Duas lágrimas contam a história

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Page 1: Duas lágrimas contam a história

DUAS LÁGRIMAS CONTAM A HISTÓRIA(Para Tita, a quem primeiro narrei este sonho, numa manhã de Espanha)

Não sei se dormi, naquela noite de janeiro, no Hotel Gran Via, em Madri. Creio que sim, porque sonhei, e para sonhar bastam pedaços de sono, entremeados de insones lembranças e palpitações.

Eu caminhava por uma ruazinha estreita, dessas muitas que levam à Praça Maior. Puxei o cigarro, apalpei os bolsos e não encontrei o isqueiro. Procurei o socorro ao vício nela, postada que estava no passeio, toda vestida de preto, com um negro guarda-chuva na mão. Figura terrível, dessas que acabam de saltar da tela de um filme de terror. Ela me fulminou com o olhar, e rosnou algo ininteligível. Abriu o guarda-chuva e levitou o suficiente para sobrevoar o casario e pousar uma quadra adiante. O susto entorpeceu-me os membros, enquanto dissipava-se no meu respirar ofegante.

No sem-rumo dos sonâmbulos, perambulei por ruas labirínticas. Avistei o casarão sombrio. Subi a escadaria até o patamar, onde uma clarabóia no teto iluminava, como num palco, estas figuras: Ela, vestida da negrura dos corvos, com sua asa de guarda-chuva na mão. Ele, um homem de uns sessenta e cinco anos, cabelos grisalhos, barba de três dias, casaco cinza desbotado, calça de tergal já surrada. Os olhos azuis clareavam seu rosto magro e vincado dos sofrimentos. O seu corpo de boa estatura apoiava-se numas botas largas, de longo uso, porque já vincada pelas estrias do couro e do tempo. Sentei-me numa cadeira e formei com os dois um vértice da disposição triangular.

Olhei-o curioso. Duas lágrimas verteram de seus olhos azuis, cristalizaram-se estáticas e simétricas no meio do rosto magro e encovado. Ela, como sob o impulso de um botão automático, começou a arremessar sobre mim pedaços de um discurso monstruoso e incongruente, que me alcançavam como a “collage” de uma tela cubista:

Feira-livre. Camponeses no encontro semanal. Cidadezinha do interior de Espanha. Animais e produtos da roça. Tudo junto na Praça. Homens, mulheres e crianças. Transação de afetos e produtos. Sinos tocam com aflição repentina. Correria e perplexidade. O inferno desabando em bombas. Aviões em vôo rasante. Atropelos e tumulto. Corpos arremessados na explosão. Cabeças e membros decepados. Cadáveres disseminados nas ruas. Animais em fuga, esguichando a dor das feridas. Pisoteios, gritos, desespero, horror. Caos.

Ela estancou o sombrio relato, que foi longo, assim apressado e fragmentado. Respirou fundo como quem se liberta de uma possessão. Olhei-o novamente. As duas lágrimas refluíram para os seus olhos azuis. Um ar de interina pacificação quase se desfez num sorriso.

Com a voz retornando ao natural, a estranha mulher me disse não conhecer aquele homem, ignorar o seu nome, sua origem e sua singularíssima existência. O certo é que um dia, saindo ela de um elevador em Madri, ele acompanhou-a. Não fala, não troca a roupa, que também não suja nunca, não faz a barba, que por sua vez jamais crescera. E toda vez que um estranho o perscruta com curiosidade, as duas lágrimas escorrem, cristalizam-se estáticas e simétricas no meio da face, e só refluem ao abrigo dos olhos, quando ela relata estas cenas de horror, captadas por telepatia, do fundo de sua dele memória massacrada.

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Agora, não tenho certeza se sonhei, nos trechos dormidos da insônia, estas surrealidades. Talvez os meus “estados segundos” tenham-se potencializado pela contemplação, na tarde anterior, do majestoso painel Guernica, de Picasso, exposto no Centro Cultural Rainha Sofia. Quem sabe se esse estranho relato não me veio habitar o inconsciente, após saltar dos geniais pincéis do pintor malaguenho?

Lá estão muitas dessas aterradoras imagens da guerra: o clima sombrio da morte, nos tons do negro, do cinza e do branco. A lâmpada do alto da tela sinaliza a tecnologia que veio do céu para perpetrar a estupidez. No centro, um cavalo em disparada, força irracional da destruição. O touro impassível, à direita, é a Espanha, impotente, neste quadro apocalíptico. Mais abaixo, uma mãe, como uma moderna Pietá, clama aos céus, com seu filho morto no colo. A tecnologia esmaga a vida. Uma figura masculina, geometricamente esquartejada, contrasta com a mulher grávida, de seio à mostra, voltada para a luz, implorando a vida.Uma outra mulher ergue inutilmente os braços para o vazio. Uma casa em chamas, violência, barbárie. Caos absoluto.

Picasso não viu nem sonhou essa desconcertante realidade.Criou-a com seus pincéis de gênio,como um manifesto antimilitarista e antibélico.

O homem dessa história, porém, é um dos poucos sobreviventes de Guernica, a pequena cidade basca destruída na tarde de 26 de abril de 1937. Viu os aviões da Legião Condor, a fúria nazista de dois consorciados ditadores - Hitler e Franco. Filmou tudo com as câmeras assustadas de seus impressionantes olhos azuis.

Aqui me trouxe ele fragmentos desse horror narrado no fluir e refluir de duas lágrimas, sobre a face magra e encovada.