Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade...

44
1 Dossiê Identidades Capixabas: elementos para uma reflexão sobre as práticas e a política cultural “TURBA Quereis fugir, Ondas em pânico? Não há onde ir “ (Waldo Motta) William Berger Resumo: Neste texto estão levantados alguns elementos que considero importantes para uma reflexão das práticas e da política cultural no Espírito Santo e no Brasil, relacionando-os com fatos históricos, políticos, econômicos e culturais-simbólicos de diversas épocas. Atento a Este texto se constitui em uma série de elementos históricos, políticos, culturais e simbólicos da produção cultural capixaba sistematizados ao longo de 4 anos de estudos na Escola de Teatro e Dança Fafi (com orientação do poeta Waldo Motta a quem agradeço imensamente pela generosidade em todos esses anos), e no curso de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Não há aqui a pretensão de esgotar o tema, mas proporcionar alguns elementos em rede para a reflexão das práticas e das políticas culturais. Assistente Social, ator, educador popular, multiplicador do Teatro do Oprimido e membro fundador do Grupo Poiesis coordenado pelo poeta Waldo Motta. Mestrando em Serviço Social pela PUC-Rio. elementos da realidade político-cultural dos povos indígenas e quilombolas em seu território, à realidade atual de repressão às minorias étnicas e às camadas populares e à atual criminalização da pobreza e dos movimentos sociais por parte do Estado, o texto que ora se apresenta busca, em alguns pontos, uma interface com a política social a partir da perspectiva de Antônio Gramsci de ampliação do Estado e superação da sociedade de classes. Baseado nessa visão, em que a participação da sociedade civil ganha real importância, convido artistas, demais trabalhadores e movimentos sociais a um compromisso ético-político para superação das desigualdades e opressões de classe, etnia e gênero, em prol de uma nova sociabilidade que conjugue democracia, cidadania e ampliação dos direitos sociais. Introdução e diga o seu nome e eu direi quem tu és. Deveria ter dito o filósofo. Mesmo compartilhando da máxima de que é preciso primeiro comer para filosofar, acredito piamente que nem só de pão vive o homem, mas de tudo o que a cultura pode produzir, ou quase tudo. E o primeiro fator é sem dúvida a língua e seus múltiplos significados. M

Transcript of Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade...

Page 1: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

1

Dossiê Identidades Capixabas:

elementos para uma reflexão sobre as práticas e a política cultural

“TURBA

Quereis fugir,

Ondas em pânico?

Não há onde ir “

(Waldo Motta)

William Berger

Resumo: Neste texto estão levantados alguns elementos que considero

importantes para uma reflexão das práticas e da política cultural no

Espírito Santo e no Brasil, relacionando-os com fatos históricos, políticos,

econômicos e culturais-simbólicos de diversas épocas. Atento a

Este texto se constitui em uma série de elementos históricos, políticos, culturais e

simbólicos da produção cultural capixaba sistematizados ao longo de 4 anos de

estudos na Escola de Teatro e Dança Fafi (com orientação do poeta Waldo Motta

a quem agradeço imensamente pela generosidade em todos esses anos), e no curso

de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Não há aqui

a pretensão de esgotar o tema, mas proporcionar alguns elementos em rede para a

reflexão das práticas e das políticas culturais.

Assistente Social, ator, educador popular, multiplicador do Teatro do Oprimido

e membro fundador do Grupo Poiesis coordenado pelo poeta Waldo Motta.

Mestrando em Serviço Social pela PUC-Rio.

elementos da realidade político-cultural dos povos indígenas e

quilombolas em seu território, à realidade atual de repressão às minorias

étnicas e às camadas populares e à atual criminalização da pobreza e

dos movimentos sociais por parte do Estado, o texto que ora se apresenta

busca, em alguns pontos, uma interface com a política social a partir da

perspectiva de Antônio Gramsci de ampliação do Estado e superação da

sociedade de classes. Baseado nessa visão, em que a participação da

sociedade civil ganha real importância, convido artistas, demais

trabalhadores e movimentos sociais a um compromisso ético-político para

superação das desigualdades e opressões de classe, etnia e gênero, em

prol de uma nova sociabilidade que conjugue democracia, cidadania e

ampliação dos direitos sociais.

Introdução

e diga o seu nome e eu direi quem tu és. Deveria ter

dito o filósofo. Mesmo compartilhando da máxima de

que é preciso primeiro comer para filosofar, acredito

piamente que nem só de pão vive o homem, mas de tudo o

que a cultura pode produzir, ou quase tudo. E o primeiro fator

é sem dúvida a língua e seus múltiplos significados.

M

Page 2: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

2

Começando pelo aspecto simbólico e linguístico, pode-se

dizer que os nomes que recebemos nos conferem uma

identidade, embora muitas vezes ignoremos a sua

significação. Cada nome possui uma origem e uma história, e

um ou mais significados, os quais podem definir ou pelo

menos delinear algumas das características daquilo que

nomeia. A dimensão simbólica pode falar muito sobre um

lugar, uma pessoa ou um objeto. Assim sendo, todo nome

tem uma história, que deve ser lembrada e refletida,

perpetuando aquilo que podemos chamar de identidade.

E o que seria a identidade em si? Poderíamos dizer que são

os traços ou as características que nos permitem definir o que

e como alguma coisa é, de tal modo que nos permita

conhecê-la e reconhecê-la. Por outro lado, a identidade é

também a afinidade ou semelhança que aproxima seres e

coisas.

Pode-se apreender daí que a perda dos traços identitários

constitui um desarraigamento perigoso, que leva à alienação.

Gera impactos desastrosos, como o impedimento do

florescer cultural e do vigor espiritual de um povo.

O texto que hora se apresenta, traz elementos de reflexão

históricos do local articulados ao global, elementos

simbólicos, políticos e econômicos de diversas épocas para

pensar a prática e a política cultural dos capixabas e situar a

discussão relacionada à perspectiva emancipatória da

política social brasileira, das lutas dos movimentos sociais.

A participação torna-se, pois, uma necessidade vital para a

afirmação identitária, a garantia e ampliação dos direitos

sociais e da cidadania. Mesmo diante de um forte discurso

neoliberal contrário às conquistas dos trabalhadores e de um

suposto “empoderamento” do indivíduo pelo mercado e pelo

consumo, o texto que ora se apresenta retoma a perspectiva

de superação das desigualdades sociais e sua geratriz, a

sociedade de classes.

Page 3: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

3

Acreditamos que nossa ação na realidade mais concreta e no

plano simbólico podem nos transformar a nós mesmos e ao

outro, nossos projetos de vida e sociedade, nossa cultura-

política, para daí transformarmos a sociedade, o mundo: eis o

maior de todos os desafios.

Dando nome aos bois

[ . . .] Acredito que quanto mais a cultura genuína de

nossa terra for resgatada e devidamente valorizada,

mais claramente se poderá garantir o respeito aos

limites geográficos, porque a cultura é o verdadeiro sítio

de cada nação. De origem etimológica ligada à palavra

colo, o termo cultura fala daquilo que propicia o sentido

de pertencimento e de amor-próprio.

(Espírito Santo, 2010: 18)

Comecemos assim pela origem simbólica e lingüística do

nome “capixaba”. Segundo o “Dicionário de Língua Tupi” de

Gonçalves Dias (Dias, 1941), o termo faz referência àquilo

que é da roça, isto é, roceiro, do mato, e, logo, também na

ótica do colonizador e do etnocêntrico, o atrasado, ingênuo,

simplório, boçal, estúpido, tabaréu, capiau, ignorante, bocó.

Na origem da palavra, está a partícula “Cáa”, que significa

mato, erva, folhas, ramo. Numa outra variante de “Ca” está a

partícula “Co”, que quer dizer roça, quintal. Eis o surgimento

do vocábulo “cópixaba çuí”. Um dado que corrobora com a

origem do nome é a existência de uma roça nativa de milho à

época da colonização na área que hoje vai da Capitania dos

Portos até a Pedra da Gruta da Onça, no centro de Vitória

referenciada nos relatos dos idos de 1500.

Numa análise histórica da invasão européia às terras que

chamaram de Brasil, os portugueses chegaram, no Dia de

Pentencostes, em 23 de maio de 1535, a uma terra situada a

60 mil quilômetros do meridiano de Tordesilhas. Aí,

instituíram a 6ª Capitania, que logo chamaram de Espírito

Santo, numa referência ao calendário litúrgico apostólico

romano. Conforme o texto bíblico que inaugura essa data, o

Espírito Santo de Deus desceu sobre os apóstolos de Cristo

em línguas de fogo, dando-lhes sabedoria e conhecimento,

Page 4: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

4

para que, falando em diversos idiomas, pudessem ser

entendidos pelos estrangeiros.

No solo onde desembarcaram esses supostos emissários dos

apóstolos de Cristo, a linguagem exercida foi outra: a da

violência e do extermínio de diversos povos indígenas, por

meio de armas e vírus, aliada ao apagamento da sua

identidade. José de Anchieta, padre da Companhia de Jesus,

foi um dos maiores cúmplices desses horrendos crimes, o que

lhe valeu a beatificação pela Igreja Católica. Por outro lado,

consideramos que muitas das informações que temos desse

período devemos a ele, através de vários escritos, como o

emblemático “Auto da Vila de Guarapari”. A intenção era

“catequisar”, em outras palavras, alienar culturalmente os

indígenas ao impor-lhes valores cristãos destruindo as

culturas desses povos em prol dos valores e dos costumes

europeus para a dominação territorial, a escravização, o

domínio econômico, material. Uma de suas estratégias foi

sincretizar os mitos desta terra, como Jurupari, o messias dos

índios, e relacioná-los a figuras como o Diabo. Isto é, o

sincretismo operou no sentido de satanizar figuras

importantes do imaginário indígena, e endeusar figuras do

imaginário europeu.

Em seu artigo “O Capixaba Metafísico” no livro “Identidade

Capixaba”, da série Escritos de Vitória, Oscar Gama Filho

nos fala da “Fonte da Capixaba”, uma bica d‟água que

desembocava dentro da roça de milho, muito recorrida à

época pelos recém-chegados à capitania do Espírito Santo

para realizarem uma espécie de batismo. Isso era visto como

algo profano pela Igreja Católica. As crianças recém-nascidas

recebiam banho daquela água, como forma de afirmação de

que a partir daquele momento elas estariam destinadas a

serem ricas e felizes.

Assim como a fonte, a roça de milho que originou o termo

“capixaba” também tem um sentido simbólico, mágico, muito

forte para os povos indígenas centro e sulamericanos. O

milho na cultura Guarani, por exemplo, tem um significado

especial: é dele que se produz uma bebida ritual, o cauim,

que possibilita êxtases e transes que ligam o mundo real ao

mundo simbólico. A “roça de milho” é considerada, nessa

Page 5: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

5

mitologia, o quintal da morada do Deus Yanderuvuçú. Junto a

esse Deus vive um Jaguar que é o guardião da entrada da

casa divina e virá pôr fim ao mundo, deixando a terra sem

mal. Conforme o mito, o animal sagrado dorme aos pés de

Yanderuvuçú e aguarda seu sinal para avançar sobre a terra

e destruí-la. Por isso os Guarani até hoje migram de tempos

em tempos em busca do seu paraíso, isto é, a Terra Sem Mal.

Eles estão fugindo da ecatombe iminente, no tempo em que a

terra, as águas e ar reclamarão a Yanderuvuçú os

impropérios desferidos pelo homem por poluir as águas e o ar

e infesfar o solo de cadáveres (Nimuendaju, 1978).1

Não é justamente isto que estamos presenciando, no final do

século XX e nessa primeira década do século XXI, com os

reclames do planeta ante a destruição da camada de ozônio e

1 - Conforme um dos cronistas do “Descobrimento” Pero Magalhães

Gândavo, à época a Capitania do Espírito Santo era considera um

verdadeiro paraíso, a melhor provida de caça, pesca e mantimentos

Olivieri & Villa (1999) Em 1500, conforme Nimuedaju (1987) os Guarani já

estavam em busca da Terra Sem Mal.

a poluição e a degradação dos recursos naturais que

resultam em enchentes, degelo das colotas polares, aumento

dos oceanos, efeito estufa, mortes e destruição? Sem ser

messiânico ou catastrofista, não estamos trilhando esse

caminho que levará a essa ecatombe antevista pelos Guarani

em suas profecias e visões? O capitalismo em sua fase

desorganizada, monopólica, neoliberal é insustentável de

todos os pontos de vista, desde o aspecto sócio-econômico

ao político-cultural e ambiental.

Interessante notar que os Guarani-Mbya, o povo da Terra

Sem Mal, foram parar no Espírito Santo na década de 60 do

século XX dizendo ser ali o lugar onde deveriam morar,

habitar e viver. Aí estaria o seu paraíso ou de lá achariam a

resposta de onde está a Terra Sem Mal.

Eis que o poeta Waldo Motta, preocupado com a questão,

responde:

[ . . .] A Terra Sem Mal que buscas

O paraíso que sonhas

Page 6: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

6

Sempre esteve em ti mesmo

Está em tuas entranhas [ . . .]” 2

A resposta está em nós mesmos e só uma mudança radical

nos rumos de nossas ações poderá salvar o planeta do fim

iminente.

Um dos maiores flagelos à terra e seus povos irmãos foi o

roubo aos povos Tupiniquim e Guarani de Aracruz, cidade

situada ao norte do Estado. Em 1940, a extinta Cofavi

(Companhia de Ferro e Aço de Vitória), explorou cerca de dez

mil hectares da floresta dos Tupiniquim para a produção de

carvão vegetal, com autorização do Estado.

A Aracruz Florestal S/A, que deu origem à transnacional

Aracruz Celulose, aprofundou, por sua vez, a partir de 1967, a

devastação da Mata Atlântica, com a instalação da perversa

monocultura do eucalipto. Formou-se, assim, o Deserto

2 - Estrofe do poema “Assim Fala o Trovão”, do

livro inédito de poemas “Terra Sem Mal”, cedida gentilmente pelo poeta.

Verde. Onde se planta eucalipto não nascem outras plantas

além de pequenos matos e não vivem outros animais além

de cupim e formiga.

Além desses povos, as comunidades quilombolas também

tiveram suas terras expropriadas e sofrem, até hoje, violentos

ataques por parte do Estado e da empresa, com apoio da

mídia capixaba e de um grupo de empresas que fazem parte

do movimento “Espírito Santo em Ação” (Vale, A Gazeta,

Samarco, entre outras). O que se pode observar na história

recente do Espírito Santo, é que tal associação é, na

realidade, uma reação burguesa às manifestações e à

organização dos movimentos sociais. O Estado brasileiro e a

mídia, corroboram, assim, com uma clara criminalização dos

movimentos sociais e da pobreza.

Os impactos desse roubo geram um processo de

aprofundamento das condições de sobrevivência dos negros

e seus descendentes, diga-se pauperização e miséria, que se

reverberam hoje na discriminação e violência como

Page 7: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

7

expressões da Questão Social em sua face da questão

racial3. Não podemos deixar de mencionar que os negros no

Brasil tiveram suas terras tomadas, e seus direitos de posse

cerceados através Lei de Terras. Muitos quilombos foram

destruídos, na região norte do Espírito Santo (São Mateus) e

também em Aracruz. Muitas famílias quilombolas foram

empurradas para a região da Grande Vitória ocasionando um

processo de favelização, daí surgindo as comunidades da

Fonte Grande, Forte São João, Romão, Cruzamento, e

imediações só para citar a cidade de Vitória. Atualmente, no

município de Aracruz, a transnacional Aracruz Celulose detém

grande parte do território dos quilombolas e indígenas. Lutas

sociais em parceria com movimentos sociais e organizações

não-governamentais são empreendidas, porém a repercussão

ainda é abafada pela mídia e pelo poder judiciário. Negros e

indígenas são constantemente agredidos até pela polícia

federal e nada é feito. O Estado exerce coerção para obter o

consenso. Hegemonia encouraçada de coerção no dizer de

Gramsci. Sobrevivem ainda entre essas comunidades

3 - Assunto este que poderíamos nos estender por diversas páginas. O

texto, porém, não pretenciona esgotar o assunto.

quilombolas alguns costumes e festividades como o

“Ticumbi”, espécie de dança típica de roda com influências

africanas, indígenas e portuguesa; o “Festival do Beiju”

(comida típica dos povos negros e indígenas feita à base de

mandioca), que é de extrema importância para afirmação

identitária, a preservação de seus costumes. Essas

festividades e costumes, ou seja, a tradição pode inclusive

ganhar força político-cultural através da luta por garantia e

ampliação dos direitos sociais e da cidadania desses povos.

Reivindica-se aqui o seu direito primordial sobre seu território

que lhe foi roubado e a recomposição da Mata-Atlântica que

foi devastada: o “espaço de vida” sobre o qual os indígenas

estabelecem suas relações sociais, e constroem o “espaço

vivido” (Koga, 2003).

A resistência dos povos indígenas no Brasil, a expropriação

de terras, a devastação ambiental, e a questão do extermínio

e do etnocídio de povos e comunidades indígenas inteiros é

uma problemática que remonta a 1500. A expansão

econômica ultramarina dos povos europeus provocou um dos

Page 8: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

8

maiores extermínios em massa, tendo por base a escravidão

de indígenas e negros. O caso dos Tupiniquim e Guarani

(1967-2007) se inscreve nesse bojo: foram privados do

acesso a seu “espaço de vida”, a terra e seu bioma, a Mata-

Atlântica, o que interrompeu uma relação sagrada e

harmoniosa e sequelou culturalmente várias gerações, até a

devolução de parte de seu território, em 2007, arrasado pelo

plantio monocultural do eucalipto e suas nefastas

consequências.

O tema é polêmico. A expropriação de terras indígenas no

Brasil é questão histórica da luta de classes e ainda muito

delicada, pois envolve muitos interesses. No ano de 2005

tivemos o assassinato da missionária americana Dorothi

Steng e voltando só mais um pouco, Chico Mendes foi

assassinado no quintal de sua casa com um tiro de escopeta,

no dia 22 de dezembro de 1988, por defender os direitos dos

povos da mata. O caso do roubo aos Tupiniquim e Guarani-

Mbya (1967 – 2007), em particular, envolve interesses

oligárquicos nacionais, aliados aos dos oligopólios

internacionais, através da Aracruz Celulose.

Na década de 1960 chegaram os Guarani-Mbya em

peregrinação mítico-religiosa, vindos do litoral do Rio Grande

do Sul, tendo visões em pajelanças de que nesse mesmo

território se encontra o tão suspirado paraíso, a Terra Sem

Mal onde deveriam habitar, morar e viver. Foram logo

reprimidos pelo Estado e pela empresa. A partir daí se instala

o xadrez da problemática: de um lado estão dois povos

indígenas expropriados, quilombolas e, do outro, um Estado

oligárquico que atende os interesses dos latifundiários e das

grandes empresas, aliados ao capital financeiro parasitário

internacional. O resultado foram mais de 40 anos de lutas e

uma série de eventos que culminaram em ações violentas da

polícia federal, em 3 autodemarcações, negociações,

tentativas de cooptação e criminalização dos movimentos

sociais envolvidos, ações públicas contra pessoas ligadas ao

Movimento Indígena, transferência de Guarani-Mbya e

Tupiniquins para outro território em MG, ações estatais

desastrosas, devastação ambiental. As intervenções

violentas do Estado através da Polícia Federal numa

articulação com a Aracruz Celulose em março de 1998 e em

Page 9: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

9

02 de junho de 2005, após a 3ª autodemarcação, e em 20 de

janeiro de 2006, quando prendeu, algemou e espancou

indígenas desarmados, chamou a atenção da OEA

(Organização dos Estados Americanos) e diversos outros

organismos internacionais que reprovaram a ação; o MPF

(Ministério Público Federal) recorreu de liminar. Isso fez com

que o Ministro da Justiça se comprometesse a realizar a

demarcação até o fim do ano de 2006. Houve uma forte

pressão de setores da sociedade em apoio aos Tupiniquim e

Guarani através de “redes auto-organizadas” e “malhas de

articulação” (Escobar, 2004) com movimentos sociais e

organizações não-governamentais como o MST (Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), “Rede Alerta Contra o

Deserto Verde”, CIMI (Conselho Indigenista Missionário),

Pastoral Indigenista, a Fase (Federação de Apoio Social e

Educacional aos Movimentos Sociais), entre diversos outros

atores, que realizaram manifestações, atos públicos e intensa

mobilização da sociedade civil organizada.

No ano de 2007, o ministro Márcio Thomas Bastos assinou a

homologação de demarcação das terras. Foi realizada

publicação no Diário Oficial no dia 28 de agosto de 2007 de

portaria declaratória reconhecendo 18 027 hectares como

área indígena Tupiniquim e Guarani em Aracruz – ES. Terras

essas repletas de eucalipto onde antes havia Mata-Atlântica

e biodiversidade. Entre as comunidades está uma imensa

pergunta: o que fazer?

Não é possível que discutamos a prática e a política cultural

no Espírito Santo e no Brasil sem levar em conta o momento

atual e a realidade concreta de nossos povos oprimidos

dentro do povo brasileiro e capixaba, onde destacam-se os

aspectos de dominação, hegemonia, luta de classes,

exploração, expropriação, violência física, política, econômica

e cultural-simbólica contra grupos étnicos e trabalhadores. Os

indígenas não são figuras nos livros existindo apenas em

1500. Resistem até hoje, miscigenados, expropriados e

acusados de não serem mais indígenas por não manterem

seus costumes. Costumes dos quais foram destituídos,

Page 10: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

10

geração após geração pelos mesmos que os acusam, ou os

que se silenciam e omitem diante da opressão. Ora, devemos

observar que isso não justifica tomar-lhes as terras de seus

ancestrais que são deles por direito de herança. No século

XXI ainda continuam intensas as opressões contra esses

povos.

Quando abordamos o tema identidade devemos levar em

conta também que não existe uma identidade nacional

homogênea. O mais certo talvez seria falarmos em

identidades. Observemos o que nos diz o antropólogo Darcy

Ribeiro: somos um povo miscigenado oriundo de três grandes

etnias - indígenas, negros e europeus. Além das muitas

culturas que aqui se mesclaram, e ainda se chocam e

entrecruzam ao longo dos séculos. Vejamos a nossa língua

portuguesa repleta de palavras indígenas, nagô, banto e

yorubá, além de árabes etc. Ao falar de identidades não

poderíamos, porém, nos furtar à denúncia de como ainda

desconhecemos e oprimimos nossos indígenas, em sua

cultura, sua história, seus mitos e sua realidade político-

social.

A nação brasileira foi criada por decreto, de cima para baixo,

onde leis, instituições, governo e religião foram criados fora

daqui, como afirma o escritor Oscar Gama Filho em seu livro

“Razão do Brasil” (Gama Filho, 1991).

Começando pelos jesuítas, eles destruíram o que havia de

autóctone no território brasileiro: “a língua portuguesa e o tupi

como língua geral fizeram com que se aculturassem

numerosas tribos e perdessem sua identidade” até os

jesuítas terem total controle sobre “os Brasis” (Gama Filho,

1991).

Ora, para matar uma nação basta destruir seus costumes,

sua língua, suas tradições, sua cultura no seu sentido mais

complexo. E muito bem o soube fazer o padre José de

Anchieta, que, como já mencionado, foi a mola-mestra do

Page 11: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

11

empreendimento português nas terras as quais se apossaram

e chamaram de Brasil.

Conforme Oscar Gama Filho, os inacianos no Espírito Santo

tinham em suas mãos o “aparelho ideológico escolar”, tanto

que no século XVI fundaram o 1° colégio da Capitania, e, até

sua expulsão no século XVIII, foram detentores do monopólio

no ensino público. Produziram também a ideologia cultural

capixaba da época: poemas, cartas, estudos, obras

arquitetônicas e principalmente sobre a forma de peças

teatrais, sermões, danças, e músicas como instrumentos

catequéticos. Possuíam, no Espírito Santo, ricas fazendas

como a de Araçatiba, Muribéca e Itapoca, regidos sob a

batuta de Roma e Portugal.

Segundo Gama Filho, os jesuítas, em suma, trouxeram “o

inferno para os índios que viviam no paraíso” 4. Anchieta pode

4 Aqui o autor nos aparece um tanto idealista, mas consideremos essa uma

expressão de efeito numa análise interessante sobre a época colonial no ES,

observada também sua perspectiva althusseriana, da qual não compartilho, mas

que não deixa de ser interessante.

ter sido “herói sim, mas do colonialismo português, não dos

índios”, graças à persuasão de suas peças, de suas palavras

e de sua conduta, que lhe angariou, através da Igreja

Católica, o título de beato. Entretanto, não podemos deixar

de observar que, se por um lado os jesuítas foram peões de

batalha do empreendimento português, foi graças a eles que

temos grande parte dos relatos da época, seja na produção

catequética, seja nas cartas que escreviam a Portugal.

Enfim, a nova terra que os jesuítas ajudavam a arrematar,

com a aculturação do nativo, ficou à mercê da dominação

européia, numa espécie de transição entre uma identidade

que deveria negar e abjurar a tradição indígena e uma nova

identidade cristã amorfa que deveriam adotar. Esse processo

não se deu sem conflitos e por ora via-se sincrético. Tal

conflitividade entre profano e sagrado, sustentada por uma

linha muito tênue, está no cerne de uma identidade barroca.

Page 12: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

12

O Barroco, por sua vez, tem sua base na conflituação de

valores, emoções e sentimentos. Há um dualismo entre o

antropocentrismo e a herança teocêntrica do homem.

Gama Filho menciona um pré-barroco no Espírito Santo, que

estaria ligado aos jesuítas, onde destacam-se Álvaro Lobo e

José de Anchieta. No entanto, é no Romantismo que se

começa a dar voga à inspiração individual, aos sentimentos e

emoções como verdadeiros criadores da obra de arte. Criava,

através do nativismo e do indianismo, um certo espírito de

autonomia nacional.

Em José de Alencar, por exemplo, seu indianismo aliena a si

e ao público, levando e um ambiente idílico, à fuga, à visão

maniqueísta simplória, manifestando a falta de empenho na

mudança radical por parte do artista. Não deixa, porém, de

ser uma aproximação à temática nacional, ao pitoresco,

mesmo considerando a visão europeizadora e preconceituosa

sobre o indígena.

O surgimento do movimento romântico capixaba dá-se

oficialmente na metade do século XIX, quando o café passou

a ser produto de exportação do Espírito Santo. Bibliotecas

foram inauguradas, o movimento maçônico cresceu junto

com o abolicionismo (Gama Filho, 1991).

A efervescência causada pelo café no século XIX deu vazão

a uma classe dominante que podia dedicar-se à produção

literária e artística. Foram criados jornais de circulação

regional como: “O Estafeta” (1840), “Correio da Vitória”

(1849), “A Regeneração” (1853), “O Capixaba” (1853), “O

Semanário” (1857), “Aurora” (1859), e assim por diante até

alcançar o total de 143 títulos de jornais e revistas que foram

arrolados entre 1840 a 1899, registrados por Heráclito

Amâncio Pereira em seu livro “A Imprensa no Espírito Santo”.

(Gama Filho, 2001)

Segundo Fábio Lucas em seu livro “O Caráter Social da

ficção no Brasil”, o período romântico acolhia personagens da

classe dominante e espiritualizava as relações. No teatro, o

Page 13: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

13

dramaturgo não se preocupava em escrever bem, mas sim

em surpreender o público. Os chamados dramalhões não

possuíam muita qualidade, sendo que os personagens eram

mal construídos. Todavia as peças teatrais do século XIX,

redescobertas por Oscar Gama Filho, nos dizem muito acerca

dos costumes e do pensamento dos capixabas da época,

sendo de enorme importância literária, histórica e sociológica

para refletirmos sobre o processo de produção e reprodução

das relações sociais no nível ídeo-cultural.

Uma pista do que podemos depreender com um breve olhar

sobre a natureza do Romantismo capixaba no século XIX nos

dá um de seus escritores, Affonso Cláudio, em seu livro

“História da Litteratura Espírito-Santese” (1908), quando diz:

[ . . .] A literatura em toda a América tem sido um

processo de adaptação de idéas européas às

sociedades do continente, adaptação que tendo sido

mais ou menos inconsciente no tempo colonial,

hodiernamente, tende a tornar-se deliberada e

compreensiva. [ . . .] (sic)

[ . . .] Ora, nós, os brasileiros, ainda não alcançamos a

cultura dos supramencionados países ou das

respectivas civilisações na época do maior

florescimento de cada uma delas. (sic)

(Cláudio, 1981: p. 254 e 255)

Nesta última frase, bem como na anterior, está estampada a

ideologia cultural do Romantismo capixaba do século XIX,

seja no teatro, nos jornais e produções literárias: não havia

uma identidade nacional, muito menos com o sentido de

afirmação do local, onde o povo possa ter valorizados os

traços de sua cultura. Tudo era uma imitação barata dos

modelos europeus.

Mais uma vez prevalecia a lógica da dominação. Apenas

trocou-se de elite: de jesuítas versados na arte de aculturar

nações indígenas a ricos barões do café que sustentam o

luxo da classe dominante sobre o sangue e o suor de negros,

indígenas, mestiços e imigrantes europeus que para cá

vieram substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras de café

com a abolição escrita da escravatura. Substituem-se os

Page 14: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

14

espoliadores, substituem-se os espoliados, mas a espoliação

continua.

Na verdade, a Abolição foi mais um exemplo de mudança na

vertical e uma forma de os dominadores se livrarem dos

custos da mão-de-obra, antes escrava. Como trabalhadores

“livres” seriam explorados da mesma forma, só que agora

responsáveis diretos por sua própria subsistência. Marx

chama esse processo de “troca de modo de produção”: do

colonial escravista, passamos ao modo de produção

capitalista, onde o trabalhador vende sua força de trabalho,

imprimindo valor na mercadoria e sendo explorado, pois

apenas uma ínfima parte de sua mais-valia lhe é entregue. A

maior parte fica com o detentor dos meios de produção e da

terra.

Nesse período a literatura capixaba retrocedeu, pois em

relação aos outros estados de capital cultural industrial

ficamos atrasados, já que aqui predominava o agrícola (Gama

Filho, 2001).

Gama Filho nos informa que, entretanto, não faltava ao

estado do Espírito Santo, já em princípios do século XX,

entrosamento com artistas dos grandes centros. Havia até

um movimento antropofágico em 1929, a ponto de Vitória ter

sido escolhida como sede do Primeiro Congresso Mundial de

Antropofagia. Todavia, a forte presença do positivismo no

governo desestruturou a iniciativa, levando novamente à

derrocada uma grande tentativa de integração do estado no

circuito cultural nacional (Gama Filho, 2001).

Só para se ter idéia, no governo Jerônimo Monteiro (1908-

1912), cantava-se o hino francês nas cerimônias cívicas,

sendo somente mais tarde substituído pelo Hino Nacional

Brasileiro. Com seu projeto desenvolvimentista surge no

Espírito Santo um certo bairrismo, mas que é logo

desarticulado na administração de Eurico Resende, quando

transforma os organismos da ideologia cultural capixaba em

departamentos do governo (Gama Filho, 2001).

Page 15: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

15

Oscar Gama Filho lamenta profundamente no livro

“Identidade Capixaba” o fato de terem sido extintas a

“Fundação Jones dos Santos Neves” e a “Fundação Cultural

do Espírito Santo”, pois isso foi um escancaramento das

portas ao neocolonialismo cultural oriundo do estrangeiro e

dos grandes centros que nos cercam: Rio de Janeiro, Minas

Gerais e Bahia.

A alienação do povo e o desconhecimento de sua própria

história são alguns dos instrumentos das classes dominantes

para manter o povo passivo e inoperante. Leve-se em conta

também aspectos da cultura patriarcalista, patrimonialista e

do favoritismo que impregnam as relações sociais em todo o

Brasil, aliada a uma forte cultura de massa num contexto de

globalização crescente.

Conforme Gama Filho, por incrível que pareça, a UFES

(Universidade Federal do Espírito Santo), em 1996 extinguiu a

editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida, responsável por

uma das poucas épocas brilhantes na literatura capixaba.

Mas a maior atrocidade foi vender a quilo um acervo de obras

raras: 32 peças de teatro do século XIX, diversas partituras

de operetas, vários poemas do século XIX e início do século

XX, os primeiros livros de contos e novelas espírito-

santenses, além de originais de Rubem Braga e José Carlos

de Oliveira, descobertos pelo historiador e psicólogo Oscar

Gama Filho. Essa reunião de raridades foi vendida

(pasmem!) para ser transformada no “célebre papel

higiênico”. E o pior é que essa barbárie foi cometida por

causa da mudança de sede da Fundação. Carlos Nejar, “um

dos melhores poetas de todos os tempos descreve o fato em

seu artigo „A queima da biblioteca da Alexandria‟ (jornal A

Gazeta, Vitória, 25/01/1996, Caderno Dois, p. 4)” (Gama

Filho 2001).

Em 1923 havia nascido a revista “Vida Capixaba”, que foi, por

mais de três décadas, a principal fonte divulgadora das

características de nossa terra. No teatro destaca-se a figura

de Virgínia Tamanini autodidata, da cidade de Itapina, que

tem uma produção vultosa no interior, vindo a se apresentar

Page 16: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

16

algumas vezes no Teatro Carlos Gomes em Vitória. O teatro

nessa época era produzido ou por estudantes ligados ao

seminário da igreja católica, ou importantes nomes do setor

do judiciário da capital.

Com a Segunda Guerra Mundial, a base agrícola do Espírito

Santo foi abalada, surgindo, em 1942, a Companhia Vale do

Rio Doce (CVRD) - hoje apenas Vale -, e a Companhia Ferro

e Aço de Vitória (Cofavi), algumas das principais

responsáveis pela destruição da Mata-Atlântica para produzir

carvão vegetal, suprir a demanda energética da produção de

ferro gusa. Começa nessa época o roubo das terras

Tupiniquim e Guarani e dos Quilombolas. A CVRD foi

responsável pelo primeiro grande plantio de mais de 1 milhão

de mudas de eucalipto em Aracruz em 1962, conforme jornal

A Gazeta de 18/02/1962, p. 3: “A CVRD S/A cuida de

reflorestamento”.

Conforme o ecólogo Francisco José da Silva Gomes,

O Espírito Santo, no período de 85 a 90, promoveu

uma destruição em números absolutos de 19.212

hectares, isso aparentemente é um número pequeno

comparado com os outros estados, mas dada a

situação anterior já grave, significou um impacto

grande, ou seja, 4,56% dos remanescentes que

haviam em 85 foram destruídos em apenas 5 anos.

Para se ter uma idéia do que isso significa, a

destruição foi proporcionalmente maior na floresta

Amazônica no mesmo período. Os principais agentes

de destruição no Espírito Santo foram o

reflorestamento com eucalipto e a expansão de

pastagens.

(Capobianco, 1997 apud Gomes, 1999: p. 1)

[ . . .]

Embora os ciclos do café, cana-de-açúcar e

pastagem tenham provocado, com o auxílio do setor

siderúrgico e da indústria madereira, a grande

devastação dos remanescentes do Estado, na

década de 70 inicia-se o processo de instalação do

pólo de celulose agravando ainda mais o quadro. Em

contrapartida, surgiu uma extensa legislação

Page 17: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

17

ambiental de proteção à Mata-Atlântica, prevendo

duras sanções administrativas, penais e civis para os

seus agressores, de forma a reduzir a até a eliminar

as degradações aos seus remanescentes; no entanto,

esta tem se mostrado ineficaz em evitar os cortes,

desmatamentos e queimadas verificadas pela

fiscalização dos órgãos ambientais.

Reverter o atual processo de devastação da Mata-

Atlântica é um desafio que somente poderá ser

solucionado com uma ampla mobilização das

instituições públicas, privadas e a sociedade;

potencializando as ações já em processo de

execução, viabilizando novos projetos e buscando

novos caminhos para a sua proteção e recuperação.

(Gomes, 1999: p. 3)

A partir da década de 1940 o veículo de reinvasão não seriam

mais as carracas e caravelas portuguesas, mas o cinema e a

rádio, difundindo o modo de vida e os valores estadunidenses

(american way of life). No entanto não se pode negar a

modernização ganha por meio desses instrumentos, pois a

dinamização da tecnologia se estendeu também às artes.

Nascia em 1946 a “Academia Capixaba dos Novos”, que,

com recitais poéticos, teatro, palestras, concursos, concertos

e exposições pretendia diminuir o marasmo literário

vitoriense. A arte ainda aqui é um instrumento das elites e a

cultura popular não era considerada expressão artística.

Houve em 1947 a “Quinzena de Arte Capixaba”. Ainda no

mesmo ano foi instituído o Hino Nacional Brasileiro nas

cerimônias oficiais.

Nas décadas de 50 e 60 temos a marcante atuação do

“Teatro Escola” sobre a direção de Flodoaldo Viana, que

passou a encenar autores nacionais.

No final de 1950 e na década de 1960 muitos artistas do

Espírito Santo foram para o eixo Rio-São Paulo, resistindo

apenas, quase solitariamente, a produção de Milson

Henriques, com um teatro de dramas e comédias de um

conteúdo político ferino (sátiras). Milson estudou com Maria

Clara Machado no Tablado e manteve relação com o

Page 18: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

18

movimento Teatro dos Estudantes sob a direção de Paschoal

Carlos Magno. O ator e diretor, também dramaturgo, tem

destaque excepcional com seu conhecido texto “A Tímida Luz

de Velas das Últimas Esperanças”, dentre uma vasta

produção de comédias como “Ai Tia Zizi como saí a ti”,

“Entregando os veados de Vitória”, “Vitória de Setembro a

Setembrino”. Preso no período da ditadura no porão da atual

Escola de Teatro e Dança Fafi por ser suspeito de atividades

contra o governo militar, Milson Henriques cobriu o período

com uma vasta produção.

De meado de 1960 até a década de 1980 temos uma ruptura

no Teatro Capixaba com o movimento do Teatro Universitário

na UFES, sob a direção de Paulo de Paula recém chegado

dos EUA, tendo realizado lá um mestrado em Artes Cênicas.

Paulo de Paula fundou o Grupo de Teatro da Barra que até os

dias de hoje encena a peça “Anchieta Depoimentos”.

Entre uma profícua produção que relaciona a cultura brasileira

com sua raiz nagô yorubá e a tradição literária inglesa e

norte-americana, Paulo de Paula introduziu um tipo de teatro

que floresce até hoje no estado: de pesquisa. O antigo

Teatro Metrópolis foi brutalmente demolido em 2004 pela

UFES (gestão do reitor Weber) por ter sido ocupado pelos

estudantes universitários sem moradia.

Em dezembro de 1959, nos conta Paulo de Paula na revista

“Você”, Zely Simon – uma das fundadoras do Departamento

de Letras da UFES e do IBEU (Instituto Brasil - Estados

Unidos) – e Etta de Assis, alunos da antiga Fafi – Faculdade

de Filosofia e Letras montaram a peça natalina de Maria

Clara Machado “O Boi e o Burro no Caminho de Belém”, no

auditório do colégio americano.

Esse foi o pontapé para uma série de atividades do grupo

que Oscar Gama Fillho chama de TUC-IBEU em seu livro

“História do Teatro Capixaba: 395 anos”. Entre os atores

dessa “primeira experiência”, nos conta Paulo de Paula,

estava Gilson Samento, professor de artes cênicas do Centro

de artes da UFES (até a década de 90), e do mestrado de

Estudos Literários, atualmente.

Page 19: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

19

Em 1989 a peça “O Boi e o Burro no Caminho de Belém” foi

novamente encenada, agora pelo NIAC (Núcleo Integrado de

Atividades Cênicas da Ufes), com direção musical de Márcio

Neiva e participação dos cantores-atores do Coral Opus Livre.

O figurino foi feito pela Associação Cultural de São Roque. O

cenário por Celso Adolfo. E a iluminação por Ary Roaz. A

nova montagem foi encenada no Teatro José Carlos de

Oliveira e gravada pela TVE/ES,

[ . . .] que lançou como “Especial de Natal” naquele ano.

Um dos protagonistas da peça foi Marlon Crist, o

conhecido ator („Bella Ciao‟, peça dirigida por Renato

Saudino e que teve o maior número de premiações do

SATEDES 95. Ainda na Fafi, e usando seu diminuto

palco, em 1961 o TUC encenou “Shakespeare em Preto

e Branco”, cenas de peças e sonetos do autor inglês,

em uma apresentação bilíngüe.

(Paula, 1996: p. 16)

Outro trabalho que marcou época foi a peça “Pluft, o

Fantasminha” que, em 1962 participou do IV Festival de teatro

do estudante em Porto Alegre (RS) e ganhou o prêmio de

melhor espetáculo infantil. O elenco contava com Dora

Cortat, desempenhando Pluft, Margarida Moreira como mãe

de Pluft, Elizabeth Neffa como Maribel, José Carlos

Simonetti, Manoel Nalin, Reginaldo Rabello e Ademar Pinto

(Paula, 1996)

1962 foi também o ano em que grupo montou “Our Town”

(“Nossa Cidade”), de Thornton Wilder, no auditório do Carmo.

Nesse mesmo ano um grupo de estudantes sob direção de

Dilton Lyrio, então presidente a União Estadual do

Estudantes, montam “O Auto da Compadecida” de Ariano

Suassuna. Passados os temores da censura a peça obtém

as “graças” de D. João Batista da Motta e Albuquerque e uma

elogiosa crítica. No elenco Roberto Pimentel (João Grilo) e

Everaldo Pelissari (Chicó). Estreou em Cachoeiro de

Itapemirim (ES). Apresentou-se também na cidade de Alegre

(ES) e no Teatro Carlos Gomes em Vitória (Paula, 1996)

Em 1966 Antônio Carlos Neves volta a Vitória, após o

fechamento da Escola de Cinema da Universidade de

Page 20: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

20

Brasília, e funda o grupo Geração que montou peças de

êxito como “Arena Canta Zumbi” (1966), e “Juventude

de Raiva e muito Amor” (1967) e contava em seu elenco

com elementos que trabalharam no TUC, como Alcides

Vasconcelos e Cláudio Lachini. Este grupo lançou

valores novos como Zélia Stein e Milson Henriques,

este, recém chegado a Vitória.

(Paula, 1996: p 18)

Milson Henriques, em especial, passou a trabalhar com um

grupo de estudantes de engenharia na encenação de seu

texto “Vitória, de Setembro a Setembrino”, uma sátira política

à gestão do prefeito Setembrino Pelissari. Em 1970 Milson

apresenta sua sátira à censura “Animais não desanimais”,

com o mesmo grupo. Em 1972 encena com os estudantes da

EMESCAM (Escola de Medicina Santa Casa de Misericórdia)

sua comédia “De como Conquistar um Coronel sem Fazer

Força“, e, em 1975, “Um doutor na Família” (Paula, 1996).

De 1976 a 1979 se verá uma explosão Teatro Universitário

com os Festivais de Teatro Universitário e o programa

bolsa/arte da UFES sob direção de Gilson Sarmento. Peças:

“As Sabichonas” de Molière, “O Noviço” de Martins Pena,

“Um pedido de Casamento” e “O Jubileu” de Tchekov, além

de “Cenas do Teatro Universal” (Paula, 1996).

Paulo de Paula em seu artigo “Teatro Universitário: ontem e

hoje” (Paula, 1996) diz que é questionável a validade dos

Festivais Universitários da UFES, afirmando que 20 anos

depois, parece não ter contribuído para a formação platéia.

Argumenta que foram eventos efêmeros “com um toque de

ôba-ôba”. Paula (1996) aponta, porém, para o saldo que

significou na formação dos artistas. Esse fator é algo que não

podemos negar, pois daí surgiram nomes como o do grande

diretor Renato Saudino, atuante até os dias de hoje e uma

das peças-chave na elaboração da estrutura artística da

Escola de Teatro e Dança de Vitória FAFI. Renato é ainda

hoje professor de História da Arte na Escola de Teatro e

trabalhou em vários setores ligados ora às artes plásticas,

ora às artes cênicas e à gestão cultural. Responsável

inclusive por um salto de qualidade nos últimos anos no

“Grupo de Teatro Vira-Lata”, com a direção do espetáculo “A

Page 21: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

21

Feira”. Um outro exemplo marcante dessa safra foi o de

Fanny Bittencourt, revelação de atriz na I Mostra de Teatro

Universitário Capixaba, que chegou a participar do elenco

paulista de “Macunaíma”, e depois e optou por voltar a Vitória

e ao curso de Língua Inglesa (Paula, 1996).

Os grupos eram formados por alunos dos Centros de Estudos

da UFES e diretórios acadêmicos. Ao todo foram 4 festivais

com 25 peças apresentadas como: “Bumba meu Bucho”,

criação coletiva do grupo “Phantasias do Açúcar” (DACBM),

“São Mateus Colônia” com base no trabalho de Rogério

Medeiros. Nessa última peça participaram Antônio Claudino

de Jesus, Elisa Lucinda (hoje atuante no Rio de Janeiro e São

Paulo) e Margarete Taquete (diretora de cinematográfica de

“A Mulher de Algodão”, 1995) (Paula, 1996)

Um grupo de destaque que participou desse circuito dos

festivais universitários da UFES foi o “Clio”, com participação

de Laura Lustosa, dissolvido em 1980, quando do retorno do

professor Ibarguen para a Amárica do Norte (Paula, 1996).

Outro grupo dessa formação foi o “Canalhada”, com a

talentosa direção de Virgínio Lima. Destaque para o

espetáculo “Ei, oi, psiu . . .” (Paula, 1996)

Em 1990 Celso Adolfo recebeu a indicação de melhor cenário

pelo espetáculo “Jogo de Damas” de Julio Matas (NIAC-

UFES) e indicação de melhor direção para Paulo de Paula,

tendo como assistente de direção Ary Roaz e prêmio de

melhor atriz para Lúcia Junqueira e Alcione Dias. A peça

contou com a participação da atriz Branca Santos

(SATED/ES), no festival de Blumenau. Retornando a Vitória,

a peça “foi gravada pela TVE/ES e lançada na Rede Brasil”

(Paula, 1996: p. 21).

Aliando o teatro à formação em língua inglesa os trabalhos

do Departamento de Letras tiveram grande destaque como a

montagem de “The Importance of Being Earneast” de Oscar

Wilde com direção da professora Neise Rodrigues. A peça

apresentou-se a convite na USP e contava em seu elenco

com o estudante Alvarito Mendes Filho (Paula, 1996).

Page 22: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

22

Com direção da professora Ester de Abreu o Departamento

de Letras passou a apresentar seguidamente, pelo

NIAC/SPDC, “cenas da dramaturgia e da literatura espanhola

como o clássico „Dom Quixote‟” (Paula, 1996: p. 21), sob

direção de Ary Roaz. A instalação de Jose Zorrilla, por Elisa

Queiroz e “[ . . .] as interpretações poéticas pelo grupo

„Guardiães da Poesia” (Paula, 1996), dirigido por Margarete

Maia (socióloga).

Paralelo ao Teatro Universitário, a década de 70 gestará um

movimento de valorização da cultura popular com os Centros

de Cultura Popular (CPC‟s) junto à União Nacional dos

estudantes (UNE). A luta de muitos artistas contra a Ditadura

Militar e a resistência são alguns dos aspectos abordados por

Saulo Ribeiro em sua monografia do curso de História da

UFES sobre o período e que vale a pena ser conferido.

Destaco desse período as peças “Antígona” sob direção de

Luís Tadeu Teixeira e a criação espaço do “Teatro Aberto”,

atual SCAV Edith Bulhões, sempre na iminência de ser

demolido e que, atualmente, foi tomado pela Receita Federal

para construir ali sua sede. O Teatro está para ser demolido

e as autoridades se reusam a intervir, inclusive o próprio

Ministro da Cultura, que ao propor em Audiência Pública na

Assembléia Legislativa, um contrato de comodato para o

MINC, recebeu da intransigente Receita Federal resposta

negativa. É dessa época também a criação do espaço na

antiga Casa da Cultura (anterior Restaurante Universitário no

Centro da Cidade) que foi demolida criminosamente pelo

Estado, por envolver muitos interesses, inclusive os dos

artistas que lá desenvolveram intensa atividade de

resistência durante a Ditadura Militar.

O espetáculo “Navio Negreiro” sob direção da autodidata

Vera Viana que introduz no Teatro Capixaba a iluminação

teatral com latas de leite como refletores. A idéia de

iluminação se difunde em todo o meio teatral. A diretora,

também dramaturga com forte influência da dramaturgia de

Ibsen, aborda aspectos muito importantes e interessantes da

questão racial, do escravismo em vários de seus textos e de

suas direções, e dá todo um destaque ao papel da militância

Page 23: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

23

e da cultura popular. Também te destaque seu célebre texto

“Devagar com o Andor que a Panela é de Barro” 5.

A década de 1970 é, sem sombra de dúvidas, o período de

maior produção artística no cenário do ES, onde a luta contra

a Ditadura se tornou um catalizador ideológico das ações e

intervenções contra um Estado autocrático, militar, que

defendia apenas o interesse da classe burguesa e militar.

Porém nem todos os artistas que participaram tinham isso

muito claro.

Lançam-se nomes como: Renato Saudino, ator e diretor de

talento, Agostino Lazzaro (ator, diretor e escritor), Alvarito

Mendes Filho (também ator e dramaturgo. Destaco sua peça

“Um Piano sobre o meu coração” onde retrata a realidade do

povo pomerano no Espírito Santo). Renato e Agostino têm

forte influência de Gilson Sarmento, diretor teatral, professor

da UFES.

5 A panela de barro é um forte símbolo da cultura no ES, tendo origem nos negros

e indígena, é utilizada para fazer a típica moqueca capixaba.

Importante revista lançada nesse período e que reunia

artistas locais e nacionais, foi a “Imã”, cuja editora-chefe

Sandra Medeiros, obteve reconhecimento nacional da

vanguarda artística encabeçada por Caetano Veloso, Gilberto

Gil e o Movimento da Tropicália, além da crítica literária por

seu empenho e constante diálogo.

Ainda dessa época temos o nome de Magno Godoy (In

Memoriam), que realizou um trabalho vultoso entre a dança,

o teatro e as artes plásticas, com forte influência da dança

clássica e da dança japonesa “Butô”6. Nessa época Magno

encenou textos de Fernando Pessoa como “O Marinheiro”

com Elisa Lucinda. Magno formou e foi mesmo uma “escola”

onde surge Marcelo Ferreira, ator, bailarino e diretor que

encena memoravelmente, nos anos 2000, os espetáculos

“Esperando Godot” e “Back to Becket”, do texto “Fim de

6 Chamada também de “Dança das Trevas” ou “Dança da Alma”. Tem como

maior expoente o japonês Kazuo Ohno. No Brasil Maura Baiochi, professora do

curso de dança da UnB (Universidade de Brasília), realiza uma pesquisa

interessante das influências do Butô em seu livro “Butô: dança veredas d’alma”.

Nesse livro está registrado o trabalho da Cia Neo-Iaô, sob direção de Magno

Godoy, que buscou criar um Butô brasileiro com referências no candomblé.

Page 24: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

24

Partida”, ambos de Samuel Becket; e Paulo Fernandes,

bailarino negro, fundador da Cia Enki de Dança que faz um

trabalho muito interessante onde congrega, além da dança

butô (herança do grupo Neo – Iaô, formado com Magno e

Marcelo), influências africanas e do misticismo do poeta

Waldo Motta.

Nos anos 1970 surge o poeta Waldo Motta em São Mateus,

que veio a ser reconhecido como um dos maiores nomes da

literatura brasileira contemporânea. Realizou um percurso

militante no movimento gay, e enfrentou preconceito até hoje

presente contra os homossexuais, acirrado com o surgimento

da AIDS no início da década de 90. Waldo cria com o

cineasta e jornalista Amylton de Almeida, e outros nomes, o

“Triângulo Rosa” que, entre outras atividades, realizava

palestras em parceria com profissionais das áreas biomédicas

na busca da cura para a AIDS e descriminalização dos

homossexuais. Em conversa com Waldo Motta ele revela:

“Naquela época, nós, os homossexuais, estávamos com

medo até de sair à rua, tão forte era a discriminação e o

perigo que corríamos. Como bibas conscientes não

podíamos deixar a situação assim: criamos o Triângulo Rosa

para promover o diálogo, esclarecer a população e buscar a

cura da AIDS”.

É desse período o poema “ODE À IDA AO ID” e „NOS DIAS

DE AIDS”:

“ODE À IDA AO ID

„Vexilla Regis prodeunt inferni‟

Cf. Dante

Hás

de

ir

ao

Id

Hás

de

ir

ao

Id

Page 25: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

25

Hás

de

ir

ao

Hades

Hás

de

apegar

-te a

Toda e qualquer

merda

neste

mar de

Hás de enfrentar

A nado

ao nada

para enfim dar

a Lugarnenhum

Hás de ir ao Id

hás de ir ao Hades,

apesar de Cérbero

a tudo atento

com seus mil ouvidos

e olhos cibernéticos,

apesar de toda a

hiperinfernália

de ritmos pânicos,

sabores e odores

e cores e sons alucifeéricos

do Leviatan.

Hás de ir ao Id

hás de ir ao Hades,

derrotar Satan

e as potestades.”

“NOS DIAS DE AIDS

Nos dias de Hades e seu reino podre

Hás de doar odes até o odre.

Hás de ir ao Id, de todos os modos.

Hás de ir ao Id, enquanto se pode.

Isento de ódio, imune ao medo,

Hás de ir ao Id, já não é mais cedo.

Hás de ir ao Id, hás de ir ao Id,

Para depor Hades, que a tudo preside,

Page 26: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

26

e, depondo Hades, todos os poderes

que impedem a mútua doação dos seres.”

(Motta, 2008: p. 43 e 44)

Waldo chega a ocupar cargo público de assistente de direção

da chefia do antigo DEC (Departamento Estadual de Cultura)

no final dos anos 80, e o abandona em seguida, além de ter

abandonado o curso de jornalismo na UFES na década

seguinte, para escrever o famigerado livro “Bundo e outros

poemas”, onde entre outras coisas, realiza uma releitura gay

da Bíblia com influência de diversas tendências da poesia

brasileira contemporânea e universal, mitologia, cabala e

esoterismo. Nos anos 90 Waldo é reconhecido pela crítica

nacional e internacional realizando residência poética na

Alemanha e nos EUA, e em universidades conhecidas por

todo o Brasil. Realizam-se dissertações e monografias de

mestrado e graduação em Estudos Literários e Letras sobre

sua obra na UFES e nas universidades de Munique

(Alemanha) e da Holanda. Seu livro “Transpaixão” é hoje obra

obrigatória para o vestibular da UFES. Junto com Waldo, a

UFES adota outros capixabas como o poeta Miguel Marvilla

(falecido recentemente) e os contistas/romancistas Reinaldo

Santos Neves e Adilson de Villaça. Nos anos 2000 Waldo

cria o “Grupo Poiesis”, fruto de suas oficinas literárias e

teatrais, que entre outras coisas reúne poetas, atores,

músicos, críticos literários e editores do circuito local e

nacional. Destaca-se a realização do evento “Poesia ao Vivo”

no ano de 2008, quando traz para Vitória o poeta e editor da

editora Globo Ronald Polito, Massao Ohno da editora

homônima e Celso de Alencar, poeta e representante do

Ministério da Cultura, todos de São Paulo.

Em 23 de maio 2009, quando se “celebra” a colonização do

solo espírito-santense, o Grupo Poiesis estreou o espetáculo

“Terra Sem Mal”, versão teatral do livro de poemas

homônimo de Waldo Motta, sob sua direção com os atores

William Berger, Allan Moscon e atriz Christina Garcia.

Na década de 70, o cineasta Toninho Neves vai para a URSS

realizar um curso de Cinema e retorna ao Estado ampliando

Page 27: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

27

a produção cinematográfica até então encabeçada por Luis

Tadeu Teixeira.

A obra cinematográfica de Luis Tadeu Teixeira se destaca

pelos filmes “Graçanã”, baseado no romance “Canaã” de

Graça Aranha, além dos curtas-metragens Castelo, Corpus

Christi (1978), Ponto e Vírgula (1986) e O Ciclo da Paixão

(2000)

Também Amylton de Almeida com o conhecido “O Amor Está

no Ar”, onde participam como protagonistas Eliane Jardini e

Marcos Palmeira do Rio de Janeiro e diversos atores e atrizes

capixabas da estatura de uma Margareth Galvão.

Como documentarista o nome de Ricardo Sá ganha destaque

com sua produção sobre a questão indígena e a Aracruz

Celulose no município de Aracruz-ES, nos anos 90 e 2000. É

reconhecido internacionalmente seu documentário “Terra

Sem Males”.

Amylton de Almeida também produz o documentário “Lugar

de Toda Pobreza”, no final da década de 80, como denúncia

da situação de miserabilidade na região da Grande São

Pedro (Vitória-ES), para onde foram empurrados os pobres,

os negros, os leprosos (Leprosário-ilha de Santo Antônio) e

onde era depositado em montanhas o lixo da cidade, do qual

se serviam os miseráveis para a sua sobrevivência. Após

anos e anos e tendo como fruto dessa época de denúncia por

parte desses e outros artistas e de setores populares

organizados, a região recebe obras de urbanização e é

criada a fábrica de lixo de São Pedro pela Prefeitura

Municipal de Vitória.

Ainda na área do cinema e áudio-visual, uma especial

menção deve ser feita a “Seu Maneozinho” de Mantenópolis.

Servente de pedreiro, Manoel Loreno é o maior produtor de

vídeos da cidade, no interior do ES. Um dos maiores do

Estado. Tem em sua obra 21 longas-metragens de foroeste e

aventuras. Com recursos mínimos nos dá um exemplo

Page 28: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

28

emocionante de como somos capazes de realizar cultura

enquanto uma invenção criativa.

Nessa época os artistas organizados ocupam uma escola no

coração da cidade de Vitória e fundam um programa de

oficinas que dão origem à Escola de Teatro e Dança FAFI,

como um dos maiores pólos de formação, produção e difusão

cultural no Estado. Muitos artistas de grande qualidade

passaram pela Escola em todas as épocas, seja como alunos

ou professores e oficineiros. Atualmente a Escola vem num

processo de decadência, sem regulamentação junto ao MEC

e orçamento reduzidíssimo para suas atividades. A qualidade

do ensino das artes cênicas decaiu consideravelmente. No

ano de 2004 houve ainda a tentativa de privatização da

Escola pela via da terceirização dos serviços através da OS

(Organização Social) IACC (Instituto de Arte e Cultura

Capixaba), que pretendia colocar a Escola nos moldes da

educação formal. No entanto, temos de reconhecer que

algumas das melhorias físico-estruturais e organizativas da

escola constam desse período.

A década de 80 e a redemocratização do país trouxeram a

esperança de uma nova sociabilidade, inspirada nas

conquistas populares que culminaram na Constituição de

1988. É dentro dessa época também que se consegue o

reconhecimento da profissão dos artistas, com a criação dos

SATED‟s (Sindicato dos Artistas e Técnicos de Diversões de

Espetáculos), que se multiplicam por todo o país. Depois de

muita luta, arte vai deixando seu velho estigma de marginal.

Os antigos departamentos dão lugar às secretarias de

cultura. Na Saúde, temos a criação do SUS (Sistema Único

de Saúde), substituindo os antigos Institutos, ligados aos

setores produtivos. A saúde torna-se um direito universal em

sistema descentralizado e regionalizado. Cresce a demanda

e o SUS vê-se insustentável abrindo precedente para a

Saúde Privada e os Planos de Saúde. Na Educação a Lei de

Diretrizes e Bases amplia o direito universal à educação

pública. Na Previdência são instintos os antigos Institutos de

Aposentadoria e Pensão pela criação do INPS (Instituto

Nacional de Previdência Social). A Assistência Social Pública

ganha o status de direito. Em todos os setores as parcelas

Page 29: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

29

excluídas do poder passaram a ser vistos como sujeitos de

direitos, portadores de uma cidadania política, porém em um

sistema econômico desigual. A contradição se torna evidente.

Entramos na década de 90 com um forte discurso dos

apologetas neoliberais chegando ao Brasil. Seus programas

se originaram nos anos 70 e 80 no governo com Margareth

Tatcher na Inglaterra, Ronald Reagan nos EUA e o ditador

Pinochet no Chile. No Brasil, anos 90, é Fernando Collor de

Mello quem implementa uma série de programas de

privatização das empresas estatais e dos setores produção

de base e automobilístico, além dos setores públicos. O

colapso do Estado de Bem-estar Social, (na América-Latina

economista Francisco de Oliveira nomeia um Estado de Mal-

Estar) deu abertura para o Estado Neoliberal, o desmonte das

políticas públicas, a privatização da Saúde, da Educação, da

Previdência e também da Cultura através da implementação

das “Leis de Incentivo Fiscal”, que corroboram com o

mercado, além da terceirização dos serviços. Muitos dos

artistas que antes produziam por estímulo ideológico e político

passam a ser movidos mais pelo econômico: o mercado e o

comércio parecem ter cooptado os “sobreviventes” da

Ditadura. A exceção é Augusto Boal no Rio de Janeiro e seu

Teatro do Oprimido que se ramifica por todo o mundo,

chegando inclusive no Espírito Santo, através do Centro de

Teatro do Oprimido e seu programa de formação de

multiplicadores, que põe em questão a discussão de classe

implícita nas formas da opressão cotidiana. Cria-se o

NUPRATO (Núcleo de Praticantes de Teatro do Oprimido do

ES). A década de 90 aparentemente anuncia uma nova

ordem econômica travestida de uma cidadania do

consumidor. A política social vai sofrer sérios impactos em

detrimento de uma política econômica voltada para o

mercado externo e o capital financeiro parasitário, pois se

baseia na especulação das bolsas de valores e não investe

na produção. Daí o enriquecimento dos grandes capitalistas

sobre o crescimento da pobreza e da miséria, advinda do

desemprego estrutural em massa e das péssimas condições

de trabalho. A flexibilização das normas trabalhistas, a

precarização das relações de trabalho, o aumento da jornada

Page 30: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

30

e da informalidade se estenderão também ao campo das

artes. A carteira assinada para o artista, bem como para os

demais trabalhadores, passa a ser um sonho cada vez mais

distante nos horizontes do mercado.

Prevalecem a relações de precarização extrema, os cachês

passam a ser cada vez mais reduzidos, dando aos artistas

mais novos a impressão de que a profissão não seria

exequível fora das leis incentivo fiscal. O SATED‟s perdem

seu poder de barganha e interlocução com o sindicalismo e o

Estado. O artista sindicalizado passa a ser uma

obrigatoriedade do mercado, que dita agora, através dos

editais, o que pode e o que não pode ser dito em uma obra.

Há uma refilantropização da Questão Social, com a

multiplicação das ONG‟s (Organizações Não-

Governamentais), OSCIPIS (Organização da Sociedade Civil

de Interesse Público e OS‟s (Organizações Sociais).

Dissemina-se no Brasil um forte discurso de crise.

A Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo tem

alguns avanços na gestão de Neusa Mendes nos anos 2000,

com a criação de projetos como a “Escola Itinerante de Artes

Cênicas”, que formou núcleos por todo os estado dividindo-o

em microrregiões e agrupando os municípios. Além de

programas de formação de artistas com projetos como “Usina

da Cena” e Festival “Vitória em Cena” com oficinas e

workshops de profissionais altamente reconhecidos nos

circuitos nacional e internacional. Realizou também o “Fórum

Internacional de Cooperação Cultural”, onde lançou um

catálogo da produção cultural no Espírito Santo, a ser

entregue a representantes de diversos países. A atual gestão

extinguiu muitos dos projetos, deixando o cenário cultural um

tanto desolado.

A Secretaria Municipal de Cultura da capital Vitória criou o

projeto “Circuito Cultural”, que prevê atividades formativas de

público e artistas nas periferias, com a descentralização da

política cultural. Porém a experiência tem tido resultados

pouco satisfatórios, demonstrando queda de qualidade. Só

para termos um exemplo os cachês pagos aos artistas

beiram a cifra de R$ 300,00 por mês, inviabilizando um

Page 31: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

31

trabalho de qualidade. Destaque-se a qualidade do Festival

de Teatro Cidade de Vitória, com peças da melhor qualidade

vindas do circuito nacional e oficinas com profissionais de

renomado valor.

O SESC (Serviço Social do Comércio) abre suas portas no

Espírito Santo nos anos 2000 na área da Cultura, criando

uma nova dinâmica que enche de esperança os presentes

produtores. Há uma relativa corrida aos processos de

adequação de linguagens. Foi criada recentemente a “Aldeia

SESC Anchieta”. Os espetáculos recebem a crítica nacional.

Intelectuais capixabas entram no circuito nacional e outros

são ignorados, ora por sua qualidade, ora pela periculosidade

de suas idéias. O mercado não aceita tudo, principalmente os

artistas radicais, que são novamente legados a um circuito

alternativo de auto-financiamento, já que não se enquadram

em certos editais e não se submetem às leis cooptadoras do

mercado. Esse tipo de artista é uma espécie em extinção em

todo o mundo. Acredito que quando as normas de um edital

passam a censurar os conteúdos da obra de um artista,

temos aí uma forma de regime de exceção, de castração e

de silenciamento de uma época.

Na segunda metade dos anos 2000, Rosa Rasuck, produtora

cultural preocupada com o diálogo entre os artistas funda o

grupo virtual de discussões Opiniões Cênicas, a partir de

uma crítica ao Espetáculo “O Pássaro Azul” do Grupo Clã de

Teatro, sob a direção de Leonardo Patrocínio. Com o

pseudônimo “Ah se eu fosse a Bárbara Heliodora” sacode o

meio teatral e demais artistas com uma mala direta para mais

de 400 email‟s, que colhera ao longo de quase 4 anos de

atuação como produtora da “Cia Circo Teatro Capixaba” sob

direção de Willian Rodrigues.

A cena atual do Teatro no Espírito Santo conta com uma

quantidade razoável de grupos que movimentam o cenário

local e por vezes se expandem para o cenário nacional e

internacional. O “Festival de Teatro Nacional de Teatro

Cidade de Vitória” e o “Festival Nacional de Teatro de

Guaçuí” realizam uma ponte entre a produção local e a

Page 32: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

32

produção nacional muito importante e ampliam os horizontes

de formação de platéia e artistas. Importante atuação se deve

ao “Festival de Teatro Infantil do Espírito Santo, Vila Velha”,

sob coordenação de Alvarito Mendes Filho. Na área do

cinema e do áudio-visual é de enorme importância do Festival

“Vitória Cine Vídeo”, que faz uma movimentação portentosa

da produção local e nacional e está em sua 16ª edição

(2010). Ainda, os festivais de música são muito interessantes,

como o “Festival de Inverno de Domingos Martins”, como

resgate da música erudita produzida em todo o Brasil; há

também o “Festival de Inverno da Sanfona e Viola”, em

Mimoso do Sul, que valoriza a música regional e a cantoria

tradicional.

Dentre os grupos teatrais mais atuantes destacam-se o

“Grupo Z” de Teatro sob direção de Fernando Marques;

Grupo “Gota, Pó e Poeira” de Guaçuí, sob direção de Carlos

Ola, o “Grupo Poiesis” de poesia-teatro e outras artes, sob

direção do poeta Waldo Motta; o “Grupo de Teatro da Barra”,

sob direção de Paulo de Paula; o “Grupo Vira-lata” de teatro

de rua, sob direção de Cleverson Guerrera; o grupo “Os

Tarahumaras”, sob direção de Wilson Coelho (diretor e

filósofo); grupo “Clã” de Teatro, sob direção de Gecimar

Lima; o grupo “Quintal” sob direção de Ednardo Pinheiro e

José Augusto Loureiro, com inserção da diretora Telma Smith

(recém chegada de São Paulo); “Grupo Rádio Terra”, sob

direção de Verônica Gomes; “Cia Circo-Teatro Capixaba”,

sob direção de Willian Rodrigues; Cia Capixaba de

Comédias, sob direção de Alvarito Mendes Filho (diretor e

dramaturgo); a “Cia Folgazões” de teatro de rua, sob direção

de Edson Santos; a “Rá – Tim – Bum Produções de Artes”. A

diretora Márcia Gáudio faz um trabalho de suma importância

na região da Grande São Pedro e Santo Antônio com o Auto

da Paixão de Cristo na época da Semana Santa, com uma

apresentação nas escadarias do Santuário de Santo Antônio

e envolve vários setores da comunidade. Na mesma linha há

um interessante trabalho feito na favela do Romão, há mais

de 30 anos com direção de Josmar Pinto do Rosário (In

Memoriam), além de George Henrique, Romualdo Manhães,

Toninha e toda a comunidade que congrega desde

Page 33: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

33

evangélicos, católicos, umbandistas, adultos e crianças. Na

região da Grande Maruípe, também no município de Vitória,

quem desenvolve um trabalho nessa mesma época é

Verônica Gomes e seu grupo Rádio Terra. Verônica tem forte

influência do diretor conhecido diretor Amir Hadad e Dácio

Lima (clown). De Verônica são conhecidas suas duas

direções: “Clown – Situações Inusitadas” e “O Caso Herzog”.

Há também um fluxo do teatro amador, do qual não temos

informações precisas sem uma prévia pesquisa de campo

que segue um rumo paralelo.

Há um número significativo de Cias de dança como a “Cia

Balé da Ilha”; a “Cia Corpo em Cena”; “Cia Enki de Dança

Primitiva Contemporânea”; a “Cia de Dança Mitizi Marzzuti”;

“Grupo de Dança Afro NegraÔ”; a “Homem Cia de Dança”; a

“Quorum Cia de Dança” e a “Cia de Dança Emerson Barreto”,

entre outras.

Nas artes plásticas, nomes como Attilio Colnago (pintura),

Águeda Valentim (eramista), Andréa Abreu (pintura),

Argentino Vieira (pintura naif), Antônio Ramos dos Santos

(pintura, desenho, cartum e música), Douglas Salomão

(intervenções urbanas), Flávio Pimentel (arame, desenho e

escultura), Gilbert Chaudanne (pintura), Rosana Paste

(escultura), são alguns dos muitos nomes de artistas não

menos importantes, escolhidos aqui por critério de

amostragem por forma de expressão artística (I Catálogo de

Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).

Também no artesanato há uma enormidade de produções,

desde as paneleiras de Goiabeiras às esculturas Naif de Laila

Coutinho; artesanato de conchas. E em especial o artesanato

Guarani de Werá Djekupé, de Aracruz, que inclui arco flecha,

zarabatanas, tacapes, cestos e cerâmica (I Catálogo de

Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).

Na música bandas como Casaca (Vila Velha) e Manimal,

mesclam elementos do congo capixaba ao rock e ao reggae.

O grupo Sol na Garganta do Futuro, que trabalha entre o

rock, poesia, samba, funkarioca e bossa. Chico Lessa,

Page 34: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

34

cantor, compositor e letrista de reconhecimento nacional, com

forte influência da bossa nova, samba e tropicalismo. E

Marcela Lobo, de uma voz inconfundível e talento, com

teatralidade visceral, para citar apenas alguns nomes de

determinados estilos, o que não diminui o trabalho

significativo de todos os outros (I Catálogo de Produtos

Culturais do Espírito Santo, 2005).

Há também um sem número de instituições e projetos

culturais e projetos sociais com atividades culturais, das artes

cênicas, plásticas e populares. Destaco aqui a ACES (Ação

Comunitária do Espírito Santo), o Projeto Manguerê

(idealizado por Elisa Lucinda – poetiza), a Associação de

Bandas de Congo da Serra e Associação Cultural e

Recreativa de Belém em Santa Maria de Jequitibá, em uma

amostragem simples.

Culturas Populares

Para encerrar essa parte sem a intenção de cansar o leitor

com tantos nomes, mas que de forma alguma poderiam ficar

de fora dessa reflexão, pois são os que produzem arte e

cultura no Estado do Espírito Santo, gostaria de chamar a

atenção agora para a importância da cultura popular no

nosso país e vou citar as manifestações da cultura popular de

meu Estado.

A panela de barro é símbolo da cultura capixaba,

confeccionada com uma técnica popular há mais de 400

anos, é uma prática passada de geração a geração, até os

dias de hoje em mãos calejadas de trabalhadoras como as

paneleiras de Goiabeiras. Seu processo de confecção

passou dos índios Uma para os escravos africanos,

chegando até nós (I Catálogo de Produtos Culturais do

Espírito Santo, 2005).

Page 35: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

35

O “Bate Flecha de Zumbi” em Cachoeiro de Itapemirim é um

dos mais significativos grupos folclóricos do sul do Espírito

Santo. Praticam um folguedo de origem africana, marcado

com coreografias com flechas de bambu e instrumentos de

sopro metálicos que acompanham os cânticos (I Catálogo de

Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).

Em Muqui temos o “Boi Pintadinho”, uma brincadeira alegre e

divertida que acontece no carnaval, similar ao Bumba-meu-

boi ou Boi-bumbá em diversas partes do país (I Catálogo de

Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).

O “jongo de São Benedito”, em São Mateus é um folguedo em

louvor ao santo com cânticos, percussão e coreografias que

inclui arcos floridos e roupas coloridas (I Catálogo de

Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).

As “Pastorinhas” na cidade de Mimoso do Sul é uma

manifestação cultural que tem origem bíblica, imbricada na

cultura popular e compõe o ciclo de 12 noites comemorativas,

do Natal até o Dia de Reis em 6 de janeiro, com realização

de danças, bailes, e peças teatrais (autos). A festa tem

elementos de dramatização bem definidos como cenário,

figurino, canções, coreografias. Começa após a Missa do

Galo, na noite de Natal (I Catálogo de Produtos Culturais do

Espírito Santo, 2005).

As “Procissões Marítimas” se integram a Festas Populares,

como a procissão marítima de São Pedro, em Vitória (I

Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo, 2005).

O “Ticumbi” na cidade de Conceição da Barra é uma versão

capixaba da congada encontrada apenas no Espírito Santo:

É uma dança dramático-guerreira, praticada por negros

que se vestem quase sempre de branco. Usam japonas

ou batas longas enfeitadas de fitas muito coloridas,

amarrando na cabeça um lenço que lhes dá um ar

mouro. Sobre o lenço usam flores de diversas cores.

Alguns colocam sobre o lenço um chapéu de palha

todo enfeitado de fitas e flores. Para dar ritmo ao

folguedo, usam chocalhos e uma viola.”

Page 36: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

36

(I Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo,

2005).

Na “Charola de São Benedito”, em Guaçuí, um grupo de

pessoas sai pela rua cantando e recolhendo donativos para a

festa de São Benedito. A tradição tem por volta de 50 anos.

Destacam-se também os grupos de danças folclóricas

alemãs, pomeranas e italianas nas serras do Espírito Santo,

região onde tiveram maior concentração desde a época da

imigração (I Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo,

2005).

Várias são as festas populares como “Folias de Reis” em

Muqui, Mimoso do Sul e Boa Esperança; “Festa de Santos

Reis” em São Mateus; “Festa da Penha”, em Vila Velha;

“Festa de São Benedito” na Serra (I Catálogo de Produtos

Culturais do Espírito Santo, 2005).

Uma infinidade de terreiros de Umbanda e Candomblé se

encontram sobre todo o estado, o que se constitui em um

aspecto importantíssimo das culturas afro-descendentes e

indígenas no Brasil e que sofre intensa discriminação e

repressão por parte do Estado e da sociedade ao vulgarizar e

criminalizar as práticas religiosas não-hegemônicas como

“coisa do diabo”, “macumba e feitiçaria”, ou “coisa de preto”,

desconhecendo e oprimindo as práticas culturais religiosas

que remontam a nossas raízes africanas. O que vem do

negro e do índio é colocado na posição inferior no caldo

cultural e em grande parte criminalizado. Há um aspecto de

dominação cultural, que remonta à catequese anchietana,

que lamentavelmente ainda vivemos em nossa dita

democracia.

Pela realidade que se nos apresenta hoje no Brasil, sou

levado a crer com o sociólogo português Boaventura de

Souza Santos, que vivemos em uma uma sociedade de

discurso de “cidadania política” em um forte “fascismo social”.

O termo Cultura tem múltiplos sentidos. Poderíamos citar

aqui sete desses conforme o antropólogo Mércio Pereira

Gomes (2008):

Page 37: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

37

1) Cultura como erudição;

2) Cultura como a arte e suas manifestações;

3) Cultura como os hábitos e costumes;

4) Cultura como identidade de um povo ou coletividade;

5) Cultura como o que está por trás dos costumes de um

povo;

6) Cultura como o que perpassa todos os aspectos da

vida social;

7) E enfim, Cultura como tudo aquilo que o homem

vivencia, realiza, adquire e transmite por meio da

linguagem.

As idéias e informações apresentadas aqui precisam ser

entendidas sob o fluxo dessas categorias, pois no que se

refere à Cultura como erudição, esse é um dos aspectos

impregnados no termo e que nos leva perigosamente àquelas

velhas acepções que Affonso Cláudio faz em seu livro

“História da Literatura Espírito Santese” (1908), de submissão

aos modelos estrangeiros e a um complexo de inferioridade

que nos foi sendo incutido desde a colonização européia.

Referente à acepção de Cultura como arte e suas

manifestações, produção cultural, ora dominante

ideologicamente, podemos perceber pelos fatos históricos e

políticos da produção capixaba até então apresentados, que

esse é o modelo que tem imperado e tem maior destaque no

campo das políticas culturais.

Acredito ser de extrema importância realizarmos uma

reflexão ética sobre o papel das políticas sociais de cultura

na criação de novos valores, mais democráticos, populares

que valorizem hábitos, costumes locais, tradições, mas que

também os transformem, pois a Cultura não é estanque, mas

está em constante transformação.

E pergunto: para onde estamos direcionando esse fluxo?

Quais valores estamos imprimindo em nossas práticas e

políticas culturais?

Page 38: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

38

Se cultura é também entendida como a identidade de um

povo ou coletividade, qual o lugar que estamos dando ao

outro e à cultura popular? Não teríamos ainda entranhado em

nossas visões de mundo esse eurocentrismo devastador que

tantas culturas apagou e tantos outros encobre até hoje?

Quais são as nossas referências? Quem são os nossos

pensadores e os nossos produtores de Cultura?

Precisamos realizar essa conquista ao inverso, nos colocando

como o centro da Cultura e não sua periferia, como adverte o

filósofo da libertação, latino-americano, Enrique Dussel. Se

trata de uma “Revolução Copernicana ao contrário” como diz

o pensador e diretor teatral brasileiro Augusto Boal.

Boal nos adverte para a construção de práticas e políticas

culturais de cunho transformativo:

Uma estética Democrática, ao estimular os Oprimidos a

reproduzirem suas obras, vai ajudá-los a eliminar os

produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no

dia-a-dia da televisão e outros meios de comunicação

da propriedade dos opressores. Democracia Estética

contra a Monarquia da Arte.

Se, nas Senzalas, só ouvissem as rádios senhoriais; se

só lhes chegassem os canais de TV e jornais da Casa

Grande, as Senzalas jamais seriam capazes de

inventar Palmares.

A Cultura da Casa não serve à Senzala porque tem

valores senhoris e formas senhoriais. Mesmo a Grande

Cultura milenar deve ser reinterpretada do ponto de

vista de onde estamos, e não de onde nos disseram

que estava a Cultura.

Esta é uma Revolução Copernicana ao Contrário:

somos, sim, o centro do Universo da Arte, porque

somos o nosso centro e nele estamos: não devemos

temer invadir e pisar o meio do palco, mesmo vivendo

na periferia das cidades, nos guetos dos excluídos e

longe da arte oficial à qual não devemos obediência.

Somos quem somos, e a vida é curta”.

(Boal, 2008)

A todo tempo produzimos Cultura e em seu fluxo também

somos envolvidos. Quando o ser se perde nesse fluxo e não

se enxerga como produtor de saberes, de linguagem, quando

Page 39: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

39

impera as leis castradoras da cultura de massa, voltamos

novamente a perguntar onde está a ação do Estado na

gestão, planejamento, implementação e avaliação de políticas

culturais. Que formas e manifestações estão sendo

privilegiadas no acesso a programas e recursos?

Estamos agora no marco da discussão da política cultural no

estado do Espírito Santo e em nosso país. A participação tem

sido ínfima por parte dos artistas. Mais uma vez temos a areia

do tempo entre as mãos. Precisamos juntá-las diminuindo

nossos interesses individuais e corporativos para pensar

coletivamente os rumos de nossa política cultural e em que

projetos societários estamos ancorando nossas identidades.

Temos que discutir o orçamento da cultura e das políticas

sociais como um todo. E temos por obrigação que incluir a

ampliação da cidadania e dos direitos sociais, lutar por um

Estado ampliado, onde nossos interesses como sociedade

civil sejam levados em conta e garantidos sob a forma da

deliberação dos Conselhos de Direito e Política Social, como

os de Cultura nas três esferas (municipal, estadual e

nacional), e dar ênfase a questão da deliberação e da

fiscalização. Precisamos ocupar qualificadamente estes

espaços e dar voz às demandas das bases. Temos que

fortalecer o SATED‟s e ocupar esse espaço

qualificadamente. Temos a obrigação de por na pauta de

todos os debates a questão dos povos indígenas e

quilombolas e trazê-los para o debate, reivindicando políticas

culturais específicas.

Também devemos prestar atenção às experiências de

produção e difusão cultural nos presídios, no sentido de

ampliar os espaços de vocalização da população carcerária e

da produção artística, pois muitos dos artistas no Espírito

Santo e em todo o Brasil são professores e oficineiros em

diversos espaços, inclusive nas cadeias. Destaco esse

aspecto devido à situação de descaso do governo Paulo

Hartung que tem sido notícia internacional no âmbito dos

Direitos Humanos, pelas condições inumanas nas cadeias do

Estado.

Page 40: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

40

Precisamos de amplos programas de formação de artistas e

público (cidadãos). A arte e a produção cultural, em seu

sentido lato, têm o poder de integrar e reunir. Seu papel na

intersetorialidade, na aplicação de políticas públicas de

educação, saúde, meio ambiente deve ser cada vez mais

reforçado, e os artistas que aí trabalham valorizados.

A estruturação de um Sistema Nacional de Cultura, é um

avanço, mas devemos ficar atentos em sua construção,

principalmente quanto às fontes de financiamento e aos

fundos para a cultura.

A revisão das Leis de Incentivo, como a Lei Rouanet, têm de

ser acompanhadas de perto, para que as demandas

colocadas nas Conferências realizadas pelo ministro Juca

Ferreira sejam implementadas em projetos e programas.

O lançamento do “Vale Cultura”, um espécie de bolsa família

para o consumo cultural, não é a solução para as dificuldades

do para a produção artística, apesar de ser um passo

importante no acesso ao consumo dos produtos culturais.

Temos de repensar valores, culturas-políticas e a educação

para a Cultura, para a participação. As escolas, por exemplo,

podem ser pontes para programas na área cultural e artística.

Um exemplo muito bem sucedido no Rio de Janeiro é o

Projeto Teatro do Oprimido nas Escolas em parceria com o

Centro de Teatro do Oprimido (que desenvolve projetos em

todo o país e no mundo em várias áreas) e o Projeto Escola

Aberta/MEC, para formação de multiplicadores da

metodologia nas comunidades, principalmente das áreas

mais periféricas da Baixada Fluminense, Belford Roxo,

Mesquita, entre outros, que representou uma experiência

singular de diálogo entre educadores, educandos

(professores e alunos), funcionários e familiares, onde as

opressões vividas na comunidade escolar foram retratadas,

debatidas e transformadas na cena teatral como forma de

ensaiar uma nova e desejada realidade.

Outra experiência muito importante do Teatro do Oprimido é

na área da Saúde Mental em parceria com os CAPS (Centros

de Atendimento de Apoio Psicossocial) no Rio e em São

Page 41: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

41

Paulo, que tem gerado cada vez mais o diálogo entre

profissionais e usuários, que passam a ser produtores de uma

linguagem (teatral) capaz de expressar suas demandas,

anseios e desejos.

Podemos constituir um movimento social organizado, para

isso temos que vislumbrar horizontes coletivos, mesmo que

tenhamos nossas posições e interesses.

Só assim a política cultural poderá se transformar em um

instrumento de uma nova cultura política, democrática, de

transformação e garantia de qualidade de vida para nosso

povo.

Considerações finais

“MEDITAÇÃO GUARANI

Yanderuvuçu fez sua casa

No encruzo da cruz divina,

No imo de nossa Terra;

E ali deu à Terra o seu princípio.

Ele guarda em seu seio

o sol original e verdadeiro.

E o seu secreto Céu,

guardam-no Jaguarovy

e Mboby Rekoypy

e Mboyssununguçu,

suas bestas favoritas,

seus demônios prediletos,

que, no tempo assinalado,

põem fim ao mal da Terra

-ficando a Terra Sem Mal.”

(Waldo Motta. Poema inédito do livro “Terra Sem

Mal”)

É urgente, que passemos a agir e pensar de forma mais ética

e solidária, retomando aqueles tempos em que ensinávamos

ao companheiro de profissão como melhorar seu trabalho

com coisas simples. Só que agora exigindo do Estado

melhores condições e financiamento direto das políticas

culturais, sem precisarmos implorar de porta em porta, ao

mercado que troque nossos bônus das leis de incentivo

fiscal. Precisamos deixar de lado um tanto dessa competição

e reaprender a cooperar lançando um olhar ao mais próximo

Page 42: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

42

em seguida, juntos, ao horizonte que pretendemos como

artistas e produtores de Cultura.

Temos hoje a oportunidade de mudar a História, como já o

tiveram muitos no passado, mas não o fizeram ou por

omissão ou por interesse próprio e dos dominadores. O

tempo pode ser nosso aliado, se nos permitirmos cooperar, e

a História nos julgará impiedosamente. Sou otimista sim,

sonhador, não abro mão dessa radicalidade, ainda que me

julguem antiquado e utópico. A utopia ainda me parece o

projeto mais sensato.

Os Guarani estão sempre procurando o paraíso porque

sabem que este mundo, esta terra, estas águas, este ar já

não suportam tanta destruição, tantos cadáveres, tanta

poluição, tanto pó de minério, tantas monoculturas, tantos

latifúndios improdutivos (frutos do furto), tanto eucaliptal, tanta

miséria, tanta fome, tanta injustiça, tanta rapinagem, tanta

infâmia, tanta corrupção. Estão à busca do seu paraíso

porque este não é o seu mundo, esta não é a sua gente, o

dinheiro não é o seu Deus. Ñanderuvuçú (Nosso Grande Pai)

já iniciou a destruição deste mundo, porque não será assim

pesados pela ganância que subiremos ao céu. Ao negar este

mundo, os Guarani afirmam que um novo mundo será

nascido e que novos seres humanos poderão nele habitar.

Nós podemos ser deuses em nossa humanidade para

transformar o mundo. A terra reclama renovação.

Bibliografia

BOAL, Augusto. Abertura. IN: Revista Metáxis do Teatro do

Oprimido, 2008.

I Catálogo de Produtos Culturais do Espírito Santo.

Secretaria Estadual de Cultura do Espírito Santo, 2005

CLAUDIO, Afonso. História da literatura espírito-santense. Rio de Janeiro: Xérox do Brasil, 1981.

DIAS, Gonçalves. Obras Completas. São Paulo: Editora Cultura, 1941.

Page 43: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

43

ESCOBAR, A. Actores, redes e novos produtores de

conhecimento: os movimentos sociais e a transição

paradigmática nas ciências. In: SANTOS, B. de S. (org.)

Conhecimento prudente para uma vida decente. ‘Um

discurso sobre as ciências’ revisitado. São Paulo: Editora

Cortez, 2004. p. 639 – 666.

ESPÍRITO SANTO, Maria Inez do. Vasos Sagrados – mitos

indígenas brasileiros e o encontro com o feminino. Rio de

Janeiro: Rocco, 2010. 239 p.

GAMA FILHO, Oscar. Razão do Brasil – em uma

sociopsicanálise da literatura capixaba. Rio de Janeiro -

RJ; Vitória – ES: José Olympio Editora e Fundação Ceciliano

Abel de Almeida, 1991. 116 p.

GAMA FILHO. O capixaba metafísico. In: Identidade

capixaba. Vitória (ES). Secretaria Municipal de Cultura, 2001.

214p. 156 p. - (Escritos de Vitória; 20)

GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: Ciência do Homem

Filosofia da Cultura. São Paulo: Contexto, 2008. 234 p.

KOGA, Dirce. Territórios entre pobreza e exclusão social. In:

Medidas de cidades: entre territórios de vida e territórios

vividos. São Paulo: Editora Cortez, 2003.

MOTTA, Waldo. Transpaixão. 2 ed. Vitória, ES: EDUFES,

2008. 102 p.

NIMUENDAJU, Curt Unkel. As lendas da criação e

destruição do mundo como fundamentos da religião dos

Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1987, p.

156.

OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (org.).

Cronistas do Descobrimento: Textos sobre o Brasil do

século XVI. Fundação Nestlé de Cultura, Editora Ática,

Ministério da Cultura. Editora Ática, São Paulo, SP, 1999.

Page 44: Dossiê Identidades Capixabas: elementos da realidade políticoxa.yimg.com/kq/groups/23038326/20551093/name/Dossiê+Identidades... · plano simbólico podem nos transformar a nós

44

PAULA, Paulo de. Teatro Universitário: ontem e hoje.

In: Revista Você. Ano V – n° 37, fevereiro/março. Vitória –

ES, 1996.