Duas Bandeiras Há Coisas Que São Mentira

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DUAS BANDEIRAS : “Há coisas que são mentira, mas que aparecem como verdade; aí se enraíza seu atrativo”. Ao avançar na “escola inaciana do coração”, nos encontramos diante de uma importante lição: “no ser humano a ignorância é maior que sua maldade”; ou dito de outra maneira: grande parte de nossa maldade provém de nossa ignorância ou falta de lucidez em relação aos enganos nos quais o “mau espírito” nos envolve. Sabemos da perene e escorregadia tentação – uma mentira perigosa que aparece como verdade- de soluci-onar as inseguranças e medos de nosso eu através dos impulsos à cobiça que se aninham em nosso coração. No 4 º dia da 2 ª Semana dos Exercícios, S. Inácio dá uma “freiada brusca” no processo das contempla-ções da vida de Cristo para nele introduzir uma forte e violenta inspeção à decisão de seguir o Senhor. Por que uma parada assim, uma suspeita tão frontal de que o seguimento do Senhor, tão pessoal e tão recente, possa estar apoiado em fundamentos falsos, em mentiras tidas por verdade? Aqui nos encontramos com uma das intuições mais certeiras de S. Inácio sobre a natureza do coração humano e sobre o modo como é enganado pelo “inimigo” sob aparências da verdade e do bem. Para S. Inácio, a primeira e maior tentação do coração humano é a “cobiça de riqueza”. Uma vez preso à cobiça, o ser humano caminha, irremediavelmente, primeiro para a busca de prestígio e de poder, depois para a soberba, a daí a todos os vícios. Ao colocar sua famosa meditação das Duas Bandeiras no contexto do seguimento de Cristo, S. Inácio está supondo que esse processo mortal pode dar-se também no interior do desejo de seguir o Senhor, não só fora dele. Como é possível uma coisa assim? Só se formos enganados; só se tomarmos como verdade o que é uma “mentira encoberta”. Caso contrario, o engano não prosperaria. Podemos dizer que o coração do ser humano é feito de “matéria nobre” e de profundos “buracos negros”. Sua matéria nobre lhe vem de sua capacidade de amar, de sua disposição à comunhão, de sua abertura à transcendência. Não esqueçamos que o ser humano é imagem de Deus... Seus “buracos negros” provém de sua limitação criatural, e também de seu pecado. Esses “buracos negros” do coração tomam o nome de insegurança, temor, desconfiança, medo do futuro, da morte... Quê saída buscar diante de tanta ferida existencial, de tanta insegurança do próprio eu, de tanta indigência do coração?... Há uma 1 ª resposta que parece estar inscrita no próprio movimento da angústia humana. É uma resposta falsa, mas que aparece como verdadeira:

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DUAS BANDEIRAS: H coisas que so mentira, mas que aparecem

DUAS BANDEIRAS: H coisas que so mentira, mas que aparecem

como verdade; a se enraza seu atrativo.

Ao avanar na escola inaciana do corao, nos encontramos diante de uma importante lio:

no ser humano a ignorncia maior que sua maldade; ou dito de outra maneira: grande parte de nossa maldade provm de nossa ignorncia ou falta de lucidez em relao aos enganos nos quais o mau esprito nos envolve.

Sabemos da perene e escorregadia tentao uma mentira perigosa que aparece como verdade- de soluci-onar as inseguranas e medos de nosso eu atravs dos impulsos cobia que se aninham em nosso corao.

No 4 dia da 2 Semana dos Exerccios, S. Incio d uma freiada brusca no processo das contempla-es da vida de Cristo para nele introduzir uma forte e violenta inspeo deciso de seguir o Senhor.

Por que uma parada assim, uma suspeita to frontal de que o seguimento do Senhor, to pessoal e to recente, possa estar apoiado em fundamentos falsos, em mentiras tidas por verdade?

Aqui nos encontramos com uma das intuies mais certeiras de S. Incio sobre a natureza do corao humano e sobre o modo como enganado pelo inimigo sob aparncias da verdade e do bem.

Para S. Incio, a primeira e maior tentao do corao humano a cobia de riqueza.

Uma vez preso cobia, o ser humano caminha, irremediavelmente, primeiro para a busca de prestgio e de poder, depois para a soberba, a da a todos os vcios.

Ao colocar sua famosa meditao das Duas Bandeiras no contexto do seguimento de Cristo, S. Incio est supondo que esse processo mortal pode dar-se tambm no interior do desejo de seguir o Senhor, no s fora dele. Como possvel uma coisa assim? S se formos enganados; s se tomarmos como verdade o que uma mentira encoberta. Caso contrario, o engano no prosperaria.

Podemos dizer que o corao do ser humano feito de matria nobre e de profundos buracos negros. Sua matria nobre lhe vem de sua capacidade de amar, de sua disposio comunho, de sua abertura transcendncia. No esqueamos que o ser humano imagem de Deus...

Seus buracos negros provm de sua limitao criatural, e tambm de seu pecado. Esses buracos negros do corao tomam o nome de insegurana, temor, desconfiana, medo do futuro, da morte...

Qu sada buscar diante de tanta ferida existencial, de tanta insegurana do prprio eu, de tanta indigncia do corao?...

H uma 1 resposta que parece estar inscrita no prprio movimento da angstia humana. uma resposta falsa, mas que aparece como verdadeira: nisso se enraza sua capacidade de engano; por isso nos prende com tanta facilidade.

O que acalma e apaga a angstia que produz a insegurana, o temor, o medo do futuro... a riqueza.

Se conseguimos nos cercar de muitos bens (sejam materiais, como dinheiro, posses... ou espirituais, como as qualidades pessoais e os saberes), acaba-se toda insegurana, todo medo, qualquer tipo de angstia. Trata-se de um engano nada evidente.

S. Incio viu com grande lucidez que o corao que se faz vtima da cobia de riqueza passa inevitavelmente a depender de sua imagem social, e da a buscar a todo custo uma v honra do mundo (prestgio), que termina em opresso e soberba. Estes dois estgios ltimos so consequncia do primeiro. O mal radical est, portanto, no primeiro, na insacivel cobia do corao pervertido.

Qu exerccios prope a escola inaciana do corao para curar-se dessa enfermidade mortal?

O primeiro consiste em tomar conscincia da armadilha, em pedir a graa do conhecimento dos enganos do mau esprito e ajuda para deles me guardar (EE. 139).

Trata-se de um exerccio de lucidez tanto mais necessrio quando existem formas de riqueza pessoal ou de meios apostlicos inteligncia, formao, instituies, obras... que no s no so ms em si, mas que podem ser boas para os outros e para o Reino.

O engano acontece quando nosso corao se apega pulsionalmente a essas riquezas at depender delas; nesse caso, elas deixam de ser mediaes do Reino para converter-se em dolos do prprio corao. Deles se espera a salvao, e no dos outros e nem de Deus.

Esta fome de prazer, de posse e de poder, esta sede de reconhecimento pelo xito e admirao,

esta a perverso do homem moderno. Este seu atesmo. E assim o homem se converte num

desgraado e altivo semi-deus (Moltmann).

O segundo exerccio comea tambm pela cabea, para terminar no corao. Trata-se de pedir conhecimento da vida verdadeira que nos mostra o sumo e verdadeiro Senhor, e graa para o imitar (EE. 139).

Ou seja, na dupla confrontao mau caudilho sumo e verdadeiro capito, enganos vida verdadeira, a mente e o corao se decidem por Cristo Jesus.

No por um Cristo qualquer, talvez o imaginado por mim medida de meu desejo, seno pelo Jesus dos Evangelhos, o Cristo pobre, humilde e humilhado. O Crucificado.

Se esse o desejo profundo de meu eu, nascido de um amor pessoal ao Senhor, meu corao desejar a identificao com Ele mais que nenhuma outra coisa.

E quando tenha que usar determinadas formas de riqueza, pessoais ou institucionais, no sero j tentao para ele, somente instrumento de um maior servio.

Essa atrao que Cristo exerce sobre nosso corao neutralizar nossas afeies desordenadas, criando em ns um corao puro.

Mais ainda, o amor a Cristo poder chegar a ser to profundo e pessoal em ns que chegaremos a desejar uma vida como a Sua: pobre, humilde e humilhada. Por nada e para nada. Simplesmente por identificao amorosa com a Sua Vida.

Qu aconteceu, em todo este exerccio, com os famosos buracos negros do nosso eu?

Continuam a, mas esto terapeutizados pela presena e paz do Senhor, novo dono e guia de nosso corao. A paz de Cristo Ressuscitado, vivo e realmente presente em nossa vida, a que neutraliza o medo do qual nasce a cobia do corao e todas as suas nefastas consequncias de curto e de longo alcance.

Se o medo nos deixa... deixam de seduzir-nos os sonhos de poder e felicidade... com os quais se

engendra em ns a indigncia artificial (Moltmann).

(cf. Jos Antonio Garcia, Sal Tarrae, junho 2000)

Textos bblicos: Fil. 2,1-11 Col. 2,6-15 1Tim. 4,1-16 1Tim. 6,3-10 2Tim. 2,14-26