Maria.

Joanópolis SP – 2011/2012