Dossie Samba RJ
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
Dossi das Matrizes
do Samba no Rio de Janeiropartido-alto samba de terreiro samba-enredo
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
Dossi das Matrizes
do Samba no Rio de Janeiropartido-alto samba de terreiro samba-enredo
proponente
Centro Cultural Cartola
superviso e financiamento
Iphan/MinC
apoio
SEPPIR Fundao Cultural Palmares
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
Sapateia mulata bambaSapateia em cima do salto
Mostra que s filha do samba
Do samba de partido-alto
O samba tem a sua escolaE a sua academia tambm
Como dana, uma boa bolaNs sabemos o gosto que tem
Sapateia mulata bambaSapateia em cima do salto
Mostra que s filha do sambaDo samba de partido-alto
Voc seja de que linha forQue eu prefiro a de umbanda
Quando no samba vejo meu amorSapeco logo uma boa banda
Sapateia mulata bambaSapateia em cima do salto
Mostra que s filha do sambaDo samba de partido-alto
Ca, ca! Ca, ca! Ca, Cabeaci!Eu tenho o corpo fechado
Lamento o tempo que perdiAndando no mundo errado
Sapateia mulata bamba
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
Muito velho, pobre velho
Vem subindo a ladeiraCom a bengala na mo o velho, velho Estcio
Vem visitar a MangueiraE trazer recordao
Professor chegaste a tempoPra dizer neste momento
Como podemos vencerMe sinto mais animadoA Mangueira a seus cuidados
Vai cidade descer
Velho EstcioCartola
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
A grande paixoQue foi inspirao
Do poeta o enredo
Que emociona a velha guardaL na comisso de frente
Como a diretoriaGlria a quem trabalha o ano inteiro
Em mutiroSo escultores, so pintores, bordadeirasSo carpinteiros, vidraceiros, costureiras
Figurinista, desenhista e artesoGente empenhada em construir a iluso
E que tem sonhosComo a velha baiana
Que foi passistaBrincou em ala
Dizem que foi o grande amor de um mestre-salaO sambista um artista
E o nosso Tom o diretor de harmoniaOs folies so embalados
Pelo pessoal da bateriaSonho de reis, de pirata e jardineiraPra tudo se acabar na quarta-feira
Mas a quaresma l no morro coloridaCom fantasias j usadas na avenida
Que so cortinasQue so bandeirasRazes pra vida
To real na quarta-feira por isso que eu canto...
Pra tudo se acabar na Quarta-FeiraMartinho da Vila
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partido-alto samba de terreiro samba-enredosum
rio
Introduo
Histria
Datradioafricana
Notasparaumahistriaafro-carioca
DeixaFalar,osambaeaescola
Descrio
Amsica
Apoesia
Adana
Acena
Aroda
Areligiosidade
Acomida
Osinstrumentos Abandeira
Asbaianas
Asvelhasguardas
Oterreiro
Atransmissodosaber
Lugares
Mangueira
Portela
ImprioSerrano
Salgueiro
SoCarlos/EstciodeS
VilaIsabel
Mapadosambacarioca
As70escolasdoRiodeJaneiro
Escolasextintas
Escolas-mirim
Outroslugares
Atoresdosamba
Situao
Justificativa
Objetodoregistro
Recomendaesdesalvaguarda
Depositriosdatradio
Referncias
Bibliografia
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0808
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
O presente trabalho, realizado no Rio de Janeiro
entre janeiro e outubro de 2006, tem por objetivo
reunir num dossi textos tericos e documentos que
reorcem a importncia para a cultura brasileira das
matrizes do samba no Rio de Janeiro.
O reconhecimento do samba de roda do Recncavo
Baiano como Patrimnio Imaterial da Humanidade,
em 2005, motivou o Centro Cultural Cartola a
analisar os variados estilos de samba no Rio de
Janeiro, que se originaram nas reunies musicais em
casa de Tia Ciata, no Estcio, nas escolas de samba,
nos blocos, nos morros, nas ruas, nos quintais.
No obstante existirem prticas musicais identicadas
pelo termo samba, como o samba de roda do
Recncavo e o samba rural paulista, no panorama
musical brasileiro o samba no Rio de Janeiro se
destaca por ser um enmeno cultural pujante
que atravessou o sculo XX, passando de alvo de
discriminao e perseguio nas primeiras dcadas
a ritmo identicado com a prpria nao, a ponto
de ser um de seus smbolos.
Essa passagem gradual de gnero perseguido a
smbolo nacional oi, em parte, uma contingncia
relacionada ao ato de, nos anos 30 e 40, ser o Rio
a capital do pas, possibilitando o encontro entre
as elites do samba, como Donga e Joo da Baiana,
e as elites intelectuais que orientavam as polticas
culturais do Estado, como Villa-Lobos e Mrio de
Andrade. Mas undamental observar que a atuao
dos prprios sambistas no sentido da aceitao e do
reconhecimento do gnero pelo establishment oi de
importncia decisiva.
Os processos de ocializao ou nacionalizao
do samba descritos por estudiosos como Hermano
Vianna e Cludia Matos no conseguiram calar as
ormas genunas praticadas no Rio de Janeiro. E no
s isso: pode-se armar que oram seus primeiros
cultores, pobres, negros e excludos, os principais
responsveis por essa conquista, tomando para si a
introdu
o
liderana do processo de armao gradual do samba,
urdido em diversos atores que vo da excelncia de
sua expresso criativa ao capricho da indumentria e
o emprego de palavras rebuscadas, no que se poderia
resumir modernamente por atitude.
Como resultado, o samba reconhecido como a
msica popular do Brasil por excelncia. Ele ocorre
em todo o pas, num sem-nmero de gneros e
subgneros, maniestaes musicais, de dana e de
celebraes da vida, originadas do que oi semeado
ao longo dos sculos pelas populaes aricanas e
aro-descendentes que aqui viveram e vivem.
No comeo do sculo XX, comunidades negras do
Rio de Janeiro excludas de participao plena nos
processos produtivos e polticos ormais, persegui-das
e impedidas de celebrar abertamente suas olias e sua
deram orma a um novo samba, dierente dos
tipos ento conhecidos, que viria a ser chamado de
samba urbano, samba carioca, samba de morro ou
simplesmente samba. Elas tambm criaram as escolas
de samba, espaos de reunio, troca de experincias,
estabelecimento de redes de soli-dariedade, criao
artstica e esta.
Essas comunidades, duramente atingidas pela
reorma urbana da primeira dcada do sculo, que
as aastou do Centro, resistiram e responderam
excluso e ao preconceito, dentre outras maneiras,
atravs do samba e das escolas, expresses populares
de alto valor artstico e grande poder de integrao. O
samba oi e um meio de comunicar experincias e
demandas, individuais e de grupo; a escola de samba,
nos terreiros/quadras e em seu momento maior, o
desle, que inicialmente se dava na Praa Onze, oi e
um exerccio de poltica social ao levar os sambistas
a reocupar as ruas, num processo de conquista e
armao social que, embora avanando, ainda no
oi concludo.
Em pouco tempo, o samba do Rio de Janeiro se
espalhou pelo Brasil, inicialmente atravs do rdio e
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do disco. As escolas de samba atraram mais e mais o
interesse de segmentos sociais diversos, aproxi-mando
sambistas, classe mdia, intelectuais, mdia, poder
pblico, polticos, indstria do entretenimento e
do turismo.
O samba e os sambistas participaram ativamente
da construo da identidade nacional brasileira. O
samba virou sinnimo de Brasil.
Esta pesquisa busca situar o valor do samba no Rio
como patrimnio, mostrando seu papel undamental
na tradio cultural desta cidade e como reerncia
cultural nacional, j que um importante ator dearmao da identidade brasileira, alm de onte de
inspirao e de trocas interculturais para alm de
suas ronteiras geogrcas.
A pesquisa obedeceu metodologia do Inventrio
Nacional de Reerncias Culturais do Iphan,
instituio que garantiu ainda a superviso tcnica
indispensvel e o apoio nanceiro.
Na primeira etapa da pesquisa, de constituio daequipe, oram convocados ao trabalho pesquisadores
que estivessem intimamente ligados a essa produo
cultural brasileira, capazes de deender, no o
engessamento dessa cultura viva e dinmica, mas
o respeito, o reconhecimento e a transmisso de
sua tradio, nos aspectos que a identiicam e
dierenciam de vertentes que, atualmente, tomaram
a orma de espetculo. Essa tradio o que sustentaos espaos destinados prtica, socializao e diuso
do samba.
Inicialmente, no comeo do sculo XX,tais espaos
eram originalmente chamados terreiros, lugar de
encontro e celebrao dos atores dos guetos, que
ali cantavam e danavam seu samba livre, com as
marcas de sua ancestralidade. Uma das modalidades
de samba praticadas nesse lugar era o samba deterreiro, que cantava as experincias da vida, o amor,
as lutas, as estas, a natureza e a exaltao da sua
escola e do prprio samba.
Praticavam tambm o partido-alto, nascido das
rodas de batucada, no qual o grupo marcava o
compasso batendo com a palma da mo e repetindo
versos envolventes que constituam o rero. No
partido-alto o rero se repete e os versos que se
seguem, improvisados, normalmente (mas no
necessariamente) obedecem ao tema proposto.
tambm o rero que serve de estmulo para que um
participante v ao centro da roda sambar e com um
gesto ou ginga de corpo convide outro componente
da roda a ocupar o centro.
A partir da estruturao progressiva das escolas de
samba, no nal da dcada de 1920, criou-se o samba-
enredo, aquele em que o compositor elabora os seus
versos paraapresentao no desle. Ao longo do
tempo, ele adquiriu caractersticas prprias, como
a capacidade narrativa de descrever de maneira
meldica e potica uma histria o enredo que
se desenrola durante o desle. De sua animao e
cadncia depende todo o conjunto da agremiao,
em termos de evoluo e envolvimento harmnico.O samba-enredo agrega caractersticas dos dois
primeiros subgneros descritos, como, por exemplo,
a presena marcante do rero e a incluso, quase
sempre nas entrelinhas, de experincias e sentimentos
dos sambistas, desaando a ria objetividade de
alguns enredos.
O recorte contemplou as trs ormas de expresso que
mais intimamente se relacionam com o cotidiano,com os modos de ser e de viver, com a histria e
a memria dos sambistas. Em todo o universo do
samba no Rio de Janeiro essas trs ormas de expresso
samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo so
as que implicam relaes de sociabilidade: sua prtica
est enraizada no cotidiano dos sambistas, na vida
das pessoas, tendo, portanto, continuidade histrica.
Avaliou-se que a pesquisa necessria instruo doprocesso de registro deveria ocalizar seis escolas de
samba representativas da constituio das matrizes
pesquisadas: Estao Primeira de Mangueira, Portela,
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
Imprio Serrano, Acadmicos do Salgueiro, Unidos
de Vila Isabel e Estcio de S, bastante representativas
do universo do samba carioca, sobretudo por sua
localizao geogrca em redutos tradicionais de
sambistas: Mangueira, Estcio, Tijuca, Vila Isabel,
Madureira e Oswaldo Cruz. So escolas que se
organizaram no momento em que essa orma de
expresso, na modalidade samba-enredo, estava
surgindo e se consolidando e que mantm viva a
memria dos que participaram desse processo, do
qual elas so reerncias.
A pesquisa oi direcionada para a descrio do samba
como orma de expresso, o que determinou a diviso
do trabalho, basicamente, em duas rentes:
a) Levantamento das fontes bibliograa (livros,
dissertaes e teses acadmicas, matrias em
peridicos, olhetos e lderes, etc.); discograa
(gravaes em discos 78 r.p.m., discos de vinil, tas
cassete, CDs, etc.); registros audiovisuais (depoimentos
gravados, otograas, lmes e documentrios em
pelcula, ta VHS ou DVD, etc.).
b) Pesquisa de campo para preenchimento de
eventuais lacunas vericadas no corpusdocumental,
oram colhidos novos depoimentos com reconhecidos
depositrios da tradio e realizados registros das
matrizes do samba no Rio de Janeiro em sua orma
contempornea.
medida, porm, que o trabalho avanava, cou
claro que os caminhos e ontes se cruzavam a todo
momento, constituindo-se, na realidade, no no
relato de seis trajetrias paralelas, mas em um s
relato: o da trajetria das mutaes e permanncias
que orjaram a estratgia de resistncia do samba
como orma de expresso de um importante
segmento da populao carioca.O inventrio e registro das matrizes do samba no Rio
de Janeiro oi idealizado pela sambista Leci Brando
e realizado pelo Centro Cultural Cartola, sob a
introdu
o
coordenao de Nilcemar Nogueira. A pesquisa oi
desenvolvida por Helena Theodoro, Rachel Valena
e Aloy Jupiara, com participao de pesquisadores
convidados: Nei Lopes, Roberto Moura, Srgio
Cabral, Carlos Sandroni, Felipe Trotta, Joo Batista
Vargens, Marlia de Andrade, Haroldo Costa e Lygia
Santos. O projeto contou ainda com a colaborao
de Janana Reis, como assistente de pesquisa, e de
alunos do curso de Gesto do Carnaval do Instituto
do Carnaval da Universidade Estcio de S: Ailton
Freitas Santos, Celia Antonieta Santos Deranco,
Cremilde de A. Buarque Arajo, Lilia Gutman P.
Langhi, Luis Antonio Pinto Duarte, MeryanneCardoso, Nelson Nunes Pestana, Paulo Csar Pinto
de Alcntara, Regina Lucia Gomes de S, Sergio
Henrique Vieira Oliveira e Wellington Pessanha. As
gravaes em vdeo oram realizadas por Luiz I. Gama
Filho (direo) e Cristina Gama Filho (produo); o
registro otogrco, por Diego Mendes.
Paralelamente ao levantamento, oram promovidos
debates na Associao das Escolas de Samba daCidade do Rio de Janeiro (AESCRJ), no Museu da
Imagem e do Som (MIS) e no Instituto do Carnaval
da Universidade Estcio de S, alm de reunies
semanais da equipe de pesquisa no Centro Cultural
Cartola, e periodicamente discutido o andamento
do projeto com o Iphan em encontros no Centro
Nacional de Folclore e Cultura Popular. O pedido
de registro conta com o apoio da Liga Independentedas Escolas de Samba do Rio.
Cumpre nalmente ressaltar que no dia 7 de outubro
de 2006 realizou-se no Centro Cultural Cartola um
encontro de velhas guardas e guras tradicionais
das escolas de samba com o objetivo de troca de
experincias, registro de prticas e consolidao do
projeto.
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Tendo como marco a localidade denominada Pedra
do Sal, no morro da Conceio,na zona porturia do
Rio de Janeiro, nas primeiras dcadas do sculo XX,
o samba carioca se apresenta desde sua origem como
um elemento de expresso da identidade cultural dapopulao negra. Naquele momento decisivo em que
o negro acabava de conquistar o direito de vender sua
ora de trabalho, oi determinante a ormao de uma
rede de solidariedade e sustentao que resultou num
contato cultural enriquecedor e na miscigenao das
vrias etnias que aqui vieram ter e conviveram.
A modernizao da cidade e a situao de transio
nacional fazem com que indivduos de diversas
experincias sociais, raas e culturas se encontrem nas
las da estiva ou nos corredores das cabeas-de-porco,
promovendo essa situao, j no m da Repblica
Velha, a formao de uma cultura popular carioca
denida por uma densa experincia sociocultural que,
embora subalternizada e quase que omitida pelos meios
de informao da poca, se mostraria, juntamente com
os novos hbitos civilizatrios das elites, fundamental
na redenio do Rio de Janeiro e na formao de sua
personalidade moderna. 1
Com a drstica interveno urbanstica realizada pelo
preeito Pereira Passos na primeira dcada do sculo
XX promovida com o intuito conesso de limpar
a cidade de tudo que signicasse pobreza, doena e
atraso, dando eio que se pretendia moderna a uma
metrpole que se queria europia essa populao
marginalizada se reuniu na regio conhecida como
Cidade Nova e a, em torno da casa da baiana TiaCiata, ormou um poderoso ncleo de resistncia
cultural, cuja produo vigorosa comeou a urar o
bloqueio social, econmico e geogrco. Em 1917,
pela primeira vez, um selo de disco de 78 r.p.m. trouxe
no campo reservado descrio do gnero musical
a palavra samba.
Embora existisse antes dessa data e a palavra j osse
ento diundida, o ano de 1917 que entrou para
a histria como o do nascimento do novo gneromusical. E seus autores e criadores eram exatamente
os participantes dessa comunidade organizada da
Cidade Nova, reqentada tambm por gente de outras
histria
partes da cidade, atrada pela riqueza da cultura que
ali forescia.
Aproximadamente uma dcada depois, o recm-nascido
gnero soreria uma importante interveno, no
Estcio, ao p do morro de So Carlos.
A organizao do samba em grupos que receberam
o pomposo nome de escolas acarretou o surgimento
de um subgnero, o samba-enredo, composto para
servir de trilha sonora aos desles carnavalescos,
mas que transcendeu essa determinao sendo hoje
cantado durante todo o ano em reunies de sambistas
dentro ou ora das quadras e tendo conquistado
absoluta hegemonia no Rio de Janeiro como msicade carnaval.
Na descrio que se segue, em que as matrizes do
samba carioca sero abordadas com mincia, ser
possvel detectar que houve permanncia, ao longo
de quase um sculo, das principais caractersticas
que marcaram o seu surgimento. Apesar de sua
bem-sucedida trajetria em direo a um patamar de
reconhecimento como smbolo da nao, o samba
logrou conservar suas caractersticas mais essenciais,seja na potica, na musicalidade, no ritmo, na
coreograa, nas celebraes, nos ritos. As concesses
eitas participao de todas as camadas da populao
nas escolas de samba ocasionaram transormaes,
mas ainda assim possvel identicar traos dessas
matrizes, que continuam a azer parte do cotidiano
de uma parcela considervel da populao com uma
intensidade e um vigor tpicos das maniestaes
autnticas da cultura popular.
1 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena frica no Rio deJaneiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,1995. p. 86-7.
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. Da tradio africanaMuito antes de o gnero ganhar o alto estatuto de
msica popular brasileira por excelncia e componente
undamental da identidade nacional, o termo samba,
na acepo de msica e dana praticada em roda e ao
ritmo de tambores, palmas, etc., j circulava em vrias
regies do pas.
Antnio Geraldo da Cunha data de 1890 a entrada
do termo na lngua portuguesa, provavelmente
usando como abonao texto de Alusio Azevedo
no romance O cortio. Mas j em 1886 Jos Verssimo
dava-o como de origem pereitamente assentada.
O llogo Macedo Soares, entretanto, registra essaentrada em 1884: No acreditamos que a dignidade do
pas osse ultrajada porque nas ronteiras do Brasil com
as Guianas rancesas, um mascate em hora de samba,
ou de libaes, ousou arriar do respectivo mastro o
pavilho nacional (A Folha Nova, jornal da Corte). E
em 1889, o dicionarista Beaurepaire-Rohan j o denia
como espcie de bailado popular.
No Brasil, a tradio de danas em roda e caracterizadas
pela umbigada provm certamente do extrato bantoormador de boa parte da cultura aro-brasileira, sendo
observada por viajantes no interior de Angola no sculo
XIX. Marcel Soret, na obra Les Kongo Nord-Occidentaux
observou entre os povos objeto de seus estudos
tambm cantos e danas de aparncia licenciosa, que
na verdade nada mais so que antiqssimos hinos
ecundidade. Karl Laman, no Dictionaire Kikongo-
Franais, registra o vocbulo smba (acento grave
na primeira slaba), com, entre outras, as seguintesacepes: pl. ma-samba, espcie de dana o on se
heurte ensemble, contre la poitrine, ou seja, na qual
os danarinos se chocam um com o outro, batendo
de peito. Da mesma orma que na lngua tchokwe, de
Angola, segundo Adriano Barbosa, o vocbulo smba
(graado com acento agudo) tambm, entre outros usos
e signicados, verbo usado na acepo de cabriolar,
brincar, divertir-se (como cabrito). E o quimbundo
registra o verbo semba, agradar, encantar.
Na Angola contempornea, semba ou varina,
em todas as suas innitas variaes, a dana mais
popular da capital, Luanda, notadamente na aixa
martima (Ilha de Luanda, Samba Grande e Pequena,
Ilha do Musulu, Barra do Cuanza, Cacuaco, etc.).
A dana se executa por um sapateado de cadncia
rtmica ligeiramente acentuada, ao som de tambores
(bumbos) e caixas de madeira ou latinhas metlicas. A
coreograa undamental caracteriza-se por uma roda
no centro da qual os danarinos gravitam, remexendo
o corpo e balanando as ancas e, ocasionalmente,
movimentando-se para rente, dobrando o corpo e
executando o sapateado.
A tradio dos povos bantos deu, no Brasil, origem
a toda uma amlia de danas aparentadas, que vai docarimb paraense e do tambor-de-crioula do Maranho
passando pelo coco do litoral nordestino e pelos
sambas do Recncavo e do mdio So Francisco, na
Bahia at o jongo ou caxambu no Sudeste brasileiro,
notadamente no Vale do Paraba. Onde houve negro
banto, l esto as danas de roda, com ou sem
umbigada.
Todas essas danas oram includas por Oneyda
Alvarenga, colaboradora de Mrio de Andrade, dentrodo grande espectro das danas do tipo samba; e
Edison Carneiro, em 1961, listava como ormas de
samba atuais e passadas, entre outras, o caxambu,
o coco, o jongo, o lundu, o partido-alto, o samba de
roda e o tambor-de-crioula.
Mrio de Andrade, em sua pesquisa sobre o
coco nordestino, inormava que, em seu tempo,
principalmente no Cear e em Alagoas os termos coco
e samba muitas vezes se conundiam, para designar a
mesma expresso musical.
Acrescente-se, como j dissemos antes, que escritores
como Euclides da Cunha, em Os sertes, e Alusio
Azevedo, em O cortio, descreveram o que ento se
entendia como samba.
Inegvel, ento, a bem-documentada origem aricana
do samba, a qual, em algum momento, algum se
disps a negar, atribuindo ao gnero origem indgena.Indiscutvel, tambm, sua origem entre os povos bantos
do antigo Congo, que compreendia regies da atual
Angola.
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Resta dizer, apenas, que vrias dessas ormas rurais de
samba chegaram ao Rio de Janeiro, principalmente
durante as migraes ocorridas nos cerca de 50 anos que
se passaram entre a proibio do trco atlntico e a
abolio da escravatura. E, aqui chegadas, amalgamaram-
se, tanto ao gosto, por exemplo, de migrantes bantos do
Vale do Paraba quanto de sudaneses e tambm bantos
vindos da antiga Bahia e do seu Recncavo, tomando
no meio urbano, com o passar dos anos, novas e ainda
mais variadas ormas.
O samba , pois, ruto de ricas tradies aricanas e
aro-brasileiras. E sua proteo, como bem imaterial dopatrimnio cultural nacional, alm de ser um imperativo
constitucional, um dever de conscincia.
.. Notas para uma histriaafro-cariocaDepois de 1810, com as sucessivas abolies em quase
a totalidade dos pases escravagistas, se mantm dois
grandes fuxos de escravos: Brasil e Cuba. Em 1821,
excludas as parquias rurais, o Rio de Janeiro tinha
86.323 habitantes, dos quais 40.376 eram escravos,
a maior populao escrava urbana das Amricas
e do mundo, quando, por exemplo, na cidade de
Nova Orleans, onde tambm se reunia um grande
contingente, havia 15.000 escravos. Por volta de 1830,
com o rpido crescimento populacional propiciado
pelo trco, pela imigrao interna de cativos e de
negros e brancos livres para o Rio, o nmero de escravos
em toda a provncia aumenta consideravelmente,
igualando o da populao livre.
Entre os negros, o dado qualitativamente novo era o
crescimento do nmero de libertos que alugavam seus
servios junto aos negros de ganho, nesse ormidvel
universo do trabalho que era o bairro da Sade. Uma
subcasta de negros livres, alorriados, verdadeiros herisque tinham superado a escravatura dentro das regras
do jogo, comprando sua liberdade, em geral como
resultado do esoro de um grupo, a que se juntavam
muitos ugidos que se escondiam entre essa multido
de trabalhadores, procurando sobreviver e mesmo
comear uma vida nova na cidade. Em 1849 j havia
10.732 negros libertos nas reguesias urbanas, deixando
apreensivos os administradores da corte, temerosos,
como ora a administrao colonial, de um levantenegro na cidade que ultrapassasse o desao permanente
com as ugas e com os quilombos. Temores que haviam
crescido com a revolta de iorubs e mals em Salvador
em 1835, provocando duras medidas municipais contra
os negros dentro do permetro urbano, que repercutiam
nas atitudes do poder imperial e de sua polcia com os
escravos em todo pas.
A escravido nas Amricas ocasiona uma mescla sem
precedente de povos e culturas aricanas , que em algunsmomentos de infexo, ocorridos em determinados
lugares, elabora novas snteses, decisivas na construo
das novas sociedades nacionais que se montam depois
histria
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
do processo abolicionista e do republicanismo que
varrem o continente. No literalmente novo mundo
para o aricano, se d uma reordenao dos valores
e smbolos produzidos na origem aricana rente
condio de escravos e ao convvio entre diversas etniasno cativeiro, o que no Rio ganharia tais peculiaridades
ao longo dessa histria popular da cidade constituindo
uma densa tradio, os princpios msticos coletivizantes
e a cultura armativa e musical, que depois, a partir
da terceira dcada do novo sculo, dariam substncia
s estas da capital ederal e ao seu ascinante universo
de espetculos.
tradicional presena de angoleses e moambicanos
bantos na cidade se soma progressivamente a presena
de negros da rica Ocidental, principalmente das
naes iorub mas tambm negros islmicos, que
passam a migrar regularmente para o Rio, tanto cativos
para serem redistribudos pelas azendas de acar ou
ca, como alorriados baianos que vem reorganizar
suas vidas na capital ugindo das prticas repressivas
que haviam se instaurado em Salvador.
Na segunda metade do sculo, com a progressivadiminuio de aricanos com o m do trco, e com
a mistura entre negros, mulatos, caboclos e europeus,
principalmente portugueses, nos bairros populares e
nas ocupaes mais duras e desprestigiadas, a cidade
tinha se tornado menos aricana e mais crioula. A
populao negra, entretanto, voltaria a crescer com a
decadncia do ca no Vale do Paraba e com as chegadas
sistemticas dos orros baianos. O grupo baiano iria
situar-se nessa parte da cidade onde a moradia era maisbarata, perto do cais do porto, nas reguesias de Santana
e S. Rita, onde os homens, como trabalhadores braais,
obtinham vagas nas docas construdas em meados do
sculo, que absorviam avidamente a mo-de-obra barata
de estivadores, se concentrando os baianos nas ruas e
ladeiras nas vizinhanas da Pedra da Prainha, depois
conhecida por Pedra do Sal.
Se nas ruas a capoeira armava agressivamente a
presena do negro, no mais apenas subalterno e mrtir,a religio dos baianos daria uma nova dimenso ao
negro carioca e em contato com os cultos dos bantos
undaria sob o panteo dos orixs uma religio negra
nacional que no sculo seguinte se multiplicaria
em diversas ormas regionais, tendo como raiz o
candombl e como matriz transormadora a macumba
carioca. O candomblbaiano era, , de uma certa
orma, uma nova liturgia, pois compensa as lacunas nacosmogonia iorub ocasionadas pela escravatura com
uma nova organizao ritual, assentando num mesmo
terreiro os cultos de diversos grupos e cidades, passando
a representar uma pequena rica, os orixs urbanos
com seus assentamentos inicialmente dissimulados
dos senhores e da tropa em quartos ou num barraco,
enquanto as entidades de cu aberto eram cultuadas
nas matas nas cercanias da cidade.
O candombl no Rio to antigo quanto as primeiras
levas de baianos que chegam na capital depois das
revoltas de 1831-1835 em Salvador, e logo, alm dos
cultos amiliares, casas de grande importncia seriam
undadas na cidade. Notcias quase perdidas no tempo
do conta do candombl de Bamboche ou Bambox na
Sade, aricano chegado Bahia na metade do sculo
XIX, que vem para o Rio, onde unda sua casa de santo,
voltando depois para a rica, azendo parte de uma
minoria que retorna logo depois da Abolio.
Entretanto, considerado o candombl seminal a casa
de Joo Alab, de Omulu, na rua Baro de So Flix,
no caminho da zona porturia para a Cidade Nova,
instituio popular que se constituiu numa garantia
para o negro no Rio de Janeiro, vitalizando-o para
resistir e sustentar seus novos caminhos na cidade e
no pas. Suas lhas-de-santo marcaram poca como
as rainhas negras do Rio Antigo: tia Amlia, AmliaSilvana de Arajo, me do violonista e compositor
Donga; Perciliana Maria Constana, ou melhor, tia
Perciliana do Santo Amaro; tia Mnica e sua prodigiosa
lha, Carmem Teixeira da Conceio, a Carmem do
Xibuca, a lha de Alab que vive, sbia e soberana,
at a dcada de 1980 com seus mais de 110 anos; a tia
Bebiana dos ranchos; tia Gracinha, que oi mulher do
grande Assumano Mina do Brasil, sacerdote islmico;
tia Sadata do rancho Rei de Ouro; e a grande tia Ciata(1854-1924), Hilria Batista de Almeida, me-pequena
do candombl de Joo Alab, lideranas undamentais
para uma verdadeira revoluo que se travaria no meio
negro naquela zona depois da libertao.
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo histria
Provavelmente, a casa de Alab tinha ligaes com o
candombl do Il Ax Op Aonj de Salvador, ruto
de uma dissidncia do Il Ix Nass do Engenho Velho,
onde tinha sido eita Ciata. Notcias do conta que
Joo Alab o reqentava, assim como Bambox ora opai espiritual de sua babalorix Aninha. Em 1886 me
Aninha vem ao Rio na companhia de outra iniciada,
Ob Sani, encontrar-se com Bambox, que j estava
na cidade, junto com quem unda a casa no bairro da
Sade, voltando depois para Salvador. Esse candombl
que se extingue com a volta de seu lder para a rica.
Muito tempo depois, Aninha volta capital, onde no
Santo Cristo, na zona porturia, inicia sua lha-de-
santo Conceio de Omulu, que abre uma nova casa.Outras casas tm grande importncia na cidade, como
o candombl de Cipriano Abed de Ogum, na rua do
Propsito e depois na Joo Caetano, e o de Felisberto,
na rua Marqus de Sapuca, guras mitolgicas cujos
contornos pouco vislumbramos, intimamente presentes
na cosmogonia negra da cidade.
Desses candombls matriciais, s resta vivo na cidade
o undado por Me Aninha com Conceio. Depois de
morte desta, sua sucessora Agripina de Xang transere
o ax para o subrbio de Coelho da Rocha, onde at
hoje batem os tambores chamando os orixs. O culto,
e depois a presena cultural daqueles orros, ormam
na cidade uma identidade nag, que se particulariza
progressivamente ganhando uma identidade carioca
a partir do convvio com os bantos, na cada vez
mais infuente dispora baiana no universo popular
da cidade.
Inicialmente sediados na ladeira da Pedra do Sal, nas
casas alugadas por baianos e aricanos para abrigar as
levas de recm-chegados, tornam-se tradicionais na zona
porturia os zungus, casas coletivas ocupadas por negros
escravos e orros, que se dierenciavam dos cortios,
onde cada indivduo ou amlia se apertava em seu
cubculo, apenas partilhando os banheiros e s vezes
a cozinha coletiva. Nos zungus, geralmente iniciados
por naes, amlias, ou por grupos de companheirosde trabalho, as tradies coletivistas negras vindas da
situao tribal organizavam uma vida onde o aspecto
comunitrio e a partilha dos esoros era central. Aos
poucos, se tornam centros de encontro de negros de
diversas origens aproximados pela cidade, chamando
logo a ateno constante dos morcegos, como eram
por eles chamados os guardas urbanos.
Como um dos primeiros sinais pblicos da importncia
dos baianos na vida do Rio, tia Bebiana impe sua esta
da lapinha no Largo de So Domingos, que se torna
um lugar de convergncia dos desles dos pastoris e
ranchos existentes pela cidade na poca do natal ainda
na dcada de 1880. Mas o principal personagem dos
primrdios dos ranchos cariocas oi indubitavelmente
Hilrio Jovino Ferreira, um pernambucano criado no
meio nag em Salvador, que chega ao Rio de Janeiro
na poca indo morar no morro da Conceio, nas
vizinhanas no Beco Joo Incio, onde j saa um
rancho com o nome de Dois de Ouros. Em 1893, ele
unda o Rei de Ouros com um ch danante em sua
casa, o licencia na polcia, e, numa deciso que muda
a histria musical da cidade, decide realizar seu desle
no carnaval, em vez sair no dia de Reis, como aziam
os outros ranchos, em busca de maior liberdade de
movimento e expresso.
Das variantes entre tradies europias ternos,pastoris e aricanas congos, congadas, ticumbis,
cucumbis e aochs , quem se destaca so os ranchos.
Hilrio Jovino, numa entrevista a um jornal1, conta
que em 1872, quando chega cidade, j encontrara os
ranchos. Uma comunidade de auxlio mtuo integrada
por migrantes, sobrevivendo atravs do trabalho pesado
na estiva e do comrcio ambulante, estruturada em
torno dos terreiros e de associaes estivas, que se
tornaria por momentos uma aristocracia popularechada com seus preceitos e movimentos prprios para
depois se abrir cidade moderna como uma resistente
reerncia.
O carnaval muda a caracterstica do rancho, embora ele
no deixe de se vincular s tradies, como na visita de
praxe casa dos notveis entre os baianos, entre os quais
a notria tia Ciata. No carnaval um rancho se desdobrava
num sujo, uma ormao gaiata e satrica; o Bem de
Conta de Hilrio terminaria por ironizar Ciata e seurancho, o Rosa Branca, que responderia com seu sujo
O Macaco Outro, na seqncia dessa histria.2Jornal do Brasil, 18 de janeiro de 1913.
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
Se no incio a presena de negros discreta no carnaval,
uma vez que era vista com desconana pelas oras
repressivas qualquer orma de extroverso do negro e
principalmente maniestaes coletivas, podemos supor
a presena progressiva de blocos de brancos pobres,mestios e negros, a tal democracia racial na base.
Com a brusca mudana no meio negro ocasionada
pela Abolio, que extinguira as organizaes de nao
ainda existentes no Rio de Janeiro, o grupo baiano
seria uma nova liderana. A vivncia como alorriados
em Salvador de onde trouxeram o aprendizado de
ocios urbanos, e s vezes algum dinheiro poupado e
a experincia de liderana e administrao de muitos
de seus membros em candombls, irmandades,
nas juntas ou na organizao de grupos esteiros
os tornariam uma elite no meio negro carioca,
quando se constituem num dos nicos grupos com
tradies comuns, coeso e um sentido amilstico
que, vindo do religioso, expande o sentimento e o
sentido da relao consangnea. Assim, na Sade
se ormara uma dispora baiana cuja infuncia se
estenderia por toda a comunidade heterognea que
se orma nos bairros em torno do cais do porto e
depois da Cidade Nova, povoados por esta gente
pequena que seria tocada para ora do Centro pelas
reormas urbansticas que culminariam com as obras
do preeito Pereira Passos em 1904.
Do encontro desses indivduos de diversas experincias
sociais, raas e culturas na estiva ou nas cabeas-de-
porco, e depois no candombl, na capoeira ou no
rancho, instituies de marcada infuncia negra,resultaria a ormao das matrizes undamentais
da cultura popular carioca. Uma densa experincia
sociocultural que, embora subalternizada e quase
que omitida pelos meios de inormao da poca, se
mostraria, tanto quanto os novos hbitos civilizatrios
importados pelas elites, undamental na redenio
do Rio de Janeiro e na ormao de sua personalidade
moderna.
A Pequena rica, considerando a presena armativado negro na zona porturia do Rio, progressivamente
se estendendo para a Cidade Nova, uma conquista
poltica, a territorializao de seu prprio ambiente de
vida e trabalho onde antes eram escravos, conquista
conrmada, mesmo que ambiguamente, pela Abolio,
j que se mantm os preconceitos na subalternizao,
na pobreza e na represso policial. Sua primeira
experincia como homem livre na capital, emboracontestada pela realidade de cada dia, obtida na marra
pelo capoeira, exigida pelo rito religioso, se consolida
na esta comunitria ou no glamour episdico nos
espetculos-negcio, onde os negros armariam sua
arte, metamorose moderna de antigas tradies.
Insuspeitadamente, mas logo apropriadas por inte-
ressados, surgem novas snteses culturais dessa ral:
instituies populares, ormas de organizao de um
grupo heterogneo e disorme reunindo indivduos
diversos ligados apenas pela situao comum de
excluso; gneros artsticos, musicais, dramticos,
esteiros, processionais, esportivos; novas paixes
populares, estejos, situaes particulares a esta
cidade, que seriam disseminados por todo pas. Em
sua plasticidade, essa cultura popular incorporaria
elementos de diversos cdigos culturais , sobre os quais
as tradies dos negros teriam liderana e dariam coeso
e coerncia, o que tornaria a pluralidade cultural sob
a hegemonia do negro a peculiaridade central dessas
novas snteses.
A contribuio dos baianos se eternizando na macumba
carioca, que reelabora os cultos bantos sob o panteo
dos orixs iorub, permite que uma estrutura de aldeia
se preserve na cidade, enraizada na sua cultura e no
inconsciente coletivo de seu povo e no samba, tornado
msica sntese da brasilidade.A participao do negro no carnaval carioca o Rio
de Janeiro capital nacionalizava suas ocorrncias d
uma nova substncia esta e provoca um rearranjo
nas ormas de participao dos diversos setores da
sociedade que a cidade de hoje herdou.
Assim, nas primeiras dcadas do sculo XX no Rio,
no ambiente conuso e excludente do ps-Abolio,
os negros, que numa primeira acomodao tinham
se bandeado para guetos nos morros do Centro ou
na perieria, perto das estaes do trem suburbano,
gozavam uma primeira e precria ranquia. Legitimados
por uma crescente platia com a adeso de elementos da
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
sociedade, os ranchos dos negros, que inicialmente
se apresentaram no largo de So Domingos e depois
na praa Onze de Junho, no limite da zona, exibiam-
se, organizados em cordes, pelo Catete e Laranjeiras.
No entanto, o grande carnaval, apoiado pela imprensae pelo comrcio, continuava sendo os desles dos
prstitos, os corsos e os bailes. Os negros, sempre na
rua, limitavam-se a uma participao como assistentes
vigiados, sendo praticamente impedidos de se reunir
e se divertir nas ruas e avenidas do Centro, o que por
vezes era transgredido por grupos de jovens avelados,
como os Arengueiros da Mangueira, que desaavam a
sociedade e a polcia deslando com msica, cachaa
e porrada.
A gravao do primeiro samba a azer grande sucesso,
o Pelo Telefone, em 1917, completando a articulao
lundu-maxixe-samba, sucesso absoluto no carnaval,
acompanhada por rumorosos e emblemticos
acontecimentos. Sua criao coletiva se d numa
reunio do rancho Rosa Branca na casa de Ciata,
presentes, alm da prpria, Hilrio Jovino, o emergente
Sinh, Donga dos Oito Batutas e outros. Donga registra
o samba e d parceria ao infuente jornalista Mauro
de Almeida.
Na virada dos anos 1920 Sinh, pianista do clube
Kananga do Japo, comea a dominar como compositor
os carnavais, juntamente com outros compositores
como Caninha e Eduardo Souto, quando, ainda
num momento de adaptao s normas da indstria
cultural, as msicas eram ainda que nem passarinho:
de quem pegar.Mas, como muitos anos depois diria Cartola sobre
aqueles tempos, no havia mesmo um interesse pelo
pessoal do morro e ns tambm no nos interessvamos
pelo pessoal da cidade, vivamos separados3.
A alta de signos potencialmente utilizveis na
construo de uma identidade nacional prpria pelas
elites nacionais internacionalizadas e, mais tarde,
o prprio nacionalismo exacerbado utilizado por
Vargas como instrumento de governo avoreceriam as
primeiras organizaes de sambistas que se renem
por volta de 1928 no Estcio, em Oswaldo Cruz e
nos morros da Favela e da Mangueira. O prprio
termo escola de samba refetiria as expectativas e
a responsabilidade dessas primeiras comunidades
populares que ganham estabilidade nessas ormas de
organizao. Novas snteses proanas de matrizes vindas
das prticas religiosas , que de alguma orma herdavamsua uncionalidade social.
O prprio Sinh nomeava de romances pedaggicos
algumas de suas composies, compreendendo
o samba como ato pedaggico e lhe dando um
sentido diuso de misso. Sim, deveria aquela poesia
musical destilar princpios de uma losoa prtica
do cotidiano aplicvel por aqueles que estavam
numa situao de desvantagem, para os seus, para
seu pblico que se expandia para alm de crculos e
classes na cidade. Conta-se que oi Ciata que, tendo
organizado um pagode numa escola das redondezas da
Praa Onze, d como senha para driblar a polcia o
pagode vai ser na escola, sendo o termo guardado por
suas possibilidades protetoras como por consciente
ou inconscientemente anunciar sua uno para o
negro desprivilegiado. Ismael Silva, outro personagem
crucial, como Cartola, pensava nos mestres do samba
como proessores de aulas tericas e prticas,
sendo os sambas-enredo ormas privilegiadas de
comunicao com as massas.
As escolas se renem em concursos patrocinados pelo
esteiro e pai-de-santo Z Espinguela, todas recebem
trous, as escolas se visitam, se homenageiam, deslam
na Praa Onze de Junho como um desdobramento da
estrutura dos ranchos negros com uma msica mais
quente. As comunidades exultam. A Mangueira, ondeexistiam pequenos ncleos separados de moradores,
ganha com a escola um nexo de coletividade comum.
A corda, marcando os limites do desle, na verdade era
uma proteo contra a polcia, e unciona. O Pequeno
Carnaval acontecia separado. Mas s o comeo. Ele e
sua nova msica o samba vo tomar a cidade.
Aqui, desde o nal do sculo XVI, o negro escravizado
trabalhou surdamente na construo da cidade e
em seu abastecimento. Aqui, a partir do sculo XIX,
3 Gravao 1972, Arquivo Corisco Filmes.
histria
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
Mrio de Andrade, o grande crtico de msica e de artes plsticas
e autor de magncos ensaios, romances e poesias, registrou
num poema o seu entusiasmo pelo carnaval dos negros do Rio
de Janeiro, anos antes da criao da primeira escola de samba,
ao se ver, embaixo do Hotel Avenida em 1923/na mais pujante
civilizao do Brasil/os negros sambando em cadncia./To
sublime, to rica!. possvel que ele tenha visto um cucumbi ou
um cordo de velhos, duas das ormas que os negros encontravam
na poca para se reunir em grupos e se divertir no carnaval.
Naquele ano, o samba j existia como gnero musical, mas,
ortemente infuenciado pelo maxixe o primeiro gnero musical
urbano, criado no Rio de Janeiro na dcada de 1870 , ainda notinha um ritmo capaz de ajudar os olies que quisessem cantar,
danar e andar ao mesmo tempo. Que desejassem deslar, para
usar um verbo que resume o que azem os integrantes das escolas
de samba nos dias de carnaval.
Coube a um grupo de jovens talentosos do bairro do Estcio
de S, todos negros, azer do samba eetivamente msica de
carnaval. Ao explicar a dierena entre os dois tipos de samba, o
compositor Ismael Silva, um daqueles jovens, disse que o ritmo
do samba antigo era apenas tan tantan tan tantan, enquanto onovo, mais rico, era bum bum paticumbumprugururundum. O
compositor Baba, do Morro de Mangueira, deniu a novidade
como samba de sambar.
O grupo de sambistas do Estcio ormou (em 12 de agosto de
1928) um bloco carnavalesco para cantar, tocar e danar os sambas
que azia, ao qual oi dado o nome de Deixa Falar, nome criado
como uma resposta antecipada s crticas negativas que certamente
ariam os adeptos do velho samba amaxixado. Os ritmistas do
bloco apresentavam-se com os tradicionais instrumentos de
percusso, o tamborim, o pandeiro, o reco-reco, a cuca e outros,
at perceberem que o samba deles exigia um instrumento de
marcao ainda inexistente, o que levou o compositor Alcebades
Barcelos a recorrer a uma lata grande e vazia de manteiga, echar
uma das bocas com couro de cabrito e concluir que aquele era
o instrumento que altava bateria do bloco. Assim nasceu o
surdo, instrumento que passou a ser undamental em qualquer
conjunto de ritmistas do samba.
As novidades apresentadas pelo Deixa Falar repercutiram
imediatamente em todas as comunidades negras do Rio de Janeiro,
nos subrbios e nas avelas, que passaram a compor e a cantar
. Deixa Falar, o samba e a escolacomeou seu processo de airmao,tanto atravs da expresso coletiva de
sua cultura como em sua participao
das vicissitudes nacionais, do processo
poltico, das guerras internas ou externas,das transormaes da cidade e do pas.
Aqui se monta, na virada do novo sculo,
um modelo de excluso com a avela,
impasse do Brasil moderno, e mesmo
um sistema do carnaval onde ao negro
atribudo um lugar. Mas a Pequena
rica, que nasceu e se imps como um
ambiente airmativo e comunicativo
do negro, oi um momento denitivo,eterno, para o Rio de Janeiro, para quem
um smbolo resistente e inspirador.
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo histriasambas maneira do Estcio de S. E no deixavam
de homenagear os sambistas do bairro, intitulando-
os proessores, e o prprio bloco carnavalesco Deixa
Falar, que todos diziam ser uma verdadeira escola de
samba, tantas lies recolhiam l.
Tantas homenagens tiveram como conseqncia uma
curiosa contradio histrica: o bloco carnavalesco
Deixa Falar, considerado a primeira escola de samba,
nunca oi escola de samba, pois apresentava-se como
bloco e, no ltimo carnaval de sua existncia, o de
1932, apresentou-se como rancho carnavalesco, outra
orma criada pelo povo carioca para se reunir nocarnaval. quela altura, comunidades dos subrbios
e dos morros, inluenciadas pelos sambistas do
Estcio, criaram seus blocos carnavalescos, aos quais
contemplaram com o ttulo de escolas de samba,
expresso to vigorosa que, aos poucos, oi eliminada
a designao de blocos carnavalescos dada aos grupos
que iam nascendo.
Tanto vigor inspirou o jornalMundo Sportivo a promover
em 1932 o primeiro desle das escolas de samba na PraaOnze, em torno da qual localizavam-se vrios bairros
ocupados pela populao negra, assim como a primeira
avela da cidade, instalada numa elevao que recebeu
o nome de Morro da Favela e que tambm tinha a
sua escola de samba. Alis, a maioria esmagadora das
escolas de samba participantes dos primeiros desles
era ormada por avelados. Vinham dos morros de
Mangueira (Estao Primeira), do Salgueiro (Azul e
Branco e Depois Eu Digo), do Borel (Unidos da Tijuca),da Matriz (Aventureiros da Matriz), da Serrinha (Prazer
da Serrinha), de So Carlos (Para o Ano Sai Melhor),
do Tuiuti (Mocidade Louca de So Cristvo), etc. As
demais vinham dos bairros suburbanos, com destaque
especial para a Portela chamada na poca de Vai Como
Pode de Osvaldo Cruz, alm da Recreio de Ramos,
Lira do Amor (Bento Ribeiro), Vizinha Faladeira
(Sade), Em Cima da Hora (Catumbi) e Unio Baro
da Gamboa, entre outras.
Antes mesmo do desle de 1932, as escolas de samba
j contribuam para o enriquecimento da msica
popular brasileira lanando dezenas de compositores,
cujas obras oram imediatamente absorvidas pelos
cantores prossionais da poca. Nomes como os de
Cartola de Mangueira, Paulo da Portela, Antenor
Gargalhada do Salgueiro, Buci Moreira do Morro de
So Carlos, Armando Maral de Ramos, alm dos
pioneiros do bairro do Estcio de S, tornaram-se to
conhecidos quanto os compositores da cidade, como
eram chamados os que no vinham dos morros ou
dos subrbios. Tambm saram das escolas de samba
quase todos os ritmistas das gravaes de discos. A
contribuio das escolas no campo da msica pode
ser acrescida com um novo tipo de samba criado por
elas, o samba-enredo, ou seja, a msica que descreve o
enredo apresentado no carnaval.
Formadas as escolas de samba, o povo carioca passou
a contar com uma espcie de passaporte para cantar,
danar e tocar o samba, hbitos que, nas primeiras
dcadas do sculo XX, eram violentamente reprimidos
pela polcia, que agia como instrumento do preconceito
das classes dominantes contra as maniestaes
culturais e religiosas dos negros. Os sambistas oramcando livres das perseguies quando as autoridades
comearam a perceber que os desles das escolas atraam
grande pblico e, melhor do que isso, despertavam a
ateno dos turistas, contribuindo decisivamente para
a elevao da ocupao dos hotis nos dias de carnaval.
Trs anos depois do primeiro desle, a preeitura da
cidade ocializou a apresentao das escolas, estabeleceu
subvenes para ajud-las nanceiramente e distribuiu
pequenas revistas em rancs, ingls e espanhol comexplicao sobre aqueles grupos carnavalescos.
A populao negra e pobre do Rio de Janeiro criou,
assim, o que seria, dali a pouco mais de dez anos, no
s a maior atrao do carnaval carioca, mas tambm
um espetculo de msica, dana, ormas e cores que
seria reconhecido como uma das maiores e mais belas
maniestaes de cultura popular do mundo.
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
d e s c r i o
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
O samba no Rio de Janeiro oi e um
plo aglutinador dos grandes universos
culturais tradicionais aricanos o banto,o jje e o nag , que englobam uma
innidade de variaes, signicados e
realidades, dierenciados de comunidade
para comunidade. Esses universos
geraram dierentes estilos de samba e
possibilitaram seu desenvolvimento e
expanso, como ruto de importantes
trocas culturais.
Como arma Lopes1, o critrio geogrco
undamental para a compreenso
do samba, que ganhou, no Rio de
Janeiro, modicaes estruturais que
o dierenciam muito do samba rural,
danado em roda, base de pergunta (solo
curto) e resposta (rero orte). Aqui, uma
nova orma de samba amadureceu.
Ao longo do sculo passado, esse sambaganhou muitas denominaes, como
samba urbano, samba carioca, samba
de morro. Depois, apenas samba.
Atualmente, os sambistas das Velhas
Guardas, os baluartes das escolas, alam
muitas vezes em samba de raiz e samba
tradicional. Esto alando do mesmo
samba, o que cresceu no Rio de Janeiro.
As suas matrizes representadas aquipelos gneros partido-alto, samba de
terreiro e samba-enredo so um
patrimnio popular e cultural no s do
Rio de Janeiro, mas de todo o pas.
descri
o-m
sica
.. A MsicaSamba, samba-chula, samba raiado, samba-choro, samba-cano,
samba-enredo, samba de breque, de terreiro, de quadra, de
partido-alto. So tantos os estilos de azer samba que podemospens-lo como uma espcie de metagnero, um grande ambiente
sociomusical onde prticas culturais coletivas ocorrem a partir
da msica e atravs dela. Dentre as vrias ormas que o samba
assume, podemos estabelecer uma distino entre aqueles sambas
eitos no contexto da indstria cultural e da msica prossional,
e aqueles eitos em contextos mais ou menos comunitrios e
inormais. Essa distino no corresponde a ronteiras estanques,
mas pode ser pensada como plos de um contnuo com razovel
zona de intercmbio e fuxo intenso entre as extremidades. Poresse motivo, a determinao de reas matriciais desse metagnero
tarea muitas vezes espinhosa, que demanda certos cuidados.
Nesse sentido, a denio das trs maniestaes de samba aqui
consideradas como eixos de denio das matrizes do gnero
(partido-alto, samba de terreiro e samba-enredo) contempla
exatamente o plo deste contnuo mais distante dos meios de
circulao massiva de msica, da indstria do entretenimento,
do mercado musical global. Estas expressam em suas estruturas
musicais undamentais as relaes de sociabilidade cultivadas emambientes sociais especcos, constituindo-se num patrimnio
representativo da riqueza cultural do pas. Veremos que essa
origem comum ecoa em traos estilsticos caractersticos, que, de
ato, demarcam aquilo que pode ser entendido como uma espcie
de undao do samba carioca.
Adotaremos como eixos de anlise alguns elementos importantes
para o reconhecimento dos trs tipos, demarcadores de suas
respectivas classicaes. Assim, sero descritas as especicidades
no aspecto rtmico, na sonoridade, na estrutura harmnico-meldica e nas ormas de algumas canes consideradas tpicas
de cada um dos universos abordados. Ser mister destacar que
tais prticas socioculturais representam uma determinada matriz
ideolgica e musical da prtica do samba que se encontra cada vez
mais escassa nas prticas atuais do gnero. Esta constatao se torna
particularmente visvel ao conrontarmos as ormas de experincia
musical que partido-alto e samba de terreiro representavam em um
passado no muito distante e a situao real em que estes tipos
aparecem nos ambientes de samba atualmente. O caso do samba-enredo , nesse aspecto, um pouco dierente e exige discusso em
separado.4. LOPES, Nei. Sambeab. Rio de Janeiro:Casa da Palavra:Folha Seca, 2003. p. 15.
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
Dentre os trs tipos de samba analisados neste dossi, o
partido-alto se destaca por determinadas caractersticas
singulares. Talvez represente mais do que os outros
uma certa ancestralidade das matrizes do samba, o
que se evidencia de diversas maneiras. De acordo
com o pesquisador, sambista e partideiro Nei Lopes,
autor do mais completo estudo sobre o partido-altoj realizado, intitulado Partido-alto: samba de bamba, o
samba de partido-alto pode ser denido como uma
espcie de samba cantado em orma de desao por
dois ou mais contendores e que se compe de uma
parte coral (rero ou primeira) e uma parte solada
com versos improvisados ou do repertrio tradicional,
os quais podem ou no se reerir ao assunto do rero
(p. 26-27).
Quanto sua ormao, o autor destaca que o partido
o resultado do cruzamento de diversas prticas musicais
e coreogrcas que ormavam no incio do sculo
XX aquilo que Jos Ramos Tinhoro chamou de um
verdadeiro laboratrio de experincias ragmentadas
de usos e costumes de origem rural na cidade do Rio
de Janeiro (1998:265). Entre essas prticas, destacam-se
as chulas, o lundu, o samba rural paulista, o samba
de roda baiano e o calango, gnero de grande ora
principalmente no interior da regio Sudeste, que
tambm apresenta caractersticas de improviso e disputaentre os versadores. Todas essas misturas processadas
em solo carioca moldaram o perl e as caractersticas
do partido desde suas primeiras ocorrncias at seus
desdobramentos atuais.
O partido-alto um tipo de samba e, como tal,
corresponde denio mais ampla do gnero tanto
no aspecto sonoro quanto no rtmico. O samba
pode ser denido como um tipo de cano popular
na qual os versos so acompanhados basicamente
por instrumentos de percusso (pandeiro, surdo,
tamborim, cuca, repique, reco-reco, ganz, etc.) e
cordas dedilhadas (cavaquinho, banjo, violo de 6 e de
Partido-alto
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7 cordas), aos quais pode ser acrescida uma innidade
de instrumentos solistas ou acompanhadores (metais,
madeiras, teclados, cordas, oles), de acordo com a
inteno esttica e possibilidades de execuo. No
partido-alto, contudo, essa con-gurao sonora setorna menos ampla, sendo pri-vilegiados a marcao
do pandeiro e o suporte har-mnico do violo e do
cavaquinho. Deve-se destacar que, sendo uma cano
em orma de desao, os instrumentos acompanhadores
do partido permanecem em um papel secundrio no
panorama geral de sua sonoridade, uma vez que h um
grande destaque para o improviso do solista. Da mesma
orma, uma massa muito volumosa de instrumentos
se torna pouco desejvel, pois encobriria o destaque
desse personagem nos momentos das rodas. A questo
da sonoridade de-marca, portanto, uma especicidade
do partido-alto em relao aos demais tipos de samba,
mas no a nica.Ritmicamente, o samba que se desenvolveu no Rio de
Janeiro se dene por um padro polirrtmico, baseado
primordialmente (mas no exclusivamente) noparadigma
do Estcio (Sandroni 2001) executado simultaneamente a
um instrumento mdio-agudo de conduo (pandeiro
ou ganz) e a um surdo atacado no contratempo (para
essa discusso, ver Sandroni 1997 e Trotta 2006).
Este padro polirrtmico xou-se sobretudo em torno do ano de 1930 atravs da obra de compositores do
Largo do Estcio (por isso o termo), substituindo um outro reerencial rtmico que caracterizava os sambas
at ento. Trata-se de uma clula rtmica conhecida por muitos etnomusiclogos como 3-3-2, encontrada em
diversas prticas musicais do planeta1.
No entanto, a especicidade rtmica do partido-alto em relao ao samba no exatamente a adoo espordica
do ritmo 3-3-2, ainda que esse acompanhe muitas rodas na palma da mo. Sendo um tipo de samba que se
estrutura em uma ormao basicamente mais econmica do que o padro reerencial, o partido costuma utilizar
como clula bsica uma variante do paradigma do Estcio, executada principalmente pelo pandeiro.
1Apesar de no hegemnico no samba carioca produzido a partir da dcada de 1930, o ritmo 3-3-2 aparece em muitas gravaes
recentes de partideiros, quase sempre em sambas calangueados que evidenciam a ancestralidade entre as duas prticas e a
estreita aproximao entre partido e calango. Esse herana musical e aetiva compartilhada aparece, por exemplo, em gravaes
de Martinho da Vila (Segure tudo), Seu Jair do Cavaquinho (Doce na feira e Soltaram minha boiada) e no samba Coit e cuia(Wilson
Moreira e Nei Lopes), no qual os autores armam que calango e samba igual a coit e cuia, tudo da mesma amlia.
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Essa levada caracteriza-se por substituir a continui-
dade do pandeiro de conduo, o que resulta em uma
percepo mais quebrada, mais dura, interrompida,
partida. Apesar de a repetio da levada representar um
elemento de continuidade, os cortes mais agudos dos
ataques do pandeiro parecem rear a continuidade
rtmica. A levada de partido-alto associa-se ainda a um
andamento mais lento, avorecendo o desenvolvimento
do canto tanto do coro quanto da parte versada. Na
gravao de No vem(Candeia), a levada do partido
aparece em toda a msica, sendo um timo exemplo
de sua utilizao.
Se por um lado a levada de partido caracterstica
desse tipo de samba, ela no suciente para deni-
lo, pois em vrios exemplos pode-se vericar que o
acompanhamento ocorre a partir do padro polirrtmico
consagrado do samba, baseado no paradigma do Estcio
(como, por exemplo, a gravao do tradicionalMoro na
roapor Clementina de Jesus). Dessa orma, para tornar
nossa denio de partido mais precisa, no podemos
restringi-la ao reerencial rtmico e nem exclusivamente
sonoridade. Analogamente, a alternncia entre solo
e coro (rero) recurso ormal recorrente em dezenas
de prticas musicais, no se congurando por si s
em uma caracterstica exclusiva do partido-alto. No
entanto, o partido-alto torna-se reconhecvel por
uma maneira peculiar de organizar essa alternncia,
demarcando, a sim, sua especicidade. No partido, a
prpria noo de cano se encontra no rero, uma
vez que as segundas partes so improvisadas.
sabido que a adoo de segundas partes xas e
estveis no samba um enmeno que se processou a
partir do desenvolvimento de um mercado de gravaes
musicais, onde a autoria determinada se sobreps
criao coletiva e consagrou a orma cano popular
como a conhecemos atualmente. Assim, deve-se destacar
que as matrizes estticas do que se popularizou como
samba oram construdas a partir de uma concepo
de msica popular que prescindia de segunda parte.
Em outras palavras, a msica erao rero. Este ato
pode ser evidenciado tanto na prtica do partido como
na prtica do samba de terreiro, que com reqncia
apresenta uma primeira parte orte e cantada em coro e
uma segunda parte de estrutura meldica mais estvel,
porm livre para improvisos.
Possivelmente o que caracteriza com maior eccia
o partido-alto a presena desta segunda parte
improvisada, isto , tirada ou versada na hora,
no momento daperformance. Nesse sentido, o improviso
est relacionado a uma habilidade de raciocnio rpido
do versador em criar solues poticas convincentes
respeitando a mtrica da cano, as rimas baseadas norero e, muitas vezes, mas nem sempre, a sua temtica.
O carter de desao elemento de grande relevncia,
pois instaura uma determinada ambincia social
nas rodas de partido-alto baseada numa competio
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partido-alto samba de terreiro samba-enredodescri
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recheada de provocaes, piadas, jogos de linguagem
e muita criatividade. O versador ou partideiro ,
portanto, gura de grande respeitabilidade nos circuitos
de samba, sendo admirado por seu pensamento gil.
Quanto tipologia musical do partido, possvel
encontrar trs grandes grupos estticos capazes de
Podemos notar nesses exemplos uma caracterstica
marcante dos partidos, que a utilizao de arpejos
meldicos e de graus conjuntos, tanto no rero quanto
nos versos. A harmonia simples, quase sempre girando
em torno da tnica (I) e da dominante (V7), com
algumas passagens pelo segundo grau menor (IIm),
o pano de undo para melodias que poderamoschamar de intuitivas, pois traam caminhos meldicos
recorrentes, quase sempre conclusivos. Vale destacar
tambm que a esmagadora maioria dos partidos est no
modo maior, ato que colabora para uma ambientao
estiva, uma vez que este modo geralmente associado
plenitude e alegria, por oposio ao modo menor,
considerado sombrio e introspectivo. Nos partidos
curtos, no h muito tempo para desenvolvimento da
idia do rero, que concisa e reiterada pelo repouso
na tnica, de onde parte o verso improvisado. H aindauma variante ormal para esse tipo de partido curto que
Nei Lopes chamou de partido cortado, onde as estroes
improvisadas so entrecortadas com rases do coro.
serem identicados como sambas de partido-alto.
Um primeiro grupo, que poderamos chamar de
partidos curtos, corresponde a reres ormados por dois
versos, de cerca de quatro compassos, cujo improviso
normalmente tambm curto. Neste caso encontram-seexemplos como os partidos Maria Madalena da Portela
(Aniceto) e Partido-alto (Padeirinho).
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Um segundo grupo de partidos se identica por comportar reres mais extensos (normalmente de oito compassos)
e improvisos de mesmo tamanho. Os reres normalmente apresentam quatro versos, com um desenvolvimento
maior da idia central, mas tambm podem ter apenas dois versos, aproximando-se da estrutura concisa dopar-
tido curto. Novamente, nestes casos, a harmonia circula pelos acordes bsicos da tonalidade (I, V7 e IIm), sendo a
melodia construda a partir de arpejos e graus conjuntos sobre essa estrutura harmnica simples. Esses partidos
correspondem ao que pode ser entendido como uma estrutura tpica, regular e simtrica (tanto o rero quanto o
improviso correspondendo a quatro versos que se estendem por oito compassos), sendo os versadores separados
sempre pelo rero e este quase sempre repetido.
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
Finalmente teramos um terceiro tipo de partido-alto que, dada a maior complexidade de sua estrutura ormal e
harmnica, comea a se aproximar do que podemos entender como samba de terreiro. Sua principal caracterstica
que tanto o rero quanto o desenvolvimento do improviso se alongam por 12 ou 16 compassos. Em Para o bem
do nosso bem, de Alvaiade, gravado pela Velha Guarda da Portela em 1986, os trs versos do rero (em 12 compassos)
se tornam quatro na repetio (a com 16 compassos), levando ao improviso.
A parte versada desse tipo de samba quase sempre inclui uma inclinao para o quarto grau (IV), numa harmo-
nia que, apesar de intuitiva, j conere maior desenvolvimento do que a dos casos anteriores, onde a tnica e a
dominante eram praticamente os nicos acordes. Quanto quantidade de versos, esse tipo de partido pode ter
quatro ou seis versos no rero, mas normalmente o improviso se estende por seis versos, dividido entre doispartideiros. O primeiro versador elabora uma idia para o verso e conduz a melodia at o quarto grau (IV) e o
segundo se encarrega de estabelecer uma concluso semntica do verso e harmnica da melodia no acorde de
tnica. O primeiro verso de improviso de Para o bem do nosso bemexemplica bem o tipo de conduo harmnica
e a diviso entre dois versadores:
descrio
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Aps esse improviso, o coro retorna com o rero e, em
seguida, um outro improviso cantado por mais dois
versadores. interessante reparar que neste segundo im-
proviso gravado a melodia completamente dierente
do primeiro, evidenciando que a conduo harmnica
tem uma importncia maior na estruturao da parte
versada do que exatamente a denio de uma linha
meldica. Destaca-se nesse exemplo que os quatro im-
provisadores respeitaram a temtica do rero, o que
nem sempre ocorre. Nesse caso, o desenvolvimento da
mesma temtica az a cano parecer um todo nico e
o improviso parecer, de ato, uma segunda parte.
Essa diviso entre os trs tipos de partidos, assumidamente arbitrria,
tem a inteno de mapear estilos e ormas, deixando claro que no so
rmulas rgidas e que podem comportar variaes e mudanas.
Com sua gama relativamente estreita de variaes e sempre apoiado
naperformanceao vivo, o partido-alto o tipo de samba que menos
se adequa ao mercado musical, uma vez que seu valor artstico e sua
graa residem na criatividade do momento, dicilmente registrvel
ou reproduzvel. Ainda assim, em diversos momentos da histria da
onograa nacional sambistas registraram partidos com maior ou
menor grau de pr-determinao das segundas partes e eventualmente
at mesmo buscando traduzir para o estdio a espontaneidade
do improviso, da roda, o que dicilmente se viabiliza ou se torna
convincente. Nesse sentido, o partido se destaca no cenrio do
metagnero samba como uma vertente umbilicalmente ligada s suas
matrizes socioculturais , com orte tendncia valorizao da letra, do
improviso, do ambiente comunitrio, dos padres de sociabilidade
undados no coletivo, no azer musical amador, compartilhado.
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partido-alto samba de terreiro samba-enredo
Samba de terreiro
Dierentemente do partido alto, que se deinediretamente por caractersticas ormais (musicais
e poticas), e do samba-enredo, que se caracteriza
principalmente por sua uno, o samba de terreiro
parece se denir antes pelo seu contexto, ou seja, pelo
ato de ser um tipo de samba que ocorre no terreiro.
O terreiro, amplamente denido, oi e um espao
sociocultural de grande importncia para o samba.
Terreiro pode ser o quintal de Tia Ciata, do mesmo
modo como a palavra designa popularmente a casade candombl, e pode se reerir tambm aos undos
de quintal dos subrbios cariocas. As rodas de samba
que agregavam (e ainda agregam) parentes, amigos,
vizinhos num grande congraamento aetivo e musical
uncionavam (e ainda uncionam) tambm como
momentos de intensas trocas culturais, realizadas
sobretudo atravs da msica. Assim, o terreiro do samba
um espao de sociabilidade, no qual os sambistas se
encontram, trocam idias, histrias e sambas.
Mas o terreiro, num sentido mais restrito, designa
especicamente a rea comum de uma escola de samba.
Dado o papel undamental (propriamente matricial)
das escolas, desde os anos 1930, na constituio dosamba, o samba de terreiro dene-se como aquele eito
para consumo interno das mesmas, ou, por assim dizer,
como o lado de dentro do samba organizado. A roda de
samba, quando no terreiro, , ento, mais especca
do que outras rodas de samba, pois est associada
estrutura das escolas de samba e s suas ormas de
organizao social e musical.
Desta orma, temos o samba de terreiro caracterizado
mais como uma prtica sociomusical do quepropriamente como um tipo especco de samba, cujos
elementos poderiam ser isolados e descritos. Por este
motivo, um samba s pode ser classicado como de
terreiro por uma determinada comunidade. Apenas
o grupo de pessoas auto-reconhecido como sambistas
das escolas tem legitimidade para designar determinado
samba ou grupo de sambas como sendo de terreiro,
pois essa classicao deriva exatamente do ato de
ele ter sido apresentado nas rodas dos terreiros e derepresentar esse ambiente, esse lado de dentro.
Como resultado desta denio contextual, os sambas
de terreiro apresentam grande variedade estilstica. Tal
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variedade alimentada por intensas trocas culturais
entre os sambistas das vrias escolas, e, de orma
ainda mais ampla, pelo contato entre esse ambiente
comunitrio do azer musical e o seu plo oposto,
da circulao massiva de msicas pela indstria doentretenimento. Ainda assim, possvel identicar
duas tendncias estticas que se azem presentes nesse
repertrio. De um lado, teramos aqueles sambas
que, dada sua estrutura musical, se conundiriam
com os prprios sambas de partido-alto: um rero
orte, cantado em coro, e uma segunda parte que se
desenvolve atravs de caminhos meldico-harmnicos
que estamos chamando aqui de intuitivos. Com
esta palavra queremos designar aquelas construesmeldico-harmnicas consideradas ceis o bastante
para que o partideiro possa concentrar-se no aspecto
verbal da suaperformance, dirigindo sua capacidade
criativa para a improvisao de versos.
Muitos desses sambas de terreiro, especialmente os mais
antigos, se caracterizam, tal como no caso do sambas
dos primeiros desles (que discutiremos a seguir), por ter
apenas essa primeira parte, sendo a segunda totalmente
livre para os versadores. Ocorre que, de um modo geral,
essa primeira parte mais longa do que as encontradas
nos partidos de estrutura tpica, correspondendo, quase
sempre, a 16 compassos e seis ou mais versos. Um bom
exemplo o samba Serra dos meus sonhos dourados, de
Carlinhos Bem-te-vi, composto na dcada de 1940 no
terreiro da antiga escola de samba Prazer da Serrinha.
Em alguns casos, sobretudo depois de gravadas em disco, as segundas partes se xaram como denitivas para
aquela cano. A estrutura da cano, no entanto, permanece nesses casos aberta ao improviso: sempre ser pos-
svel acrescentar novos versos no local apropriado, desde que a ocasio se apresente. como se o samba guardasse
uma espcie depotencial de improviso, que podemos identicar nesta segunda parte desse mesmo samba, gravado em
1982 por Dona Ivone Lara:
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Podemos destacar nesse exemplo a total liberdade de
temticas entre o rero e a segunda parte. Enquanto
a primeira enaltece a escola e seus espaos, a segunda
parte valoriza a viola e ignora os versos do rero
dirigidos Serrinha. Essa caracterstica, que aparecetambm em alguns partidos, pode ser pensada como
sendo recorrente em sambas improvisados, nos quais
o improviso nem sempre construdo a partir da
temtica do rero.
Se, portanto, possvel identicar sambas de terreiro
que correspondem a uma estrutura aberta ao improviso,
existe tambm um grupo desses sambas em que a
estrutura composicional mais echada, isto , onde
a parte principal do processo de elaborao esttica
da segunda parte do samba acontece previamente,
e no na hora da performance. Essas composies tm
garantida a unidade temtica de sua letra, e comumente
apresentam estrutura harmnica mais sosticada. Em
algumas delas, torna-se at dicil encontrar aquilo
que poderamos chamar de rero, uma vez que os
versos esto de tal orma integrados que a diviso entre
primeira e segunda parte soa um pouco articial. Nesses
casos, o canto coletivo com reqncia percorre toda a
composio, numa estratgia que se assemelha ao estilo
de interpretao do samba-enredo. Um bom exemplo
o samba Velho Estcio, de Cartola:
Muito velho, pobre velho
Vem subindo a ladeira
Com a bengala na mo
o velho, velho Estcio
Vem visitar a Mangueira
E trazer recordao
Proessor chegaste a tempo
Pra dizer neste momento
Como podemos vencer
Me sinto mais animado
A Mangueira a seus cuidados
Vai cidade descer
Chegou a capital do samba
Dando boa noite com alegria
Viemos apresentar o que Mangueira temMocidade, samba e harmonia
Nossas baianas com seus colares e guias
At parece que estou na Bahia
At parece que estou na Bahia
Da cidade alta da Mangueira
Avisto a Vila tenho saudades de algum
At parece que eu estou em So Salvador
Avistando o que a Bahia tem
minha maior alegria
At parece que estou na Bahia
At parece que estou na Bahia
Esse compartilhamento de smbolos se evidencia nos
momentos do canto coletivo. Nesse sentido, o rero
tem grande importncia na estrutura dos sambas de
terreiro. O rero se dene pela repetio, e, maisdo que isso, pela participao do canto coletivo e
por isso apresenta caractersticas expressivas que
avorecem a entrada do coro. No exemplo acima,
Sobre esses sambas dicilmente pode-se desenvolver
um improviso, uma vez que sua congurao musical
e potica simplesmente no se presta a essa prtica. So
sambas autoraisno sentido estrito da palavra, onde o
autor se az presente em toda a cano, conerindo-lheum estilo, um recado.
No que se reere s temticas dos sambas de terreiro, uma
das preeridas a exaltao da prpria escola, de suas
cores, smbolos e integrantes. Os elogios escola eitos
no ambiente dos terreiros, e integrando o repertrio
reerencial daquele grupo de pessoas, adquire grande
importncia, pois, em torno desse conjunto de canes,
os sambistas constroem elos de amizade e de identidade
coletiva. Nesses exemplos, muito comum a narrativa
de eitos, glrias, guras e histrias que compem o
quadro de valores compartilhados da agremiao. Vale
destacar que muitos sambas compostos dessa orma se
tornaram clssicos do repertrio de diversas escolas,
como este, Capital do samba, de Jos Ramos.
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possvel identicar um pequeno
rero (At parece que estou
na Bahia), que ocorre ao nal
de ambas as partes. Este rero
representa dois momentos decanto coletivo que pontuam a
declarao de amor escola,
garantindo que nesses pontos
o mximo de pessoas estar
cantando junto. Em outros
casos, como o de Agoniza mas
no morre, a msica inteira se
transorma em mensagem da
comunidade, representada pelocanto coletivo.
O samba de terreiro representa
uma identidade compartilhada
por determinado grupo de
pessoas agregadas pela escola
de samba. At determinado
momento do sculo XX, os
compositores de sambas de
terreiro oram guras respeitadas
na hierarquia interna das escolas,
baluartes de cada agremiao,
quase sempre ocupando cargos
importantes no poder e na
estruturao das escolas. Apesar
de esse poder ter se dissolvido
entre outros protagonistas das
escolas, atravs dos sambas de
terreiro que a coletividade ala
e se az ouvir, elaborando suas
interpretaes e narrativas. Esse
lado de dentro das organizaes
carnavalescas torna visvel
(audvel) atravs do conjunto
de seus sambas de terreiro, que
expressam sua viso de mundo,
seu pensamento, suas idias e
sua identidade.
Devemos destacar, no entanto,
que esse lado interno no
nem nunca oi um ambiente
Vejo o samba to modicado
Que eu tambm ui obrigado a azer modicao
Espero que ningum no me censure
O que eu quero que todos procurem
Ver se no tenho razoJ no se ala mais no sincopado
Desde quando o desanado
Aqui teve grande aceitao
E at eu tambm gostei daquilo
Modicando o estilo do meu samba tradio
Neste samba, o compositor refete sobre o advento da bossa nova, um en-
meno que atingia poca o mercado de msica de um modo geral e o sambade orma particular. Destaca-se neste samba um perl esttico totalmente
avesso prtica da improvisao. Seus dez versos estendem-se por uma melo-
dia sinuosa de 32 compassos, percorrendo caminho harmnico altamente
inesperado, como se sua estrutura meldico-harmnica osse uma espcie de
pardia dos tortuosos sambas da esttica bossanovista.
echado, mas sim um espao com muitas restas, entradas e sadas, que
permitem aos sambas circularem por outras rodas, outros terreiros e at
mesmo pelo mercado de msica. Analogamente, os movimentos musicais e
as mudanas na sociedade vazam para o lado de dentro das escolas e, atravs
dos sambas de terreiro, so interpretados e elaborados pela comunidade,que assim evidencia suas crticas sobre a sociedade mais ampla. O samba
Modicado, de Padeirinho, composto provavelmente na dcada de 1960, refete
bem esse movimento:
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Esse percurso sinuoso no impede, entretanto, que
o compositor expresse em seus versos e msica um
comentrio possivelmente compartilhado por seus
colegas de dentro das escolas sobre as transormaes da
msica veiculada na mdia. Essa uno propriamentecomunitria dos sambas de terreiro talvez seja seu mais
alto valor cultural.
medida que as escolas vo sorendo cada vez de orma
mais clere transormaes em sua estrutura, os terreiros
se transormam em quadras e a denominao samba
de terreiro perde sua ora, conseqncia da queda
de prestgio dos prprios sambistas no poder interno
das escolas. Esse processo, j bastante documentado
e comentado pela bibliograa, que cou conhecido
como prossionalizao das escolas e do desle,
ocorreu no mesmo perodo (por volta da dcada de
1960) em que passaram a atuar no mercado de msica
cantores especializados em samba, que vo buscar no
repertrio dos sambas de terreiro canes para serem
lanadas comercialmente. Observa-se ento, que osamba que ocorria nos terreiros se desloca para outras
rodas, para o mercado, ou mesmo dentro da estrutura
das escolas, para espaos de menor destaque.
Se, na prtica, os terreiros reais no representam mais
esse plo comunitrio do azer musical sambista, pode-
se armar com alguma segurana que o terreiro como
espao simblico se mantm no imaginrio de parte
signicativa do repertrio do samba, especialmente
cultivado naqueles sambistas que nutrem maior zelo pela
trajetria do gnero e pela reerncia s suas matrizes.
Samba -enredo
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Dossi das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro
O samba-enredo, mais do que simplesmente um tipo
de temtica ou nalidade para o samba, consolidou-se
atravs de sua histria como uma esttica especca de
samba. Baseada na estrutura do desle carnavalesco,
essa esttica associa a sonoridade pujante da bateriada escola de samba com uma orma de cano que se
caracteriza sobretudo por sua narratividade, que aos
poucos se tornou imperativa na composio de sam-
bas destinados aos desles.
preciso distinguir, portanto, entre os sambas can-
tados nos primeiros desles, nos anos 1930, que no
tinham, na maioria dos casos, qualquer relao com o
enredo; os sambas relacionados ao enredo, mas comp-
ostos musicalmente de uma maneira que no se die-
renciava de outros sambas dos mesmos compositores,
que prevaleceram aproximadamente do nal dos anos
1930 at o nal dos anos 1940; e os sambas-enredo
propriamente ditos, que desde ento associam uma
uno determinada no desle a uma orma musical
especca.
No incio dos desles das escolas de samba, os sambas
cantados no se relacionavam com qualquer enredo,assim como o prprio desle da escola no era condi-
cionado por um. Talvez o mais amoso samba desse
perodo seja Chega de demanda, de Cartola. O samba
oi composto possivelmente antes mesmo da criao
da Mangueira, quando Cartola saa no Bloco dos
Arengueiros (Cabral, 1996: 65); segundo o site ocial
da escola, oi cantado no carnaval de 1929.
Embora os dados disponveis sejam muito limitados,
parece provvel que muitas escolas que saram nos
carnavais de 1930 a 1933 no apresentassem enredo.
O primeiro desle competitivo sobre o qual h reg-
istros escritos contemporneos o de 1932 (Cabral,1996: 67), e em tais registros no h qualquer aluso a
enredo. Tambm no h tal aluso nos testemunhos
orais sobre a competio de sambas promovida por
Z Espinguela em 1929 (Cabral, 1996: 66).
No que se reere ao carnaval de 1933, h duas inorma-
es sobre o assunto. O jornal Correio da Manh pre-
tendia realizar, na quinta-eira anterior ao carnaval,
uma noite das escolas de samba, para a qual chegou a
publicar um regulamento. O evento nalmente no
se realizou, mas o regulamento, publicado por Cabral
(1996: 78), rezava em seu item 5: No obrigatrio o
enredo. O desle de ato aconteceu, organizado pelo
jornal concorrente O Globo no domingo de carnaval,
e tinha o enredo entre seus quesitos de julgamento
(Cabral, 1996: 79). Das 31 escolas que concorreram,
porm, oito no tinham enredo, ou eles no oram
percebidos pelos jornalistas presentes (Cabral, 1996:
80-1).
Chega de demanda uma melodia de 16 compassos,
correspondendo ao rero de quat