DPP-Indicios Noronha Silveira

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O conceito de indícios suficientes no processo penal português * Jorge Noronha e Silveira 1. Quadro legal e importância do conceito I. O Código de Processo Penal 1 utiliza a expressão indícios suficientes para definir um dos pressupostos essenciais para a dedução da acusação e para a prolação do despacho de pronúncia em processo penal. Refere, com efeito, o n.º 1 do seu artigo 283.º que, “se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (...) deduz acusação contra aquele” 2 . O n.º 1 do artigo 308.º, por seu turno, estabelece que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos”. Não se logrando alcançar indícios suficientes, devem os mesmos sujeitos proferir, respectivamente, despacho de arquivamento do inquérito ou despacho de não pronúncia. Efectivamente, esclarece o n.º 2 do artigo 277.º que “o inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os agentes”. E orientação equivalente resulta, para o juiz de instrução, da parte final do já citado n.º 1 do artigo 308.º, na parte em que o legislador acrescenta: “caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. II. O presente estudo visa esclarecer o significado do conceito de indícios suficientes no processo penal português. Para alcançar esse objectivo, seguir-se-á o seguinte plano: começar-se-á por salientar a importância do mencionado conceito na estrutura do processo penal; passar-se-á depois à exposição e análise crítica das principais interpretações possíveis para a expressão e à defesa do significado considerado mais correcto; na parte final, relacionar-se-á o conceito com realidades afins e com alguns princípios estruturais do processo penal que se prendem com a problemática em causa. * Intervenção nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, realizadas na Faculdade de Direito de Lisboa entre 3 e 6 de Novembro de 2003. 1 Doravante CPP. Os artigos mencionados no texto reportam-se, salvo indicação em contrário, ao Código de Processo Penal actualmente em vigor em Portugal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro. 2 Usando a expressão em sentido semelhante, estabelece o n.º 1 do artigo 391.º-A que “em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (...) pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado...”. 1

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Processo Penal

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  • O conceito de indcios suficientes no processo penal portugus *

    Jorge Noronha e Silveira 1. Quadro legal e importncia do conceito I. O Cdigo de Processo Penal1 utiliza a expresso indcios suficientes para definir um dos pressupostos essenciais para a deduo da acusao e para a prolao do despacho de pronncia em processo penal.

    Refere, com efeito, o n. 1 do seu artigo 283. que, se durante o inqurito tiverem sido recolhidos indcios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministrio Pblico (...) deduz acusao contra aquele 2.

    O n. 1 do artigo 308., por seu turno, estabelece que se, at ao encerramento da instruo, tiverem sido recolhidos indcios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicao ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurana, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos.

    No se logrando alcanar indcios suficientes, devem os mesmos sujeitos proferir, respectivamente, despacho de arquivamento do inqurito ou despacho de no pronncia.

    Efectivamente, esclarece o n. 2 do artigo 277. que o inqurito igualmente arquivado se no tiver sido possvel ao Ministrio Pblico obter indcios suficientes da verificao do crime ou de quem foram os agentes. E orientao equivalente resulta, para o juiz de instruo, da parte final do j citado n. 1 do artigo 308., na parte em que o legislador acrescenta: caso contrrio, profere despacho de no pronncia.

    II. O presente estudo visa esclarecer o significado do conceito de indcios suficientes no processo penal portugus. Para alcanar esse objectivo, seguir-se- o seguinte plano: comear-se- por salientar a importncia do mencionado conceito na estrutura do processo penal; passar-se- depois exposio e anlise crtica das principais interpretaes possveis para a expresso e defesa do significado considerado mais correcto; na parte final, relacionar-se- o conceito com realidades afins e com alguns princpios estruturais do processo penal que se prendem com a problemtica em causa.

    * Interveno nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, realizadas na Faculdade de Direito de Lisboa entre 3 e 6 de Novembro de 2003. 1 Doravante CPP. Os artigos mencionados no texto reportam-se, salvo indicao em contrrio, ao Cdigo de Processo Penal actualmente em vigor em Portugal, aprovado pelo Decreto-Lei n. 78/87, de 17 de Fevereiro. 2 Usando a expresso em sentido semelhante, estabelece o n. 1 do artigo 391.-A que em caso de crime punvel com pena de multa ou com pena de priso no superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indcios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministrio Pblico (...) pode deduzir acusao para julgamento em processo abreviado....

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  • III. O uso da expresso indcios suficientes no constitui novidade em Portugal. Ela j aparecia, com significado semelhante, no CPP de 1929, quer referida acusao, quer ao despacho de pronncia3.

    Como sinnimo de indcios suficientes, a legislao anterior a 1987 usava por vezes a expresso prova bastante4 ou prova indiciria5.

    De salientar, no entanto, que o novo Cdigo inovador num aspecto: inclui uma definio legal de indcios suficientes. Ela consta do n. 2 do art. 283., de acordo com o qual consideram-se suficientes os indcios sempre que deles resultar uma possibilidade razovel de ao arguido vir a ser aplicada, por fora deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurana. A legislao anterior no continha tal definio, que era deixada ao intrprete.

    A expresso indcios suficientes carece efectivamente de ser esclarecida. Ela no elucidativa, pois est incompleta. Para a compreender, indispensvel perguntar: suficientes para qu6?

    A resposta encontrada atravs da anlise da funo que o conceito desempenha na estrutura do processo penal.

    IV. Como sabido, possvel, na marcha do processo penal comum, operar uma distino entre duas grandes fases: a fase preparatria ou preliminar e a fase de julgamento7. Essa diferenciao, que est nomeadamente presente na sistematizao do CPP ao autonomizar, na sua Parte II, os Livros VI e VII, s se compreende recorrendo ao mencionado conceito.

    Efectivamente, entende o legislador portugus, acompanhado alis pelo da generalidade dos pases, que s legtimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prtica de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. O que impe que a primeira etapa da tramitao do processo penal comporte uma fase, ou um conjunto de fases, que visa investigar cabalmente a existncia de um crime de que houve notcia e determinar os seus agentes, descobrindo e recolhendo as provas. Terminada essa primeira parte do processo, apelidada de preparatria, e esgotadas as diligncias de investigao possveis, importa responder seguinte questo: h, ou no, motivos que justifiquem a submisso de algum a julgamento? S uma resposta afirmativa permite a progresso do processo para a fase seguinte a de julgamento.

    No , em regra, assim no processo civil. Na maioria dos casos, o autor no necessita de produzir antes da audincia final a prova dos factos que alega. Basta-lhe

    3 Vejam-se os artigos 349., 354., 1. e 2., e 368. (estes dois ltimos apenas antes da reforma operada pelo Decreto-Lei n. 185/72, de 31 de Maio). Aps as alteraes introduzidas pelo Decreto-Lei n. 377/77, de 6 de Setembro, o n. 2 do artigo 390. passou a incluir a expresso responsabilidade suficientemente indiciada. 4 Vejam-se os artigos 148., nico, e 345., ambos do CPP de 1929, bem como o artigo 26. do Decreto-Lei n. 35 007, de 13 de Outubro de 1945. 5 Esta expresso surgia tambm, por exemplo, no j citado artigo 26. do Decreto-Lei n. 35 007. 6 O mesmo se podia dizer da expresso prova bastante, usada pelo CPP de 1929; nada se esclarecia se no se soubesse para que essa prova bastava. 7 Veja-se, por todos, MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, III, reimpresso da Universidade Catlica, Lisboa, 1981, pginas 101 a 103.

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  • apresentar uma petio inicial sem erros formais graves para que o processo possa avanar at fase de julgamento.

    Esta especial estruturao do processo penal encontra a sua razo de ser na particular gravidade das consequncias que podem advir da simples submisso de uma pessoa a julgamento penal. Mesmo que essa pessoa no venha a ser condenada, ela sofrer inevitavelmente fortes prejuzos para o seu nome e reputao pelo simples facto de ter de se sentar no banco dos res. Na verdade, e para alm da possibilidade de se lhe continuar a aplicar eventuais medidas de coaco e de garantia patrimonial, que podem restringir de forma substancial os seus direitos fundamentais, irrecusvel o efeito sociolgico estigmatizante resultante do conhecimento pblico de que uma pessoa vai ser julgada em processo penal.

    O acto processual que representa a transio da fase preparatria para a de julgamento a acusao ou a pronncia. E o conceito que est pressuposto nesse salto qualitativo o de indcios suficientes.

    Nos crimes pblicos e semi-pblicos a acusao, a existir, sempre formulada em primeiro lugar pelo Ministrio Pblico. Ela significa o momento crucial do exerccio da aco penal, chamando determinada pessoa responsabilidade, para ser julgada pela jurisdio penal. Face ao princpio da obrigatoriedade a que o Ministrio Pblico est vinculado, a deduo de acusao e a avaliao da suficincia de indcios que lhe est pressuposta traduz para este rgo do Estado um dever8. O assistente, querendo, acompanhar a acusao pblica atravs de uma acusao subordinada (artigo 284.).

    Nos crimes particulares, a acusao, a existir, sempre formulada em primeiro lugar pelo assistente. A sua deduo um direito, cabendo ao assistente avaliar com plena liberdade da oportunidade do exerccio da aco penal. Mas, embora o CPP no o afirme expressamente, deve entender-se que o exerccio desse direito pressupe tambm uma avaliao afirmativa quanto existncia de indcios suficientes9.

    Assim, a acusao o meio processual de promover o exerccio da aco penal. Independentemente de se aceitar que ela traduza o exerccio de um direito de aco judicial em sentido prprio, ela representa sem dvida o impulso exterior necessrio para que a jurisdio penal actue.

    No que toca ao despacho de pronncia, ele proferido pelo juiz que dirige a instruo. Sendo esta uma fase facultativa, cuja abertura depende de requerimento do arguido ou do assistente, a verificao judicial da suficincia dos indcios s tem lugar, segundo o actual modelo processual penal portugus, havendo uma iniciativa nesse sentido do arguido ou do assistente. E a avaliao feita pelo juiz de instruo a comprovao judicial da avaliao anteriormente realizada pelo Ministrio Pblico e pelo assistente (n. 1 do artigo 286.).

    De salientar que o conceito de suficincia dos indcios utilizado, na acusao e na pronncia, exactamente com o mesmo significado. Os indcios qualificam-se de 8 Mais discutvel determinar se o mesmo dever do Ministrio Pblico se deve considerar presente nos crimes particulares, aps a deduo de acusao pelo assistente. A posio que nesse momento do processo o Ministrio Pblico chamado a tomar, acusando ou abstendo-se de acusar, parece dever pautar-se pelos mesmos critrios de obrigatoriedade. Em minha opinio, o uso do verbo pode, no n. 3 do artigo 285., no deve ser interpretado no sentido de traduzir um critrio de oportunidade. 9 O mesmo se diga da abertura da instruo requerida pelo assistente. Tal requerimento pressupe tambm uma avaliao positiva do assistente quanto suficincia dos indcios.

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  • suficientes quando justificam a realizao de um julgamento. Para o processo penal, a existncia de suficincia de indcios significa que os indcios so suficientes para submeter algum a julgamento10. O conceito est, assim, directamente ligado ao direito ao bom nome e reputao do cidado, tambm por vezes conhecido como o direito boa fama, cuja tutela aponta no sentido de serem evitados julgamentos injustificados.

    V. A distino entre fase preparatria e fase de julgamento envolve uma outra, que nela est pressuposta: a distino entre juzo de certeza e juzo de probabilidade.

    Para o final da fase de julgamento est reservado o juzo de certeza. Ele visa alcanar a prova dos factos alegados em juzo. No final da fase preparatria o juzo a formular de probabilidade de futura condenao.

    Como salienta Cavaleiro de Ferreira, a prova do julgamento no a prova para a acusao e tem alicerces numa certeza, e no numa probabilidade11.

    Assim, os indcios qualificam-se de suficientes quando justificam a realizao de um julgamento; e isso acontece quando a condenao for provvel. 2. Significado da expresso indcios suficientes 2.1. Generalidades I. Explicitada a sua funo na marcha do processo penal, chegado o momento de aprofundar o significado da expresso indcios suficientes.

    A expresso composta por dois vocbulos: indcios e suficientes.

    De salientar, desde j, que a definio constante do n. 2 do artigo 283. apenas se reporta ao segundo vocbulo. A lei no nos diz o que so indcios, apenas explica quando os considera suficientes.

    Esta ausncia de definio ter certamente a ver com o facto de a palavra indcios ser utilizada com um sentido prximo do comum, no necessitando de um especial critrio normativo: indcio uma palavra de origem latina que significa sinal, marca, indicao. Aplicado investigao criminal, o conceito reporta-se tarefa de descoberta e recolha de provas.

    A palavra indcios, que alis o CPP utiliza amide12, refere-se, assim, ao conjunto das provas j recolhidas no processo13 14 .

    10 Significativa neste sentido a forma como o artigo 298. define a finalidade do debate instrutrio: permitir uma discusso (...) sobre se, do decurso do inqurito e da instruo, resultam indcios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submisso do arguido a julgamento. 11 Curso de Processo Penal, Volume 2., Editora Danbio Ld., Lisboa, 1986, pgina 231. 12 A palavra surge por vezes usada no singular, nomeadamente na definio de suspeito que consta da alnea e) do n. 1 do artigo 1.; a maioria das vezes, porm, utilizada no plural - vejam-se, por exemplo, os artigos 171., 174. e 200. a 202.. 13 Neste sentido veja-se GERMANO MARQUES DA SILVA, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, Lisboa, 1990, pgina 347.

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  • II. Para o qualificativo suficientes existe, como j se referiu, a definio legal constante do n. 2 do artigo 283., a qual relaciona a suficincia dos indcios com uma possibilidade razovel de condenao em julgamento.

    A avaliao da suficincia exige, assim, um juzo prognstico sobre a possibilidade de condenao no final da fase do julgamento. O que pressupe um raciocnio de conjugao entre todos os indcios, por forma a fundamentar esse juzo de prognose.

    Esta definio, porm, continua a no ser esclarecedora. O que significa uma possibilidade razovel de condenao? Qual o grau de probabilidade que este conceito comporta?

    Na resposta que doutrina e jurisprudncia tm dado a estas questes podem distinguir-se trs correntes fundamentais:

    - uma primeira soluo afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mnima, de futura condenao em julgamento;

    - numa segunda resposta possvel, necessrio uma maior probabilidade de condenao do que de absolvio;

    - e uma terceira via defende ser necessria uma possibilidade particularmente forte de futura condenao.

    Vejamos mais de perto cada uma destas solues e faamos a anlise crtica dos argumentos por elas invocados. 2.2. Suficincia como mera possibilidade, ainda que mnima Numa primeira opinio, que se pode apelidar de menos exigente, os indcios j so suficientes quando deles resulte uma mera possibilidade, ainda que diminuta ou nfima, de condenao.

    Esta soluo, que tem tido poucos seguidores, surge em regra associada especificamente definio dos requisitos para o despacho de pronncia, no ficando muitas vezes claro se os seus defensores a advogam tambm para a definio dos requisitos para a acusao.

    O significado de suficincia dos indcios deve, nesta interpretao, ser interpretado de harmonia com o conceito inerente expresso acusao manifestamente infundada, previsto na alnea a) do n. 2 do artigo 311.15.

    Os defensores desta tese fazem a seguinte equiparao: tal como o juiz de julgamento, ao proferir o despacho liminar de saneamento do processo, s pode rejeitar a acusao se ela for manifestamente infundada, tambm o juiz de instruo, ao proferir a deciso instrutria, s deve lavrar um despacho de no pronncia se chegar mesma concluso. 14 O CPP de 1929 usava o termo indiciado como sinnimo de acusado (ver artigos 370. e 371., por exemplo). Essa utilizao, porm, prestava-se a confuses terminolgicas, tendo sido abandonada no actual CPP. 15 A favor desta equiparao veja-se, por exemplo, o Acrdo da Relao de Lisboa de 14 de Maro de 1990, sumariado no Boletim do Ministrio da Justia n. 395, pginas 656 e 657.

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  • Para haver despacho de pronncia basta que a submisso do arguido a julgamento no constitua um acto manifestamente intil e clamorosamente injusto16. 2.3. Suficincia como maior possibilidade de condenao do que de absolvio

    A segunda interpretao acima mencionada defende que os indcios so suficientes quando a possibilidade de futura condenao do arguido em julgamento for mais provvel do que a possibilidade da sua absolvio. a chamada teoria da probabilidade predominante.

    Assim, no momento de apreciar a suficincia dos indcios, h que, num juzo de prognose, procurar determinar o que mais provvel: a futura absolvio ou a futura condenao do arguido? Se for a absolvio, no h indcios suficientes; se for a condenao, esses indcios existem.

    De acordo com esta posio, para acusar ou pronunciar no basta uma reduzida possibilidade de condenao do arguido. Se as probabilidades de absolvio forem superiores ou mesmo iguais s de condenao, o processo no deve prosseguir. Mas para acusar ou pronunciar no necessrio que as probabilidades de condenao sejam manifestamente superiores.

    Esta a soluo que mais se aproxima do conceito matemtico de probabilidade, segundo o qual, entre duas afirmaes contrrias, a mais provvel a que tiver maior grau de possibilidade de ser verdadeira.

    Usando linguagem matemtica, dir-se-: para os indcios serem suficientes necessrio que as possibilidades de condenao em julgamento sejam superiores a 50%.

    Nesta linha de raciocnio, afirma Germano Marques da Silva que uma possibilidade razovel uma probabilidade mais positiva que negativa17.

    Esta resposta defendida por uma boa parte da doutrina e da jurisprudncia, nomeadamente ao nvel dos tribunais da Relao. 2.4. Suficincia como forte possibilidade de condenao Finalmente, a terceira interpretao que tem vindo a ser defendida advoga que os indcios s so suficientes quando deles resulte uma forte, alta ou sria possibilidade de futura condenao em julgamento.

    Convm desde j salientar que certos autores advogam esta resposta sem verdadeiramente a autonomizar da anterior. A suficincia dos indcios pressuporia uma forte possibilidade ou uma probabilidade predominante18.

    16 A citao retirada de um despacho do Tribunal Judicial de Torres Vedras que segue esta orientao, o qual foi apreciado pelo Acrdo do Tribunal Constitucional n. 439/2002, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 276, de 29 de Novembro de 2002. 17 Do Processo Penal Preliminar citado na nota 13, pgina 348. 18 Nesta linha de pensamento, escreve JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: os indcios s sero suficientes e a prova bastante quando, j em face deles, seja de considerar altamente provvel a futura condenao do

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  • Para outros autores, porm, a suficincia dos indcios exige uma possibilidade particularmente qualificada, que no se basta com a simples probabilidade predominante.

    Nesta tese, a suficincia dos indcios acaba por pressupor a formao de uma verdadeira convico de probabilidade: indcios suficientes so, citando um dos acrdos que se insere nesta linha de raciocnio, os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convico de que (o arguido) vir a ser condenado19. Eles constituem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juzo de probabilidade do que lhe imputado20.

    Esta opinio, que prevaleceu na jurisprudncia portuguesa durante a vigncia do CPP de 1929, ainda hoje conta com forte adeso21. 2.5. Anlise crtica I. Antes de mais, importa analisar o teor literal da definio legal, a qual usa, como j se referiu, a expresso possibilidade razovel.

    Numa primeira aproximao, dir-se- que o legislador consagra a tese intermdia da probabilidade predominante. Efectivamente, a qualificao de razovel parece implicar uma ideia de moderao, de mediania. A expresso possibilidade razovel aparenta significar mais do que uma possibilidade mnima, mas porventura no exigir uma possibilidade especialmente forte ou qualificada.

    Nesta linha de pensamento, h quem defenda que o legislador portugus, ao incluir no CPP esta definio, teve a inteno de consagrar a posio intermdia da suficincia dos indcios como sinnimo de probabilidade predominante, prevendo um grau de exigncia menor do que aquele que era advogado pela doutrina e jurisprudncia dominantes na vigncia do CPP de 192922.

    Apesar de reconhecer que a letra da lei se adapta melhor teoria da probabilidade predominante, julgo que o argumento literal no decisivo. Parece ser possvel admitir que o termo razovel tenha sido usado para salientar um outro significado deste qualificativo, que se prende com a ideia de algo que conforme acusado, ou quando esta seja mais provvel do que a absolvio (Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora Ld., reimpresso de 1981, pgina 133; itlicos no original). 19 Acrdo do Supremo Tribunal de Justia de 1 de Maro de 1961, publicado no Boletim do Ministrio da Justia n. 105, pginas 439 e seguintes. 20 Acrdo da Relao de Coimbra de 31 de Maro de 1993, publicado na Colectnea de Jurisprudncia, Ano XVIII (1993), Tomo II, pginas 65 e 66. 21 Para uma listagem da jurisprudncia portuguesa mais recente sobre a interpretao a dar expresso indcios suficientes vejam-se o Acrdo do Tribunal Constitucional n. 609/99, de 10 de Novembro, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 44, de 22 de Fevereiro de 2000, bem como o relatrio de mestrado apresentado em Setembro de 2003 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa com o ttulo Que Indcios ? (Um Estudo sobre o Uso da Expresso, sua Correcta Interpretao e os Corolrios desse Entendimento), da autoria de GRACINDA SALLES RODRIGUES, a quem agradeo a forma pronta com que me facultou o acesso ao mesmo. O relatrio inclui, em anexo, uma extensa lista de jurisprudncia que se debrua sobre o tema. 22 Neste sentido vejam-se FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, Direito Processual Penal Curso Semestral, fascculos publicados pela AAFDL, Lisboa, 1998, pgina 129 e o Acrdo da Relao de Lisboa de 14 de Maro de 1990,citado na nota 15.

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  • razo, adequado, apropriado, justo23. A definio no visar tanto quantificar o grau da possibilidade, mas fundamentalmente salientar a necessidade da sua adequao s especiais exigncias que os interesses em jogo reclamam.

    Lendo a expresso com este sentido, ela ser partida compatvel com qualquer das posies anteriores, tudo dependendo da ponderao que se venha a fazer dos interesses em causa.

    Seguindo este raciocnio, h quem defenda que a definio do CPP no veio inovar no ordenamento jurdico portugus, sendo nomeadamente compatvel com a terceira tese j exposta24.

    II. No sendo decisivo o argumento literal, h que aprofundar outros argumentos.

    Antes de mais, de repudiar o raciocnio que equipara o controlo exercido pelo juiz de instruo ao proferir a deciso instrutria ao controlo efectuado pelo juiz de julgamento no momento do saneamento do processo.

    Ao proferir a deciso instrutria, o juiz est a decidir o resultado de uma fase processual que ele prprio dirigiu, tendo em vista a comprovao da anterior deciso de deduzir acusao ou de arquivar o inqurito.

    Tem-se por seguro que a apreciao liminar do processo pelo juiz de julgamento no pode de forma alguma ser equiparada a esta funo25.

    Com a reforma de 1998, o novo n. 3 acrescentado ao artigo 311. veio clarificar que a apreciao levada a cabo pelo juiz de julgamento tem uma natureza meramente formal, no envolvendo um juzo relativamente ao mrito dos indcios recolhidos no processo.

    Mas j antes dessa reforma, e mesmo que admitssemos a constitucionalidade da interpretao consagrada no Assento do Supremo Tribunal de Justia n. 4/93, de 17 de Fevereiro26, que conferia ao juiz de julgamento o dever de rejeitar acusaes em que fosse manifesta a insuficincia da prova indiciria, tal equiparao no tinha fundamento, pois no atendia finalidade da estrutura essencial da tramitao do processo penal comum.

    A equiparao que, pelo contrrio, deve ser feita, por ter claro apoio na lei27 e resultar da lgica estrutural do processo, a equiparao entre a suficincia dos indcios para acusar e a suficincia dos indcios para pronunciar. No s porque a lei utiliza os mesmos conceitos para definir os pressupostos de ambos os actos, mas tambm porque a deciso instrutria mais no do que a comprovao da deciso tomada no final do inqurito.

    23 com esse sentido que o mesmo adjectivo usado, por exemplo, no n. 4 do artigo 487.. 24 Neste sentido se pronuncia, por exemplo, o Acrdo da Relao de Coimbra de 31 de Maro de 1993, citado na nota 20. 25 A mesma posio defendida pelo Tribunal Constitucional no seu Acrdo n. 439/2002, citado na nota 16. Sobre este tema, veja-se tambm a declarao de voto de ANTERO ALVES MONTEIRO DINIS junta ao Acrdo do Tribunal Constitucional n. 226/97, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 145, de 26 de Junho de 1997, bem como GERMANO MARQUES DA SILVA, Do Processo Penal Preliminar citado na nota 13, pginas 359 e seguintes. 26 Publicado no Dirio da Repblica, I-A Srie, n. 72, de 26 de Maro de 1993. 27 Est alis expressamente consagrada no n. 2 do artigo 308..

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  • Deve, por isso, ser afastado o principal argumento que sustenta a primeira tese h pouco exposta, segundo a qual os indcios s no seriam suficientes se a acusao fosse manifestamente infundada.

    III. Para uma esclarecida tomada de posio nesta matria importa compreender o alcance efectivo da distino entre juzo de probabilidade e juzo de certeza que, como j se mencionou, est subjacente diviso entre a fase preparatria e a fase do julgamento na marcha do processo penal comum.

    O juzo de certeza, enquanto afirmao da verdade no processo, seguramente um juzo subjectivo. Ele assenta em indcios e traduz-se numa convico, num estado de esprito, num ntimo convencimento28.

    O mesmo se passa com o juzo de probabilidade. Ele implica a mesma margem inescapvel de subjectivismo29. tambm uma opinio que se forma com base em indcios, apreciando a prova disponvel nos autos.

    Como ensina Castro Mendes, toda a convico humana uma convico de probabilidade30 31.

    Estas consideraes mostram, desde logo, que a primeira posio exposta tornaria muito raros os despachos de arquivamento do inqurito ou de no pronncia, esvaziando de utilidade toda a fase preparatria do processo, o que mais um argumento em seu desfavor. Na esmagadora maioria dos casos o processo teria de seguir para julgamento, j que, sendo a avaliao dos indcios um juzo necessariamente subjectivo, raramente seria de rejeitar uma possibilidade, ainda que mnima, dos factos investigados se terem efectivamente passado. Citando uma vez mais Castro Mendes, no h afirmao cuja contrria no tenha um grau, mnimo que seja, de possibilidade32. Ou seja, s em casos extremos seria legtimo afirmar a insuficincia dos indcios.

    IV. Entre os defensores da teoria da probabilidade predominante est fortemente enraizada a ideia de que o juzo indicirio a formular no final do inqurito ou da instruo mais fraco, menos exigente, que o formulado na deciso final tomada aps o julgamento. O juzo indicirio, de mera probabilidade, no exigiria a fora nem a solidez da valorao da prova em julgamento. Bastar-lhe-ia uma possibilidade razovel. Para alcanar um juzo de certeza, o grau de convencimento subjectivo do julgador seria mais exigente, at porque os elementos sua disposio para o atingir seriam mais completos.

    Est assim pressuposta no raciocnio anterior a convico de que o grau de exigncia do juzo indicirio que est presente ao longo do processo penal vai, em

    28 Veja-se, por todos, JOO DE CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova em Processo Civil, tica Limitada, Lisboa, 1961, pgina 293 e seguintes. 29 Neste sentido veja-se FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal citado na nota 18, pginas 132 e 133. 30 Do Conceito de Prova citado na nota 28, pgina 321. 31 Como salientou JOS OSRIO, na apreciao do justo grau de probabilidade est o segredo do acerto da deciso (Julgamento de Facto, publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano VII - 1954, pgina 218). 32 Do Conceito de Prova citado na nota 28, pgina 322, nota 23.

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  • regra, crescendo medida que este vai progredindo. Pode comear com uma mera possibilidade, ainda que diminuta, na qual se enquadra o conceito de suspeito; vai evoluindo ao longo do inqurito, medida que vo sendo recolhidas as provas; passa pela constituio de arguido; no momento da acusao e da pronncia j deve traduzir uma maior probabilidade de condenao do que de absolvio; e vai consolidando-se, num crescendo de exigncia, at culminar com o juzo de certeza formulado na sentena final33.

    Neste sentido, a fase preparatria do processo penal funcionaria como uma triagem de situaes que justificariam julgamento34. Assemelhar-se-ia, fazendo uma comparao com o processo civil, a um juzo de verosimilhana, ou de prova sumria ou simples justificao, o qual seria suficiente para decretar uma providncia cautelar, por exemplo, mas j no para a deciso de mrito na aco principal respectiva35.

    V. Em minha opinio, equiparar o juzo de probabilidade a um juzo de mera verosimilhana, menos exigente do que o de condenao, no justificvel face realidade estrutural do processo penal.

    Efectivamente, o critrio normativo afirmado no juzo de suficincia dos indcios deve corresponder realidade estrutural do processo penal.

    Ora, como sabido, a acusao s deduzida depois de encerrado o inqurito; e este s encerrado depois de esgotadas as diligncias e recolhidas todas as provas que possam fundamentar a acusao. Assim, no momento do encerramento do inqurito j se encontram recolhidas todas as provas da acusao. O actual CPP no prev, ao contrrio do anterior, a deduo de uma acusao provisria, que possa ser completada atravs da instruo. Alis, o Ministrio Pblico nem pode requerer a abertura da instruo, o que refora a natureza definitiva da sua acusao.

    Isto significa que os meios de prova que fundamentam a acusao, e que nela so obrigatoriamente discriminados, no sero, salvo casos excepcionais, reforados at audincia de julgamento. A tendncia natural ser, pelo contrrio, no sentido do enfraquecimento dessas provas, j que iro ser submetidas ao crivo do contraditrio e atacadas com o efectivo exerccio do direito de defesa, at a substancialmente afectado.

    Assim, o momento do encerramento do inqurito o momento do processo em que os indcios da prtica do crime se revelaro, em princpio, mais fortes. A partir desse momento, e salvo casos excepcionais, eles no se fortalecero; a sua intensidade, pelo contrrio, tender a enfraquecer.

    33 Esta tese parece ter acolhimento no n. 3 do artigo 301., que aparentemente confere prova indiciria uma natureza menos exigente que a atribuda prova em audincia de julgamento. Neste sentido se pronuncia GERMANO MARQUES DA SILVA, Do Processo Penal Preliminar citado na nota 13, pgina 348. Mas, como normalmente acontece com os argumentos meramente literais, pode fazer-se outra leitura da norma em questo, conjugando-a com as finalidades da instruo definidas no artigo 286.. 34 A expresso de GIL MOREIRA DOS SANTOS, O Direito Processual Penal, Edies Asa, 2003, pgina 328. 35 Sobre a distino entre prova e verosimilhana em processo civil, veja-se PIERO CALAMANDREI, Verit e Verosimiglianza nel Processo Civile, publicado na Rivista di Diritto Processuale, Volume X (1955), Parte I, pginas 164 e seguintes.

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  • Este raciocnio mostra, a meu ver, que no faz sentido exigir para a condenao aps a audincia de julgamento uma prova indiciria mais forte do que a exigida no momento da acusao ou da pronncia. Se a prova indiciria no atinge, no momento da acusao ou da pronncia, a fora necessria para formar uma convico de condenao, no vale a pena o processo prosseguir, pois essa convico no vai certamente ser alcanada. Mesmo olhando apenas para os interesses da eficcia da represso da criminalidade, prefervel nesses casos o inqurito ser arquivado, aguardando produo de melhor prova, e consequentemente reaberto se ela aparecer, do que avanar para o julgamento, correndo srios riscos de ser proferida sentena absolutria definitiva.

    Esta linha de argumentao aponta, pois, para a terceira tese exposta. Faz sentido, atendendo particular estrutura do processo penal, exigir para a suficincia dos indcios uma forte possibilidade de condenao futura, exigir uma verdadeira convico de probabilidade dessa condenao.

    VI. Finalmente, equiparar o juzo de probabilidade a um juzo de mera verosimilhana, menos exigente do que o de condenao, significa admitir que o juzo de suficincia dos indcios compatvel com uma certa margem de dvida quanto responsabilidade do arguido, o que conduz inevitavelmente a reconhecer que o princpio da presuno de inocncia no se aplica nessa avaliao.

    efectivamente comum entender-se que a formulao do juzo indicirio compatvel com uma natural margem de dvida razovel. Mesmo havendo essa dvida, pode ser possvel concluir pela maior probabilidade de condenao do que de absolvio, situao em que os indcios deveriam ser considerados suficientes. S na condenao final qualquer dvida razovel teria de ser afastada, por fora do in dubio pro reo.

    A nossa jurisprudncia, principalmente ao nvel dos tribunais da Relao, tem vindo a advogar esta soluo, afirmando seca e recorrentemente que o princpio in dubio pro reo no tem aplicao na fase da pronncia36.

    A origem desta posio reside, salvo melhor opinio, no preconceito, j acima denunciado, de que o juzo de probabilidade se contenta com uma prova indiciria mais fraca, menos exigente que a pressuposta no juzo de certeza37 .

    J foi salientado que este preconceito no tem justificao face ao sistema estrutural do processo penal. Estar mais de acordo com esse sistema que as certezas no momento da acusao sejam postas em dvida no julgamento do que as anteriores dvidas se convertam em certezas. Uma dvida razovel no final do inqurito dificilmente se dissipar durante a audincia de julgamento; pelo contrrio, uma convico que aponte para a condenao no final do inqurito pode facilmente, depois de sujeita a uma apreciao oral e contraditria na audincia, converter-se em dvida razovel.

    36 Veja-se, por exemplo, o Acrdo da Relao de vora de 15 de Outubro de 1991, sumariado no Boletim do Ministrio da Justia n. 410, pgina 903; no mesmo sentido se pronuncia o despacho do Tribunal Judicial de Torres Vedras citado na nota 16. 37 Veja-se a expressiva declarao de voto de BRAVO SERRA junta ao Acrdo do Tribunal Constitucional n. 439/2002, citado na nota 16, na qual se confessa alguma perplexidade na compatibilizao entre o despacho de pronncia e o princpio da presuno de inocncia.

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  • Por outro lado, o princpio da presuno de inocncia constitucionalmente consagrado vigora para todo o processo penal, pelo que deve estar tambm presente no momento da acusao e da pronncia e ser compatvel com o contedo normativo a atribuir ao juzo indicirio que esses actos processuais pressupem.

    Nos ltimos anos tem-se assistido a uma afirmao crescente e reforada da importncia do princpio da presuno de inocncia. Significativa desta evoluo foi a comunicao de Vives Antn na sesso inaugural destas Jornadas, ao considerar este princpio o fulcro do processo penal moderno.

    O fundamental nesta matria, como adverte o Tribunal Constitucional no j citado Acrdo n. 439/2002, no converter este princpio numa presuno meramente terica, numa espcie de banho lustral38 que a lei proporciona aos arguidos, mas que na prtica no redunda em qualquer posio processual vantajosa para eles. O princpio, pelo contrrio, deve ser entendido como conferindo ao arguido a titularidade de um estatuto e o direito a um tratamento que deve inspirar todas as solues e acompanh-lo em todas as fases do processo39.

    O princpio da presuno de inocncia deve, por isso, ter tambm incidncia directa na formulao do juzo de probabilidade40. Do princpio da presuno de inocncia deve decorrer a proibio de submeter uma pessoa a julgamento penal imputando-lhe factos relativamente aos quais persistam dvidas razoveis. S quando essas dvidas sejam ultrapassadas, de forma demonstrada, que ser legtimo afirmar a suficincia dos indcios. A honra de uma pessoa no deve ser posta em jogo enquanto subsistirem dvidas razoveis quanto ao fundamento da acusao41.

    A soluo alcanada conduz ao claro repdio da primeira tese exposta, que afirma a suficincia dos indcios em casos em que a possibilidade de condenao seja diminuta. Mas coloca tambm em crise a segunda teoria, que advoga a probabilidade predominante, pelo menos quando se entenda que ela compatvel com uma certa margem de dvida razovel.

    No logrando atingir uma verdadeira convico de probabilidade, que afaste toda e qualquer dvida razovel, o acusador deve abster-se de acusar e o juiz de instruo deve lavrar despacho de no pronncia.

    Excluir o princpio da presuno de inocncia da valorao da prova indiciria reduz desproporcionada e injustamente as garantias de defesa do arguido em processo penal, o que contraria a Constituio. 2.6. Posio adoptada

    38 Esta expresso foi recentemente utilizada por SALDANHA SANCHES num artigo de opinio publicado na edio do semanrio Expresso de 11 de Outubro de 2003. 39 Neste sentido vejam-se RUI PATRCIO, O Princpio da Presuno de Inocncia do Arguido na Fase do Julgamento no Actual Processo Penal Portugus, AAFDL, Lisboa, 2000, pginas 34 e seguintes, e o Acrdo da Comisso Constitucional n. 168, de 24 de Julho de 1979, publicado no Boletim do Ministrio da Justia n. 291, pgina 346. 40 Neste sentido se pronuncia GRACINDA RODRIGUES, Que Indcios citado na nota 21, pgina 16. 41 Dvidas razoveis que o despacho de pronncia deve demonstrar que ultrapassou, como salienta o Tribunal Constitucional no Acrdo n. 439/2002, j citado na nota 16.

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  • I. Das reflexes levadas a cabo no ponto anterior pode concluir-se que da distino entre juzo de probabilidade e juzo de certeza no resulta uma diferena essencial quanto ao grau de exigncia de verdade que deve estar presente em ambas as avaliaes.

    Seguindo a lio de Castanheira Neves, deve defender-se para a acusao a mesma exigncia de prova e de convico probatria, a mesma exigncia de verdade` requerida pelo julgamento final42 . Dever sim exigir-se aquele to alto grau de probabilidade prtica quanto possa oferecer a aplicao esgotante e exacta dos meios utilizveis para o esclarecimento da situao um to alto grau de probabilidade que faa desaparecer a dvida (ou logre impor uma convico)43 .

    Assim, para a suficincia dos indcios no deve bastar uma maior possibilidade de condenao do que de absolvio. S uma forte ou alta possibilidade pode justificar a deduo da acusao ou a prolao do despacho de pronncia. No apenas por ser esta a soluo que melhor se adapta particular estrutura do processo penal, como tambm por ser a nica que consegue a imprescindvel harmonizao entre o critrio normativo presente no juzo de afirmao da suficincia dos indcios e as exigncias do princpio da presuno de inocncia do arguido44.

    Por todas estas razes, afirmar a suficincia dos indcios deve pressupor a formao de uma verdadeira convico de probabilidade de futura condenao. No logrando atingir essa convico, o Ministrio Pblico deve arquivar o inqurito e o juiz de instruo deve lavrar despacho de no pronncia . E julgo que uma eventual reforma do processo penal deveria aproveitar para clarificar a definio legal constante do n. 2 do artigo 283., substituindo a expresso possibilidade razovel por uma outra que transmita sem equvocos a ideia de uma possibilidade particularmente qualificada, que s se afirme depois de afastadas quaisquer dvidas razoveis.

    II. Em que se traduz ento a diferena essencial entre o juzo de probabilidade e o juzo de certeza?

    Esta dicotomia existe, e deve manter-se, porque o juzo formulado no momento da acusao e da pronncia, independentemente do grau de exigncia que encerra, no apto a decidir com justia a questo da responsabilidade penal.

    Quando esse juzo formulado aps o encerramento do inqurito, a convico que ento se forma pode ser afectada pelas caractersticas inquisitrias que at esse momento prevalecem no processo: o secretismo, o carcter escrito, a ausncia de contraditrio, de oralidade e de imediao, tudo isto pode inquinar a avaliao quanto suficincia dos indcios e contribuem para que ela no possa servir para fundamentar um juzo de certeza.

    E mesmo quando formulada no final da instruo, aps a realizao do debate instrutrio, alguns desses vcios se podem manter. Embora j se tenha dado ao arguido a oportunidade de exercer um verdadeiro direito de defesa, embora j tenha

    42 Sumrios de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, pgina 39 (aspas no original). 43 Autor e obra citados na nota anterior, pginas 53 e 54. 44 O prprio conceito normativo da expresso indcios suficientes deve ser entendido como uma manifestao do princpio da presuno de inocncia. Tem sido esse tambm o raciocnio do Tribunal Constitucional, nomeadamente nos j mencionados Acrdos n.s 439/2002 e 226/97 (citados nas notas 16 e 25, respectivamente).

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  • havido alguma oralidade e imediao, a convico continua fortemente influenciada pelas provas obtidas durante o inqurito. Como salienta o n. 2 do artigo 291., os actos e diligncias de prova praticados no inqurito no so, em regra, repetidos; a deciso instrutria visa apenas comprovar a avaliao feita no final do inqurito pelo Ministrio Pblico, e no formar uma nova convico totalmente autnoma da anterior.

    Assim, o que distingue fundamentalmente o juzo de probabilidade do juzo de certeza a confiana que nele podemos depositar e no o grau de exigncia que nele est pressuposta. O juzo de probabilidade no dispensa o juzo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justia num Estado de direito exige que a convico se forme com base na produo concentrada das provas numa audincia, com respeito pelos princpios da publicidade, do contraditrio, da oralidade e da imediao. Garantias essas que no possvel satisfazer no final da fase preparatria. 3. Indcios suficientes e fortes indcios I. A avaliao sobre a suficincia dos indcios no o nico juzo indicirio possvel no processo penal antes da deciso final. Em diversas outras ocasies h a necessidade de avaliar do mrito das provas j recolhidas.

    O problema pode colocar-se logo no momento da abertura do processo. De facto, situaes h em que se pode questionar se no se deve exigir uma avaliao indiciria prvia deciso de abertura de um processo penal45.

    De grande interesse seria tambm averiguar se a constituio de uma pessoa como arguido dever, ou no, pressupor sempre a formulao de um determinado juzo indicirio mnimo46. Qual a intensidade dos indcios exigvel para se afirmar que o inqurito est a correr contra pessoa determinada e aplicar consequentemente o regime dos artigos 58., n. 1, alnea a), e 272., n. 1?

    Uma anlise do significado de cada uma das possveis avaliaes indicirias ao longo do processo penal, porm, extravasa o mbito do presente estudo47.

    II. Uma dessas situaes, contudo, merece uma referncia especial, ainda que breve, dado que est muito prxima da que nos tem vindo a ocupar.

    45 Sempre que o Ministrio Pblico receba uma denncia que respeite os requisitos previstos no artigo 246. e mencione factos que constituam um crime pblico, a obrigatoriedade de abrir de imediato um inqurito decorre do n. 2 do artigo 262.. Mas o problema j se poder colocar quando a denncia no cumpra os mencionados requisitos (uma carta annima, por exemplo) ou quando houver dvidas quanto relevncia criminal dos factos nela relatados ou quanto legitimidade do Ministrio Pblico no caso concreto. 46 De salientar que o artigo 251. do CPP de 1929, aps a reforma de 1972, passou a definir arguido como aquele sobre quem recaia forte suspeita de ter perpetrado uma infraco cuja existncia esteja suficientemente comprovada. Tal definio foi omitida no actual CPP. 47 Exemplos de outras possveis avaliaes indicirias com particular relevo na fase preparatria do processo penal: a pressuposta na deciso de proceder a revistas e buscas (artigo 174.); a de saber se o crime est imputado ao agente, para efeitos de aplicao de determinadas medidas de coaco menos gravosas (artigos 197. a 199.).

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  • Trata-se da exigncia da verificao de fortes indcios da prtica de um crime para permitir a deteno ou a aplicao ao arguido de determinadas medidas de coaco mais graves, nomeadamente da priso preventiva - alnea b) do n. 3 do artigo 27. da Constituio da Repblica Portuguesa e artigos 200. a 202. do CPP.

    A avaliao subjacente afirmao da existncia de fortes indcios ter um contedo mais ou menos exigente do que a contida na expresso indcios suficientes?

    A resposta que a nossa jurisprudncia tem dado a esta questo est longe de ser uniforme48.

    Atendendo forma como o legislador se expressou e sobretudo gravidade das medidas em causa, inclino-me a pensar que essa avaliao no poder ter um contedo menos exigente. Fortes indcios da prtica de um crime no pode significar menos que indcios de que resultem uma possibilidade razovel de condenao.

    O contedo que atrs defendi para o conceito de indcios suficientes leva-me a concluir que as duas expresses devem ter um significado semelhante. Ambas pressupem uma convico, face aos elementos de prova disponveis, da probabilidade da futura condenao do arguido.

    Para os autores que aderem teoria da probabilidade predominante para caracterizar o conceito de indcios suficientes, j far todo o sentido adoptar para o conceito de fortes indcios um significado mais exigente, que traduza uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenao49.

    De salientar que, enquanto que a avaliao da suficincia dos indcios efectuada sempre no final do processo preparatrio (no final do inqurito e no final da instruo), portanto com a fase de recolha de provas que fundamentam a acusao j concluda, a deciso relativa aos fortes indcios pode ter lugar em qualquer altura do processo, sendo naturalmente tomada com base nos elementos de prova disponveis no momento em que proferida 50.

    Aceitar que a expresso fortes indcios pressupe uma verdadeira convico de probabilidade de futura condenao implica reconhecer que, sendo a deteno ou a medida de coaco grave, nomeadamente a priso preventiva, ordenada durante o inqurito, no momento em que o respectivo mandado ou despacho proferido esto j reunidos os indcios suficientes para ser deduzida acusao51.

    48 Vejam-se exemplos dessa desorientao em PEDRO TEIXEIRA DE S, Fortes Indcios de Ilegalidade da Priso Preventiva, publicado na Scientia Ivridica, Tomo XLVIII (1999), n. 280/282 (Julho/Dezembro), pgina 400, nota 36. 49 Assim o faz PEDRO TEIXEIRA DE S, Fortes Indcios citado na nota anterior, pginas 400 e seguintes; no mesmo sentido se pronuncia GRACINDA RODRIGUES, Que Indcios? citado na nota 21, pgina 26. 50 Da que faa todo o sentido o reexame peridico obrigatrio dessa avaliao indiciria, pelo menos enquanto no for deduzida acusao. Antes da acusao, o reexame obrigatrio, actualmente apenas previsto para a priso preventiva, deveria ser alargado s restantes medidas de coaco que pressupem a verificao de um juzo indicirio qualificado. 51 Os indcios que fundamentam a acusao podem no estar ainda todos recolhidos. Mas os que j se recolheram devem ser quantitativa e qualitativamente suficientes para formar uma convico de probabilidade de futura condenao. Da que me paream exagerados os prazos que o CPP prev para a durao mxima das medidas de coaco mais graves at ser deduzida acusao (6, 8 ou 12 meses, consoante a gravidade do crime e a complexidade do processo artigos 215. e 218.).

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  • 4. Indcios suficientes e princpio do acusatrio I. A exacta compreenso da importncia da avaliao da suficincia dos indcios para permitir a transio da fase preparatria para a fase de julgamento evidencia a necessidade de evitar que tal avaliao seja feita pelo mesmo magistrado que vai julgar a causa. Essa uma exigncia basilar do princpio do acusatrio, o qual, visando a mxima garantia de imparcialidade, impede de intervir na formulao do juzo de certeza o magistrado que tenha formulado o juzo de probabilidade.

    Efectivamente, a necessidade de formular um autnomo juzo de certeza depois de se concluir por um juzo de probabilidade no um mero preciosismo do legislador processual penal. uma imposio para obter uma deciso justa e imparcial, dado que a convico alcanada durante o processo preparatrio no rene as condies necessrias para fazer justia num Estado de direito. Como j foi salientado, ela uma convico baseada em boa medida em provas recolhidas unilateralmente pelo Ministrio Pblico e rgos de polcia criminal, sem garantia de total contraditrio, com segredo de justia, sem imediao nem oralidade e sem publicidade.

    Pelo contrrio, a convico de certeza h-de basear-se na produo concentrada, pblica, com oralidade e imediao, de todas as provas, devidamente contraditadas por todos os sujeitos processuais.

    Permitir que pudesse julgar a causa um magistrado que j tivesse formulado juzos de apreciao dos indcios existentes, considerando-os suficientes ou insuficientes, seria fazer perigar a confiana geral na objectividade da justia, pois seria legtimo duvidar que esse magistrado se iria abstrair das concluses j formuladas para criar uma convico nova, apenas baseada nas provas produzidas na audincia de julgamento.

    Assim, estar impedido de julgar a causa o magistrado que, no final da fase preparatria, j tiver avaliado a suficincia ou insuficincia dos indcios52 53.

    II. Merece, por isso, a minha concordncia, a forte limitao dos poderes de apreciao liminar da causa pelo juiz de julgamento, que a reforma de 1998 veio clarificar. Por fora do novo n. 3 que a Lei n. 59/98 aditou ao artigo 311., fica esclarecido que o saneamento do processo versa questes meramente formais, no podendo em caso algum a acusao ser rejeitada nessa fase processual por insuficincia de indcios. E esta limitao impe-se quer a acusao tenha sido formulada pelo Ministrio Pblico, quer o tenha sido pelo assistente. Outra 52 Esta soluo est implcita no artigo 40.. A referncia nele contida presidncia do debate instrutrio, porm, deveria, no bom rigor dos princpios, reportar-se prolao da deciso instrutria. No por presidir ao debate instrutrio que o juiz faz perigar a confiana pblica na sua imparcialidade, mas sim por, depois de ter encerrado esse debate, proferir a deciso instrutria, avaliando formalmente a suficincia dos indcios. 53 Mais controversa se revela a questo de saber se a formulao de outros juzos indicirios, nomeadamente a afirmao da existncia de fortes indcios como pressuposto da emisso de mandado de deteno ou de aplicao de medida de coaco grave, deve, ou no, ser considerada um impedimento para o julgamento. No , porm, este o lugar prprio para aprofundar o assunto. Para uma sntese da abundante jurisprudncia do Tribunal Constitucional sobre este tema veja-se o recente Acrdo n. 297/2003, de 12 de Junho, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 229, de 3 de Outubro de 2003.

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  • interpretao seria sempre violadora da estrutura acusatria constitucionalmente consagrada. E isto porque obrigaria o juiz a, antes de marcar a data da audincia, avaliar, atravs da leitura dos autos, o mrito dos indcios recolhidos, para concluir pela sua no manifesta insuficincia. A marcao da data da audincia, se assim fosse, pressuporia a formao de uma convico prvia quanto ao mrito da causa, fundada na leitura dos autos. Ora precisamente a afirmao dessa convico prvia que o princpio do acusatrio quer evitar. E isto sucede, no por se entender que o juiz no seja capaz de se abstrair dela e de a substituir por outra convico formada apenas com base nas provas produzidas na audincia, mas sim para que no haja qualquer motivo que justifique essa desconfiana. Se o despacho que marcasse a data da audincia implicasse o reconhecimento de que a acusao no seria manifestamente infundada, haveria motivos para desconfiar que uma eventual sentena condenatria posterior se pudesse ter baseado nessa convico liminar, em vez de se basear apenas na avaliao das provas produzidas na audincia54.

    Deve, por isso, ser reafirmado que a apreciao liminar do processo pelo juiz de julgamento no pode de forma alguma ser equiparada comprovao da suficincia dos indcios levada a cabo pelo juiz de instruo. Insistir nesta equiparao revela, acima de tudo, incapacidade para compreender a relevncia do princpio do acusatrio e das consequncias da consagrao constitucional da estrutura acusatria do processo penal portugus. 5. Indcios suficientes e princpio da iniciativa processual das partes I. No sistema do actual CPP, o juiz de instruo s avalia a suficincia dos indcios, proferindo despacho de pronncia ou de no pronncia, se tal lhe for solicitado pelo arguido ou pelo assistente.

    No foi assim durante a vigncia do CPP de 1929, pelo menos para a forma de processo de querela: a submisso de uma pessoa a julgamento pressupunha sempre a prolao de um despacho de pronncia e, portanto, uma avaliao judicial da suficincia dos indcios.

    A soluo do actual CPP manifestao de um princpio nele consagrado, que tem repercusses relevantes em todas as fases do processo penal, e que podemos designar por princpio da iniciativa processual das partes: jurisdio est, em regra, vedada a iniciativa da sua prpria interveno. O juiz s exerce o seu poder soberano de administrar a justia quando uma outra entidade exterior solicite formalmente a sua interveno.

    Assim, a avaliao da suficincia dos indcios pode no ser judicialmente comprovada, nomeadamente quando o arguido no requeira a abertura da instruo.

    54 Sobre os fundamentos dos impedimentos do juiz e da necessidade de garantir a confiana geral na objectividade da justia veja-se, por todos, CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal citado na nota 11, Volume 1., pginas 135 e seguintes. Pelo que fica defendido resulta clara a minha discordncia relativamente interpretao fixada pelo Supremo Tribunal de Justia no Assento n. 4/93, citado na nota 26, cuja soluo contrariava o n. 5 do artigo 32. da Constituio. Em sentido semelhante, veja-se ANA ISABEL AMADO DOS SANTOS BALTAZAR NUNES, Acusao Manifestamente Infundada: Anlise do artigo 311., n. 2, alnea a), do CPP. O Juzo Probatrio na Formulao da Acusao, relatrio de mestrado apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 1998.

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  • certo que, em todos os crimes pblicos e semi-pblicos, a suficincia dos indcios, nos casos em que no seja requerida instruo e o processo siga para julgamento, ter sido avaliada e afirmada pelo Ministrio Pblico - rgo do Estado dotado de autonomia, cuja actuao se rege por critrios de estrita objectividade.

    Nos crimes particulares, porm, a avaliao indiciria feita pelo assistente, atravs da acusao particular, pode ser suficiente para desencadear o julgamento. Basta que o arguido opte por no requerer a instruo55.

    II. Ser inconstitucional esta possibilidade admitida pelo CPP de haver um julgamento penal sem uma afirmao prvia da suficincia dos indcios por parte de um rgo do Estado?

    H quem defenda que sim, entendendo ser um dever indeclinvel do Estado evitar julgamentos criminais inteis, salvaguardando oficiosamente os inocentes de perseguies injustas56.

    Embora concordando que se devem, em regra, evitar julgamentos inteis, no creio que a afirmao prvia da suficincia dos indcios por parte de um rgo do Estado seja uma imposio constitucional. O que est em causa fundamentalmente o direito pessoal ao bom nome e reputao do arguido, do qual o prprio poder prescindir, se preferir dar prevalncia celeridade processual. A Constituio obriga a que seja dado ao acusado o direito de solicitar a comprovao judicial da suficincia dos indcios. Mas no obriga a que essa comprovao seja feita mesmo contra a sua vontade57.

    A concluso seria porventura outra se o simples facto de o assistente deduzir uma acusao contra algum acarretasse automaticamente consequncias restritivas autnomas para os direitos fundamentais do acusado, como poderia eventualmente resultar do artigo 290. do CPP de 1929, antes da reforma de 1972. Ora no isso o que se passa hoje: o estatuto de ru, ou de acusado, no importa deveres adicionais autnomos em relao aos que j so inerentes ao estatuto de arguido.

    55 Num plano de direito a constituir, seria porventura prefervel prever a abertura obrigatria de instruo nos crimes particulares, sempre que o Ministrio Pblico, na avaliao prevista no n. 3 do art. 285., entendesse ser infundada a acusao particular. 56 A defesa desta posio pode ver-se, por exemplo, no despacho de 1 de Julho de 2002 do Tribunal Judicial de Cuba, que foi objecto de recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, pelo Acrdo n. 276/2003, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 229, de 3 de Outubro de 2003, concluiu pela no inconstitucionalidade da norma constante da alnea a) do n. 2, conjugada com o n. 3, do artigo 311.. No mesmo sentido se havia j pronunciado o mesmo Tribunal pelo Acrdo n. 101/2001, de 14 de Maro, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 131, de 6 de Junho de 2001. Considerando a no obrigatoriedade da fase instrutria como compatvel com a Constituio veja-se tambm o Acrdo do Tribunal Constitucional n. 610/96, de 17 de Abril, publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 155, de 6 de Julho de 1996. 57 E ser compatvel com a Constituio uma soluo que, tal como sucedia na vigncia do CPP de 1929, preveja a comprovao judicial dos indcios, mesmo quando o arguido a no tenha requerido? O Ministrio Pblico chegou a defender que no, a propsito de um tema controverso o dos efeitos da deciso instrutria sobre os co-arguidos no requerentes da instruo. O Tribunal Constitucional, porm, no lhe deu razo (veja-se o Acrdo n. 226/97, citado na nota 25). E julgo que com razo. O princpio da iniciativa processual das partes no uma exigncia constitucional. O que j no se revela compatvel com a Constituio defender, para remediar a falta de controlo judicial sobre a avaliao indiciria nos casos em que no seja requerida instruo, um reforo dos poderes do juiz de julgamento no momento do saneamento do processo, atribuindo ao julgador um papel que apenas pode ser desempenhado pelo juiz de instruo.

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  • Assim, na perspectiva das garantias de defesa, a abertura da instruo corresponde ao exerccio de um direito potestativo. Se o arguido preferir, pode optar por se sujeitar ao julgamento imediato, dando primazia ao seu direito a um processo clere, tambm ele constitucionalmente consagrado.

    Esta soluo de permitir a submisso de uma pessoa a julgamento penal dispensando uma avaliao judicial da suficincia dos indcios pressupe, a meu ver, que seja dado ao arguido, no momento em que notificado da acusao, a informao necessria para se poder concluir que a no apresentao do requerimento de abertura da instruo representa uma omisso consciente, nomeadamente quanto s consequncias que acarreta.

    Julgo, por isso, de aplaudir a consagrao da obrigatoriedade de nomeao de defensor ao arguido antes deste ser notificado da acusao, que a reforma de 1998 veio prever atravs do novo n. 3 aditado ao artigo 64.. Esta soluo permite que o acusado possa esclarecer devidamente as opes processuais que se lhe colocam aps tomar conhecimento da acusao58.

    A lei poderia, alm disso, prever expressamente que a notificao da acusao fosse acompanhada de uma explicao, ainda que sucinta, da principal opo que dela decorre para o arguido, semelhana do estatudo no n. 2 do artigo 58.. 6. Concluses Das reflexes levadas a cabo nas linhas anteriores podem tirar-se as seguintes concluses fundamentais:

    a) Constitui uma fundamental garantia de defesa do arguido o direito de no ser submetido a julgamento penal seno havendo indcios suficientes de que praticou um crime;

    b) Esse direito deve ser entendido como uma importante manifestao do princpio da presuno de inocncia do arguido, o qual est presente ao longo de todo o processo penal;

    c) A expresso indcios suficientes exige uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenao, pressupondo a formao de uma verdadeira convico de probabilidade dessa condenao;

    d) O princpio da presuno de inocncia deve estar tambm presente na avaliao da suficincia dos indcios e ser compatvel com o contedo normativo a atribuir a esse juzo indicirio;

    58 A redaco do n. 3 do artigo 64., porm, permite a dvida sobre se a obrigatoriedade de nomeao de defensor se aplica aos crimes particulares, nomeadamente nos casos em que a acusao no deduzida pelo Ministrio Pblico, mas apenas pelo assistente. Os argumentos avanados anteriormente levam-me a defender essa obrigatoriedade. A reforma de 1998 nesta matria revela ainda uma outra lacuna: no esclarece quais as consequncias do incumprimento da obrigao de nomear defensor ao arguido antes de este ser notificado da acusao. Na verdade, o regime da mera irregularidade, que aparentemente seria a soluo a defender face ao silncio da lei (por fora do n. 2 do artigo 118.), no se coaduna, em minha opinio, com a gravidade do vcio em causa. A situao deveria ter sido equiparada prevista na alnea c) do artigo 119..

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  • e) Para isso acontecer, necessrio que a suficincia dos indcios s se afirme nos casos em que quaisquer dvidas razoveis quanto futura condenao do arguido sejam previamente afastadas;

    f) Por tudo isto, no faz sentido afirmar que o juzo de suficincia dos indcios traduz uma avaliao menos exigente que a avaliao contida na sentena final.

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