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DOS BEST-SELLERS ÀS LENDAS BRASILEIRAS: motivando a leitura no

ambiente escolar

Autora: Analise Bennemenn Dresch1

Orientadora: Clarice Lottermann 2

Resumo: O presente artigo tem como objetivo relatar a experiência com a leitura de lendas brasileiras, através de estratégias previamente planejadas, em uma turma de 7º ano do ensino fundamental, da rede pública do estado do Paraná. Com o título “Motivando a leitura por meio de lendas”, a atividade de implementação contou com o envolvimento de todos os segmentos da instituição escolar, em especial da turma apontada, que demonstrou empenho, motivação e interesse ao longo das aulas. Para o desenvolvimento da leitura eficaz foram planejadas atividades e momentos que permitiram, ao leitor, perceber a intertextualidade entre as lendas brasileiras e os livros da Série Crepúsculo e Harry Potter, a partir dos quais foram desencadeadas as atividades, partindo do universo de livros já conhecidos pelos alunos, no intuito de levá-los a ampliar seu leque de leituras. Os resultados obtidos na implementação deste projeto pedagógico permitem afirmar que toda prática pedagógica intencional e diferenciada com a leitura em sala de aula traz bons resultados e contribui decisivamente para desenvolver a proficiência e o gosto pela leitura, além de demonstrar a aplicabilidade das abordagens propostas. O trabalho está pautado nos estudos de Isabel Solé, que afirma que o interesse se cria, dependendo dos objetivos e estratégias de que o mediador lança mão; de Michèle Petit, que afirma que é o professor ou o bibliotecário que muitas vezes cativa o aluno para a leitura; e Magda Soares que enfatiza sobre a evolução dos conceitos de alfabetização e letramento.

Palavras-chave: leitura; lendas; estratégias de leitura; formação de leitores; ensino

1 Introdução

A educação pública, em nosso país, tem se mostrado ineficiente ao longo

das últimas décadas, fato comprovado pelos resultados obtidos através de

programas governamentais avaliativos como o IDEB, ENEM, Prova Brasil,

Olimpíadas de Língua Portuguesa e Matemática. Evidenciou-se que o que falta aos

alunos é leitura, não apenas a que decodifica signos linguísticos, mas

principalmente aquela a qual Paulo Freire se refere:

1 Professora de Língua Portuguesa e Literatura da Rede Pública de Ensino do Estado do Paraná. 2 Doutora em Estudos Literários, professora de Literatura na Unioeste, campus de Marechal Cândido Rondon.

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A leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. [...] De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de escrevê-lo, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente. (FREIRE, 2009, p. 20).

A leitura faz refletir, interpretar, relacionar o lido ao que se conhece do mundo,

levando à construção de argumentação fundamentada e à ação transformadora do

próprio leitor, do outro e da sociedade na qual estão inseridos. A esse trabalho

constante com a leitura e seus significados dá-se o nome de letramento, que vai

muito além da alfabetização, que pode acontecer até mesmo antes, paralelamente e

depois dela. Letramento é a atribuição de significados ao que é visto, percebido e

observado. É ler mesmo desconhecendo o alfabeto; é gravar logotipos, marcas

associadas a produtos, músicas, temas de programas; interpretar situações,

imagens e feições e saber dizer a impressão que se teve de tudo isso.

Muitos professores ignoram que o letramento é um processo infindável e

carregam, historicamente, uma relação complicada com o livro. A leitura obrigatória,

sem que o leitor perceba a importância de ler aquilo que está sendo cobrado,

causou certa aversão do aluno em relação à leitura, pois esta, antes de tudo, deve

ser desencadeada por um desejo e não de uma imposição. Aos poucos, os

professores estão tomando consciência de que essa realidade precisa mudar, e que

os alunos precisam de um estímulo lúdico, tanto para outras atividades, como para o

trabalho com textos literários. Os professores também precisam se aproximar dos

livros de uma maneira mais lúdica, para adquirirem mais conhecimentos, ampliarem

o seu repertório literário e aprenderem a apreciar a leitura como uma atividade a ser

feita nos momentos de lazer. A partir disso talvez reconheçam, neles próprios, um

potencial para contar histórias, para descobrir histórias “vivas” nos livros e usar

recursos tecnológicos para cativar o aluno, pois na internet há uma gama imensa de

sugestões de livros e de atividades que podem ser feitas a partir da leitura.

Partindo desses pressupostos, e tomando como fundamento teórico,

sobretudo, as considerações de Isabel Solé na obra Estratégias de leitura, de Magda

Soares, na obra Letramento e de Michele Petit, na obra Os jovens e a leitura: uma

nova perspectiva, o presente artigo relata uma experiência pedagógica realizada em

um 7º ano do ensino fundamental da Escola Estadual do Campo Edwino Scherer -

Ensino Fundamental do município de Toledo – PR (Núcleo Regional de Toledo). Por

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meio do estudo das lendas, buscou-se motivar a leitura no ambiente escolar,

comparando-as com outros gêneros literários, explicitando sua especificidade, e

promovendo o desenvolvimento da leitura significativa.

2 A escola e o letramento

Atualmente, discute-se muito sobre o “estado ou condição de analfabeto”,

situação que diz respeito não apenas ao estado ou condição de quem não dispõe da

“tecnologia” do ler e do escrever: o analfabeto é aquele que não pode exercer em

toda a sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele que a sociedade

marginaliza, é aquele que não tem acesso aos bens culturais de sociedades

letradas. Há que se ressaltar que ainda há este tipo de analfabeto, mas com as

exigências atuais acredita-se que os índices de analfabetismo estejam diminuindo.

Segundo dados do IBGE, de 2005 a 2006, o índice de analfabetismo absoluto

reduziu de 10,2% para 9,6%.

No âmbito brasileiro, há programas governamentais voltados para a

erradicação do analfabetismo. Aqui no Paraná temos o Programa Paraná

Alfabetizado e percebe-se que há procura por esta modalidade de ensino e há bons

resultados. Prova disto é que alguns municípios do Paraná estão recebendo o

certificado de índice zero de analfabetos.

Para Magda Soares,

à medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e escrever, e à medida que concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na escrita (cada vez mais grafocêntrica), um fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não incorporam a prática da leitura e da escrita, não necessariamente adquirem competência para usar a leitura e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais da escrita: não leem livros, jornais, revistas, não sabem redigir um ofício, um requerimento, uma declaração, não sabem preencher um formulário. (SOARES, 2001, p.45-46).

O problema da escola não é apenas ensinar a ler e escrever, mas, também,

levar o indivíduo a fazer uso da leitura e da escrita, envolver-se em práticas sociais

de leitura e de escrita. Nesse sentido, as condições sociais, culturais e econômicas

do contexto no qual o indivíduo está inserido são extremamente importantes. Magda

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Soares lembra que Paulo Freire foi um dos primeiros educadores a realçar esse

poder “revolucionário” do letramento, ao afirmar que

ser alfabetizado é tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como um meio de tomar consciência da realidade e transformá-la. [Freire] Concebe o papel do letramento como sendo ou de libertação do homem ou de sua “domesticação”, dependendo do contexto ideológico em que ocorre, e alerta para sua natureza inerentemente política, defendendo que seu principal objetivo deveria ser o de promover a mudança social. (SOARES, 2001, p.76-77)

Na escola, lê-se um texto literário para desenvolver com os estudantes

atividades que os levem a racionalizar sobre o conteúdo, a estrutura, a mensagem

do texto, mas pouco se incentiva a leitura descompromissada e prazerosa,

considerando a interação afetiva do leitor com o texto. Agindo assim, não se forma

leitores. A escola deveria usar outros meios para fazer com que o aluno venha a

gostar de ler.

Sabe-se que o prazer de ler um texto literário advém da comunhão do leitor

com o mundo inventado pelo escritor. E para que essa partilha ocorra, a criança

precisa sentir-se livre das atividades racionalizadoras propostas pela escola, pois,

somente assim, ela será capaz de interagir com o que o texto apresenta, resultando

desta interação a sua interpretação que, por sua vez, a levaria à personalização da

leitura e, portanto, à compreensão do significado do texto.

Segundo Isabel Solé,

[...] não devemos esquecer que o interesse também se cria, se suscita e se educa e que em diversas ocasiões ele depende do entusiasmo e da apresentação que o professor faz de uma determinada leitura e das possibilidades que seja capaz de explorar. (SOLÉ, 2008, p. 43, grifo nosso).

Em outras palavras, é necessário ler com paixão. O irlandês C. S. Lewis dizia

que “a grande leitura não exige perícia ou força; exige, ao contrário, desarme e

paixão”. (LEWIS apud PENA, 2010, p. 3). Cabe ao professor descobrir o poder que

está em suas mãos, ler com paixão, pois o aluno se espelha muito em suas atitudes

e, se ele não valoriza a leitura, por que o aluno o faria? Michèle Petit lembra que

o gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os livros. Um conhecimento, um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem se tornar letra morta se ninguém lhes der vida. Se a pessoa se sente pouco à vontade em aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, ao

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seu distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um MEDIADOR, das trocas, das palavras ‘verdadeiras’, é essencial. (PETIT, 2008, p. 154).

No processo de formação de leitores é essencial a figura do mediador.

Frequentemente, este papel é exercido por “um professor, um bibliotecário ou, às

vezes, um livreiro, um assistente social ou um animador voluntário de alguma

associação, um militante sindical ou político, até um amigo ou alguém com quem

cruzamos. (PETIT, 2008, p. 148-149). No âmbito escolar, o professor ou o

bibliotecário devem fazer esta ponte entre os livros e os alunos. Se este mediador

for apaixonado por livros, logo contagiará os alunos. Os alunos precisam de

inspiração, ou melhor, de exemplos. Se o professor sugerir uma leitura ou mesmo

contar partes de um livro, dependendo das estratégias que utilizar para cativar os

alunos, com certeza esses se interessarão pela obra apresentada. Portanto, o papel

de mediador de leitura deve ser exercido com mais eficácia pelo professor.

A partir de seu contato com jovens, Petit lembra que o trabalho que o

professor desenvolve pode ter repercussão na vida do leitor, sendo lembrado

mesmo que a impressão geral que se tenha da escola seja ruim:

durante as entrevistas que realizamos, algo estranho saltou aos olhos: esses jovens tão críticos em relação à escola, entre uma frase e outra, lembravam às vezes de um professor que soube transmitir sua paixão, sua curiosidade, seu desejo de ler, de descobrir; que soube, inclusive, fazer com que gostassem de textos difíceis. Hoje, como em outras épocas, ainda que ‘a escola’ tenha todos os defeitos, sempre existe algum professor singular, capaz de iniciar os alunos em uma relação com os livros que não seja a de dever cultural, a da obrigação austera. (PETIT, 2008, p. 158).

Petit realizou várias entrevistas e provou que, mesmo que a escola tenha

seus defeitos, sempre haverá um bom professor para iniciar os alunos em relação à

leitura. Sem a pretensão de “fazer a cabeça” dos professores, a pesquisadora quer

chamar atenção para o importantíssimo papel que o professor tem em relação à

leitura. “Como veem, não tenho receitas mágicas para lhes oferecer. Tenho apenas

a preocupação de fazê-los sentir que o papel do mediador de leitura é, a todo

momento, penso eu, o de construir pontes”. (PETIT, 2008, p. 174). É preciso que os

professores se conscientizem da importância da leitura e a transformação que ela

pode causar numa sociedade que lê.

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Uma pessoa alfabetizada e com um nível relativo de letramento é capaz de

argumentar e defender as suas ideias, que poderão transformar o pensamento ou a

opinião de outros numa sociedade organizada. Já quem tem pouco letramento está

mais suscetível à opinião dos outros, pois conhece pouco, tem menos conhecimento

e pode se deixar levar por aquele que tem “boa lábia” ou mais conhecimento.

Pessoas letradas, menos dominadas.

3 A leitura de lendas no ambiente escolar

Considerando-se que, cada vez mais, as pessoas precisam do letramento

para que possam entender o contexto social no qual estão inseridas – e quem sabe

transformá-lo! – uma das possibilidades de levar os alunos a construírem sentido

para o que leem na escola, é trabalhar com narrativas que permitem recuperar

diferentes culturas e modelos de vida, correlacionando-os com suas vivências e

saberes. Tal aspecto do trabalho escolar e do letramento pode ser explorado com a

leitura de lendas brasileiras, pois, convém salientar, este é um gênero que perpetua

e cultiva a cultura popular.

No contexto escolar, trabalha-se com lendas em meados de agosto, pois 22

de agosto é o “dia do folclore” e essas narrativas são utilizadas para exemplificar

aspectos folclóricos das mais variadas culturas. No entanto, passada esta etapa da

vida escolar, quase não há espaço para a promoção de leitura de lendas. De forma

geral, os alunos têm acesso a esse gênero através dos livros didáticos e nestes há

pouca inserção de lendas e geralmente são as mesmas. As atividades propostas

também deixam a desejar, pois não estimulam a busca de outros textos do gênero e

não promovem a relação com o contexto dos alunos. Assim, as lendas entram na

escola apenas para cumprir o protocolo: servir de exemplo para o que é folclore. No

entanto, é notável o interesse dos alunos por leituras em que aparecem

personagens diretamente ligadas a lendas e mitos: vampiros, lobisomens, bruxas,

animais míticos... Isso revela que o interesse por esse tipo de narrativa existe, mas o

que se disponibiliza na escola (principalmente no livro didático) não chega a

estimular a leitura das lendas brasileiras.

Através das lendas, o professor pode atrair seus alunos à leitura, fazendo

com que procurem ver partes da narrativa que parecem ser baseadas em fatos

reais, e outras em aspectos sobrenaturais; analisar como tais narrativas buscam

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explicar determinados fatos que muitas vezes são inexplicáveis; comparar lendas

com fábulas, mitos e contos de fadas, observando como há elementos recorrentes

nestes diferentes gêneros; aproximar as lendas dos causos e relatos familiares;

comparar personagens das lendas com filmes e livros que circulam no universo dos

leitores, levando-os o perceber como uma leitura “puxa” outra. Ou seja, promover o

letramento.

A palavra lenda provém do latim legenda/legen que significa ler (o que deve

ser lido). Nas sociedades primitivas, os seres humanos não escreviam, mas

conservavam suas lembranças na tradição oral e, quando esqueciam algumas

partes do caso acontecido, a imaginação entrava em ação e para toda a história

tinha-se uma explicação, mesmo que fantasiosa. Todas essas histórias foram

repassadas de geração a geração, e deram origem à literatura oral. No livro

Literatura Oral no Brasil, Luís Câmara Cascudo afirma que “a Literatura oral é

mantida e movimentada pela tradição. É uma força obscura e poderosa, fazendo a

transmissão pela oralidade de geração a geração”. (CASCUDO, 1978, p. 168)

A lenda é uma narrativa baseada na tradição oral de um dado lugar e tem

caráter maravilhoso. Relata os acontecimentos numa mistura entre referenciais

históricos e imaginários, com a presença de elementos mágicos que influenciam nos

destinos humanos. Segundo Luís Câmara Cascudo,

a lenda é um elemento de fixação. Determina um valor local. Explica um hábito ou uma romaria religiosa. Iguais em várias partes do mundo, semelhantes há dezenas de séculos, diferem em pormenores e essa diferenciação caracteriza, sinalizando o típico, imobilizando-a num ponto certo da terra. Sem que o documento histórico garanta veracidade o povo ressuscita o passado, indicando as passagens, mostrando como referências indiscutíveis para a verificação racionalista os lugares onde fato ocorreu. (CASCUDO, 1978, p. 51).

A lenda existe desde a formação do clã, da sociedade primitiva, e os temas

se desenvolvem com preocupações semelhantes em todas as culturas. Ela é uma

forma antiquíssima cujo argumento é tirado da tradição. É o relato de

acontecimentos em que o maravilhoso e o imaginário superam o histórico e o

verdadeiro. Geralmente, a lenda está marcada por um profundo sentimento de

fatalidade. Este sentimento é importante porque revela a força do destino, contra o

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qual não se pode lutar, e mostra como o pensamento do homem está dominado pela

força/medo do desconhecido.

A lenda tem como principais características: a) o texto apresenta início, meio

e fim; b) situa o fato em algum ponto geográfico; c) as personagens são pessoas ou

animais; d) tenta-se dar uma explicação (veracidade) ao fato. Enfim, têm muitas

semelhanças com o gênero fábula. Segundo o Dicionário de Termos Literários, de

Shaw, fábula é uma

história curta e simples, com personagens animais e tem como objetivo ensinar uma verdade (moral). [...] Os primeiros fabulistas foram Fedro (romano) e Esopo (grego). [...] O termo fábula pode também designar, na generalidade, as lendas e mitos da Antiguidade Clássica ou ainda quaisquer histórias acerca de entidades sobrenaturais ou relatos de acontecimentos extraordinários e até meras falsidades. (SHAW, 1982, p.201).

Já lenda, é uma

história transmitida de tempos remotos e popularmente aceita como verdadeira. Originariamente era uma história acerca de um santo, mas hoje o termo emprega-se a qualquer história de imaginação relativa a uma pessoa, um lugar ou um acontecimento verdadeiro. Geralmente, uma lenda tem menos a ver com o sobrenatural do que um mito, mas os dois termos estão relacionados um com o outro. (SHAW, 1982, p.275).

Ainda de acordo com o mesmo dicionário, mito é

uma história tradicional ou lendária, que diz respeito, em geral, as entidades sobre-humanas, lida com eventos que não têm uma explicação natural. Outra acepção é que é uma convicção não provada que é aceita sem espírito crítico. Um mito, geralmente, procura explicar um fenômeno ou uma ocorrência estranha, sem atender a razões científicas ou mesmo ao chamado senso comum. O mito apela mais para a emoção do que para a razão e data de tempos muito antigos, em que as explicações racionais não eram ainda possíveis, nem, aparentemente, desejadas. Um mito é menos histórico do que uma lenda e preocupa-se menos com didatismos do que uma fábula, mas todas estas três formas são narrativas impregnadas de imaginação, muitas das quais se conservaram mercê da tradição oral. (SHAW, 1982, p.302).

O folclore brasileiro é rico em lendas regionais. Destacam-se algumas mais

conhecidas: Iara, Lobisomem, Negrinho do Pastoreio, Saci Pererê, Vitória Régia,

Boto cor-de-rosa, Mula-sem-cabeça. Muitas destas lendas são originárias da cultura

indígena; d’outras não se sabe a proveniência. Os índios tinham uma necessidade

muito grande de explicar a origem das coisas, motivo pelo qual muitas lendas foram

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criadas por eles, como por exemplo: a lenda da mandioca, da Iara, do guaraná, do

milho... Como os povos indígenas valorizam muito a terra, a palavra e as tradições,

toda essa herança foi repassada para as novas gerações, de pai para filho, o que

possibilitou que muitas lendas fossem registradas, recuperadas e retomadas em

textos contemporâneos, de distintos gêneros. Pode-se encontrar personagens de

lendas em histórias em quadrinhos, poemas, cantigas, filmes, propagandas,

narrativas autorais como, por exemplo, as de Monteiro Lobato, nas quais são

apresentados, no Sítio do Pica-Pau Amarelo, os personagens Saci, Cuca,

Lobisomem, Iara, dentre outros. Mas não se pode esquecer a violência sofrida pelos

povos indígenas desde a chegada dos portugueses: muitos índios foram obrigados a

negar a sua identidade, adotando um outro modo de vida. Como consequência,

muitos mitos caíram no esquecimento.

4 Lendas brasileiras e best-sellers: a magia invade a escola

Para a execução do projeto de implementação, partiu-se do princípio de que

os jovens teriam mais interesse pela leitura de lendas se essas permitissem que eles

estabelecessem relação com obras e personagens já conhecidos. Levando em

consideração que as séries Harry Potter e Crepúsculo circulam bastante entre esta

faixa etária, decidiu-se por iniciar o trabalho chamando atenção para algumas

personagens dessas séries, como vampiros, lobisomens e bruxas (ou similares), ou

seja, personagens fantásticos que também podem ser encontradas em lendas. Mas,

ao contrário do que se pressupunha, muitos alunos da escola não tinham lido os

livros das séries em destaque. Assim, fez-se um trabalho preliminar de estímulo à

leitura dessas narrativas – a APMF (Associação de pais, mestres e funcionários)

comprou exemplares e doou à biblioteca da escola, e a professora comprou duas

coleções da Série Crepúsculo – e muitos alunos que tinham dificuldade de ler textos

longos acabaram lendo um ou mais livros.

Depois disso, aplicou-se um questionário sobre leitura e sobre o gênero

lenda, a partir do qual se observou que apenas três alunos afirmaram ler nas suas

horas de folga; os demais afirmaram fazer outras atividades, tais como: assistir

programas da televisão, jogar bola, brincar e mexer no computador. Percebeu-se,

pelas respostas do questionário, que os alunos tinham poucas informações sobre

lendas; vários alunos citaram as mesmas lendas, pois estas já tinham sido

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trabalhadas na escola ou constavam em livros didáticos. Assim, para dar início às

atividades de leitura de lendas na escola, procedeu-se à narração de fragmentos de

lendas conhecidas pelos alunos, tais como: a cobra que mama quando a mulher tem

nenê, mãe de umbigo, histórias sobre lobisomens, vampiros e bruxas. Os alunos

tiveram como tarefa pedir aos pais se esses conheciam estas e outras lendas. Os

alunos relataram o que ouviram e a professora passou imagens na TV pendrive de

vampiros, bruxas, lobisomens e chupacabras para fomentar ainda mais o interesse

dos alunos pelas personagens que encontrariam nas lendas. Além das imagens, a

professora forneceu sites da web para que lessem e, a partir destas leituras, fez-se

uma correlação com os livros das séries Harry Potter e Crepúsculo.

A cada aula foram indicados dois sites para que fizessem pesquisa;

posteriormente, os dados levantados foram apresentados e discutidos sala de aula e

foram expostos em mural que os alunos ajudaram a enfeitar com personagens das

lendas. Percebeu-se, através da exposição dos alunos, que, por meio das leituras

que fizeram nos sites indicados, eles puderam aprofundar seus conhecimentos

sobre estes seres que aparecem tanto nos livros da série Crepúsculo quanto nos

livros de Harry Potter.

Notou-se que os alunos se ajudavam mutuamente, pois tiveram que acessar

uma reportagem em uma revista e havia um certo receio quanto a isto, pois nunca

tinham tido esta experiência. Mas os alunos surpreenderam, pois o que um não

sabia o outro ensinava e percebeu-se um grande aprendizado em relação à leitura e

ao uso da tecnologia para apropriar-se do conhecimento. Os alunos até acharam

outros meios para que pudessem ler os materiais disponíveis nos sites, pois havia

alunos que não tinham acesso à internet e a professora só disponibilizava uma cópia

impressa de cada matéria.

Percebeu-se, também, que alunos das outras séries iam ao mural para saber

das últimas matérias/imagens disponibilizadas e que isso era motivo de conversa

entre eles. A cada semana eram expostas outras novidades sobre as lendas e suas

personagens.

Para o desenvolvimento de estratégias de leitura, as lendas previamente

selecionadas pela professora foram distribuídas em cinco grupos, segundo as suas

características ou peculiaridades. Assim, o trabalho organizou-se através de cinco

ciclos de estudos. O 1º Ciclo contemplou lendas que explicam a origem de

coisas/seres. Foram selecionadas as seguintes, pois se aproximavam mais do

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universo conhecido dos alunos: a Lenda do Primeiro Gaúcho, pois muitos pais são

oriundos do sul; a Lenda da erva-mate, porque os pais tem costume de saborear um

bom chimarrão; a Lenda do guaraná, pois os alunos tem conhecimento de que o

guaraná é muito bom como energético e, por último, a Lenda do João-de-barro, pois

este pássaro habita em nosso meio.

Através da leitura da Lenda do Primeiro Gaúcho os alunos souberam da

procedência do gaúcho, que as terras do sul eram habitadas, inicialmente, apenas

pelos índios e depois, mais tarde, pelo gaúcho. Os alunos também ficaram sabendo

por que seus pais ou antepassados chamam ou falam sobre o vento minuano, que

na lenda era uma antiga tribo de índios.

A professora narrou a lenda utilizando entonação de voz de modo a chamar a

atenção dos alunos, para cativar e despertar neles o interesse pela lenda, pois

muitos são oriundos do sul. Logo após, a professora comparou a lenda com

elementos presentes nos livros das séries Harry Potter e Crepúsculo, por meio de

perguntas orais aos alunos. Percebeu-se que, com a ajuda do mediador, os alunos

são capazes de fazer correlações entre a lenda e os livros.

A Lenda da erva-mate foi explorada de forma diferenciada: a professora

apresentou aos alunos um ramo e os mesmos puderam manusear, cheirar para

descobrir o que era aquilo. No momento da apresentação da erva-mate, os alunos

até levantaram suspeita de que não fosse e a professora sugeriu que cada um

levasse um ramo para casa para tirar a dúvida com os pais (mesmo que a

professora já tivesse certeza, pois tinha verificado anteriormente com professores da

Universidade). Esta situação levou os alunos a pesquisarem mais e, em outro

momento, foram sanadas as dúvidas. O material pesquisado foi exposto no mural da

escola.

Em outra aula, os alunos assistiram a vídeos do Globo Rural feitos aqui no

Paraná, na cidade de Prudentópolis, para ver como é a planta, como é colhida,

como é o processo de industrialização e para degustar um belo chimarrão assistindo

aos “10 mandamentos do chimarrão”. Após esse contato com a erva-mate, os

alunos leram a lenda para saber onde surgiu a erva e quem a espalhou pelo planeta;

recordaram como as pessoas ainda têm o costume de sentar em roda para apreciar

um chimarrão enquanto contam histórias de antepassados e coisas do dia a dia. Em

uma atividade coletiva da escola, os alunos apresentaram aos colegas de toda

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escola o que haviam aprendido. Apresentaram o processo todo de desenvolvimento

e industrialização da erva-mate, como também narraram a lenda.

Neste mesmo ciclo foi trabalhada a Lenda do guaraná e, para despertar o

interesse dos alunos, a professora trouxe semente de guaraná, pó de guaraná e

xarope de guaraná para que os alunos pegassem, cheirassem e sentissem o aroma

e sabor destes produtos. Depois passou um vídeo que narrava a lenda e outros três

vídeos informativos sobre o cultivo e preparo do guaraná. A seguir, os alunos

receberam uma cópia impressa da lenda e foi feita leitura em cena: diferentes alunos

assumiram as vozes de cada personagem e narrador, observando, ao lerem, a boa

entonação e fluência. Assim, pôde-se demonstrar aos alunos a importância de se ler

um texto de forma adequada e de se expressar oralmente de forma eficaz.

Em seguida, a professora encaminhou uma discussão na qual procurou

chamar atenção dos alunos para elementos presentes nas lendas e nos livros das

séries Crepúsculo e Harry Potter, levando-os a correlacionar passagens dos livros

com aspectos das lendas: por exemplo, a importância que os povos indígenas

atribuem ao ato de narrar histórias em volta do fogo e como isso também aparece

nos livros e filmes Crepúsculo e Eclipse. A atividade fez com que os alunos

associassem este costume a um costume típico da região: as rodas de chimarrão,

quando os pais se reúnem para tomar chimarrão e contar histórias, tal como nos

filmes.

Enquanto os alunos assistiam a partes dos filmes Crepúsculo e Eclipse, onde

eram narradas lendas, a professora preparou suco de guaraná com água e com leite

para os alunos degustarem em sala de aula. Questionados sobre o sabor (atividade

registrada pela professora através de filmagem e entrevista com os alunos,

enquanto eles provavam o suco) a maior parte dos alunos declarou que o pó de

guaraná com leite é mais gostoso, cremoso. Com esta atividade percebeu-se que os

alunos se agitaram mais em sala de aula e expuseram oralmente o seu parecer

sobre o guaraná. Logo em seguida foi feito um suco com xarope de guaraná, para

que os alunos dessem a sua opinião sobre a semelhança com refrigerantes

produzidos a partir do guaraná.

Percebeu-se que, no trabalho com esta lenda, os alunos se interessaram

mais em pesquisar, pois pouco sabiam sobre o guaraná e queriam se apropriar

deste conhecimento. Pôde-se observar que a exibição do vídeo aguçou o interesse

sobre a produção do guaraná por este ser cultivado em uma região bem distante e

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diferente, e porque no vídeo apareciam pessoas de outras etnias e com sotaques

distintos, o que permitiu discutir sobre diversidade linguística.

Para começar o trabalho com a Lenda do João-de-barro, os alunos fizeram

uma pesquisa sobre o pássaro e perguntaram aos pais o que sabiam a respeito do

mesmo. O material pesquisado foi exposto no mural e um aluno trouxe, inclusive, um

ninho de João-de-barro. As informações coletadas junto aos pais também foram

interessantes. Dentre outros aspectos, cabe destacar uma história bastante

difundida oralmente, segundo a qual o João-de-barro, quando traído por sua amada,

tranca a “casinha” com barro e a deixa morrer lá dentro. Muitos antigos contam que,

às vezes, encontram uma casinha fechada e ao desmontá-la encontram ossos de

um pequeno pássaro. Supõe-se que seja verdadeira a narrativa dessas pessoas. Ao

ouvirem tais relatos, os alunos entraram em alvoroço na sala de aula, pois queriam

saber se isto era verdade ou “mito”.

Para complementar as informações sobre o João-de-barro, os alunos

assistiram a um vídeo informativo e um vídeo sobre a lenda. Com estes vídeos, os

alunos puderam ampliar ainda mais os seus conhecimentos e se sentiram

estimulados a buscar na internet mais imagens e vídeos sobre o João-de-barro. Na

sequência, leram a lenda do João-de-barro e, para complementar o estudo, ouviram

a música João-de-barro, de Sérgio Reis, a partir da qual compararam fatos da lenda

com a música.

Ao final dos estudos sobre o 1º ciclo de lendas, os alunos fizeram

dramatizações das lendas para apresentar aos outros alunos e à comunidade

escolar.

Para iniciar o 2º Ciclo de lendas (selecionadas em função da proximidade de

fatos cotidianos), que tratou sobre a Lenda do Mamá de Cobra e Lenda da Mãe de

Umbigo, os alunos foram entrevistar pessoas que sabiam ou narravam histórias

segundo as quais, antigamente, quando havia uma mulher amamentando seu bebê,

apareciam cobras e sugavam o seio da mulher. Os alunos elaboraram o roteiro de

perguntas e fizeram as filmagens que foram mostradas na TV pendrive para os

colegas da sala.

Percebeu-se, com estas entrevistas e filmagens, que os alunos ficaram mais

interessados em querer saber as histórias que os antigos contam. Alguns alunos

fizeram questão de contar aos colegas as histórias que suas mães contaram, pois

14

muitas dessas mães são provenientes do campo, onde há maior possibilidade de se

encontrar cobras.

A partir desta motivação e com boa bagagem de conhecimento sobre o que

viram, a professora leu a lenda Mamá de Cobra para os alunos, pois o texto foi

escrito com muitos termos regionais e também preservando marcas da oralidade, o

que poderia dificultar a leitura inicial, sem preparo prévio por parte dos alunos. Após

a leitura, a professora encaminhou a conversa fazendo um comparativo entre a

lenda e a entrevista exibida anteriormente, levando os alunos a pesquisar na internet

e a perguntar ao professor de Ciências sobre a veracidade de cobras mamarem no

seio de uma mulher ou de uma vaca. Esta lenda foi retirada do livro Histórias da

Roça, de Daniela Rosane Gomes, e apresenta marcas da linguagem oral. A

professora aproveitou para reestruturar a lenda segundo a norma padrão culta,

fazendo com que os alunos percebessem a diferença que há entre linguagem

informal e formal, entre a língua que cada um fala e a norma padrão utilizada pela/na

escola.

Após a pesquisa e comentários na sala de aula, os alunos expuseram o

material no mural, para que ficasse disponível para os demais alunos da escola. Ao

relatarem sobre as pesquisas efetuadas na internet e junto ao professor de Ciências,

chegaram à conclusão que cobra mamar é um “mito”, pois as cobras não têm poder

de sucção, portanto, não há possibilidade de poderem mamar. O que se pode

afirmar é que a cobra pode lamber o leite que pingou no chão. Assim, através do

estudo desta lenda, os alunos puderam notar como a imaginação do ser humano vai

longe; como as pessoas acham explicações para tudo, e como as histórias contadas

por seus pais e avós podem ser relacionadas com as lendas e mitos, fazendo parte,

portanto, da cultura oral de uma determinada região.

Na sequência de estudo deste 2º Ciclo de lendas, a professora apresentou a

Lenda da Mãe de Umbigo, explicando alguns termos regionais que eram

desconhecidos pelos alunos. Para melhorar a compreensão, os alunos

dramatizaram a história e a professora encaminhou a conversa para que os alunos

percebessem os fatos semelhantes entre as duas lendas deste ciclo e os livros das

séries Crepúsculo e Harry Potter.

Para iniciar o 3º Ciclo de lendas, os alunos pesquisaram na internet a

diferença entre lenda e fábula e leram fábulas e lendas para notar a diferença entre

os dois gêneros textuais, pois a estrutura é diferente. Os resultados da pesquisa

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foram apresentados em sala de aula e ressaltou-se a diferença entre a fábula, que é

um texto curto e com uma moral, e a lenda, que é um texto narrativo mais longo que

a fábula onde se tenta explicar algo dos antepassados.

Neste 3º Ciclo foram estudadas duas lendas muito semelhantes a fábulas:

Aventuras do jabuti miri e Não faças bem sem saber a quem. A professora entregou

cópias impressas da lenda Aventuras do jabuti miri aos alunos para que

demarcassem as falas do narrador e das personagens e fosse feita a leitura

teatralizada do texto, pois, com este tipo de leitura, os alunos entendem melhor e

vivenciam o que está sendo abordado. Considerando que nessa lenda há muitos

termos desconhecidos para os alunos, foi feita pesquisa para sanar esta dificuldade.

Por ser parecida com uma fábula e ter muitos adjetivos, a professora

aproveitou a lenda para trabalhar com os alunos características físicas e

psicológicas das personagens jabuti, onça e raposa. Neste sentido, enfatizou que há

adjetivos que enobrecem (qualificam) o sujeito, mas também denigrem a sua

imagem e são pejorativos em um texto.

Na sequência, entregou aos alunos a lenda Não faças bem sem saber a

quem para que os alunos lessem e marcassem N onde era a fala do narrador, R

para raposa, O para onça e H para homem. Em seguida, vários grupos fizeram a

leitura teatralizada da lenda, atividade muito apreciada pelos alunos que alegam

entender melhor o texto quando o leem desta forma. Como a lenda traz como

personagens uma raposa, uma onça e um homem e considerando que na região é

costume usar o termo gambá para designar raposa, solicitou-se que os alunos

pesquisassem as diferenças entre esses animais. Em sala de aula foram feitos

comentários sobre as diferenças entre eles e como o falar do povo contamina o

vocabulário das pessoas.

Para finalizar o trabalho com as duas lendas deste Ciclo, os alunos foram

instruídos de forma a escolher uma das lendas para fazer um trabalho de recriação:

escrever outro final para o texto e inserir diálogo, demonstrando, assim, que tinham

compreendido o funcionamento da narrativa dialogada, tópico trabalhado

anteriormente na leitura da lenda Mamá de cobra. Os textos produzidos foram lidos

para a turma, e os alunos instruídos a usar entonação adequada. Os textos que não

atingiram os objetivos propostos foram reestruturados para, depois disso, serem

expostos no mural. Os alunos fizeram a comparação dos textos nos quais havia

mais diálogos e melhor uso da língua padrão.

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Ao final deste ciclo, a professora orientou os alunos no sentido de

estabelecerem comparações entre as personagens protagonistas dos livros das

séries Crepúsculo e Harry Potter com personagens protagonistas de algumas

lendas. Nesta atividade, chamou-se atenção dos alunos para as características

físicas e psicológicas dos principais personagens destes livros. Percebeu-se que os

alunos encontraram mais facilmente as características físicas do que as

psicológicas, mas no decorrer das leituras e comentários perceberem características

psicológicas que não estavam tão às claras.

Para finalizar este trabalho com as lendas, a professora apresentou o 4º Ciclo,

no qual constam Vingança do escravo e O vaqueiro voador. São lendas que se

assemelham por apresentarem personagens que agem movidas pelo sentimento de

vingança. A professora contou partes da lenda Vingança do escravo para despertar

o interesse dos alunos. Na sequência, eles leram o texto em voz alta e compararam

os fatos presentes na lenda com atos de vingança de que já tinham ouvido falar ou

presenciaram. Da mesma forma, comparou-se as personagens da lenda com

personagens vingativas presentes nos livros de Harry Potter e descobriu-se que, na

série Crepúsculo há uma personagem que pensa em vingança, mas no momento

que poderia fazê-lo não consegue colocá-la em prática.

Os alunos escreveram um final diferente para a lenda, pondo-se no lugar do

fazendeiro ou do escravo. Pôde-se perceber que os alunos, nas suas histórias, não

foram tão radicais quanto o fazendeiro foi em sua atitude em relação ao escravo. Ao

final da produção, cada aluno dobrou o seu texto várias vezes e o colocou dentro de

um balão, enchendo-o e amarrando-o. Os alunos, espalhados em sala de aula,

ficaram brincando com os balões e, ao sinal da professora, cada um estourou o

balão que estava em suas mãos lendo o texto para todos os colegas. Enquanto os

alunos faziam a atividade, a professora filmou a movimentação, motivação e leitura

dos textos pelos alunos.

Para trabalhar com a lenda O vaqueiro voador a professora passou na TV

pendrive um vídeo informativo sobre o vaqueiro e uma música a respeito dos

amores que o vaqueiro que participa de rodeios muitas vezes deixa para trás. Os

alunos puderam ver em que regiões ainda há a profissão de vaqueiro e o que é

necessário, em termos de formação, para poder exercê-la. Puderam perceber que é

uma profissão que exige formação e não como alguns pensam que “qualquer um

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serve”. Quanto mais qualificado o profissional, mais requisitado será, sendo assim

poderá fazer o seu preço por ser um profissional de gabarito.

A professora contou um pouco da lenda para que os alunos tivessem

interesse em lê-la, sempre lembrando que o professor pode criar o interesse pela

leitura, dependendo de como a apresenta. Depois de lerem o texto, por meio de

conversa orientada, os alunos foram questionados a respeito da decisão que o pai

tomara em relação aos gêmeos. Pediu-se a opinião dos alunos e o que acharam da

atitude do pai em não consultar a opinião da mãe na entrega de um dos filhos aos

cangaceiros. A partir disso, trabalhou-se o provérbio que poderia estar na lenda

“Onde duas cabeças pensam, decide-se melhor”, pois a troca de opiniões é o mais

indicado.

Com o intuito de aprofundar a discussão sobre o espírito vingativo que norteia

a ação de várias personagens, das lendas e dos livros das séries supracitadas, os

alunos foram à internet para pesquisar mais provérbios relacionados ao tema. Após,

apresentaram e comentaram os provérbios que foram expostos no mural.

Para encerrar este 4º Ciclo, os alunos produziram um texto descrevendo a si

próprios num futuro distante, com aproximadamente 25 anos. Na sequência, em

duplas, cada aluno leu o texto do colega enquanto segurava sua mão, fazendo de

conta que era uma cigana lendo a linha do tempo (futuro).

No transcorrer de todas as atividades percebeu-se o envolvimento e a

disposição dos alunos em participar, pois as mesmas eram diferentes do dia a dia da

sala de aula. Pode-se afirmar, portanto, que o “diferente” na sala de aula é que faz o

aluno ter mais interesse pelo conteúdo a ser estudado. Por isso, o professor deve

propor atividades diversificadas e promover a leitura de forma mais dinâmica e

lúdica, cumprindo, desta forma, o seu papel de mediador.

5 Resultados da implementação do projeto

Antes de iniciar a implementação do projeto, foi aplicado, junto aos alunos

integrantes da turma na qual seriam realizadas as atividades (15 alunos), um

questionário com o objetivo de diagnosticar sua percepção sobre leitura e seus

conhecimentos sobre o gênero textual lenda. Ao final do projeto, aplicou-se o

mesmo questionário a fim de avaliar se a forma como os alunos se relacionavam

com a leitura e seus conhecimentos sobre lenda tinham sofrido alterações com a

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vivência do projeto.

Na primeira aplicação do questionário, observou-se que pouquíssimos alunos

afirmaram que, nas horas de folga, o que mais gostavam de fazer era ler. A maioria

optou por assistir TV, jogar bola, mexer no computador. Mas, no segundo momento

da aplicação do questionário, constatou-se um aumento no número de alunos que

afirmaram gostar de ler nas horas de folga e observou-se que alguns mudaram de

opinião. Muitos dos que anteriormente tinham indicado outras atividades, agora,

optaram por ler lendas, acessar o You Tube para ver vídeos sobre lendas, enfim,

envolviam-se mais com o quesito leitura.

Quando questionados se gostavam de ler, dos (15) quinze alunos, (02) dois

afirmaram que não gostavam, (03) três que gostavam e (10) dez que gostavam um

pouco. Na segunda aplicação do questionário, percebeu-se que houve mudança de

opinião quanto ao gostar ou não de ler. Tinha-se apenas três alunos que gostavam

de ler e, depois da implementação do projeto, além desses três alunos, mais seis

começaram a gostar de ler, perfazendo o total de 09 alunos que afirmam gostar de

ler. Conseguiu-se, portanto, por meios de leituras variadas e diferenciadas, que os

alunos formassem outra opinião sobre o gosto pela leitura. Até os dois alunos que

inicialmente afirmaram não gostar de ler mudaram de opinião e, no segundo

questionário, afirmaram gostar um pouco de ler. Isto demonstra que houve

significativa mudança de opiniões em relação à leitura.

Sobre o que gostam de ler e quando leem, houve respostas variadas: gibis,

textos, e a leitura era feita à noite ou de manhã, pois os alunos vão à tarde à escola.

Pode-se afirmar que, após a implementação, alguns alunos mudaram o seu foco de

leitura para lendas e fábulas.

Na primeira aplicação do questionário, ao serem indagados sobre quem lia na

família, (14) catorze alunos afirmaram que o pai, ou a mãe ou um irmão liam;

somente um aluno afirmou que ninguém lia; na segunda aplicação do questionário,

todos afirmaram que alguém da família lê. Em relação ao hábito de ler na escola e

quando se fazia a leitura na escola, os alunos são unânimes em afirmar que liam

quando tinham a aula de leitura que estava programada no Projeto de Leitura que a

escola implantou há alguns anos.

Especificamente em relação aos conhecimentos sobre lendas, através das

respostas dadas no segundo momento de aplicação do questionário, percebeu-se

que, com a implementação do projeto, os alunos aumentaram o seu leque de

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informações sobre esse gênero, pois o que sabiam, antes do projeto, era

proveniente da cultura oral repassada pelos pais e avós e aquilo que constava nos

materiais didáticos. Ao final da implementação, percebeu-se que o repertório de

lendas havia aumentado consideravelmente, havia citações de muitas outras lendas

além daquelas trabalhadas costumeiramente na escola e que os alunos foram em

busca de mais novidades a respeito.

Luís da Câmara Cascudo afirmou que, outrora, as pessoas mais idosas

possuíam o hábito de reunir-se ao anoitecer ao redor do fogo ou em rodas para

contar fatos “de antigamente” e que, nesta narração, havia uma certa magia.

Percebeu-se, pelas respostas dos alunos, que muitos pais ainda têm o hábito de

narrar histórias aos filhos, que ainda destinam certo tempo para este tipo de

encontro com a família e pessoas conhecidas, contando histórias e tomando

chimarrão (costume típico da região sul, que faz parte de uma das lendas

estudadas). Alguns alunos relataram que já presenciaram narrações de histórias que

os avós e pais contaram e que a maioria das pessoas têm interesse em ouvi-las,

pois assim retoma-se fatos que ocorreram há muito tempo e que fazem parte da

cultura oral.

Ao longo de quatro meses, período de implementação pedagógica do projeto,

percebeu-se que os alunos se envolveram em todas as atividades propostas. Muitos

comentaram que deveriam ter tido mais tempo para fazerem mais leituras a respeito

do assunto, pois há uma imensa variedade de lendas e ainda fez-se o comparativo

entre lendas e fábulas. De fato, considerando todas as atividades e leituras

previstas, o tempo destinado para o projeto foi curto, pois, além das lendas, os

alunos ainda tinham outras leituras e pesquisas relacionadas ao tema para fazer.

Apesar disso, a realização deste projeto possibilitou mudança nos hábitos de leitura

dos alunos, bem como na oralidade, fluência, entonação, desenvoltura para falar

frente a algum público.

A maioria dos alunos participou efetivamente de todo o trabalho e até os pais

ajudaram a confeccionar a vestimenta para a apresentação (encenação de lendas)

ao final do projeto. Houve pais que ajudaram seus filhos a fazer a entrevista e

também liam e assistiam vídeos no You Tube, envolvidos com as pesquisas de seus

filhos.

Percebeu-se, em alguns alunos, a superação da dificuldade de expressar-se

em público: aos poucos, os alunos foram se descontraindo na hora de falar em

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público, pois também estavam passando por experiências diferentes em sala de aula

(muitas vezes eram filmados nas atividades que realizavam). Foi um crescimento

para todos; para alguns mais e outros menos, mas serviu para fazer um bom

começo.

Pelo fato de muitos alunos, em suas pesquisas, terem lido as mesmas lendas,

mas com registros diferentes, havia momentos de discussões em sala de aula e a

professora precisava intervir para acalmar os ânimos dizendo que, dependendo do

autor, dava-se outra versão sobre a lenda. A essência da lenda era a mesma, só

alguns aspectos as diferenciavam.

No transcorrer da implementação pedagógica, os alunos comentavam como

as aulas eram diferentes, pois a cada ciclo de lendas trabalhava-se com atividades

diferenciadas e a professora apresentava a lenda ou a leitura da lenda de formas

diferentes, para fazer com que os alunos gostassem de ler e se interessassem em

querer saber mais sobre o assunto. Desta forma, os alunos puderam conhecer muita

coisa, pois, com o estudo realizado, tiveram acesso a mais informações, buscaram

aprofundar seus conhecimentos e muitas vezes se admiravam sobre o que liam:

“nossa como é possível isto!?” Aliados aos conhecimentos que adquiriam através

dos livros e pesquisas na internet, tinham outras informações provenientes dos pais

e familiares, a respeito de cobras, pássaros, erva, etc. Muitos, ao comparar o saber

popular com as informações obtidas através da leitura, passaram a questionar a

veracidade dos fatos, se o que os pais contavam era real ou mito. Além dos pais,

outras pessoas da escola contavam os casos que sabiam, o que os levou a observar

como a cultura oral ainda se faz presente no meio popular.

Outro aspecto que cabe ressaltar diz respeito à procura pelos livros das séries

Harry Potter e Crepúsculo: ao longo da implementação, percebeu-se nitidamente os

alunos que tinham lido os livros, pois podiam trocar ideias com a professora e os

colegas. Um momento prazeroso para muitos! Para aqueles que não tinham lido as

obras, faltavam conhecimentos para poder interagir com os colegas. Isso fez com

que vários alunos fossem em busca dos livros na biblioteca, demonstrando que,

qualquer comentário que se faz de um livro, em sala de aula, pode ser um motivo

para o aluno buscar esta leitura.

Ao final da implementação, os alunos foram organizados em grupos para

encenarem uma lenda. Por ser uma turma pequena (15 alunos) muitos deles

ajudaram na encenação de várias lendas. Foram feitos vários ensaios fora do

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horário escolar para que se obtivesse sucesso nas apresentações. Em uma tarde,

foram feitas as apresentações para toda comunidade escolar e percebeu-se que a

maioria dos pais fez-se presente e dão muito valor às apresentações dos filhos. A

encenação, assim como as filmagens feitas ao longo da implementação, foram

registradas em DVD e esse material ficou disponível na escola.

Relembrando Isabel Solé, pode-se afirmar que, no contexto escolar, o

professor é peça chave para criar ou despertar o interesse pela leitura, dependendo

da forma como apresenta a leitura. Faz-se necessário usar estratégias diferenciadas

para fazer a leitura e apresentar textos de vários gêneros. A forma como o professor

lê ou conta o texto e também a tecnologia que utiliza para apresentar a leitura são

fatores fundamentais quando se trata de aproximar o leitor do texto. Os alunos se

espelham muito no professor, portanto, ele precisa preparar muito bem este

momento de leitura para que possa alcançar seus objetivos.

Michèle Petit afirma que a maioria das pessoas lembra que quem as iniciou

na leitura foi um professor ou um bibliotecário. Por isso, o trabalho do professor-

mediador de leitura é fundamental, e muitos alunos só se tornarão leitores se seus

professores também o forem.

6 Conclusão

Ao longo da implementação pedagógica, além de terem lido várias lendas, os

alunos foram estimulados a ler textos mais longos e vários leram as obras das séries

Crepúsculo e Harry Potter, as quais inicialmente provocaram um certo “repúdio” em

função do número de páginas. A professora usou estratégias diferenciadas para

contar partes dos livros ou passava na TV pendrive algumas cenas interessantes

dos filmes feitos a partir dos livros para aguçar a curiosidade dos alunos para a

leitura.

Lendo, analisando, interpretando e comparando lendas procurou-se

trabalhar, com os alunos, atividades de leitura e escrita além das habilidades de

comunicação oral na língua padrão. A escolha do gênero lenda possibilitou trabalhar

a intertextualidade e demonstrou que é possível desenvolver a comparação entre

diferentes textos, de gêneros variados, levando à ampliação do horizonte de leitura,

da palavra e do mundo, segundo acepção de Paulo Freire. Em vista disto, trabalhar

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com esse gênero literário no Ensino Fundamental foi extremamente interessante

porque permitiu experiências inovadoras quanto à maneira de se trabalhar lendas e,

desta forma, ampliar o repertório de leitura dos estudantes.

O desenvolvimento do projeto oportunizou, também ao professor,

conhecimento de textos e várias estratégias passíveis de aplicação em sala de aula

com bons resultados, e possibilitou correlacionar questões de ordem teórica com a

prática cotidiana no universo escolar, demonstrando que, se o professor for leitor,

contador e usar estratégias diferenciadas para cativar os alunos para a leitura, ele

fará a diferença na vida do aluno.

Referências

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.

50. ed. São Paulo: Cortez, 2009. GOMES, Daniela Rosane (org). Histórias da roça. Uberlândia: EDUFU, 2009. MUNDURUKU, Daniel. Coisas de índio. São Paulo: Callis, 2000. PENA, Felipe. Palavra sedutora. Jornal Rascunho, abr. 2010. Disponível em: <http: //rascunho.gazetadopovo.com.br>. Acesso em: maio. 2010. PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora

34, 2008. SHAW, Harry. Dicionário de termos literários. 2.ed. Lisboa. Dom Quixote, 1982. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ed. Porto Alegre: Artmed,1998.