DOSPOVOS - Socioambiental...2013/07/30  · nico da tribo indígena mbyá-guarani....

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VOZES DOS POVOS DA FLORESTA Pouco conhecidos dos brasileiros, cantos milenares e narrativas míticas dos ameríndios oferecem uma outra forma de se relacionar com o Brasil e o meio ambiente

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Xamanismo. Jovens índios guaraniem volta de uma fogueira em AralMoreira, no Mato Grosso do SulFOTO:Maurício Lima/New York Times

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NARRATIVAS E CANTOS. Oriundos de umatradição oral, revelam as cosmologias e amemória coletiva, além das característicascomunitárias de cada etnia. São sua literatura,ciência, filosofia, história, religião e medicina. Atransmissão não é estanque: ao longo dosséculos, são revistas e aumentadas pelas novasgerações. A documentação destas narrativascomeça a ser realizado de modo mais sistemáticono século XIX. Depois de viajar pelo Brasil entre1816 e 1819, o historiador francês FerdinandDenis falou de uma poesia indígena “primitiva,jamais levada à escrita e que nem por isso oferecemenos belezas de primeira ordem”.

XAMÃ (OU PAJÉ). Feiticeiro e curandeiro dospovos, faz a mediação entre os espíritos. Comouma espécie de diplomata, pode “voar” entrediferentes mundos e transmitir as falas e cantosdos espíritos de animais e árvores para o resto daaldeia. Na Amazônia, um xamã obtém seuscantos dos espíritos destes elementos, que sãoimortais, mais sabidos e belos do que nós, osviventes. O xamanismo pode ser pensado comoum “ideal de conhecimento”.

PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO. Teoriaantropológica que procura explicar como osameríndios concebem suas relações com animais,plantas e espíritos — pensados por eles comosujeitos plenos, com consciência e pontos de vistapróprios. É como se cada uma das espécies daTerra visse a sua própria espécie como humana.O homem deixa de ser o centro do mundo e amedida de todas as coisas. O antropólogoEduardo Viveiros de Castrodefine como “a concepçãosegundo a qual as diferentessubjetividades que povoamo universo são dotadasde pontos de vistaradicalmente distintos”.

ENCICLOPÉDIA

AMERÍNDIAREPRODUÇÕES

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Elas oferecemnovasmaneiras de pen-sar, ver e estar nomundo. Transmiti-das oralmente de geração em gera-ção, as narrativas míticas ameríndi-as trazem perspectivas poéticas e fi-losóficas sobre a formação da vida, a

relação entre antepassados e espíritos, a con-vivência harmoniosa com a natureza, alémde processos de curas medicinais e registroshistóricos milenares. Embora tenham muitoa nos ensinar, continuam ignoradas pelamai-oria dos brasileiros, deixadas de lado dos cur-rículos escolares e dos cânones literários. Po-rém, nomomento emque os povos indígenasenfrentam uma batalha decisiva por terras epelo reconhecimento de seus direitos previs-tos na Constituição de 1988, linguistas, antro-pólogos e poetas se esforçam emdocumentare traduzir parte dos seus complexos univer-sos narrativos.

Mesmo ainda longe de dar conta da ampli-tude e riqueza do repertório indígena, a tarefatem inspirado publicações recentes, que vãodesde rigorosos estudos antropológicos (co-mo a série de “Cantos e histórias” das terrasindígenas do Pradinho e de Água Boa) a rees-crituras feitas por autores brasileiros atuais (olivro “Meu destino é ser onça”, de AlbertoMussa). Nos últimos dois anos, osmitos ame-ríndios figuraram inclusive em duas amplasantologias de poesia nacional publicadas noBrasil (“Poesia.Br”, lançado pela Azougue em2013) e no exterior (“La poésie du Brésil”, queapareceu na França no final de 2012 pela Édi-tions Chandeigne). Se a biodiversidade estáameaçada nos territórios onde estes povosencontram-se isolados, suas memórias e ma-nifestações artísticas, contudo, se mantém ri-cas e duradouras.

— Ainda são poucas as edições sobre pro-dução ameríndia no país. Temos uma dasmaiores diversidades linguísticas do mundo,mas nos acostumamos a traduzir apenas osclássicos da literatura ocidental — lamenta opoeta e antropólogo Pedro Cesarino Nie-meyer, que acaba de lançar “Quando a Terradeixou de falar” (Editora 34), reunião e tradu-ção de cantos damitologiamarubo.—Tradu-zir estes repertórios é fundamental para en-tender melhor o mundo dos indígenas. Saberlidar com eles é saber lidar com o próprioBrasil. É entender que o desenvolvimentonão pode ser feito às custas destes povos quejá estavam aqui há muito tempo, mas sim apartir deles.

De acordo com Cesarino, no Brasil atual

LATINSTOCK

Tradiçãomilenar. Ritualde dança do povo bororo

VOZES DOS POVOSDA FLORESTA

BOLÍVARTORRES

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fala-se pelo menos180 línguas indígenas —todas muito pouco traduzidas e publicadas.Partindo do princípio de que cada uma delascontém ummundo e uma estética próprias, épossível imaginar a diversidade poética espa-lhada pelo país. Suas narrativas míticas sãoum grande desafio para a crítica literária, jáque é muito difícil compreender suas formasde pensamento. Além do mais, elas original-mente não são escritas, mas aparecem sob aforma de cânticos e rituais como danças eperformances.

Cultura sustentávelEm quase todas as cosmologias, contudo,existe o que muitos antropólogos defendemcomo “perspectivismo ameríndio”: a ideia deque o planeta é habitado por diferentes espé-cies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-

humanas — todas dotadas de pontosde vista, de consciência e de cultura.Ao contrário da lógica ocidental, ohomem não é a medida de todas ascoisas, e muito menos o dono domundo. A natureza não é nem unifi-

cada nem mostrada de forma objetiva.

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Trata-se de uma relação entre sujeitos, e nãodo tipo sujeito-objeto.No caso dos marubo, um povo altamente

perspectivo doAmazonas, os cantos têmumafunção diplomática. Fazem a mediação entreas várias humanidades (formados por carca-ça e espírito) que estão por trás daquilo que ohomem branco costuma enxergar apenas co-mo paisagens. Assim como podemos ver afloresta, ela tambémpode nos ver, acreditam.— A floresta, as árvores, os animais, todos

eles têm seu próprio ponto de vista— explicaCesarino. — A humanidade está distribuída.Para eles, uma sucuri pode ser gente e umamultidão de araras pode ser ummonte de es-píritos de povos do ar. O rio, por exemplo, nãoé apenas um reservatório de água, é amoradaem que vive o povo subaquático. Você nãopode poluir o rio ou abusar da caça, com orisco de sofrer retaliação.O conceito de sustentabilidade está no cer-

ne da cultura ameríndia. Nos cantos marubotraduzidos por Cesarino em “Quando a Terradeixou de falar”, somos apresentados aos es-píritos yoevo — mestres dos animais evoca-dos para propiciar a caça e liberar os animais

mantidos em seus domínios. Se a ética da ca-ça for desrespeitada (matar mais do que sepode comer, comer da própria presa, desper-diçar carne, etc), estes espíritos podem sim-plesmente sovinar os animais, que desapare-cem da floresta.— O pajé ensina que não se pode caçar o

povo do mato indiscriminadamente, porquesabe que o chefe do povo do mato pode sevingar de nós — exemplifica Cesarino. — Pa-ra explorar a natureza, é preciso todo um cui-dado, umanegociação, umdiálogo comas di-ferentes humanidades.Documentar e traduzir cantos ameríndios

não éuma tarefa fácil. Exige tempo e conheci-mento de línguas raras.Mas nãobasta apenasversá-las para o português — é preciso tam-bém compreender a complexa cosmogoniados povos. Daí a importância do tradutor (se-ja ele antropólogo, linguista ou poeta) estabe-lecer uma relação de troca e confiança com acomunidade e seu xamã — ou pajé, comotambém é conhecido.Espécie de feiticeiro, médico, curandeiro,

conselheiro e adivinho dos povos, cabe a eletransmitir as falas e cantos dos espíritos dos

animais, das árvores e de outros elementosdaquilo que o pensamento ocidental traduzcomo “natureza”. Não por acaso, os indígenascostumam dizer que os xamãs “são como umrádio”. Na língua tungúsica, o termo significa“aquele que enxerga no escuro”.Uma correntemais flexível, porém, acredita

que uma tradução de qualidade não dependenecessariamente de uma relação direta—ou,como definiriam os pajés marubo, uma “liga-ção de pensamento” — com os índios. Ao or-ganizar a antologia “Poesia.Br”, que contem-pla cinco séculos de poesia nacional, o editorSergio Cohn dedicou um volume aos cantosdos povos araweté, bororo, kashinawá embyaguarani, entre outros. Alguns deles foram tra-duzidos diretamente com os representantesde cada etnia, outros são recriações feitas porpoetas não-indígenas.— É sempre importante o uso de fontes pa-

ra as traduções de cantos emitos ameríndios,mas elas nem sempre precisam ser primárias— opina Cohn, citando o exemplo de SergioMedeiros, que retrabalhou a “EnciclopédiaBororó”, importante coleta salesiana de can-tos da etnia, publicada nos anos 60.

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Outra questão polêmica diz respeito à formade publicação destas narrativas. Como trans-por para o formato limitado do papel uma ar-quitetura poética tão alargada, que envolvevocalises, dança e outros rituais? E comoapreender a complexa cosmogonia em queestão inseridas? Cesarino prefere publica-ções acompanhadas de uma contextualiza-ção etnográfica, que explique o que os ame-ríndios “queremcomapalavra” e que “contri-bua para revelar aindamais a sua originalida-de criativa, de modo a reinventar possíveisexpressões e ideias do poético”. Outros, po-rém, acreditam que as narrativas podem ga-nhar uma apresentação livre de explicaçõesetnológicas.

Narrativas do XinguÉ o que fez o tradutor e poeta franco-brasilei-ro Max de Carvalho, organizador de “La poé-sie du Brésil” — a mais ampla antologia depoesia brasileira traduzida para o francês. Aomesmo tempo em que reúne cânones brasi-leiros, de Anchieta a Drummond, ele incluiunarrativas orais do Xingu, recolhidas duranteo século XVI, o século XIX e o século XX. Maspreferiu não exagerar nas notas explicativas,já que, em sua opinião, a poesia faz “suas pró-prias leis”. O mesmo procedimento foi adota-do por Cohn em “Poesia.br”.— A contextualização é importante, mas os

cantos emitos ameríndios são textos de gran-de beleza e interesse, e sobrevivem por si —argumenta Cohn. — Também podemos di-vulgá-los a umpúblicomais amplo, não só deespecialistas, em livros que os tratem em parde igualdade com a nossa tradição literária.Sempre que a cultura ameríndia esteve emdiálogo com a nossa, como no modernismoheroico, os resultados foram esplêndidos.Esta intersecção entre a tradição literária

ocidental e o imaginário ameríndio está nocoração de “Meu destino é ser onça” (Re-cord), lançado em 2009 por Alberto Mussa.Após entrar em contato com fragmentos deregistros do frade André Thevet sobre a cultu-ra indígena durante a ocupação da Baía deGuanabara, em 1550, o escritor carioca ten-tou reconstituir o que teria sido o texto origi-nal de uma narrativa mitológica da tribo ta-moio (os tupinambá do Rio de Janeiro). O re-sultado é um ensaio ficcional sobre omito tu-pinambá, no qual reescreve a narrativa indí-gena em uma forma um pouco mais “tradici-onal” — do ponto de vista da literatura oci-dental, é claro.— Meu propósito com “Meu destino é ser

onça” foi um exercício literário, de inspiraçãoborgeana: formar uma narrativa coesa, obe-

decendo um princípio impessoal e quasematemático, a partir de fragmentos demitos,esses já constituídos de versões ocidentais—conta Mussa, vencedor do Prêmio Machadode Assis da Biblioteca Nacional em 2006 como romance “O movimento pendular”. — To-das as civilizações que optaram pela escritafizeram isso com as suas mitologias. Reduzi-ram tudo a livros, mataram omito, criando anarrativa épica. Não há “progresso”, eviden-temente, nessa mudança. A importância deconhecer qualquer mitologia vem de umanecessidade que me parece urgente, nomundo globalizado: experimentar formas al-ternativas de sentir e de pensar; ou seja, pro-curar ser comooOutro. Só a experiência pro-funda da alteridade nos dá a compreensãode nós mesmos. É incrível que se fale tantoem biodiversidade, enquanto culturas hu-manas desaparecem.Por se tratar dos nossos antepassados,

Mussa acredita que a recuperação damitolo-gia indígena tem uma importância especial:— Alguém que tenha uma avó brasileira

tem grande probabilidade de descender deíndios. Somos brasileiros há 15mil anos, nãoapenas a partir de 1500. E ainda não temosconsciência disso.A recuperação de mitos ameríndios não é,

de fato, um privilégio para antropólogos. Em“Roça barroca” (Cosac Naify), lançado em2011, a poeta Josely Vianna Baptista transpôspara o português omito cosmogônico da tri-bo indígenambyá-guarani. Para isso,mergu-lhou em uma “viagem de iniciação”. O traba-lho de tradução/interpretação se deu depoisde uma longa troca de ideias com as lideran-ças locais.Ao levar os originais e um esboço da tradu-

ção à comunidade indígena de Ocoy, em SãoMiguel do Iguaçu, Josely logo se viu cercadopor moradores, que comentavam passagensdos cantos, discordavam de algumas partesdo registro, aportavam e explicavam varian-tes, numa reunião coletiva de revivificaçãodo mito.— É admirável e trágico o modo como os

guarani, depois de séculos de opressão, con-seguem sobreviver à margem da barbáriecontemporânea — observa Josely. — Olhan-do a névoa, a nuvem, o orvalho, o alento doroçado em que respira a neblina vivificante,eles vêm mantendo com dificuldade seutekoha, onde praticam o teko (“modo deser”) de seus antepassados, enquanto bus-cam preservar, na pouca terra que lhes res-tou, a natureza e a “fala indestrutível” (ayvumarã’ey) que os deuses deixaram aos seuscuidados.

VOZES DOS POVOSDA FLORESTA

ia aaaaa i iiia aaaaa i iiaaa i a iia

ruins vocêscom o revólvero yãmiy morto deixaram

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ruins vocêscom o revólvero yãmiy morto deixaram

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morto deixaram

Trecho de “Revólver” (incluído no livro“Cantos e histórias do Morcego-Espírito”)Cantado por Antonio José

UCantomaxakali

DIVULGAÇÃO

Artemaxakali. Desenho de Zé Antônio

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ROBERTOSTUCKERTFILHO

Marubo. Aldeia de SãoSebastião, no Amazonas

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Como não é antropóloga, Josely faz questãode destacar que seu trabalho no livro foi es-sencialmente como poeta. O que não a impe-diu de descobrir a ligação sagrada dos índioscom a palavra e com a natureza. Os cantoscosmogônicos mbyá-guarani, explica a auto-ra, são repletos de “palavras-montagem”, as-sonâncias, paronomásias e onomatopeias —mimetizando o mito de que houve, no iníciodos tempos, um ruído portador da sabedoriada natureza, um som do cosmos se engen-drando através da “linguagem fundadora”.

Outro olhar do genocídioNo que diz respeito à questão ambiental, elatambém cita uma tradição dos mbyá-guaranidigna de nota: a reciprocidade.— Eles acreditam que para que as árvores

produzam bons frutos elas têm de ser planta-das por outros. Ou seja, deixadas para quemestá vindo.Além de uma ligação direta com um Brasil

imemorial, as narrativas ameríndias são umaoportunidade de ver a história oficial por ou-tro ângulo. Em seus cantos, os marubo rela-tam seus contatos com os Incas. Por sua vez,os povos falantes da língua maxacali, hojepertencentes a um grupo de cerca de 1.300pessoas distribuídas por Minas Gerais, apre-sentam suas origens de uma forma diferenteda registrada por historiadores e viajantesbrancos.O vasto corpo místico-musical compilado

nos livros “Cantos e histórias doGavião-Espí-rito” e “Cantos e histórias doMorcego-Espíri-to” (ambos publicados pela Azougue) trazuma narrativa nada derrotista do encontrocomos ocidentais. Na verdade, os brancos fa-zem apenas uma pequena aparição no mun-do deles — pelo menos, se comparada comos contatos com povos-antas, povos-formi-gas, povos-papagaios e outros seres fantásti-cos. O ocidental foi — e ainda é — apenasuma classe de seres “com os quais as aliançasainda não são possíveis”, lembra a antropólo-ga Rosângela Pereira de Tugny na introduçãodo livro.Relatos sobre o genocídio indígena ainda

não estariam sendo ouvidos com a devidaatenção, de acordo com Idelber Avelar, pro-fessor titular de literaturas latino-americanasem Tulane University, de Nova Orleans. Elevê hoje umnúmero respeitável de estudos so-bre o tema, mas lembra que o país ainda está“muito longe de realmente ouvir o que há quese ouvir”.— Há um conjunto de narrativas ameríndi-

as muito menos palatáveis para a cultura do-minante brasileira e que permanecem sem

serem ouvidas adequadamente — avalia. —Refiro-me às narrativas sobre o genocídioamericano ou sobre a situação presente depovos como os guarani. Quando o relato saido passado imemorial do mito e passa a dartestemunho das atrocidades acontecidas oupresentes, é sensível o mal-estar no leitor doCentro-Sul. Nesse sentido, as narrativas ame-ríndias permanecem tão excluídas quantoeram antes.Cesarino defende a recuperação destes mi-

tos nos dias de hoje.—As pessoas compoder de decisão no país

precisamestudar aquilo sobre qual têm influ-ência—diz.— São 500 anos de umgenocídioque não é só físico, mas também espiritual. Eele ainda não acabou. É preciso sair dessesdois lados da ambivalência: nem mitificar osíndios, nem ignorá-los. Apenas saber quemsão e conseguir entendê-los.

VOZES DOS POVOSDA FLORESTA

Vento da Terra-NévoaO vento envolveA névoa-vento do céuE no redemoinhoPor si mesmo surgemO chamado Kana VoãO chamado Kana VoãE o chamado Koi VoãSão mesmo eles

Do Céu-Névoa plantadoCaldo de tabaco-névoaE caldo lírico-névoaOs caldos misturamCaldo de lírio-névoaDo caldo bebemSaliva cospemE Terra-Névoa formamPara que aliFique de péKoi Voã maisO chamado Kana Voã

Formada Terra-NévoaAli vão ficarE juntos pensam

“Num canto do céuMuitos ainda flutuamAlguns dali mesmoJá vêm chegandoNoutro canto do céuMuitos ainda flutuamE vêm chegando”

Trecho de “A formação da Terra-Névoa”(incluído no livro “Quando a Terra deixou defalar - Cantos damitologia marubo”)Cantado por Paulinho Joaquim Marubo

UCantos

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Lutas. Quadro ‘Combatecom os TupiniquinsAmericae Tertia Pars’ (1592),de Theodore de Bry

ANDRÉ COELHO

Resistência. Emmeio ao desenvolvimentismo, índios yawalapiti, do Alto Xingu, preservam tradições

PARA SABERMAIS

LEITURASMITOS E LENDAS DOS ÍNDIOS TAULIPANG EAREKUNÁ (1916), DE THEODOR KOCH GRUN-BERG. As observações e relatos de viagem doetnologista e explorador alemão, que passoudiversas vezes pelo Brasil a partir de 1896, é umaimportante fonte para estudo dos mitos e lendasda Amazônia. Neste livro, ele transcreve o mito deMakunaíma, que inspirou o clássico modernistade Mario de Andrade.

O CRU E O COZIDO (1964), DE CLAUDE LEVY-STRAUSS. Este clássico do pai da antropologiareúne narrativas de povos sul-americanos diver-sos, apresentando a teoria de que os mitos ame-ríndios formam uma estrutura de pensamento.

A FALA SAGRADA (1974), DE PIERRE CLAS-TRES. O autor trata da cosmogênese guarani e desua metafísica que expõem uma relação funda-mental entre linguagem e terra.

MEU DESTINO É SER ONÇA (2008), DE AL-BERTO MUSSA. O livro tenta restaurar um supos-to ciclo narrativo dos tupinambá.

CANTOS E HISTÓRIAS DO GAVIÃO-ESPÍRITOE DO MORCEGO-ESPÍRITO (2009), ORGANI-ZAÇÃO DE ROSÂNGELA PEREIRA DE TUGNY.Os dois volumes trazem centenas de cantos dosmaxacali. No primeiro, nos apresenta o povo-gavião-espírito, um ancestral que, nascido datransformação com um homem, retorna do céupara cantar com os homens e mulheres da aldeia.O segundo traz o canto e a presença do povo-morcego-espírito, importante povo-xamã solicita-do em rituais de cura da aldeia.

ROÇA BARROCA (2011), DE JOSELY VIANNABAPTISTA. Traduz para o português (em ediçãobilíngue e em forma de poemas) o mito cosmogô-nico da tribo indígena mbyá-guarani.

POESIA.BR (2013), ORGANIZAÇÃO DE SERGIOCOHN. Um dos 10 volumes da antologia é dedi-cado exclusivamente à cantos arawete, bororo,kashinawa, marubo, mbya guarani e maxakali.

QUANDO A TERRA DEIXOU DE FALAR (2013),ORGANIZAÇÃO DE PEDRO DE NIEMEYERCESARINO. Uma reunião dos cantos míticos dosmarubo, com seus complexos entendimentos econcepções de tempo, espaço, e “pessoa”.