Dominique Valbelle - A Vida No Antigo Egipto

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SABER A VIDA NO ANTIGO l Tomando como ponto de partida os resultados nliinln:. i:nm .is mais recen tes explorações arqueológicas do urbanismo do vale dn Nilo, nsta nhni contribui para um melhor conhecimento de um dos mais velhoi povos do mundo civiliza- do e da sua história desde o inicio do Antigo ImpAno (7700 i. C.) até ao fim do Novo Império (1088 a. C.). Através da abordagem de temas tão variadoí 1:01110: a nilralílicacfto social, a organização política e institucional, .is .n:iivnl.nl<v. |IIIH!II|IVH>, n vnlii liinilínr e quotidiana, os usos e costumes, a alimentício, i minlilididi t ciiliiini, a autora elabora um magnífico fri!si:n iln h|i|iin .miMin nim-mnlu ,nr, intmr. uma visão clara e sucinta <!« IIMI.I il.r. m.ir. l,i ,i Mi.mir i r/ih.M' .<!•-. lnini.in.is. lii,ii|i'in ilii i it|ji» i nu<*|ll itn l itiirti i U Vil 1(1(1114 :«HiiH« il» N^l.l n ' V *l* MI«I| BBN 972-1-03116 X 5 U601072"012H1" DOMINIQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO l PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA

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SABER

A VIDA NO ANTIGOl

Tomando como ponto de partida os resultados nliinln:. i:nm .is mais recentes explorações arqueológicas do urbanismo do vale dn Nilo, nsta nhni contribuipara um melhor conhecimento de um dos mais velhoi povos do mundo civiliza-do e da sua história desde o inicio do Antigo ImpAno (7700 i. C.) até ao fimdo Novo Império (1088 a. C.).

Através da abordagem de temas tão variadoí 1:01110: a nilralílicacfto social,a organização política e institucional, .is .n:iivnl.nl<v. |IIIH!II|IVH>, n vnlii liinilínre quotidiana, os usos e costumes, a alimentício, i minlilididi t ciiliiini, aautora elabora um magnífico fri!si:n iln h|i|iin .miMin nim-mnlu ,nr, intmr.uma visão clara e sucinta <!« IIMI.I il.r. m.ir. l,i ,i Mi.mir i r/ih.M' .<!•-. lnini.in.is.

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BBN 972-1-03116 X

5 U601072"012H1"

DOMINIQUE VALBELLE

A VIDA NO ANTIGOl

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA

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Título original: La Vie datis l'Egypte AncienneTradução de Isabel St. AubynTradução portuguesa © P. E. A., 1990Capa: estúdios P. E. A.© 1988, Presses Universitaires de France (n.° 1302 da Colecção

«Que Sais-je?»)

Direitos reservados porPublicações Europa-América, Lda.

Nenhuma parte desta publicação pode ser re-produzida ou transmitida por qualquer formaou por qualquer processo, electrónico, mecânicoou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópiaou gravação, sem autorização prévia e escritado editor. Exceptua-se naturalmente a transcri-ção de pequenos textos ou passagens para apre-sentação ou crítica do livro. Esta excepção nãodeve de modo nenhum ser interpretada comosendo extensiva à transcrição de textos em re-colhas antológicas ou similares donde resulteprejuízo para o interesse pela obra. Os trans-gressores são passíveis de procedimento judicial.

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.Apartado 82726 MEM MARTINS CODEXPORTUGAL

Edição n.° 101214/5117

Execução técnica:Gráfica Europam, Lda.,Mira Sintra — Mem Martins

JVpósif o Legal n." 36 272/90

ÍNDICE

Pag.Introdução 7

Capítulo I — As classes sociais e os meios socioprofis-sionais 12

I — As categorias humanas e as classes sociais ... 13II — O palácio, a corte e as instituições reais ... 18

III — Os templos, suas Casas de Vida, oficinase domínios 22

IV — O exército e a marinha 27V — Os homens livres e os servos 30

Capítulo II — A ocupação do tempo 35

I — O rei e o seu vizir 36II — Os funcionários 40

III — Os operários e os artífices 44IV — Os camponeses 49V — Os serviçais 55

Capítulo III — O nível de vida e as suas manifestações 61

I — O túmulo, o seu mobiliário e os monumen-tos de devoção 62

II-—O povo 66III — Os bens imobiliários 69IV — Os bens produtivos: as terras e o gado 72V'—Os metais e os produtos de luxo 74

Capítulo IV — O quadro de vida • 77

I — Os aglomerados 77II — Os campos - 31

III — Os desertos 86IV — O estrangeiro 89

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Capítulo V — A vida privada 94

I — A família 94II — A casa 98

III — O meio envolvente 100IV — As devoções 103V —O lazer 106

Capítulo VI — As modalidades do quotidiano 109

I — A alimentação 109II — A saúde : 112

III — O vestuário 114IV — A higiene e os adornos 117

Conclusão 120

Bibliografia. 122

INTRODUÇÃO

Os vestígios do Egipto faraónico testemunham,inequivocamente, a primazia concedida pelos homensda época à vida para além da morte. Os túmulos reaisou privados, geralmente construídos em pedra ou esca-vados na rocha das falésias, foram preservados,enquanto o tijolo cozido se empregava quase exclusi-vamente na construção de palácios e moradias, ricase pobres. Ora, curiosamente, foram estas mesmas con-cepções que contribuíram, numa medida não despre-zível, para nos informar sobre as mentalidades, asnecessidades, os hábitos quotidianos.

Na verdade, ao tornar-se possível explorar certascidades e aldeias da Antiguidade, percorrer certos volu-nies dos arquivos C | I K : chegaram até nós, ler os contosc a sabedoria poupados pelo tempo, somos forçadosa reconhecer que o contributo dos textos e das repre-sentações, gravados e pintados nas paredes dos túmulos,tal como o seu conteúdo, quando não foi objecto depilhagens, é essencial: consoante a época, os meios deque dispunha e a função desempenhada, o futurodefunto escolhe, para a sua moradia na eternidade, oselementos mais importantes do seu quadro da vida, dasua família, e mesmo do seu pessoal, os bens que lhesão mais caros; relata os factos principais da sua exis-tência, recorda o seu ofício, as relações que eventual-mente manteve com o Faraó ou uma alta personalidadedo reino; o mobiliário que o acompanha á últimamorada por ocasião do funeral compreende roupa decasa e móveis, utensílios e alimentos; do fim do Antigo

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Império ao início do Novo Império, modelos de cons-truções e de actividades agrícolas e artesanais comple-tam as alusões iconográficas das paredes. Esta documen-tação colorida anima, pois, e com rigor, os dadosbrutos que a arqueologia confia à nossa interpretação.Seria, portanto, ilusório esquecer o contexto no qualaquela se manifesta ou os limites que a sua naturezalhe impõe: as figurações de actividades profissionaise de propriedades seguem-se a estereótipos quando nãosão a ilustração de uma fórmula funerária destinadaa ajudar o defunto na vida subterrânea; os relatosbiográficos são, muitas vezes, pobres em informaçõesverdadeiras, apresentando-se repletos de basófias incan-savelmente repetidas; o mobiliário funerário das classesabastadas é fabricado por oficinas especializadas e,certamente, só de longe reflectirá o mobiliário corren-temente utilizado pelas mesmas famílias enquanto vivas.

Contudo, algumas falhas vêm, por vezes, perturbaros sólidos costumes egípcios, deixando então transpa-recer algumas indicações originais: os pobres são amor-talhados com o seu vestuário habitual e os seus velhosmóveis; no fim do Antigo Egipto e durante o PrimeiroPeríodo Intermédio, o poder acrescido de certos nomar-cas provinciais deve ter contribuído para os tornarmais loquazes e os relatos enriquecem-se com episódiose comentários sobre os tempos conturbados que atra-vessam; na XVIH dinastia, e em particular durante ocisma amarniano, os temas iconográficos renovam-se etendem para uma reprodução da paisagem mais pró-xima das realidades quotidianas.

Por muito atraente que seja, este quadro não ésenão o reflexo dourado que os Egípcios desejavamdeixar de si mesmos e do ambiente. Não o destinavamcom certeza aos milhões de turistas que todos os anosvisitam os seus túmulos, conservando a esperança, nãoobstante as pilhagens, as usurpações e as reutilizações,de que as sepulturas se manteriam invioladas, de que

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o seu repouso eterno seria poupado e até mesmo deque os seus nomes seriam honrados pelos visitantes,aos quais se destinam as inscrições que figuram nascapelas em que os vivos depunham as oferendas aosmortos. Resumiam assim a sua experiência terrestre,material e moral, a fim de que nada lhes faltasse depoisda morte, que consideravam uma transição entre duasespécies de vidas bastante próximas uma da outra.

Seria, portanto, cientificamente mais tranquilizadortentar reconstruir a vida dos antigos Egípcios unica-mente a partir dos verdadeiros vestígios da sua exis-tência. Mas, será possível resumir a vida de um homemn partir de alguns lanços de paredes abandonados, nomelhor dos casos, de detritos acumulados cm depósitospúblicos c, se tivermos muita sorte, de fragmentos deK - j > i s l os administrativos?

Nos últimos dez anos, a arqueologia urbana tem-sedesenvolvido no vale do Nilo e os resultados começama tornar-se palpáveis; muitas ciências auxiliares per-mitem determinar o contexto ecológico da época,reconstituir ;i alimentação; o estudo e a comparação deinscrições oficiais e de volumes arquivados e diferen-temente conservados, ao permitirem o progresso dosconhecimentos sobre as estruturas sócio-económicas dopaís nos diversos períodos em questão, colmatam certaslacunas da documentação. Assim, só imbuídos demodéstia e empregando, no que elas realmente repre-sentam, todas as informações disponíveis, podemostentar realizar um dos estudos mais árduos, mas tam-bém mais excitantes, que a história nos propõe: evocara vida de um dos mais velhos povos do mundo civili-zado ao longo de dois mil anos, ou seja, do início doAntigo Império (2700 a. C., aproximadamente) até aofim do Novo Império (1088 a. C.).

Como é evidente, seja qual for a propensão doshabitantes do vale do Nilo para conservar firmementeas tradições, uma «evolução», resultante tanto das flu-

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tuações de um equilíbrio difícil entre poder real e poderprovincial como da natureza e do desenvolvimento dasrelações de força que se manifestaram periodicamenteentre o Egipto e os vizinhos, modificou progressiva-mente e, por vezes, com alguma brutalidade, os hábitose as mentalidades durante tão longo período. Assim,tornam-se indispensáveis as referências cronológicasconstantes.

Foi durante as duas primeiras dinastias que se ins-taurou urn poder único no Egipto, que tomou inicia-tivas políticas e económicas determinantes e criou estru-turas institucionais suficientemente fortes para condi-cionar a história do país até à conquista por Alexandre.

Segundo um processo há muito presente na Meso-potâmia, os habitantes do vale e do delta do Nilo apre-sentam-se, cerca de 4500 a. C., reunidos em grandesburgos agrícolas cujos vestígios sugerem, no mínimo,o esboço de uma organização socioprofissional e a exis-tência de um artesanato em que a cerâmica tende aocupar o primeiro lugar. Durante o iv milénio, váriasculturas, algumas das quais em relação com o PróximoOriente, testemunham o notável domínio de diversastécnicas, em particular no fabrico de objectos de pedradura ou de marfim, vasos, recipientes, estatuetas, cabospara facas. A qualidade de alguns destes objectos, assimcomo as dimensões de certos síleces, sugerem uma espe-cialização capaz de confirmar o notável desenvolvimentoda cerâmica. A necessidade da repartição das tarefas noseio das comunidades aldeãs começa então a impor-se.Esta situação coincide, 3000 anos a. C., com a reuniãosob a mesma autoridade do vale e do delta do Nilo,provavelmente em detrimento deste último.

Nessa época, o rei toma um certo número de medi-das, destinadas a centralizar a gestão do novo patrimó-nio: plano de irrigação e de controlo dos cursos deágua, avaliação dos rebanhos, das terras cultiváveis, do

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ouro extraído das minas, recenseamento dos prisionei-ros de guerra, e mesmo da população autóctone, fun-dação dos primeiros centros urbanos onde se reúnemos antigos aldeões que assim despovoam os campos.A terra do Egipto pertence ao Faraó, os homens doEgipto encontram-se ao seu serviço. Instaura-se umaadministração sólida e hierarquizada. A conservação dealguns títulos testemunha as diversas funções que per-durarão, mas só a partir da ui e, sobretudo, da iv dinas-tia, com a multiplicação dos textos conhecidos, se tor-nai-a possível reconstituir as bases institucionais e ascaracterísticas mais importantes da sociedade egípcianos seus primórdios. Contudo, as modificações impor-tantes na própria concepção da monarquia e nas suasrclucdcs com a administração provincial tornam-se sen-síveis na dinast ia seguinte e a história do país vê-semarcada pela procura de um compromisso harmoniosoentre um governo necessariamente forte e uma tendên-cia sempre premente para a regionalização.

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CAPÍTULO I

AS CLASSES SOCIAISE OS MEIOS SOCIOPROFISSIONAIS

A demografia do país nas diferentes épocas consi-deradas foi alvo de raros estudos, e estes baseadosessencialmente na apreciação das colheitas. As avalia-çes propostas são, pois, puramente hipotéticas e suscep-tíveis de discussão após um estudo sistemático dosnúmeros fornecidos pelos próprios textos egípcios:

Região

Vale

Fayutn

Delta

Desertos

Total

ÉpocaTinita

600 000

6000

210 000

50000

866 000

AntigoImpério

1 040 000

9000

540000

25000

1 614 000

ImpérioMédio

1 120 000

61 000

750 000

25 000

1 966 000

NovoImpério

1 620 000

72000

1 170 000

25000

2 887 000

(Segundo K. W. Butzer, Early Hydranlic Civilization in Egyp.tChicago, 1976, quadro 4, p. 83.)

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Tais números não podem, porém, ser directamentecomparados com as avaliações aqui reproduzidas, poisreferem-se sempre a uma categoria particular da popu-lação, prisioneiros de guerra, operários, tropas envia-das para determinadas campanhas militares, membrosde expedições organizadas a minas ou pedreiras situa-das nos desertos que circundam o Egipto. Raros foramos actos de recenseamentos chegados até nós. Alémdisso, são muito incompletos e abrangem apenas umgrupo determinado de pessoas. Estes documentos reflec-tem bem a complexidade de um sistema administrativo( | iu : comportava simultaneamente um núcleo centrali-zador forte cujos traços só indirectamente nos são for-necidos e múltiplas engrenagens locais que nos legaram,p < > r vexes, testemunhos precisos, como a instituiçãoi l n T i i m i i l o , cm Tebas, na época dos Rameses: arquivosc vestígios arqueológicos combinados dizem-nos, porexemplo, que tal aldeia de operários ao serviço doFaraó compreendia entre 40 a 60 famílias, cada umacom 2 a 6 membros, vivendo em habitações com umaárea de cerca de 70 m2. Existem outras informaçõesi n r n i i : , completas, referentes a outras comunidades, a« n i t r o : ; períodos, mas .são, no conjunto, demasiado par-cia is para serem simplesmente adicionadas.

I — As categorias humanas e as classes sociais

Heródoto, no século v a. C., escrevia, em O Inqué-rito, n, 164: «Os Egípcios distribuem-se por sete clas-ses: os sacerdotes, os guerreiros, os boieiros, os por-queiros, os mercadores, os intérpretes, os barqueiros.Não há mais; os seus nomes decorrem dos ofícios exer-cidos». (Trad. de A. Barguet, Plêiade). O regime feudalque prevalecia no século VI, descrito pelo historiadorgrego, confirma a existência de classes sociais, cuja ori-gem deve ser procurada nos tempos mais recuados.

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A identidade de algumas destas classes, pelo contrário,parece-nos mais surpreendente e não se adapta à situa-ção social dos períodos mais antigos.

Uma espécie de memorandum enciclopédico, datado daXin dinastia, o Onomasticon de Amenemope, passa em revista,depois dos elementos e das entidades divinas, o rei, os parentes,os cortesãos, os oficiais e seus colaboradores, os sacerdotes, osoperários, os artífices e diversas profissões, antes de citar as gran-des classes sociais, as etnias conhecidas e as grandes categoriashumanas, tudo numa ordem cuja lógica nem sempre se revelamuito clara: assim, entre cargos administrativos figuram títulosreligiosos, enquanto funções militares interrompem séries de res-ponsabilidades económicas.

Contudo, esta longa enumeração realça algumas evi-dências, evidências estas que são confirmadas por outrostextos mais breves. O soberano, interlocutor privile-giado dos deuses, é a primeira personagem do Egipto.Detém todos os poderes e goza de todos os privilégios,mas assume também os deveres mais pesados para como país e os súbditos. Partilha praticamente todos ospoderes, privilégios e responsabilidades com altos fun-cionários civis, religiosos e militares que escolhe, fre-quentemente, entre os membros da própria família. Estetipo de governo autocrático reencontra-se por ocasiãodas grandes restaurações que se seguem aos períodosde perturbações internas graves ou de invasões estran-geiras. Evolui rapidamente, logo que a prosperidadesuscita novas funções ou, pelo contrário, quando aautoridade legítima se torna ineficaz, para um regimede tipo feudal em que os governadores de província,os nomarcas, aumentam as suas prerrogativas em detri-mento do órgão central. Estas situações podem levar àtomada do poder por um fidalgote, um militar ou umgrande sacerdote cuja eficácia tenha suprido as fraque-zas do Estado. Assim, não nos sentimos desconcertadosao ver que, no Onomasticon de Amenemope, a enume-ração das mais altas funções do reino surge logo após

,•1 VIDA NO ANTIGO EGIPTO 15

a dos membros da família real. A considerável partereservada à administração, tanto aos níveis mais eleva-dos como aos mais modestos, talvez se deva à identidadedo autor da compilação: Amenemope era «escriba dasobras divinas na Casa de Vida». Mas, não está emdesacordo com frequentes testemunhos de omnipre-scnça desta administração em todo o país e da sua esta-bilidade, mesmo nos períodos mais conturbados. Nalista, os sacerdotes precedem os operários e os artesãos.

Verifica-se esta hierarquia num documento da XVII dinastia:u i i i . i , cena de recenseamento figurada no túmulo de um escribai li i r i i i i i o <!<• Tu l mês IV, Tchanonny. Um comentário hieroglí-l iru precisa (|nc se l r ; i l ; i de «recensear todo o país, cm presençaile MI. i Majestade; controlar todo o inundo, a saber: os soldados,• w -..u i i . ln i i " . pino;.. M:, rin|irejvu1o:; reais <; os artífices de toda, l,- ia i i n indo n |uís, lodo o gado grosso, galináceos e gadoi m i ' . | ' > ., A p i n t u r a segui: uma ordem sensivelmente diferente: emp i i n i e i t o lugar vêm os sacerdotes, depois os empregados dol' 'art)(), soldados, gado grosso e cavalos. Provavelmente o escribapretendeu lisonjear Tchanouny ao começar por citar os soldados.

Impor ia observar i|ue, embora seja de admitir queo ii i i imciiulo ! ' < • ( i - iK.eatncnlo se refere ao país na sua tota-l í i l a i l c , l ioniens e animais, parece na verdade limitar-se."is camadas mais modestas da população e ao gado. Asaltas funções administrativas, religiosas e militaresencontravam-se, de resto, misturadas no Onomasticonde Amenemope e sem que seja possível distinguir entreelas qualquer hierarquia. A primazia dos outros padressobre os operários e os artífices não é anormal numestado de direito divino. Reencontramo-la na exposiçãode Heródoto. De resto, textos como estes eram copiadospor jovens escribas nas Casas de Vida dos templos.

Todas as observações decorrentes da sua análise,realçam, seja qual for o contexto, um pequeno númerode informações imutáveis sobre o lugar ocupado pelosindivíduos na sociedade egípcia e sobre as categorias queformavam. Desde a fundação de um Estado organizado,

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l — Cena de recenseamento no túmulo de IchanounyTebas (cliché Daik-Brack).

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iodos os súbditos do Egipto estão, ern princípio, sujei-los a obrigações. De acordo com o meio e a habilidade,praticamente todos exercem uma tarefa definida ao ser-viço do rei, podendo este atribuir pessoal a uma fun-dação civil, militar, religiosa, funerária ou a um parti-cular, de forma temporária ou permanente. Com ot empo, a situação aligeirou-se.

Desde os tempos mais recuados, os Egípcios distin-guiram vários estatutos na sociedade: o de nobre (prt),<> de homem do povo ou súbdito (rhye e hnmmt),. l ' :;i" rii:m(!o a palavra homem (rinf) qualquer indivíduo,ou mu < I | H T a i i o m i , ainda, um .servo. Os nobres nuncailri :;im

i luiiliiil

« l i l ' 1 - i i i

, u l i l i n l i a r n M - I I e : ; l a d < > à l lvnk: <los títulos.i | i i i i i i : i i n n i n a i asla (ccliada c. os exemplos

I :. I H i i l l ap ida , quando se satisfaz o sobe-niiin, n. M I são escassos. Pelo contrário, o casamento

« l i - um dek:s com filhas de nomarcas, apesar de mem-l i i - < > : ; desta nobreza, contribuiu, na iv dinastia, parainaiicliar o prestígio da realeza faraónica, que vê algunsdo:; seus caracteres absolutos rapidamente postos em..... sã, durante o Primeiro Período Intermédio: origi-n. n i a m e i i i e , o rei e a família situam-se acima da nobreza,a qua l , no entanto, pertencem.

As inscrições gravadas nos monumentos privados,esteias, estátuas, túmulos, etc., comportam, geralmente,vários títulos para a mesma personagem, desde que estaocupe uma posição de alguma importância na sociedadeda época. Entre estes títulos, alguns, herdados do pas-sado, apresentam apenas um carácter honorífico. Osoutros traduzem as funções que a personagem desem-penhou, simultânea ou sucessivamente. Certos cargoscomplementares constituem, habitualmente, uma prerro-gativa do mesmo homem. Além disso, a acumulaçãode responsabilidades administrativas, económicas, reli-giosas, ou mesmo militares, sem ligação aparente entresi, não é rara. Uma destas responsabilidades prevalece

SABER 214 — 2

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geralmente sobre as outras, mas o Egípcio coloca quasesempre em plano de igualdade óbvia, o exercício ver-dadeiro de uma profissão regular, o papel de gestor deum grande domínio, uma missão de duração limitadaconfiada pelo rei ou por um alto funcionário e a prá-tica regular de uma devoção particular, por exemplo.Para compreendermos melhor este fenómeno, recorde-mos certos cartões de visita que pormenorizam os maisdiversos méritos do seu proprietário, ao lado da mençãobem adornada do seu verdadeiro ofício. Este costume,largamente generalizado em todas as épocas, mostra quenão existia nenhuma barreira estanque entre as grandesordens do Estado. Além disso, a expressão da únicae mesma função pode apresentar variantes radicais, con-soante se saliente a situação da pessoa relativamenteao empregador, a categoria profissional a que pertenceou a natureza precisa do seu trabalho.

II — O palácio, a corte e as instituições reais

No Antigo Império, cinco palavras ou locuções ser-vem para traduzir os diferentes aspectos da noção depalácio real e suas funções essenciais. A «Casa Grande»(pr'3) é a mais frequente. Habitualmente citada emrelação à capital, Mênfis, designa a habitação do soberano,da família e dos amigos íntimos: Ptahchepses, favorito dosúltimos reis da iv dinastia, e também os seus sucessores,na v dinastia, «foi educado com as crianças da realeza naCasa Grande do rei, na Residência e no Harém do rei».Os títulos referentes a esta expressão abrangem, paraalém dos serviços administrativos, o pessoal relacionadocom a vida quotidiana do rei — médicos, cabeleireiros,barbeiros, manicuros, servidores diversos — e os artífi-ces. Não parece ter interferido na vida do país comoentidade económica própria. Por outro lado, está tão

VIDA NO ANTIGO EGIPTO 19

intimamente associada ao rei que este rapidamente pas-sou a designar-se por «Faraó».

O palácio «síp-s3» surge nos textos essencialmente, i partir do Império Médio. Contudo, já no AntigoImpério a locução se aplica à sede do poder central,

> - n i relação directa com certos serviços efectuados porconta do rei: escolta e protecção, assim como a exe-cução das suas ordens.

O «Palácio/Domínio Real» (pr-nsw) é uma insti-tu i ção ru jo papel essencialmente económico é directa-i u « n t . - c o n t r o l a d o pelo monarca. Em particular, constituii i i n . ) l o n i e p r iv i leg iada i lê doações cm benefício de fun-i l . M , < > ! • • . ou ( ! • • | > . i i i u nl . i ivs, i i i i i n conic: . io mui t a s vezesI n i u i i i i n . M I i . l i « i i i . - . i i . l M H | i i i i " ; i mu numero importante> l i n li 1 . 1 . M I ' f . c .il) ' , ims c i v i s , sobretudo na província.

l" nus m i i ; i destas palavras se escreve pelo seu| i i o | > i i n u l i i>£> i ' un i í i , representando um edifício (ch).l ' ( « l ia, contudo, não materializar a habitação usual dorei , tuas .sim uma construção intermédia entre um pavi-l l i . i o >: uma capela utilizada pelo soberano de formam.ic; ou menos virtual, por ocasião de cerimónias, em( • i i i i i ( u l a r as dos jubileus. Porém, uma alusão a um«lesses pavilhões, chamado «lótus de Isési», numa cartado rói ao arquitecto Senedjem-ib sugere, talvez, instala-ções de envergadura. Desempenhava ainda uma funçãoeconómica em relação à Residência.

O «Interior» (hnw), geralmente traduzido por«Residência», ultrapassa largamente esta simples noção,assim como a sua influência ultrapassa a de um Minis-tério do Interior. Abrange um organismo e, ao mesmotempo, um conjunto de construções. Esta entidade eco-nómica de primeiro plano comportava uma administra-ção dependente, como o Domínio Real, do monarca.Possui bens específicos, rebanhos, propriedades, pes-soal. Dispõe de um arquivo e de celeiros. Desempenhasimultaneamente um papel de agente centralizador na

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produção dos domínios e, em particular, dos domíniosfunerários, e de agente distribuidor no abastecimentodas fundações e seu pessoal. Exerce, assim, uma funçãode controlo e de equilíbrio na gestão económica do país.

Desta rápida análise distinguem-se três missõesprincipais:

• A residência e a manutenção da família real,• O cumprimento de rituais monárquicos,• A sede do governo.

Estas três missões cumprem-se em locais próximosmas distintos, como mostram ainda sem ambuiguidade,no fim da xvm dinastia, os vestígios do centro da capi-tal de Amenófis IV, Amarna. Conhecem-se muitosoutros complexos palacianos de todas as épocas, maspoucos são suficientemente diferenciados para testemu-nharem as várias funções enunciadas. De resto, não éimpossível que, quando a residência do soberano seafastou de um dos dois grandes centros administrativosdo país, Mênfis e Tebas, como no Império Médio ouna época dos Rameses, as instituições governamentaistenham continuado a funcionar. A corte, pelo contrário,acompanha o monarca, e os altos funcionários que acompõem só a abandonam para realizar tarefas que lhessão confiadas. Mesmo os responsáveis provinciais, nosperíodos de poder autoritário, mandam construir sepul-turas numa necrópole próxima do túmulo real. Asestruturas institucionais modificaram-se com o tempoe a sua importância relativa variou. O léxico, por vezes,evoluiu. Mas, muitos elementos constitutivos das dis-posições primitivas continuam a ser utilizados. Assim,conhecem-se as contas dos pães entregues na Residência,em Mênfis, datadas do ano 2 de Séthi I,

As instituições reais, civis ou militares e as funda-ções religiosas ou funerárias dos sucessivos soberanos,em todo o país, empregam pessoal abundante e variado,

A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 21

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r\ Plano de situação dos edifícios oficiais do centro de

Amarna.

i. 2'ahicio, harém do norte, harém do sul e alojamento do pés-:,oul.— a. liua Eeal. — 3. Ponte ligando a casa do rei aos bairros dasluulhcrr.s. — i. Casa do rei. — 5. Arquivos. — 6. Armazéns. — 7. NegóciosK:;trani;<!iros. — 3. Casa de Vida. — 9. Santuários. — 10. Casas de sacer-dotes.—11. Caserna. — 12. Quartel-general da Polícia.

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22 DOAÍINÍQUE VALBELLE

colocado sob a autoridade do soberano através dos seusrepresentantes, vizir, directores de departamentos admi-nistrativos, generais, encarregados de missões, escribas...O pessoal das instituições reais é composto por funcio-nários que recebem um salário em espécie, calculadoem função dos impostos, assim como recompensas oca-sionais atribuídas, segundo os méritos de cada um, pelopróprio rei. O pessoal das fundações religiosas e fune-rárias está, habitualmente, a cargo dessas mesmas funda-ções, provindo os rendimentos da exploração das terrase do gado, que são ofertas do monarca e bastam, depoisde deduzidos os impostos, para os fazer viver e pros-perar.

Os domínios da coroa, os dos templos e os dosparticulares abastados parecem concebidos segundo ummodelo comum e não é raro encontrar funções seme-lhantes nestes diferentes meios. A gestão administrativaengloba vários departamentos distintos: culturas e cria-ção de gado, avaliação e conservação das colheitas, pre-paração dos alimentos, prestação de serviços aos patrões,oficinas de tecelões, marceneiros, sapateiros, fabricantesde vasos, jóias... Um certo número destas fundações,independentemente da sua natureza, beneficia de privi-légios excepcionais decretados pelo rei: são dispensadasde pagar impostos ao Estado e a totalidade do seupessoal é protegida contra qualquer trabalho ou requi-sição externa, mesmo emanando dos serviços centrais.

III — Os templos, suas Casas de Vida,oficinas e domínios

No Egipto faraónico, coexistiam duas espécies detemplos: as residências dos deuses e os templos fune-rários construídos para o culto dos reis depois da mortee chamados, no Novo Império, «castelos de milhões deanos».

A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 23

O carácter divino da realeza egípcia nas origens nãocarece de demonstração. Vivo, o rei é Hórus; morto,é Osíris. Da sua sobrevivência eterna depende a har-monia do mundo, isto é, do Egipto. Assim, em frented:i pirâmide que encerra os seus restos mortais, cons-trói-se um templo funerário no qual cinco estátuas coma sua efígie são purificadas, vestidas, ungidas, ornamen-tadas e onde se depõem, diariamente, oferendas numaltar próximo de uma porta secreta que permite queo defunto passe do mundo dos mortos para o dos vivos,|i:ir:i : ; t ' a l i m e n t a r . Na base deste conjunto monumental,ao t n i i i l sf r i i c o n l r a .libado por uma avenida, no vale,mu h i n j i l d de acolhimento < • uma cidade da pirâmidei v r r l i i - i i i r ^ . - iv ln u a l i a s k r i l I U T l t O do templo funerário,

. i l n j . i n i o | > r : ; : ; i > a l , organizam o serviço diário e prepa-ram a.1; l r : ; l a s .

Já na iii dinastia, um complexo funerário únicocelebrou, no planalto desértico de Saqqara, o jubileudo n:i Djescr para a eternidade. Mas, as construçõesl i r i í c i a s que o compõem parecem organizadas para umexercito de .sumiu-as c não para pessoal afadigado. Noi n i r i i i da iv dinastia, estes vastos edifícios cobremvários hectares, sobretudo em Dachur e Giza. Foramos arquivos de templos funerários da v dinastia, emÁbousir, que chegaram até nós. Compostos, no essen-cial, por contabilidade, informam-nos não só sobre aeconomia destas fundações e o lugar que ocupam naeconomia do país, mas também sobre a vida dos tem-plos e o pessoal que os anima. Alimentados pelos domí-nios funerários do rei ou de outros soberanos, por inter-médio da Residência e do templo solar do rei, osrendimentos em víveres e em peças de tecido serviam,obviamente, as necessidades post mortem do monarca,mas também alimentavam os numerosos empregados doestabelecimento.

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24 DOMÍNÍQUE VALEELLE

As actividades diárias compreendiam um serviço de cultorealizado duas vezes ao dia que corresponde às duas refeiçõesterrestres do soberano defunto, à higiene das suas cinco estátuas,à leitura do ritual, a diversas purificações e libações e um ser-viço profano, incluindo o encaminhamento e a preparação dasoferendas — um mínimo de onze galináceos, os melhores pedaçosde um boi, uma grande quantidade de pães de várias formas,cerveja, etc., a distribuição dos víveres previamente apresenta-das ao rei, a guarda do edifício e do seu conteúdo, a redacçãodas peças de arquivos. O pessoal permanente repartia-se por cincogrupos, dirigidos por cinco chefes, que assumiam alternadamenteo cargo de acordo com quadros que chegaram até nós. Cada grupoestava dividido em duas secções de cerca de vinte pessoas, dota-das de dois responsáveis. A este grupo regular juntam-se Ossacerdotes-puros e os artífices, os cabeleireiros, os oleiros, oscozinheiros, os lavadeiras, os remadores, os carregadores, osmédicos e os cantores, num total de cerca de 300 indivíduos.

Em volta destes complexos funerários reais, nascapelas dos túmulos circundantes, uma multidão de

' pessoas asseguram junto dos cortesãos, dos altos fun-cionários e suas famílias, um serviço de oferendas mui-tas vezes vindas da oferenda divina do templo próximo.Os homens distinguidos pelo soberano podem beneficiarde uma espécie de renda que satisfaz o abastecimentoem géneros indispensáveis e permite, assim, retribuiros «servidores do ka» encarregados destes gestos pie-dosos. Esta renda provém, por vezes, tal como os ren-dimentos dos templos, da exploração de um ou váriosdomínios funerários repartidos pelo conjunto do país.

Quanto aos templos funerários rameses, em Tebas,são um compromisso entre os templos funerários doAntigo e do Médio Império e os templos divinos. Cons-truídos segundo um plano semelhante ao dos templosdivinos, compreendem um palácio, reduzido, indispen-sável às cerimónias jubilares e outras, que se realizavamno recinto sagrado. Foram igualmente importantes cen-tros económicos como o Ramesseum e administrativos,como Medinet Habou.

/l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 25

Os grandes templos divinos são, eles próprios, sedede vastos empreendimentos de competências múltiplas.Oualquer santuário de alguma importância elaborou,desde muito cedo, a sua própria cosmogonia, que o: , i iua no local em que o mundo foi criado. Os arquivoslocais e os textos gravados nas paredes testemunham< - s t u situação primordial. Os cultos, que são celebradosdiariamente ou em datas fixas, honram as divindadesprincipais do local e seguem um ritual que se afastamuito pouco daquele que pretendia assegurar a sobre-vivência do rei morto. A estátua do deus substitui a doh i , ! ' ' I H omra :;e profundamente encerrada no templo,u n i u v i H H i a i i o cujas poria:; só são abertas pelos sacer-• l o i . s m . n , i | i i . i l i l i i ai los, os únicos autorizados a pene-i i u n.i /ou i ma r . :,.!".!.ida do icmplo. Procedem à sual u y •. ycsicm na, 01 n a i m - n i a m na, incensam-na e apre-

• m .mi I l i e os a l imentos mais frescos e mais saborosos,i c c i i a m l o o ritual divino quotidiano. Outros actos den iho desenrolam-se nas diferentes partes do templo:iransporte da estátua ou da barca do deus, em procis-são, pelos telhados ou pelo exterior, a música e os• .mios litúrgicos, os mistérios, os oráculos. Grupos desacerdotes exercem, sucessivamente, segundo a compe-icncia e o grau de iniciação, cada uma destas tarefas.Km certas práticas, são ajudados pelos laicos, escolhidosentre os notáveis da região.

Mas, paralelamente aos deveres quotidianos do cultodesempenhados pelas diferentes categorias de oficiantesque substituem o soberano esta função hierática, outrostrabalhos requerem arte, cuidados e qualidades inte-lectuais: a cópia e a redacção dos livros sagrados quese efectuam nas Casas de Vida. Estes institutos, pre-cursores dos scriptoría das nossas abadias medievais,formavam gerações de escribas que se treinavam nareprodução das composições profanas e religiosas dopassado, na compilação de novos documentos e pro-curavam nos arquivos sagrados receitas médicas, mági-

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26 DOMINIQUE VALBELLE

cãs e formulários astronómicos. Toda a espécie de sábiospor lá passavam. Não muito longe, no laboratório,outros especialistas inventavam ou fabricavam perfu-mes, unguentos e feitiços.

Próximos deste mundo secreto e, contudo, aparen-temente muito afastados dele pela natureza das suasactividades, os escritórios, os armazéns e as oficinas dotemplo fornecem uma imagem muito diferente. For-niam, porém, o suporte material indispensável. Osescri lórios «erem prioritariamente os interesses dodomínio divino, exploração de terras repartidas peloconjunto do país, reprodução dos rebanhos, concessõesmineiras, etc., e contabilizam as colheitas, o produtodas expedições e o espólio que os soberanos não deixamde trazer das campanhas militares no estrangeiro, paraglória do deus. Mas, assumem frequentemente tarefasq i h ' são, no essencial, da competência das instânciasgovernamentais, quo frequentemente ultrapassam, au-n i f i i i undo assim a sua influência. Vejam-se os grandesprocessos que: se seguiram aos retumbantes roubos detúmulos no fim da época dos Rameses e se desenrolaramno recinto do templo de Amon, em Carnac. O seupapel político crescente obriga constantemente os sobe-ranos a procurar, junto deles, a confirmação da sualegitimidade. Conservam arquivos de toda a espécie econservam depósitos de bens pertencentes à coroa, para-lelamente aos numerosos entrepostos e celeiros queencerram os produtos provenientes do domínio divino.Todavia, o Estado estipula um imposto sobre o con-junto dos bens de produção, que podem ser considerá-veis, se tivermos em conta, por exemplo, as doaçõesefectuadas por Ramsés III aos principais templos doEgipto.

Fora do templo, nas suas terras e dentro dos seusmuros, uma multidão de camponeses, operários, artí-fices e servidores empregam-se nas mesmas tarefas quenos domínios reais, produzem as mesmas espécies de

, 1 VIJ J/1 NO ANTIGO EGIPTO 27

a l imentos e de objectos manufacturados. As oficinasdo domínio di: Amon, no NOVO Impér io , eram tãoprestigiadas que :.;io numerosos o:; altos funcionários aíd i - h - i i . l n , i l ; ' , i i i i i . i responsabilidade q u e mandaram repro-i l n u i i , i s | ) . i i rdrs « I a sua capela funerária uma visão.l . 1 , 1 : , :n l i v i i l a d c . s . No tempo cie Ramsés III, o domíniodf Amon empregava mais de 100000 homens.

IV — O exército e a marinha

As estruturas precisas do exército são pouco conheci-das, em especial nas épocas mais antigas. Justapõem-selílnlos honoríficos e funções reais, sem que seja pos-sível reconstituir com segurança a hierarquia militar<|ue evocam. Assim, é essencialmente a partir de rela-tos autobiográficos de soldados e sobretudo de oficiais,que conseguimos adivinhar a sua importância na socie-dade e os períodos da vida que consideram dignos deinteresse.

No Antigo Império, não parece ter existido umexército permanente, a julgar pelo que nos diz umdirector dos empregados do palácio de Pépi I, Ouni:

«Sua Majestade rechaçou os Aamou que habitam-na-areia,upós o que Sua Majestade reuniu um exército muito numeroso(composto de povo) de todo o Alto Egipto, do sul de Elefantina:io norte da monarquia de Afroditopólis, do Baixo Egpito nas suasduas Administrações inteiras, das praças fortes de Sedjer e Khen-sedjcrou (?), de Núbios de Irtjet, de Medja, de Iam, de Ouaouati: de Kaaou, assim como de Líbios. Sua Majestade enviou-me à(Vente deste exército, enquanto os nomarcas, os tesoureiros do reii ID Baixo Egipto, os Amigos Únicos do Grande Castelo, os chefesi- 11;-, governadores de domínios do Alto e Baixo Egipto, os cor-i r : . : n > : ; directores de caravanas, os directores dos sacerdotes doA l i i i <• do Baixo Egipto e os directores das Administrações iam:i IVcnie dos contingentes do Alto e Baixo Egipto, dos domíniosc das cidades que governavam e dos Núbios dessas regiões.*

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28 DOMINIQUE VALBELLEl

Nenhum dos homens citados, tanto nas fileirascomo no comando, é um profissional da guerra. Seexceptuarmos o exército formado pelo rei em pessoa,para erradicar as pressões asiáticas sobre a fronteiraoriental do país, e confiado a Ouni, os outros exér-citos são formados e chefiados pelos responsáveisadministrativos, dos quais dependem habitualmente.Todos eles incluem já efectivos estrangeiros.

Kstu iniciativa da envergadura liberta um odor aimprovisação, como sugere a continuação do relato:

«Era eu que tomava as decisões, embora a minha funçãofosse a de director dos empregados do palácio real devido à cor-recção da minha conduta, de tal modo que nenhum (homem)me viesse às mãos (?) com o seu companheiro, que nenhum(homem) se apoderasse do pão ou das sandálias de alguém semser posto na rua, que nenhum (homem) roubasse vestuário na<-u1;uli: ou uma cabra ao dono. [...] Inspeccionava todos os con-í iu jmtcs ; nunca houvera inspecções feitas por outro inspector.»

Mais tarde, na x dinastia, o Enseignement pourMérikarê mostra os soldados entregues à pilhagem danecrópole tinita.

No Primeiro Período Intermédio, o recrutamentolocal pelos nomarcas prevalece sobre as iniciativas reais.O país encontra-se dividido em vários grupos de regiõescoligadas que se defrontam. A composição e o aspectodos exércitos são-nos revelados por modelos de madeira,protótipos dos nossos soldados de chumbo, expostosno túmulo de um nomarca de Assiut: duas secções de40 homens, Egípcios portadores de lanças e escudos eNúbios arqueiros. No Império Médio, é a formidávelcadeia de fortalezas da Segunda Catarata que nosinforma sobre o exército, sua organização e seus meios.As construções, em primeiro lugar, dão-nos uma ideiada arte das fortificações no fim do m milénio e dasdimensões consideráveis de certos aglomerados quealbergavam. Alguns papiros dizem-nos que compunham

A VIDA NO ANTIGO EGIPTO

um sistema defensivo coerente, sujeito a um comandounificado situado em Bouhen. A descoberta de umarsenal em Mirgissa permitiu formular uma avaliaçãocia guarnição regular: 70 homens armados, dos quais 35de piques e 35 de arcos. Números semelhantes foramavançados para outras praças fortes: entre 50 e 100homens.

Nos alvores da xviu dinastia, é um oficial naval,Ahmés, que nos fornece testemunhos mais directossobre a expulsão dos Hicsos e a conquista de Avaris,sua capital: exército e marinha fluvial estreitamenteinterdependentes, não podem ser dissociados e partici-pam nos combates de maneira coordenada. Como é evi-dente, o relato procura valorizar os feitos do autor e asrecompensas que obteve: o ouro «da valentia», terrasjunto à casa e os prisioneiros feitos. A lista nominativadestes prisioneiros, 9 homens e 10 mulheres, figuraem anexo, como título de propriedade sobre estesescravos.

Com as grandes campanhas na Ásia dos soberanosdo Novo Império, o exército assume importância eestrutura-se. Muitas vezes chefiado pelo próprio rei,leva à sua frente um general em chefe auxiliado portodo um estado-maior. Divide-se em vários corpos, pro-tegidos por um dos grandes deuses do país. Desde aintrodução, no Egipto, do cavalo e da roda, até aoSegundo Período Intermédio, é composto por duas gran-des armas: a infantaria, compreendendo companhias de200 ou 250 homens distribuídos por 4 ou 5 secções,e os carros. Com Ramsés IV, atinge-se o número de20 companhias, ou seja, 5 000 homens. Grandes textoshistóricos largamente difundidos pelo país pormenori-x n i n as subtilezas da arte estratégica egípcia. Os vestí-;>,ioi; de fundações militares reais — cavalariças, acam-pamentos, arsenais e depósitos de carros — são visíveisum pouco por toda a parte, e sobretuod em Tebas ei-m Pi-Ramsés. Constrói-se uma nova cadeia de forta-

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50 DOAÍINÍQUE VALBELLE

lezas, desta vez em direcção ao Próximo Oriente, nonorte da península do Sinai, assim como na fronteiralíbia, de forma mais modesta, porém. Verdadeiras pra-ças-fortes albergam colonos na Núbia. A marinhadesempenha um papel crescente: tanto no transportecias tropas em direcção aos portos da Síria e da Pales-tina, como nos combates contra os Povos do Mar.A proporção de mercenários estrangeiros, vindos deiodos os horizontes, aumenta constantemente e os tes-temunhos da sua integração no país, depois da desmo-bilização, são abundantes. Parecem adoptar os costumesegípcios, usam geralmente nomes egípcios que recordama sua origem ou a dos pais, mas introduzem novosdeuses, depressa venerados pelos Egípcios, que frequen-tam. A partir do reinado de Ramsés II, os antigoscombatentes vêem-se dotados de rendas e de terras.A. classu mili tar torna-se cada vez mais o instrumentodo poder. Assim, não deve surpreender-nos que, noíini da x vi u dinastia, um general se torne faraó.

O prestígio crescente do «uniforme» não deixa desuscitar, desde muito cedo, uma certa irritação entreoutras categorias de funcionários. A Sátira dos Ofícios,composição literária do Médio Império destinada avalorizar o ofício de escriba, em detrimento das pro-fissões manuais, inclui, a partir do Novo Império, asituação do soldado, que descreve de forma muito poucolisonjeira. Mas a obra, que também adverte os leitorescontra a situação dos sacerdotes, é um órgão de propa-ganda feito para confortar os futuros escribas na esco-lha da sua carreira. Não surpreende, pois, que contenhaepisódios deveras tendenciosos.

V — Os homens livres e os servos

Os quadros socioprofissionais até aqui apontadosreuniam a quase totalidade dos Egípcios. Contudo, antesde observar os homens no seu trabalho, importa pre-

1 VIDA NO ANTIGO EGIPTO 31

cisar, dentro dos limites do possível, a situação do povono seio da sociedade egípcia e os diferentes estatutosque ela encerra. O povo é, muitas vezes, a categoria maismal conhecida porque nos deixa vestígios insignificantesda sua existência. Indigente e analfabeto, desapareceem sepulturas rudimentares e anónimas e, sobretudo,não se retrata. Precisemos ainda que a demarcação entreaqueles que conseguem, a custo, passar à posteridadee aqueles que estão votados a soçobrar no esquecimentoé ténue e variável consoante as épocas e os seus impon-deráveis históricos. Assim, a modéstia das cabanas quehabitavam as comunidades obrigadas, devido às suasfunções, a permanecer no deserto, não impediu estasconstruções, muitas vezes feitas de pedra seca por faltade água, de resistir melhor ao tempo e à concentraçãourbana que as ricas moradias erguidas nos vales. Alémdisso, situada por definição no coração da vida activado país, esta mão-de-obra é a vedeta dos registos quechegaram até nós, sob a forma de avaliação global oude listas nominativas. É objecto de registos escrupulo-sos e de controlos frequentes. Numerosa, é igualmentemotivo de orgulho para os empregadores. Hábil e dedi-cada, aparece, por vezes, representada e nomeada aolado dos patrões, nas paredes dos túmulos.

O Antigo Império não nos legou, que se saiba,arquivos respeitantes à população trabalhadora queexecutou os grandes trabalhos da época: escavação darede de canais indispensável a uma agricultura organi-zada; construção dos grandes centros urbanos e daprimeira capital, Mênfis; edificação das pirâmides e dosseus complexos funerários. Camponeses e servidoresficaram ainda mais esquecidos. Apenas os prisioneirosde guerra conservaram, por diversas vezes, a sua ima-gem simbólica e os seus efectivos gravados na pedra.Não duvidamos de que estes homens e estas mulherestenham ido engrossar as hostes dos operários não espe-cializados e da criadagem egípcia.

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32 DOMINIQUE VALBELLEA VIDA NO ANTIGO EGIPTO 33

Com o Médio Império, a sorte dos mais desfavore-cidos é apaziguada por diversos decretos administrati-vos. Os trabalhadores manuais são afectados a umainstituição real, religiosa, uma municipalidade ou umparticular. Empregam-se ora nos campos, ora em gran-des estaleiros, conforme as estações do ano e as neces-sidades. Os empregadores enviam-nos frequentemente,para participarem na construção de um edifício públicoou religioso, de uma região para outra. A viagem épaga. Recebem rações de pão e cerveja das autoridadesadministrativas do estaleiro que os emprega. São desig-nados por várias palavras: rntt, mnyw e hsbw. A última,que significa «contados», insiste nos controlos de quesão alvo regularmente. Um serviço administrativo espe-cial geria esta mão-de-obra, sobre a qual não é, de modonenhum, possível afirmar se era livre ou servil.

Acontece o mesmo com uma categoria vasta e vagaque dá pelo nome de «servidores reais» (httiv nsw) eabrange todos os servidores do reino, dos mais distintosaos mais humildes. Estes são criados, operários ouartífices especializados. Podem igualmente ser enviadospara instituições e fundações variadas ou para casade simples particulares, por decisão do monarca, paraexecutarem uma tarefa que exija uma habilidade rara,por exemplo. A sua situação parece aproximar-se dados funcionários de hoje, provavelmente com poucamargem para recusar uma missão.

Uma terceira categoria é reconhecida pela palavrasmdt que parece caracterizar, na maior parte das vezes,grupos auxiliares em contextos variados: templos, insti-tuições reais, domínios diversos, etc. Susceptíveis desecundar simples operários, não parecem gozar de umestatuto social muito elevado. No Novo Império, con-tudo, passam desta situação à de operário, e inversa-mente, conforme a conjuntura, o que elimina qualquerpossibilidade de servidão.

Duas outras categorias estão, por seu lado, indubi-tavelmente privadas de liberdade: os prisioneiros deguerra, os prisioneiros de direito comum e suas famí-lias. Os primeiros podiam ser directamente atribuídosaos militares que os tivessem capturado, como se viuno caso de Ahrnés, no início da xvm dinastia, ou envia-dos para os serviços encarregados da distribuição demão-de-obra, verdadeiro «gabinete de colocações».Quanto aos trabalhadores que fugissem do emprego, atoda a espécie de desertores, aos infractores, devedoresrecalcitrantes, ladrões ou criminosos, eram encarcerados,após julgamento, na «Grande Prisão» e reduzidos a umestado muito próximo da escravatura, pois podiam serlegados por herança, cedidos ou vendidos. Arrastavamna desgraça a própria família e, quando possuíam ser-viçais, estes eram confiados a outros empregadores.O pessoal afectado a um amo ou por ele adquirido éobjecto de um registo rigoroso que compreende o nome,o sexo, o apelido, a idade aproximada — criança, ado-lescente, adulto ou ancião —, por vezes a origem ou aespecialidade, tudo isto depois da enumeração dos mem-bros da família.

Os arquivos do Novo Império são menos explícitosno que respeita a esta mão-de-obra servil porque a:;ituação parece ter evoluído consideravelmente, sem queo sistema institucional tenha sido profundamente modi-1'icado. Gerações de antigos prisioneiros de guerrafiicontram-se agora integrados na população activa empostos mais ou menos elevados, enquanto novos pri-.'.ioneiros afluem às centenas após vitoriosas campanhas.< >iitros são oferecidos como tributo pelos países subme-lidos à hegemonia faraónica. Os campos são cultivados|ior camponeses cuja sorte nem sempre parece invejá-vel , mas que beneficiam claramente de mais liberdade.• >;; monumentos são construídos por operários funcioná-rios cujo estatuto em nada parece comparável ao dostntbclbâdores manuais do Império Médio. Pelo con-

HAIIKH 2M — 3

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DOMÍNJQUE VALBELLE

trário, os textos referentes ?. venda, à posse ou à doaçãode escravos (hm/hmt, b3kjb3kt) não são raros, mesmoem contextos operários. Os trabalhos forçados conti-nuam a existir, no quadro de instituições governa-mentais ou particulares, e são desempenhados pordelinquentes. Quanto aos empregados do Faraó quetrabalham nos seus domínios ou nos dos templos, nuncaforam tão numerosos. CAPÍTULO II

A OCUPAÇÃO DO TEMPO

Os Egípcios não escreveram diários íntimos, peloque se torna, muitas vezes, difícil reconstituir a sua vidaquotidiana. Contudo, alguns quadros profissionais, tem-plos e estaleiros, conservaram horários de serviço enotas tão completas e regulares sobre o avanço dosi rabalhos, os abastecimentos, as ausências e seus moti-vos, bem como toda a espécie de contabilidade, que épossível seguir um sacerdote ou um operário quasedesde que acorda até que se deita. As informaçõesivcolhidas deveriam limitar-se às actividades profissio-nais. Mas, os Egípcios não separam em nada a vidaprofissional da vida social e familiar. Assim, encon-iram-se, por vezes, nos registos administrativos, algu-mas indicações de ordem puramente privada que per-mitem situar os diferentes aspectos da vida quotidianaHns em relação aos outros. Já o mesmo não acontece

i > in as outras categorias socioprofissionais. Muitas•.vxes, temos de nos contentar com a natureza das tare-l . i ; ; que determinado homem desempenhou em dadomomento da sua existência. E já não é mau. Mesmo' i u 11 lacunas e tendenciosos, os relatos autobiográficos

-ccm ciados suficientes para reconstituir as obriga-de uma função ou as etapas de uma carreira. As

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36 DOMINÍQUE VALBELLE

composições literárias também descrevem, por vezes, ede maneira mais pitoresca, o dia a dia das suas perso-nagens. Outros textos, mais oficiais, enumeram os car-gos dos mais altos dignitários do Estado e informam--nos sobre o protocolo respeitado.

I — O rei e o seu vizir

O Faraó, filho e herdeiro dos deuses, destinadoa regressar ao seio destes depois da morte, é um serúnico e essencial, responsável pela vida, a alimentação,a paz e a harmonia do seu reino. Resume as qualidadese os poderes indispensáveis à vida dos súbditos. As suasprerrogativas são, pois, de ordem simultaneamenteritual e material. A sua imagem, porém, transforma-seconsoante as modalidades do governo, os sucessos e osfracassos da sua política. Primeiro pontífice e detentordo princípio monárquico por essência, é também homemde Estado e combatente.

No Antigo Império, o cerimonial que preside àhigiene do rei inspirou necessariamente os ritos prati-cados nas estátuas e no templo funerário, depois da suamorte. Constituem, pois, um reflexo simplificado quea representação do despertar de um cortesão, Ptahhotep,no seu próprio túmulo, vem confirmar. Compara-sehabitualmente, e com razão, esta cena com a que sedesenrolava, todas as manhas, na corte de Versalhes.Os anais dos reis da época conservaram, ano após ano,os acontecimentos considerados marcantes: jubileus eoutras festas relacionadas com a função monárquica,fundações, doações e oferendas piedosas, construçãode capelas, palácios, fortalezas, fabrico de estátuas ebarcas divinas ou reais, recenseamentos, importações,campanhas militares, avaliação de prisioneiros e deespólios precedem, conforme as circunstâncias, a men-ção do nível das águas de que dependem as colheitas.

l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 37

As preocupações dos soberanos repartem-se pelas mani-festações simbólicas da realeza, as demonstrações depiedade, a gestão económica do país e a defesa dasfronteiras. A vontade do rei exprime-se em decretos ecin cartas reproduzidos em esteias ou nas paredes dostúmulos dos cortesãos. Djéser e Nébka, Snéfru e ossucessores da iv dinastia, Quéops e Quéfren, torna-nim-se personagens literárias: procuram divertimentosmais ou menos intelectuais. A Profecia de Nefertite,Icita a posteriori^ no Império Médio, fornece-nos umresumo da etiqueta na corte:

«Ora, aconteceu, no tempo em que Sua Majestade o reiStnííru. justificado, era o rei benfeitor de todo o país, num desseslias (portanto), aconteceu que os funcionários da corte entraram10 pnlácio —vida, saúde, força.— para fazer as usuais saudações;!i.-pois de faxcrem as saudações saíram, como era hábito de cadal ia . E Sua Majestade —vida, saúde, força— disse ao tesoureiro,|ne se encontrava perto: "Vai e traz-me os funcionários da corteiue saíram daqui (onde tinham estado) para fazerem as saudaçõesIo dia." Foram imediatamente reconduzidos a Sua Majestade.

Kntão, deitaram-se de novo diante de Sua Majestade...» (Romansi-t contes égyptiens, tradução de G. Lefebvre, Paris, 1949,[.[ '• S6-97.)

O Conto de Sinouhé que, desta vez, apresenta umi dato contemporâneo da xn dinastia, é um pouco maispreciso:

«Dez homens vieram e dez homens foram, conduzindo-me. M I palácio. Eu tocava com a cabeça no solo, entre as esfinges;M crianças reais encontravam-se à porta da entrada, à minha.';p"ra. Os Amigos, que já "tinham sido introduzidos no átrio,ipnntíiram-me o caminho dos aposentos privados. Encontrei SuaMajestade num trono de prata e ouro (colocado) num nicho.( .>uundo me deitei de rastos no chão, perdi os sentidos, na suapresença.» (Segundo G. Lefebvre, op. c/í., p. 21.)

Os soberanos do Império Médio passaram à poste-i i« l ade com uma imagem de pessoas avisadas, dotadas<Ic qualidades morais, autores verdadeiros ou fictícios

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38DOMÍNIQUE VylLBELLE

de conhecimentos destinados aos herdeiros e, atravésdeles, a todo o país.

Do Novo Império, fica-nos sobretudo a imagem defaraós chefes de exércitos, aureolados de glória, à frentede tropas vitorianas, oferecendo aos deuses as riquezasdos países conquistados, recebendo os tributos dos seusvizinhos subjugados ou distribuindo, com grande pompa,recompensas generosas aos melhores servidores doEstado. Muitos deles foram também legisladores:Horemhed, Séti I, Ramsés II celebrizaram-se pelassuas reformas. Amenófis IV, por fim, tornou-se ilustre,em particular, pelas suas concepções naturistas queinfluenciaram profundamente as mentalidades, a artee a literatura religiosa no fim da xvin dinastia.

O papel do vizir e dos altos funcionários está tãoestreitamente ligado ao do soberano no governo dopaís que nem sempre é fácil adivinhar, na ausênciade uma autobiografia precisa, as responsabilidades decada um. As funções do vizir, que correspondem às deprimeiro-ministro, isto é, do chefe do executivo, estãocomprovadas desde a iv dinastia, o que não significaque não possam ter existido antes. No Novo Império,quando os cargos que comporta se tornam demasiadopesados, o vizir desdobra-se em dois, um opera nonorte, enquanto o colega se consagra ao sul. Garantesdo bom andamento do reino, os vizires são escolhidospelo soberano entre os seus íntimos, ou mesmo naprópria família. Muitos textos biográficos louvam osméritos e os feitos de vizires defuntos, mas o túmulode Rekhmirê, colaborador de Tutmés III e dos seussucessores, foi o único que conservou simultaneamentea cena de intronização e o discurso que o monarca pro-nunciou por essa ocasião, uma exposição pormenorizadados deveres originados por essa posição de primeiroplano e a representação comentada das principais activi-dades que encerra.

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As audiências que se realizam quotidianamente nosseus aposentos, quando reside na capital, cumprem umprotocolo imutável:

«Está sentado numa cadeira, um tapete (estendido) no chão,um dossel (colocado) por cima da sua cabeça, uma almofada decouro no assento, outra aos pés, [...], uma bengala na mão,quarenta pergaminhos desdobrados à sua frente; os grandes dasdezenas do Sul (permanecem) de cada um dos lados, à sua frente,o camarista à direita., o encarregado dos rendimentos à esquerda,os escribas do vizir ao alcance da mão, um susceptível de corres-ponder com o outro (?), cada um no lugar conveniente. Todossão ouvidos, chegada a sua vez, sem permitir que quem quer queseja passe à frente do que tem direito a precedência...»

Em primeiro lugar, são-lhe entregues as chaves dos cofres--fortes a fim de que possa proceder à sua abertura. Em seguida,informa-se sobre a situação das fortalezas do Norte e do Sul.As despesas e os rendimentos do Domínio Real e das terras daResidência são-lhe comunicados. Os chefes da polícia e os direc-tores dos distritos submetem-lhe os seus relatórios. Depois disto,dirige-se ao palácio para cumprimentar Sua Majestade e avistar-secom o chanceler para se assegurar das medidas de segurançabiquotidianas respeitantes à abertura de todas as portas do Domí-nio Real. O dia de trabalho está agora a começar.

Só ele tem competência para julgar os altos funcionáriosacusados pelos colegas e para resolver os litígios internos doDomínio Real. Qualquer funcionário, do mais importante ao maishumilde, pode pedir-lhe conselhos. É ele que regista os legados,os actos de venda ou de partilha. Examina os pedidos relativosà exploração de terras. Manda abater árvores no Domínio Real,quando necessário. Decide quanto à construção de diques, man-tém-se ao corrente do estado da rede hidrográfica e zela pela boadistribuição da água através dos campos, dá instruções aosnomarcas e chefes de domínios, no momento das colheitas.Decide quanto aos limites dos distritos agrícolas de cada nomoe quanto aos prados de cada zona de pastagem (?). Anuncia achegada das cheias que marcam o início do ano, depois de terobservado o aparecimento da estrela Sirius. Ordena os impostosque lhe são entregues com grande pompa pelos representantesde todo q Egipto e recebe os tributários dos países do império.Nomeia os funcionários, manda proceder ao recrutamento detropas para a escolta do rei, envia mensageiros aos responsáveislocais para execução dos decretos reais e comunica as instruçõesao estado-maior do exército.

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Como é evidente, estes assuntos não são tratadostodos no mesmo dia, mas ao longo do ano. Trata-se,porém, de um breve resumo das responsabilidades assu-midas pela personagem. Outras cenas do seu própriotúmulo mostram-no ainda a inspeccionar os armazénse as oficinas do domínio de Amon. Além disso, sabe-seque se ocupava pessoalmente da preparação da sepul-tura do soberano e do andamento dos grandes estaleirosreais. Assiste às cerimónias monárquicas mais impor-tantes e participa nas principais festas religiosas, etc.Assim, compreende-se facilmente a necessidade de umavasta administração de engrenagens múltiplas para osecundar.

II — Os funcionários

Não cabe nesta obra a enumeração, mesmo resu-mida, dos cargos mais representativos exercidos pelaadministração central e pela administração provincial.Bastar-se-á dar a palavra, por alguns instantes, a umalto funcionário da vi dinastia, promovido a nomarcae director do Sul e, em seguida, debruçarmo-nos sobrea engrenagem administrativa essencial, o escriba, paraavaliarmos uma ínfima parte da extensão das tarefasdesta função pública tão minuciosamente organizadaque sobreviveu às crises monárquicas e às invasões maisseveras.

O director dos empregados do palácio, Ouni, quejá encontrámos devido às responsabilidades excepcio-nais que lhe confiou Pépi I na chefia do exército, con-ta-nos, de história em história, os mais notáveis episó-dios da sua carreira de cortesão:

«Eu era (ainda) uma criança de olhos vendados, no reinadode Téti, e já exercia funções de chefe de entreposto; fui nomeadodirector dos empregados da Casa Grande [...] sacerdote--leitor mais antigo do palácio primordial, no reinado de Pépi.

i VIDA NO ANTIGO EGIPTO 41

Sim Majestade nomeou-me para o cargo de Amigo, director dosprofetas da cidade da pirâmide. [...Sua Majestade nomeou-me]magistrado da cidade de Nekhen, (porque) tinha mais confiança'•m mim do que em qualquer dos seus servidores. Juntamentei < >m o vizir, julgava os assuntos mais secretos e os que impli-'•avam o nome do rei, do harém real e do Tribunal dos Seis [...]Knquanto fui magistrado da cidade de Nekhen, Sua Majestadenomeou-me Amigo Único, director dos empregados da Casa(.irande [...]. Houve um processo secreto no harém real contraa esposa real, grande favorita. Sua Majestade permitiu que eululgasse o caso sozinho, sem nenhum magistrado, vizir ou notávelalém de mim [...].»

É aqui que intervém o episódio, já apontado (p. 27),que apresenta Ouni à frente do exército constituídopara rechaçar os invasores vindos da Ásia. Perante talsucesso, Ouni é novamente encarregado por Pépi I dereunir, por cinco vezes, tropas para combater os mes-mos inimigos e de as conduzir, em pessoa, a uma vitóriadefinitiva. De regresso à corte, novas tarefas o espe-ravam:

«Quando era oficial do Grande Castelo, porta-sandálias, o reido Alto e Baixo Egipto Mérenrê, meu senhor —que viva eter-namente! — nomeou-me nomarca, director do Alto Egipto, do:-nl de Elefantina ao norte de Afroditopólis [...] Todo o tra-balho foi cumprido, todas as possessões da Residência devendo:.cr inventariadas no Alto Egipto, foram inventariadas no Altoií;;ipto, duas vezes. Formou-se um conselho e foi um sucesso noAlto Egipto [...] Sua Majestade enviou-me a Ibhat para recolher.1 sepultura dos vivos «Senhor da Vida», com a tampa e a pirâ-mide quadrangular preciosa e augusta destinada à pirâmide•••Mérenrê surge na (sua) perfeição», minha soberana. Sua Majes-i.ide enviou-me a Elefantina para trazer a porta secreta de granitoc o seu umbral, os rastrilhos e os lintéis de granito, para trazeras portas e as lajes de granito da parte superior da pirâmide(Mérenrê surge na (sua) perfeição», em seis lanchões, três barcosi vela e três botes... (?), numa só expedição [...] Sua Majestade

i nviou-me a Hatnoub para trazer uma grande mesa de oferendas' ! > • alabastro de Hatnoub [...] Sua Majestade mandou-me escavar• n u o canais no Alto Egipto e construir três jangadas e quatrol un-ns à vela em acácia de Ouauoat, enquando os príncipes

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estrangeiros de Irtjet, Uoaouat. Iam e Medja forneciam a madeiranecessária [...]» (Segundo A. Roccati, La littérature historiquesous 1'Ancien Empire, Paris, 1982, pp. 191-197.)

Ao longo da sua carreira, Ouni assume sucessiva-mente, ou simultaneamente, responsabilidades adminis-trativas no seio do palácio, judiciárias na província, emais tarde também na corte, militares e novamenteadministrativas, mas, desta vez, num plano mais ele-vado, já que é colaborador directo do rei e do vi/irem todo o sul do país, antes de ser encarregado demissões de confiança respeitantes ao ordenamento dasepultura do último dos quatro soberanos que serviu.

A formação dos escribas compreende a cópia detextos de propaganda, cartas-modelo e contabilidades--tipo, reunidas em colectâneas. No Novo Império, cer-tas composições inspiradas na Sátira dos Ofícios pros-seguem a sua difusão, renovando-lhe parcialmente ainspiração. A insistência com que procuram desencorajaros jovens que aspiram a outras profissões ou os escribastentados por uma reconversão acaba por se tornarsuspeita, tanto mais que outro tema literário, visivel-mente muito generalizado, consistia em cartas fictíciasde exortação enviadas a escribas preguiçosos.

A forma mais tradicional do género começa pelainjunção: «Sê um escriba!», seguida de uma longa epormenorizada lista dos males que espreitam os jovensque cometam a imprudência de fazer outra opção.Estão, pois, em causa todas as profissões possíveis eimaginárias, com excepção da de escriba. Uma versãomais subtil limita-se a sublinhar, de forma geral, as van-tagens de ser escriba para aqueles que apresentam umaconstituição delicada:

«Sê um escriba, o teu corpo é delicado e o teu braço cansa-se(rapidamente); não te consumas como uma vela seguindo o exem-plo daqueles cujo corpo perdeu (toda) a força, pois não tens

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ossos de trabalhador; és alto e magro. Se puxares ou carregaresum fardo, desfalecerás, etc.»

enquanto outras versões se baseiam mais directamentenas vantagens materiais e nas prerrogativas da pro-fissão:

«Quero aconselhar-te no plano intelectual e no plano físico,para que (saibas) manejar a paleta com facilidade, que obtenhasa .confiança do rei, que tenhas acesso aos arquivos e aos celeiros,que (sejas capaz) de receber o trigo à entrada do celeiro e queestejas em condições de proceder à oferenda divina nos dias defesta, (bem) vestido e munido de cavalos, enquanto a barca teespera no rio; serás acompanhado por uma escolta e livre decircular à tua vontade, por ocasião das tuas inspecções. Disporásde uma casa na cidade e o soberano conceder-te-á um postoimportante; estarás rodeado de servidores e de criados e os quevivem no campo, nas terras que mandaste cultivar, quererãoapertar-te a mão. Olha, faço de ti um auxiliar de vida. Regista(bem) os escritos, de modo a evitares imposições e a tornares-teum excelente magistrado [...].»

As funções do escriba são extremamente variadasconsoante o serviço público ou privado que o emprega.Pode ser fixado na cidade ou conduzido ao campo,mantido no seio de uma instituição ou afectado a uma«uarnição distante. Comportam, porém, na maior parte(Ias vezes, responsabilidades de importância variável« l u e o colocam numa posição fora do comum e sugeremlioas perspectivas para o futuro: «todos procuram ele-var-se». Saber ler, escrever e contar, conhecer as leis,confere um indiscutível poder sobre uma população em!>nmde parte analfabeta. Ora, não é necessário pertencer-.\a sociedade egípcia para ser escriba. Assim, nãoé raro, ao percorrer árvores genealógicas, encontrarverdadeiras «dinastias» de escribas, como a que redigiu<>•, arquivos do «Grande e Nobre Túmulo de Milhões• l - Anos de Faraó», do ano 16 de Ramsés III até aomo 20 de Amenemope, isto é, durante cento e cin-

• | U f i i i : i anos, aproximadamente.

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44 DOMÍNÍQUE VALBELLE

Sete homens se sucederam neste posto que consistiu, en-quanto o governo conseguiu mater a calma e uma prosperidaderelativa no país, em elaborar um rol extremamente minuciosodos homens empregados na fundação real, do andamento dos seustrabalhos, dos materiais entregues e utilizados no estaleiro, dosinstrumentos, dos salários pagos em cereais todos os meses pelosserviços centrais e das actas jurídicas estabelecidas na aldeia deDeir el-Mcdineh, onde habitavam os homens e os chefes de queo escriba fazia parte. Este era ajudado na sua tarefa por doisoutros escribas encarregados dos auxiliares da equipa (smdt)c do abastecimento quotidiano que estes forneciam. Mas, a cor-respondência com o vixir, excepcionalmente com o soberano,e com as autoridades regionais, assim como os relatórios eoutros documentos oficiais eram apanágio apenas do «escribado Túmulo». Quando as greves agitaram a comunidade operária,cada vez mais frequentemente privada de salários, foi ele queconduziu as negociações. Mais tarde, quando bandos armados, emnúmero crescente, começaram a devastar os campos e a adminis-tração central, ocupada em tarefas de primeira necessidade, pre-cisou de mais pessoal, o escriba do Túmulo foi substituir, deinício localmente, depois regionalmente, as autoridades assober-badas. Refugiado, com uma equipa reduzida, dentro das muralhasfortificadas do templo funerário de Ramsés III. que se tornarao centro administrativo governamental da região, é aí que instalaum gabinete digno das suas novas funções, que consistiam essen-cialmente em percorrer as aldeias e os domínios de todo o suldo país a fim de cobrar os impostos necessários ao funcionamentodas instituições tebanas e, em particular, aos salários dos funcio-nários. Um deles tornou-se mesmo, contra sua vontade, pois a suacorrespondência insiste frequentemente no seu horror às viagens,encarregado de missões importantes que o levaram ao MédioEgipto e à Núbia, onde o exército egípcio defendia com dificul-dade a fronteira sul do país.

III — Os operários e os artífices

A distinção entre operário especializado, artíficee artista não tinha existência institucional. Algumasprofissões, mais do que outras, permitam que aqueksque as exercessem mostrassem as suas habilidades outalentos. Se trabalhassem na corte, numa oficina ou

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num estaleiro pelo qual o rei revelasse um interesseparticular, tinham a possibilidade de ser notados, recom-pensados ou promovidos. Foi assim que Méréptahaukh-mérirê, dito Nakhébou, passou, de simples pedreiro quefora nos primeiros tempos, a arquitecto preferido dePépi I:

«Sua Majestade conheceu-me como pedreiro e Sua Majestadenomeou-me inspector dos pedreiros, director dos pedreiros edirector do ofício; Sua Majestade nomeou-me carpinteiro e pe-dreiro do rei; Sua Majestade nomeou-me Amigo Tjnico, carpin-teiro e pedreiro do rei nas duas Administrações [...] Enquantoestive com o meu irmão, o director dos trabalhos... escreviae usava a sua tabuinha; quando ele foi nomeado inspector dospedreiros, eu usava a sua régua (?); quando foi nomeado direc-tor dos pedreiros, eu era o seu terceiro (companheiro); quandofoi nomeado carpinteiro e pedreiro do rei, eu dirigi o domíniocm sua substituição e tudo foi perfeitamente executado; quandoele foi nomeado Amigo Onico, carpinteiro e pedreiro do rei nasduas Administrações, eu fazia as contas de todas as suas pos-sessões. Os bens que se encontravam na sua casa aumentaramtanto como na casa de qualquer notável. Quando foi nomeadodirector dos trabalhos, eu substituí-o em todos os seus negócios,para sua grande satisfação. Assim, geri o seu domínio funeráriodurante vinte anos [...] Sua Majestade mandou-me dirigir...Procedi de modo a satisfazer Sua Majestade no Alto e no Baixo1'fiipto; Sua Majestade mandou-me dirigir o traçado (?) do canali k: Kémis de Hórus e a sua escavação. Mandei-o escavar no espaçoi le três... (?), a fim de regressar à Residência quando (já) esti-vesse cheio de água [...].» (Segundo A. Roccati, op. cit.,l .p. 182-186.)

Nakhébu, depois de ter feito a aprendizagem do ofí-i io de pedreiro e de carpinteiro juntamente com o irmão,r.cre os bens deste, que se encontra demasiado ocupadol cuidar de si mesmo. Em seguida, percorre o caminho• Io irmão mais velho, subindo um a um os degraus dai > n > í i : ; s ã o . As suas encomendas incluem tanto a cons-ttuçSo de edifícios, incluindo as estruturas, como a esca-

!• . M I de canais. A sua promoção é, sem dúvida, espec-i • n l . i r uvas, encarada no contexto familiar que ele

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DOMÍNIQUE VALBELLE

descreve, não implica realmente uma promoção socialequivalente. Mesmo tendo começado na profissão comosimples pedreiro, Nakhébu nunca parece ter sido umproletário.

Na verdade, a família constitui um factor importantena orientação dos jovens, que deviam iniciar muito cedouma aprendizagem. O pai e os irmãos iniciam os ado-lescentes no seu próprio ofício. Só aqueles que nãoconseguem empregar-se na mesma instituição, na mesmaoficina, procuram trabalho fora.

As biografias, gravadas ou pintadas em túmulos, queapresentam já uma certa importância, dizem respeito,por definição, apenas à classe mais abastada. Não deve-mos esperar, portanto, que este género literário nosinforme sobre as camadas mais modestas da população.Na maior parte das vezes, estas contentam-se em assi-nalar, nos seus monumentos, as funções que exercerameles próprios e os familiares. Excepcionalmente, fazem-serepresentar na obra de arte, mas é mais corrente encon-trá-las anonimamente entre os companheiros de trabalho,na evocação de um estaleiro ou de uma oficina, notúmulo do alto funcionário responsável. É, portanto,graças aos arquivos que podemos reconstituir, de restomuito facilmente, o dia de trabalho de um operário.Embora esta reconstituição não abranja nenhuma comu-nidade para além da dos homens do Túmulo, empre-gados que os reis do Novo Império entretinham prin-cipalmente a escavar e decorar os seus hipogeus noVale dos Reis, em Tebas.

Trata-se de simples operários. Os seus chefes, osescribas, tiveram a mesma origem, antes de mandaremneles, sucedendo habitualmente aos pais nos mesmos car-gos, mas estas famílias encontram-se firmemente instala-das naquilo que se nos revela como uma sinecura, setivermos como referência as outras comunidades operá-rias de que a história do Egipto nos deixou testemunhossuficientes para que a comparação possa ser feita. Ponha-

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mós de lado os dias de festa em que toda a equipa sedirige, com mulheres e filhos, a caminho do cortejo paraobservar a barca sagrada e os oficiais que vieram propo-sitadamente para o efeito, os dias em que celebram assuas próprias cerimónias religiosas, aqueles em que ovizir honra o estaleiro com a sua presença, aqueles emque a comunidade acompanha um dos seus à últimamorada, ou ainda todos aqueles durante os quais decidemfazer greve, ocupar o local de trabalho ou m?.nifestar-sejunto dos templos funerários da margem oeste, quandoas suas rações de trigo e de aveia tardam a ser distri-buídas.

Consideremos um dia normal de trabalho. O soberano ouo vizir veio à necrópole escolher o local mais propício para oordenamento do túmulo. O plano do túmulo foi elaborado poruma pequena comissão de notáveis e pelos superiores da equipa.O traçado de vários corredores e salas, durante o qual apenasmetade da equipa podia intervir ao mesmo tempo, está terminado.0 campo está livre para os especialistas. Os homens abandonam:i aldeia de madrugada. Têm à sua frente oito horas de labor:i realizar. Percorrem o carreiro que os leva, à beira das falésiasi l < : greda, até ao colo que domina o Vale dos Reis. É aí que, nascabanas de pedra seca que construíram para as ocasiões em quenão regressam à aldeia, depositam a refeição do meio-dia. Dei-•:am-se escorregar ao longo do caminho a pique que conduz aosestaleiros. Os porteiros., que asseguraram a guarda do cofre-forte< ide se alinham os materiais indispensáveis à construção das1 i redes do futuro túmulo, cumprimentam-nos friamente, interro-1 indo-os sobre os seus substitutos. Pode começar a chamada.! : o escriba estiver ocupado, far-se-á mais tarde. O contingentel ii-cce reduzido, hoje de manhã. Amennakht partiu para um valedistante, juntamente com Pached, em busca de gesso, a fim del.ihricar a massa que cobrirá as irregularidades da rocha. Neferren-| n - r já se ausentou para beber um pouco de água. Quanto a'irmiedjem e a Ramosé, deviam ter ido visitar o tio, gravementei l u i i M o , a uma aldeia próxima. Pavamessu espera o nascimento.('• mn filho e Amenhotep está a cuidar da infecção que Pakharu• M I i im i t i nos olhos. Nakhy e Kenherkhepechef arranjaram maneira• ! ICT mordidos por um escorpião, enquanto Inherkhaou fabricaervcjt, na companhia de Kenna, tendo em vista a festa de

M. H V>IT, a deusa da elite tebana. Doze ausentes em sessenta:UM '" muito mau!

l

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48 DOMÍNÍQUE VALBELLE

Vão-se buscar os sacos que servirão para despejar os detritose as mechas dos candeeiros que o estaleiro, cada vez mais àsescuras à medida que os trabalhos avançam, consome enorme-mente. Todos pegam nos seus instrumentos, verificando o seuestado com inquietação, pois terão de os restituir, terminadoo trabalho, ao escriba que comparará o seu peso com o de umapedra padrão, na qual estão escritas todas as informações neces-sárias ao controlo. Finalmente, os presentes estão prontos paracomeçar a trabalhar. A escultura de uma parede está quase termi-nada; pode dar-se início à coloração. Os pintores trituram e mis-turam os pigmentos que foram buscar à montanha, nos dias pre-cedentes. Em frente, um escultor, com a ajuda de um pequenocinzel de cobre, talha na superfície polida, com muita arte,silhuetas traçadas por um desenhador em ocre vermelho e queurn trabalhador mais velho, um chefe de equipa ou o escribacorrigiram a negro. Corredores profundamente escavados na mon-tanha, ouvem-se as pancadas das grandes picaretas de bronzedespedaçando a rocha que os menos qualificados e os aprendizesrecolhem nos sacos que, em seguida, despejam no exterior. Aí, nãolonge da porta, outro desenhador ensaia uma composição parauma cena funerária que será reproduzida e aumentada numasuperfície em preparação. O desenhador passa a ponta amassadada cana de bambu pelos pedaços de rocha mais regulares, queanteriormente seleccionou. Perto dele, o filho mais velho e osobrinho entretêm-se a garatujar figuras imitando as do dese-nhador. Mais adiante, num abrigo da rocha, confortavelmenteordenado, o escriba bem instalado toma nota, em pedaços decalcário, dos progressos do estaleiro, notas estas que mais tardecopiará para o diário do Túmulo. Interrompe o trabalho a meloda manhã para receber um carregamento de mechas entrançadase de óleo iluminante e elabora imediatamente o inventário.

O trabalho termina ao meio-dia. Os homens, que há muitonão saíam para o exterior, piscam os olhos sob influência da luzque se reflecte por todo o vale desértico e tórrido. Partem emgrupos, uns para as instalações de lazer do desfiladeiro, outros,mais selvagens, para os refúgios que eles próprios escolherame nos quais gravaram os nomes. Depois de terem comido e des-cansado, a maior parte dos homens regressa ao estaleiro para ter-minar o trabalho previsto para o dia. Contudo, dois responsáveisescolhidos na equipa partem para a aldeia para assistirem, nacompanhia de dois escribas encarregados do abastecimento, à che-gada dos peixeiros e dos vendedores que fornecem regularmenteà aldeia os produtos frescos. Em certos dias, os homens deserviço estão ocupados de manhã à noite com a recepção dosgéneros e sua distribuição pela população, minuciosamente orga-

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i lixada e registada pelos escribas para evitar as contestações quesurgem tão facilmente neste universo fechado. Quando se instalaum litígio, ou é apresentada uma queixa junto dos chefes, umtribunal constituído por homens e, ocasionalmente, por mulheresda comunidade reúne-se e julga a questão. Se o julgamento deixaras partes insatisfeitas ou se não for respeitado, resta o recursono oráculo do santo patrono da aldeia, o rei divinizado Ame-nófis I. Os casos que ultrapassem o estrito quadro da aldeia sãoda competência de tribunais regionais mais importantes, comoaconteceu com as célebres pilhagens dos túmulos reais no fimc In época dos Rameses, nas quais os operários do Túmulo esti-veram repetidamente implicados.

A escavação da rede subterrânea do túmulo real raramentesi: prolonga por mais de dois anos, depois dos quais só os escul-lores, os desenhadores e os pintores prosseguem os seus trabalhos.\o poderá estar terminada ao cabo de mais dois anos.(lortos reinados foram breves e os estaleiros, sucedendo-se a umr i tmo demasiado rápido, permaneceram muitas vezes inacabados.Acontece, porém, que a equipa, que oscila habitualmente entre•10 e 60 membros, seja seriamente reforçada, em caso de necessi-dade, ou mesmo redobrada. A frequência das ausências indivi-duais e colectivas da equipa, as múltiplas encomendas que escribase operários executam em seu benefício pessoal —estátuas, sarcó-fagos pintados, Livros dos Mortos, etc.— não sugerem cadênciasinfernais. É verdade que uma equipa pouco ocupada pode sern i i l i z a d a em tarefas artesanais da mesma região, mas estes tra-l ia lhos extraordinários também são ocasião de recompensas suple-mentares.

IV — Os camponeses

O mundo camponês, no Egipto faraónico, é objectode n m curioso paradoxo: evidenciado em todas as evo-• H - l i e s funerárias do mundo dos vivos, nem por isso• l ' i::a de ser marginal numa economia que, no entanto,• essencialmente agrícola. As representações dos túmulos

> produzem constantemente cenas de cultura das terras,• • ' H i r i i a s e criação de animais. De campo em campo,

i i i se os homens conduzindo as charruas puxadas por• l"!-; bois, lançando as sementes que em seguida serãoi" . i ' l : i s poios burros para que se enterrem bem, colhendo

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o linho ou arrancando cebolas. Os pomares são percor-ridos por regos destinados à irrigação e que desenhamuma espécie de quadrícula regular onde crescem legumese flores que os jardineiros regam cuidadosamente. Nospomares, alinham-se palmeiras e árvores de frutos detoda a espécie. Mais adiante, a vinha em latadas. Ospântanos do norte do país são mais propícios à criaçãode gado grosso que os boieiros conduzem às pastagens,fazendo-os atravessar os cursos de água abundantes empeixes que alagam os campos. Nas margens, homenscompõem molhos de bambu que outros transportam àscostas. Nas zonas mais húmidas, apanham-se com uma irede pássaros que depois serão criados nas quintas.No sul, nas franjas desérticas do vale, pastores vigiam 1os rebanhos de cabras e carneiros.

O Verão e as colheitas constituem um tema de inú-meras variantes. Cereais, sementes, frutos e legumessão empilhados ou directamente colocados em cestos.Molham-se os cereais, enquanto os burros, transportandopesados fardos, se dirigem para os celeiros. Debaixo dospórticos dos pátios das quintas, ou nos telhados dos silos,os escribas do domínio aguardam a chegada dos produtos,que avaliam em alqueires antes de serem armazenados.Os estábulos são mais frequentemente evocados pelosmodelos do Primeiro Período Intermédio e do ImpérioMédio do que nas paredes das capelas, enquanto a con-tagem dos rebanhos constitui igualmente uma cena favo-rita dos lapicidas e dos pintores que parecem clivertir-secom as sovas que os camponeses recebem se não estive-rem em regra, no dia de prestar contas. Estas servempara calcular o imposto anual, variável consoante ascolheitas, que equipas de cobradores virão recolher, emdata aprazada. Nos galinheiros, jovens empregados lan-çam revoadas de grãos. As aves mais pequenas abrigam--se em gaiolas, enquanto as aves pernaltas são alimen-tadas em recintos murados. Mais afastado, o apicultorafadiga-se em volta das colmeias. Os produtos da quint»

-l VIDA NO ANTIGO EGIPTO 51

são, muitas vezes, tratados no próprio local, em depen-dências próximas dos celeiros e dos estábulos ou emgalerias, por exércitos de empregados: padeiros, vinha-teiros, açougueiros e cozinheiros preparam o pão, a cer-veja, o vinho, os alimentos frescos, secos e toda aespécie de conservas, enquanto o linho é fiado e tecidonas oficinas.

Muitas outras actividades agrícolas e múltiplos pe-quenos ofícios foram-nos transmitidos por breves alusõest - m textos ou pelos vestígios de produções hoje reco-lhidas em sítios arqueológicos, mas as figurações dostúmulos parecem mais afeiçoadas a certas ocupações doque a outras, em particular às que permitem que o artistaimprima livremente o seu gosto pelo desenho animalistai - a fantasia ilimitada que traduz. O camponês interessa-omenos. Limita-se a representá-lo no exercício de gestosi radicionais que fixam a noção a transmitir à posteridade.N < > período amarniano, os grandes domínios do reino,começando pelo domínio de Aton, são muitas vezesevocados em paredes de túmulos, como nas dos templos' ! • > deus do Sol. Não sendo possível observar uma verda-deira rotura em relação às figurações tradicionais do

• . impo, verifica-se a introdução de importantes cambian-tes. Grandes quadros repletos de pequenas cenas rela-' miadas umas com as outras num plano de conjuntodnR propriedades, restituem, com uma precisão minu-ciosa, cada parcela e os seus elementos característicos,• i ' l ; i cabana de camponês, cada sebe no lugar certo.

A literatura, por sua vez, dá-nos uma ideia bastante• |ni:mática dos camponeses. Há um conto que repre-

ntn um quadro pastoral quase universal:

••!''.r:i uma vez, diz-se, dois irmãos filhos da mesma mãe e domo pai : Tromi era o nome do mais velho e Bata, o do mais

>•' r I n i p i i tinha uma casa e era casado e o irmão vivia com ele<• fosso seu filho. Era o mais novo que confeccionava os

l ilnn ' I n mais velho, e levava o gado a pastar; era ele que culti-V N V M ( M i l l i i a , que realizava todos os trabalhos do campo em casa

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do irmão. É verdade que o mais novo era um rapaz sólido ealegre; não existia outro como ele na região: possuía a força deum deus.

»Passaram-se muitos dias: o irmão mais novo conduzia osanimais, como sempre, segundo o hábito e (regressava) a casa,à noite, carregado com toda a espécie de produtos do campo,leite, lenha, todos os (primores) que colocava à frente do (irmãomais velho), sentado junto da mulher; depois bebia, comia e(saía para passar a noite, sozinho, no) estábulo, (com) os anknais.E, quando a terra se encontrava (novamente) iluminada, no diaseguinte, cozia (os alimentos) e apresentava-os ao irmão, que lhedava pão para (ir) para o campo. Em seguida, levava as vacasa pastar nos prados [...] Ora, na época de amanhar a terra,o irmão mais velho disse-lhe: "Prepara uma junta (de bois) paralavrar; a terra está seca (de água) e boa para lavrar; depoistraz as sementes para os campos, pois amanhã vamos lançar-nosseriamente ao trabalho", etc.» (Segundo G. Lefebvre, op: cit.,pp. 142-143.)

Outra narrativa do Novo Império desfia, num estilooriental que os contistas árabes não renegariam, as des-venturas de um pobre habitante do oásis, que veio aovale tratar de negócios e que, depois de ter sido roubadoum a um, dos bens que trouxera com ele, é recompen-sado, pelo magistrado a quem durante muito tempoimportunou com as suas queixas, com as possessõesdo seu perseguidor:

«Então [o grande intendente] Rensi, filho de Méru, envioudois guardas em [busca de Djehoutynakht]. Trouxeram-no, por-tanto, e foi feito um inventário [dos seus bens, assim como]da sua [gente, a saber:] seis pessoas, sem contar... (?), cevadado Alto Egipto, trigo, burros, [gado grosso], porcos e gadomiúdo. [E entregou-se] esse Djehoutynakht [como escravo] aesse habitante do oásis, [assim como] todos os seus bens [...].»(Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 69.t

Estranhamente, não é na boca dos trabalhadoresrurais que os escritores da época colocam as recrimi-nações habituais de todas as sociedades camponesas, masna de um escriba indignado por ver um dos seus antigoscolegas tentado pelo regresso à terra:

k >>• -Cena mrd, período amarniano (segundo o BIFAO 69,^S- /> p- 81).

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DOMINÍQUE VALBELLE

«Não te lembras da cara dos camponeses confrontados coma declaração fiscal das colheitas das quais as serpentes levarammetade e os hipopótamos comeram o resto? Os ratos pululampelos campos (invadidos) por gafanhotos; é aí que o gado miúdopasta; as andorinhas reduzem o agricultor à miséria. O poucoque resta das culturas esgota-se e atrai (?) os ladrões; o seuvalor mercantil está perdido; a junta de bois morreu de tantomalhar os cereais e puxar pela charrua. É então que o escribachega à margem: vem registar a declaração das colheitas, (acom-panhado) de guardas armados de varapaus e de Núbios empu-nhando folhas de palmeiras. Eles "Entrega o trigo!" Mas,não há trigo. Sovam-no até morrer. Em seguida, amarram-noe lançam-no ao poço, onde mergulha na água, de cabeça parabaixo; a mulher também foi amordaçada ao pé dele e os filhosestão presos; os vizinhos abandonam-no, fogem e o trigo desa-parece [...].»

Perante um quadro tão negro da vida dos campo-neses, surpreende um pouco o papel sinistro que oescriba desempenha sem pestanejar, ao mesmo tempoque não parece pôr em dúvida a autenticidade da angús-tia da vítima. Não recua perante nenhum argumentopara convencer. A sua conclusão é cínica: recorda queo escriba, não o sendo por obrigação, não está sujeito

a tais riscos.Mas, nem toda a correspondência-tipo para uso dos

escribas nos devolve o mesmo eco, muito longe disso.Um destes textos-modelo mostra o enviado do paláciorecolhendo, calmamente, grandes quantidades de frutae jarros de vinho, numa propriedade do rei situada nodelta; outro encerra um relatório ao arquivista-chefe doTesouro sobre a situação de um domínio e todos ospormenores relativos às ordens executadas para satis-fação dos responsáveis; outro ainda é o diário do tra-balho realizado durante mais de um mês numa eira decereais. Por fim, a correspondência real entre um pro-prietário rural da xi dinastia com o seu homem de con-fiança descreve uma situação bastante dura, pois atra

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vessa-se um período de fome e, portanto, de restrições,mas todos fazem o que podem para assegurar o indis-pensável à comunidade.

V — Os serviçais

O corpo dos serviçais compreende, no Egipto faraó-nico, um certo número de profissões que hoje seriamclassificadas de artesanais, corno as que se referem à ali-mentação e aos têxteis. De resto, não existe nenhumaclassificação hierárquica entre servidores e artesãos, en-contrando-se todos eles ao serviço do mesmo ano. Era.sobretudo a posição que o amo ocupava na sociedadeque determinava a dos empregados e a sua capacidadede, por sua vez, virem a ser amos de empregados maismodestos. Assim, os mesmos títulos não têm o mesmosignificado e não obrigam necessariamente às mesmaslarefas, consoante são exercidos por cortesãos, pelo pes-soal de um particular, ou por escravos. Os estrangeiros,nu particular os Cananeus, ocupam, neste meio, umaposição de elite durante o Império Médio. Quanto àsmulheres, que até então não tinham sido apontadas noexercício de uma profissão, embora ocasionalmente de-:.rinpenhem um papel político de primeira importância,mi assumam funções económicas ou sacerdotais, inter-vêm aqui largamente, embora com atribuições bem deter-minadas.

No Antigo Império, os relevos e as pinturas dosi i imulos constituem, como no caso dos camponeses, aprincipal fonte da nossa informação, substituída, noImpério Médio, pelo abundante corpo de esteias que1 1 n- i iou até nós. Na corte, ou na província, vê-se que( • • . ofícios artesanais mais estreitamente ligados ao mundon r. i fola são exercidos em pátios ou em edifícios comuns,th . lado da evolução das colheitas. Moleiros, padeiros

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DOMÍNÍQUE VALBELLB A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 57

c cervejeiros trabalham não longe dos silos. Açou-gueiros abatem e esquartejam os animais a poucos metrosdos estábulos, pedaços de carne secam em cordas, en-quanto outros são colocados em grelhadores ou estufamnos caldeirões dos cozinheiros. Mais adiante, a criadagemiransporta iguarias e bebidas para o amo ou entretem-senas tarefas domésticas. Alguns criados, por exemplo,arrumam o quarto e fazem a cama. Os templos funerá-rios da v dinastia também empregam, como se viu,pessoal laico para a preparação dos alimentos ou limpezade tecidos, mas os gestos relativos à higiene do reidefunto e a apresentação dos alimentos são, sem dúvida,apanágio dos sacerdotes. São também as actividades doartesanato alimentar e dos têxteis que ilustram os mode-los destinados a prolongar, tal como nas paredes doslúmulos, a evocação das actividades e dos bens agrícolas,juntamente com as de outras oficinas.

No Império Médio, não só os amos representam nosseus monumentos todos os serviçais, designados pelonome, função ou situação, como os próprios servidorestêm o costume de erigir esteias em honra do patrão.Ouas grandes categorias de serviçais parecem repartirentre si as tarefas a realizar: uns, os «criados a pé»cncarregam-se sobretudo do equipamento e do serviço< l o patrão, enquanto os outros, os «sentados», tratam<!os alimentos, das bebidas e do vestuário, embora severifiquem frequentemente excepções a esta classificação,i Xs primeiros, muitas vezes apresentados como obesos,pálidos e de cabeça rapada, trabalham geralmente nosaposentos privados ou na tesouraria que encerra os pro-i In tos preciosos da casa: metais e objectos metálicos• i uno armas, baixela e instrumentos; tecidos e vestuário,incluindo as sandálias; unguentos e óleos, etc. Fiação,i • «dafíem, conserto do calçado e lavagem da roupa

• l |.cndem deste departamento, presente tanto nas pro-i i ' < l a d e s da coroa e dos templos como entre os par-

i i . i i h i ivs ricos. Relatores, intendentes e escribas apro-

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ximam-se, na categoria das suas funções, dos músicos,cantores, adivinhos, professores de escrita, mas tambémmordomos, criados, porteiros ou lavadeiros. As mulhe-res ocupam-se da higiene da patroa e do seu guarda--roupa. Esteticistas e cabeleireiras transportam espelhose guarda-jóias. Outras são amas ou criadas das crianças,ou cantoras.

Cozinha e armazém ao mesmo tempo, o m w é olocal onde se preparam e conservam os alimentos. Com-preende as cozinhas propriamente ditas, as padarias, asfábricas de cerveja, as leitarias, as caves dos vinhos, osdepósitos de água, de peixe, de fruta, etc. Também é aíque se guardam as contas relativas a estes serviços e aroupa. Os criados que aqui trabalham preparam e ser-vem as iguarias destinadas à mesa do patrão. A apresen-tação das bebidas ocupa um lugar de destaque nas cenasde interior. As criadas encarregadas desta tarefa usamhabitualmente o cabelo entrançado, ocultado por umlenço, por motivos de higiene. As mulheres tambémtrabalham nas cozinhas e nas padarias, onde as vemosmoer a farinha que em seguida passam por uma peneirae, depois, preparar a massa para o pão, que enformamem recipientes cónicos, enquanto os colegas do sexomasculino executam as mesmas tarefas ou preparampães redondos e achatados que cozem numa outra espé-cie de fornos, ao mesmo tempo que outros trituramcereais em almofarizes, com a ajuda de grandes pilõesde madeira.

A representação, em corte, da casa de Djehoutynefer, notempo de Amenóíis II, resume algumas das actividades domés-ticas num quadro privado. A cave é reservada ao artesanatotêxtil: num primeiro compartimento, há homens que fiam, noseguinte estão sentados em frente de grandes teares, no terceiro,lavam, roupa. No rés-do-chão, criados e criadas transportamlouças, frutos e flores para o amo. As escadas encontram-se reple-tas de criados que transportam para os andares de cima baús,jarros e pedaços de carne. No primeiro andar, o amo, junto doqual um criado agita um leque enquanto outro lhe serve unia

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bebida, parece ditar as suas ordens a dois escribas ajoelhadosà sua frente. No terraço, um contabilista toma nota da entregade material em curso. A parte direita da residência, completa-mente destruída, devia abranger outros sectores de actividade,em particular os aposentos reservados às mulheres.

Mas, é sobretudo nos grandes domínios do reino,evocados nas paredes das sepulturas dos altos funcio-nários que os gerem, que se afadigam mais claramenteas multidões anónimas de empregados que percorremos armazéns, preparam toda a espécie de conservas,empilham peças de roupa acabadas de sair das oficinasou escolhem os alimentos necessários à vida quotidiana.

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CAPÍTULO III

O NÍVEL DE VIDAE AS SUAS MANIFESTAÇÕES

O Egípcio dispõe de uma variada escolha de meiospara enriquecer. Seja qual for a sua profissão, recebeum salário muitas vezes suficiente para bens supérfluos.Em certas situações, recebe ainda do soberano recom-pensas ou dádivas particulares, como paga pelas suasgentilezas. Dotado de terras ou de rebanhos, explorapor conta própria mas, com os lucros obtidos, sustentao pessoal que emprega e paga os impostos fixados anual-mente em função do volume das colheitas. Se a fortunados pais for importante e se ele tiver zelado pelo seuconforto, e depois pelo seu enterro, pode receber umaherança de importância variável, consoante a sua abas-tança e o número de filhos ainda vivos à data. Por fim,o artesanato praticado para além do emprego oficiale o comércio a título privado constituem, eventualmente,apreciáveis fontes de rendimeito.

A parte conservada dos actos jurídicos — vendas,partilhas, heranças — que sancionavam aquisições etransferências de bens, embora ínfima quando compa-rada com o volume que todo o conjunto devia repre-sentar, fornece informações em primeira mão sobre osrendimentos de algumas famílias e o valor relativo dosbens considerados, sendo o seu equivalente em metal— bronze, prata ou ouro — sistematicamente apontado.O Egípcio abastado despendia, para seu conforto ou

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DOAUNÍQUE VALBELLE A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 63

divertimento, ou para impressionar os familiares, quan-tias consideráveis; ou antes, na ausência de moeda, for-necia produtos à altura do preço fixado para o bemem questão. Mas, a maior parte dos seus haveres eradedicada ao ordenamento da sua sepultura, à construçãodo mobiliário funerário e os rendimentos dos domíniosfunerários à manutenção de um culto post mortem eà construção de uma capela ou ao fabrico de monumen-tos mais modestos — esteias ou estátuas — destinadosa serem colocados num recinto sagrado, sob a protec-ção de uma divindade, em particular da do deus dosmortos, Osíris, na cidade santa de Abidos. Assim, a se-pultura e as fundações piedosas constituem os primeirossinais exteriores de riqueza. Portadoras de uma mensa-gem que comporta realizações, qualidades morais e bensmateriais do defunto, traduzem complacen temente a suafortuna e as formas que esta assumia enquanto vivo.

I — O túmulo, o seu mobiliárioe os monumentos de devoção

Exceptuando o túmulo real, embora sem perder devista que este serve de modelo aos túmulos privados,existe uma grande variedade de sepulturas, consoantea época, o local e o meio social. Muito antes do iníciodo Antigo Império, observam-se já alguns indícios dessavontade de reproduzir, na morada supraterrestre, osprincipais elementos do quadro de vida da personagem.Admite-se geralmente que devem ter existido estreitassemelhanças entre as primeiras mastabas, construídasem tijolo cru e rodeadas por muros de redentes, em«fachada de palácio», e as residências principescas daépoca. Mas, a partir da ni dinastia, os túmulos começama diferenciar-se das habitações, tanto na estrutura comonos materiais utilizados. As superestruturas são cada vcxmais frequentemente feitas de pedra e o seu aspecto

é realçado por elementos arquitecturas de calcário deTura, granito de Assuão ou alabastro de Hatnub. A par-tir da iv dinastia, o relato da construção do túmuloe da inclusão de uma porta secreta ou sarcófago, ofertado soberano, encontra-se gravado na capela, ou mesmonos batentes da porta, a fim de que os parentes dodefunto e os sacerdotes funerários dele possam tomarconhecimento quando vêm depor as oferendas quoti-dianas:

«Quanto a este túmulo, foi o rei do Alto e do Baixo Egipto,Micerinus — [que viva eternamente] — que (me) concedeu oterreno. Ora, aconteceu que [Sua Majestade ia a passar] pelocaminho que ladeia a pirâmide para inspeccionar o trabalho deconstrução da pirâmide chamada "Micerinus é divino", quandoo pedreiro e [carpinteiro real] os dois grandes sacerdotes deMênfis e os artesãos (já) aí se encontravam para inspeccionaros trabalhos de construção do templo [...] Depois, Sua Majes-tade ordenou que se arrasasse um monte de entalho [para cons-truir] este túmulo.»

A continuação do texto está muito incompleta masos fragmentos que restam dizem-nos que o rei encomen-dou aos dois tesoureiros da divindade que mandassebuscar calcário de Tura para revestir o templo funerário,trazendo ao mesmo tempo duas portas secretas e oselementos da porta do túmulo de Debéhéni. A mas-taba, que foi construída sob a direcção do arquitectopessoal do soberano, por decreto real, media «100 côva-dos de comprimento e 50 de largura — aproximada-mente 1250 m2 — e 8 de altura — um pouco mais< l e 4 m».

Enquanto o planalto líbico se cobria, em volta daspirâmides de Dachur, Giza, Abusír ou Saqqara, comimensos bairros de mastabas que albergavam os restosmortais de muitas famílias de cortesãos, na província• nitro tipo de sepultura começava a concorrer com ol>rinieiro: escavadas na encosta das falésias que orlamO vale e dominam o Nilo, os túmulos rupestres dos

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r64 DOAÍINJQUE VALBELLE

nomarcas apresentavam um plano completamente dife-rente. Enquato as mastabas são construções maciças quecomportam um pátio em peristilo, uma capela compostapor um grande número de salas para funções diversase um serdab fechado que alberga as estátuas que retra-tam o defunto, encimando todo este conjunto uma ouvárias caves às quais se tem acesso por um poço, oshipogeus são por vezes precedidos, quando o terrenoo permite, por um dos pátios aos quais se chega, emcertos casos, por uma escada monumental; as fachadasdos túmulos propriamente ditos podem ser ornamenta-das por um pórtico; as diferentes divisões da capela são,como a cave, escavadas na rocha. Ambas as fórmulasforam adoptadas simultaneamente em todas as épocasnas necrópoles reais e nos cemitérios de todo o país.Com o tempo, inventaram-se esquemas mistos e todaa espécie de ordenamentos. Um dos mais notáveis residena sobreposição de uma pirâmide de dimensões modes-tas e da capela: este modelo que parece ter surgido emTebas, na x dinastia, obteve grande sucesso no NovoImpério, mesmo nos meios mais simples.

A decoração destas capelas, construídas ou rupes-tres, quando não apresenta cenas de oferendas, nemdesenvolve ritos e fórmulas funerárias, especifica, con-forme as épocas, apenas por meio do texto, ou tambémda imagem comentada, as propriedades do defunto e asactividades que aí se desenvolvem, os episódios notáveisda sua carreira e algumas manifestações da sua autori-dade, dos acontecimentos a que assistiu ou nos quaisparticipou, os membros da sua família, os amigos, oscolegas, os superiores e os subordinados. Assim, o tú-mulo, para além de proclamar, pelas suas dimensões,pela qualidade dos relevos e pelo brilho das pinturas,a riqueza do proprietário, ainda recorda, até ao ínfimopormenor, a fortuna que permitiu a sua existência. Mas,este rol de virtudes recompensadas, de feitos coroadosde sucesso e de luxos merecidos não se limita à arquí-

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pela qualidade dos relevos e pelo brilho das pinturas,a riqueza do proprietário, ainda recorda, aterão íntimopormenor, a fortuna que permitiu a sua existência. Mas,este rol de virtudes recompensadas, de feitos coroadosde sucesso e de luxos merecidos não se limita à arqui-

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tectura, aos materiais e à decoração, isto é, à parte visí-vel do edifício. Prossegue na cave, com o mobiliáriofunerário. Contudo, poucas sepulturas o conservaramintacto: a tentação era tanto mais forte quanto a super-estrutura do túmulo anunciava um conteúdo mais pres-tigioso. Assim, não foi por acaso que só as sepulturascuja entrada se perdeu ou foi dissimulada acidental-mente se mantiveram invioladas. O mobiliário é com-posto por elementos propriamente funerários — sarcó-fagos, canopes, ouchebtis, Livros dos Mortos a partirdo Novo Império —, por elementos que representamo quotidiano do defunto — móveis, roupa, objectos dehigiene, utensílios, alimentos, louças— e por algumaspeças de valor — estatuetas em madeira, pedra ou metaispreciosos, baixela de ouro, prata ou bronze, etc. —, seo defunto for um homem abastado. O equipamento eratransportado em procissão, por ocasião do funeral, atrásdos restos mortais. Estes fornecem indícios fiáveis sobrea qualidade do embalsamamento, que pode ir da dre-nagem encefálica e da evisceração compensada pela intro-dução de substâncias aromáticas no corpo que, em se-guida, é mergulhado em sais de natrão durante setentadias até uma simples dissecação favorecida pelo empregode resinas. O corpo era então envolvido em faixas delinho mais ou menos finas consoante o serviço escolhido.

Mas, as preocupações do futuro defunto não se redu-ziam apenas à conservação do invólucro carnal numambiente confortável e repousante. A fim de sobreviverdepois da morte, devia ser alimentado e dessedentadoregularmente, estando previstos diversos ritos para res-tituir à boca e ao nariz as funções vitais e, sobretudo,devia continuar a pronunciar-se o seu nome. Para tal,o defunto devia assegurar uma renda àquele ou àquelesque o servissem quando já não estivesse em condiçõesde dar ordens ou, então, entregar-se à boa vontade dosseus. À entrada das capelas encontram-se gravados apelosaos vivos para estimular o zelo de uns e outros. Final-

SABEB 214 — S

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66 DOMINIQUE VALBELLE

mente, por medida de segurança, pensando provavel-mente que mais vale confiar-se aos deuses do que aossacerdotes, constroem-se, em vida, monumentos desti-nados a evocar a memória dos defuntos nos santuáriosda cidade natal, ou em Abidos, por ocasião das peregri-nações que se faziam frequentemente. Entre estes mo-numentos, as estátuas são sobretudo a expressão deintervenções individuais, enquanto as esteias reúnemfrequentemente um grande número de parentes, fami-liares e colaboradores.

II — O povo

É difícil descobrir o estatuto dos empregados que,nas paredes dos túmulos, são figurados no exercício dasua profissão, ao serviço do patrão, nos campos, nasoficinas ou nas dependências. Muitos deles são empre-gados reais e ainda hoje ignoramos as condições exactasda sua presença em casa de simples particulares: estarãolá para desempenhar uma tarefa precisa ou foram afec-tados a um domínio privado como o poderiam ter sidoa um domínio da coroa ou a uma fundação religiosa?E, para terminar, ficarão sob as ordens da mulher oudo filho mais velho do patrão, depois da sua morte?Embora nenhum texto legal nos informe concretamentesobre estes assuntos, podemos avançar, a partir dealguns casos individuais, que não existia nenhuma regraabsoluta sobre tal matéria e que a distribuição desteshomens pelo reino dependia de acordos específicos entreas autoridades e os notáveis que se viam dotados destacategoria de mão-de-obra. De qualquer modo, esteshomens não são propriedade dos empregadores.

Já o mesmo não acontece com as pessoas privadasde liberdade por decisão de justiça e com os estrangeirosfeitos prisioneiros em campanhas militares. Chegou aténós um volume da xin dinastia que estabelece os direi-

A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 67

L

tos da senhora Sénebtisy sobre um contingente de 95pessoas assim reduzidos à escravatura: um extracto doregisto dos presos entrados na Grande Prisão de Tebas,remontando à dinastia precedente, indica a identidadede cada um deles, por vezes o seu ofício, e o motivoda acusação; enquanto um auto autoriza o intendentedos campos Haankhef a dispor destes homens e destasmulheres, que transmite à mulher. Pela mesma época,os arquivos da cidade da pirâmide de Sesóstris II, noFayum, compreendem diversos legados, entre os quaisuma espécie de acta notarial que contém duas sériesde disposições testamentárias sucessivas:

«Título de propriedade redigido pelo tesoureiro-ccónomodo chefe dos trabalhos do distrito setentrional, Ihyseneb, ditoAnkhren, filho de Chepeset: todos os meus bens, adquiridos nocampo e na cidade, pertencerão a meu irmão, sacerdote em Soped,senhor do Oriente, Ihyseneb, dito Ouah, filho de Chepseset;todos os meus criados pertencerão a meu irmão. Estas disposiçõesestão consignadas num registo, no gabinete do porta-voz do Sul,no ano 44, no 2.° mês do Verão, no 13.° dia.

»No ano 2, no 2.° mês da Primavera, no 18." dia. Títulode propriedade redigido pelo sacerdote de Soped, senhor doOriente, Ouah: redijo um título de propriedade a favor de minhaesposa, mulher do sector oriental, Chefet, dita Téti, filha deSatsoped, respeitante a todos os bens que me legou meu irmão,o tesoureiro-ecónomo do chefe dos trabalhos de Ankhren [...]Toda a baixela ainda existente, legada por meu irmão., serátransmitida a quem ela quiser, entre os filhos que me deu.Lego-lhe os quatro asiáticos cedidos por meu irmão...; elatransmiti-los-á aos filhos que quiser. No que respeita ao meutúmulo, quero ser colocado junto de minha mulher, _sem maisninguém senão ela. Quanto aos edifícios que meu irmão medeixou, a minha mulher habitá-los-á, sem que ninguém possaexpulsá-la [...].»

O pessoal de serviço vem enumerado após as pro-priedades, tal como no Conto do Oasiano. De notarque a acta de propriedade compreende uma cópia daacta anterior, garantindo a autenticidade dos direitosdo testador para dispor dos bens considerados.

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68 DOMINIQUE VALBELLE

Além disso, a descrição de um processo contémos termos do contrato de venda de uma jovem síriae da troca de um escravo contra um túmulo, em Tebas,no reinado de Ramsés II:

«E, no ano 15, sete anos depois de ter casado o director dodistrito Sa[mout], o mercador Raia veio procurar-me, acompa-nhado da escrava síria Gemeniherimentet — "Encontrei-a-no--Ocideute"—, que ainda era uma criança e disse-me: "Compra--me esta rapariga e dá-me o que ela vale"; foi assim que se medirigiu. Fiquei com a rapariga e dei-lhe a [quantia] pedida.Agora vou expor aos magistrados o preço que paguei.»

Segue-se a enumeração de sete peças de vestuárioou de tecido que pertenciam à cliente, às quais se jun-tam cinco vasos de bronze, nove quilos de cobre recupe-rado, um cântaro de mel e dez túnicas que ela deve teradquirido a seis pessoas diferentes. A jovem escravacusta-lhe, afinal, um pouco menos do equivalente a375 g de prata. O valor da sepultura oferecida em trocado homem não está especificado mas, mais tarde, notempo de Ramsés XI, outro escravo declara, ele pró-prio, ter sido comprado por cerca de 182 g de prata,enquanto uma mulher custou perto de 375 g, nova-mente, no mesmo ano.

Embora só excepcionalmente tenham sido conser-vados tais testemunhos antes da Primeira Época, apresença de escravos, em maior ou menor número, éum facto banal nas sucessões, confirmado no NovoImpério, mesmo em camadas modestas da sociedade:um divino padre, um jardineiro, operários do túmulo,estrangeiros...

í A VIDA NO ANTIGO EGIPTO 69

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III — Os bens imobiliários

No Antigo Império, já se conhecem vários contratosde venda de casas.

Um deles encontra-se gravado numa esteia que se erguiaperto da propriedade, mas a sua natureza, túmulo ou habitação,não colhe a unanimidade dos tradutores; as suas dimensões nãovêm citadas e o preço —10 shâty — é pago por meio de duaspeças de tecido e uma cama. Dois outros contratos estão redigidosem papiros; provêm de uma aldeia do Alto Egipto, Gebelein, eremontam ao fim da IV dinastia; um dos edifícios mede 16 côva-dos de comprimento por 15 côvados de largura —cerca de56 m2— e é trocado por um peça de tecido de 15 côvados emeio de comprimento, cujo valor em metal não é especificado;o outro tem 16 côvados por 11 —cerca de 40 m2— e foi pagopor uma peça de tecido de 24 côvados.

Carecemos de elementos comparativos contemporâ-neos para definir o valor absoluto destes bens.

Muitos textos de diversas épocas fazem alusões, maisou menos precisas, à construção de residências e à cria-ção de domínios. As actas de Metjen, um extracto devolumes oficiais que comprovam os direitos do proprie-tário sobre um certo número de fundações de vocaçãofunerária e mencionam a superfície e a situação geográ-fica das terras designadas é a mais velha colectânea detextos jurídicos de que se tem conhecimento. Remontaao fim da m dinastia. Uma das propriedades é assimresumidamente descrita:

«Um domínio de 200 côvados de comprimento por 200 côva-dos de largura — 4 ha, aproximadamente— cercado por ummuro e equipado, (onde) belas árvores foram plantadas e orde-nado um grande tanque de água, (junto do qual) se plantaramfigueiras e vinha.»

Um marco, na cidade da pirâmide de Sesóstris II,cm Illahoun, indica as dimensões de quatro casas se-melhantes: 30 côvados por 20—150 m2, aproximada-

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mente. Mais tarde, na xvm dinastia, a carta de umnormarca ao mestre de obras constitui um testemunhoao vivo:

«[...] Coloca as esteiras e as vigas dos armazéns e da partede trás da casa. A parede terá 6 côvados de altura. Quanto àsportas do armazém, constrói-as com 5 côvados de altura, enquantoas da habitação devem ter 6. E, depois, diz ao pedreiro queproceda do mesmo modo e faz com que construa a casa depressa[...] Comunicar-te-ei a altura total e a largura do edifício [...]Outra coisa: manda pagar ao proprietário o preço do terreno dacasa. Toma precauções para que não me agrida quando lá for.»

Infelizmente, o preço do terreno não está especi-ficado.

A partir dessa época, as habitações também se encon-tram frequentemente representadas nas paredes dos tú-mulos, com o meio envolvente, jardins ou parques.

Assim, a propriedade do arquitecto de Amenófis I e dosTutmés, Inéni. ocupa uma parede inteira da sua capela funerária:em primeiro plano, uma parede de pedra de traçado sinuoso,como as que as escavações revelaram existir por todo o Egiptoe na Núbia, em todos os períodos, atravessada por duas portas;encobre a parte inferior da habitação, de dois silos e de umagrande construção branca de abóbada baixa, oculta por detrásde um sicômoro; a residência parece construída com grandesblocos de calcário,, o que não é completamente impossível se con-siderarmos a quantidade de monumentos prestigiosos que o donoda casa mandou construir em Tebas para os seus soberanos.Contudo, tendo em conta que os próprios palácios são construí-dos em tijolo cru e contêm apenas alguns elementos arquitectu-rais de pedra, uma realização de tal luxo parece pouco provável;por outro lado, a pintura utilizada, imitando madeira ou pedra,obtinha um certo sucesso: talvez se trate apenas, neste caso, dejuntas simuladas sobre um fundo de massa branca feita com cal;a casa possui um primeiro andar mas não se vê nenhum terraço;o segundo plano apresenta um tanque rodeado por uma sebesimétrica; os outros planos sugerem um vasto pomar e umpalmeiral. O número de plantas de cada variedade é apresentadonum quadro: no total mais de 370 exemplares e 12 videiras.

Fig. 6 — O jardim e a casa de Inéni; cena do sen túmulo,em Tebas.

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Outras figurações, mais ou menos esquemáticas, emelevação ou mesmo em corte, e alguns modelos de barro,madeira ou calcário de residências urbanas ou rurais,construídas com um só piso ou com um primeiro andare um terraço, ajudam-nos a interpretar os numerosos ves-tígios de habitações descobertas por ocasião de esca-vações em diversos contextos.

Nem sempre é fácil determinar quais as casas queforam distribuídas aos seus ocupantes quando o amoentrou em funções e quais as que representam verdadei-ras propriedades privadas. Só as casas construídas noperímetro do domínio de uma fundação real ou reli-giosa e os alojamentos dos criados não se prestam a con-fusões; mas que dizer da casa prometida, na sua cidadenatal, ao escriba merecedor (p. 43)? Em que categoriaclassificar as casas que formam os bairros centrais dacidade da Amarna? Porém, casas de trabalho ou resi-dências privadas, são espaçosas e luxuosas residências,sinal certo de um nível social elevado e de acumulaçãode riqueza. De resto, os contratos que conhecemos rara-mente se referem a propriedades e edifícios luxuosos.Trata-se de cabanas, de entrepostos, de dependências di-versas, de capelas e de quiosques de festas, assim comode pequenas parcelas de terreno para construção valendode l a 5 deben de cobre — l a 4,5 kg.

IV — Os bens produtivos: as terras e o gado

Importa distinguir os vastos domínios e os grandesrebanhos que não são directamente explorados pelosproprietários quando não pertencem a fundações ou àcoroa, das pequenas parcelas de alguns aroures —umpouco mais de um quarto de l ha — e das cabeças degado que os camponeses ou qualquer outra categoriade pessoas, adquirem e de que se ocupam pessoalmente.

O valor das grandes propriedades rurais nunca é esti-pulado, nem em contratos, nem em actos de sucessão,os documentos jurídicos originais que chegaram até nósreferem-se apenas a negócios modestos. Os extractosque figuram em esteias ou em túmulos referem-se, porvezes, as possibilidades dos compradores mais modestos,conservam-se discretos quanto ao preço. É o que tam-bém acontece com grandes doações como as do papiroHarris. A única certeza que podemos ter, antes da Pri-meira Época, quanto ao preço de um campo, data doreinado de Tutmés III: o aroure equivale a 15 g deprata, o que é relativamente pouco, comparado como preço dos escravos (pp. 68-69) e com o gado. Naxvni dinastia, o valor de um touro ou de uma vacaparece variar entre 45 g e 60 g de prata, enquanto naépoca dos Rameses, um jovem escravo custava entre27 g e 36 g e um touro podia atingir 128 g de prata.O elevado montante destas quantias, que excedem, porvezes, as possibilidades dos compradores mais modestos,justifica provavelmente a prática, visivelmente generali-zada, da compra efectuada em comum, por vários indi-víduos, de um animal ou de um rebanho. Na mesmaépoca, a cotação de um burro situava-se entre 23 ge 26 g de prata, a do porco entre 4 g e 6 g, a da cabraentre l g e 3 g, consoante a idade e o tamanho doanimal. Quando nos é dada a possibilidade de compa-rar números de épocas diferentes ou, por vezes, dentrode um breve período, notamos variações importantesnesses mesmos números. É a cotação dos cereais, depen-dente das colheitas, elas próprias sujeitas às cheias, quedetermina estas flutuações. Estudadas no que toca aoperíodo dos Rameses, revelaram-se consideráveis. Im-porta, pois, ser prudente em matéria de comparações,já que a situação económica do país é susceptível deprovocar diferenças notáveis entre os diversos reinados.Assim, os cereais viram as suas cotações multiplicadaspor 3 ou mesmo por 5 entre o reinado de Ramsés III

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e o de Ramsés VII e, em seguida, diminuírem parametade entre os de Ramsés IX e Ramsés XI. Pelo con-trário, os bens trocados por ocasião da mesma transac-ção são perfeitamente comparáveis, com os três arourespagos, no tempo de Tutmés III por uma só vaca, cujopreço estava fixado em 45,5 g de prata. O valor daterra parece inalterável no tempo de Amenófis IV, seconsiderarmos que os dois únicos testemunhos conhe-cidos bastam para abordar a questão. Dez sacos de trigo,correspondentes a uma colheita média durante toda aépoca faraónica, vendem-se à mesma tarifa no tempode Tutmés III. A equivalência entre o preço da terrae o daquilo que ela produz num ano, antes de dedu-zidos os impostos, as sementes para o ano seguinte e,eventualmente, o aluguer do campo, não pode, contudo,ser estudada no que respeita ao período dos Ramesesporque este, rico em informações sobre a cotação doscereais, é toalmente omisso quanto à terra arável.

V — Os metais e os produtos de luxo

Se a cotação dos cereais serve de referência paraa avaliação de certos bens e dos alimentos que produ-zem, são, como vimos, os metais, principalmente o cobree a prata, conforme o nível das transacções, que se utili-zam para estimar o ou os objectos destas transacções.Mais uma vez, é necessário ser prudente, pois a cotaçãodos metais também variou com o tempo, o que setraduz, na prática, por diferenças na paridade detroca entre estes metais. Contudo, à parte uma baixasensível da cotação do ouro no reinado de Amenófis II,provavelmente resultante do afluxo de riquezas depoisdas vitórias egípcias na Ásia, e um aumento mais fracoda do cobre no fim do reinado de Ramsés IX, verifica--se uma estabilidade bastante considerável desde o início

do Império Médio até ao fim do Novo Império: 100 gde cobre valem l g de prata e 2 g de prata valeml g de ouro.

Examinando os termos dos mercados que chegaramaté nós, é visível a variedade dos bens alinhados parapagar as facturas apresentadas aos compradores. Na ver-dade, em raros casos o vendedor parece ter exigênciasprecisas quanto à maneira como pretende ser pago:a venda da jovem escrava síria Gemeniherimentet cons-titui um bom exemplo. Mas, o bazar heteródito habi-tualmente proposto pelo comprador e, segundo parece,aceite como pagamento pelo vendedor, encerra todas ascategorias imagináveis de produtos. De resto, é graçasa esta prática que hoje se conhece o valor que tinhamna época. Desde os tempos mais recuados, são os pró-prios metais, sob diversas formas, e também os tecidos,que são utilizados mais frequentemente como moeda detroca nos grandes negócios cujos passos conhecemos.Usam-se igualmente as peles, assim como a madeira e osmóveis.

O cobre e o bronze são, evidentemente, o metal e aliga mais frequentes. Surgem, em primeiro lugar, soba forma de baixelas, mas também de armas, de utensíliosou de objectos de higiene, de espelhos, de metal recupe-rado, indistintamente, reservando-se a prata e o ouropara a baixela de luxo e para as jóias. O chumbo ouo estanho intervêm mais raramente em transacções. Sejaqual for o objecto considerado, se não for fabricado porencomenda do cliente, só o seu peso em metal é consi-derado, excluindo-se o tempo de trabalho e a qualidadeda execução. Esta medida justifica-se pelo facto dometal assim recuperado ser geralmente fundido e trans-formado em outro objecto, como testemunham muitostextos. Quanto às pedras semipreciosas, aparecem pouconos mercados, embora o seu valor nos seja indicadopelas doações destas pedras que Ramsés III fez aosgrandes deuses do país.

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Os tecidos eram, por vezes, fabricados tendo comoúnica perspectiva uma eventual compra, uma terra decultivo, por exemplo. O seu preço era definido em fun-ção das dimensões da peça e da qualidade do tecido.No conjunto, e no período dos Rameses, situa-se entrel g e 45,5 g de prata. A variedade das peças, do ves-tuário e da confecção era muito grande, desde a faixaao sudário, do avental triangular ao chalé, das telasgrossas ao linho fino. As peles destinadas à confecçãode sandálias, de almofadas de bancos, de pergaminho,e também de sacos ou odres, conforme a sua origeme dimensões, podiam atingir 18 g de prata. Por fim,a madeira é um produto raro num país onde apenascrescem árvores pequenas, como as acácias, ou árvoresde madeira fibrosa, como as palmeiras. Assim, as essên-cias necessárias às grandes estruturas, aos batentes dasportas dos palácios, dos templos ou aos finos trabalhosde marcenaria ou de marchetaria deviam ser importadas,como os pinheiros ou os ébanos. Por esta razão, mesmoas tábuas de madeira vulgar e os móveis que entãose faziam eram sempre produtos apreciados. Estes,quando não se destinam às sepulturas, assemelham-sesurpreendentemente aos mais simples dos nossos móveisde campo: cadeiras empalhadas, ou pequenos bancos,mochos de três pés, baús, etc. Muitos preços de tábuas,de elementos fabricados ou de móveis são conhecidosmas, ignorando a natureza da madeira, a forma e asdimensões dos produtos evocados, as referências perdemparte do interesse.

A enumeração de todos estes bens, acompanhados,nos casos mais favoráveis, de indicações quanto ao seuvalor relativo ou absoluto, constitui apenas, como éóbvio, um primeiro passo em direcção a uma apreciaçãomais satisfatória do nível de vida dos Egípcios, nas suasdiferentes categorias sociais, mas é tudo o que o estadoactual dos nossos conhecimentos pode ofecerer sobreo assunto.

CAPÍTULO IV

O QUADRO DE VIDA

Quando o Egípcio expõe o seu quadro de vida,pinta uma paisagem, recorda uma cidade, age semprecom um objectivo determinado: estabelecer a somasimbólica dos elementos do seu ambiente profissionalou dos seus haveres, marcar por meio de referênciasou ilustrar uma narrativa, defender um tema ideológico.Assim, seria ingénuo acreditar na sua palavra, aceitarà primeira vista as reproduções das cenas situadas nanatureza ou num contexto artificial, escutar os seus simu-lacros de descrição. É, porém, através da própria expres-são desta arte codificada que se torna possível, confron-tando os seus testemunhos com os que a arqueologianos propõe, reconstruir alguns aspectos ambientais e,simultaneamente, a visão que deles formava o homemda época.

I — Os aglomerados

Já nos primórdios da sua história, o Egipto viu o seuterritório cobrir-se de verdadeiros centros fortificados,figurados em paletas do período tinita como cidadesconstruídas num plano sensivelmente quadrado, de ângu-los arredondados, rodeadas por muralhas guarnecidas deameias. Os vestígios de diversos sítios, entre os maisantigos da história do vale do Nilo, como Abidos e Ele-

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Fig. 7.— Fundações de cidades: pormenor da paleta dasMuseu Egípcio do Cairo.

fantina, confirmam os esquemas desajeitados da icono-grafia e começam a revelar certos dados deste urbanismonascente. Estas cidades são metrópoles de nomos. Umasdevem a sua existência a motivos religiosos, como Abi-dos, outras constituem, como Elefantina, pontos estra-tégicos intransponíveis. Entre estas cidades de impor-tância média, cuja população ainda hoje não pode seravaliada, nem aproximadamente, distingue-se uma: Mên-fís, a primeira capital do país unificado.

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Os textos contemporâneos da sua fundação e do seu desen-volvimento não se alargam em descrições. O seu nome «MurosBrancos» parece referir-se às muralhas que cercam os bairrosprincipais. A cidade, de facto, foi construída num terreno cortadopor pequenos vales e é pouco provável que, nos tempos maisremotos, se tenha cingido a um perímetro restrito. Além disso,é sabido que o aglomerado era protegido por um dique das inva-sões anuais das cheias do Nilo. Célebre por ter albergado a resi-dência dos soberanos do Antigo Império, é, afinal, o nome dacidade da pirâmide de Pépi I, construída a ocidente, junto ànecrópole real de Saqqara, que passa à posteridade: Mennefer,que os Gregos transformaram em Mênfís. Repetidamente despre-zada, em favor de outras capitais, porém menos judiciosamentesituadas, nem por isso deixou de ser a primeira cidade adminis-trativa do país. Além disso, a sua posição ímpar na extremidadesul do delta contribuiu, provavelmente, para o desenvolvimentodo porto, cujos estaleiros navais e vastos entrepostos lhe gran-jearam, no Novo Império, uma importância tanto comercialcomo táctica.

Protótipo das metrópoles, só Tebas concorreu comela em renome. Tebas, elevada à primeira categoria naxi dinastia, foi novamente eleita pelos monarcas daXVIH dinastia, originária de um burgo próximo. Emboramuitos dos seus bairros residenciais sejam menos conhe-cidos do que os perímetros sagrados dos seus templose as extensões dos cemitérios, as ruínas que a represen-tam ainda hoje nos dão mais do que uma simples ideiada sua grandeza.

A margem direita do Nilo destinava-se a acolher o palácioreal, a sede do governo e as residências dos notáveis, juntamentecom os santuários de Amon, Mut, Khonsu e Montu. Foi pertoda muralha deste último que Tutmés I mandou construir o seuTesouro e os túmulos dos altos funcionários da região guardarama recordação de algumas casas urbanas de dois pisos, encimadaspor terraços e orladas por palmeiras e sebes, carcterísticas dosbairros elegantes. Os bairros mais modestos da mesma margemnão são objecto de reprodução, ao contrário do que acontece comas pitorescas ribas do rio, invadidas por uma multidão de nego-

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ciantes e de mercadores que circulam pelo meio das barracaserguidas junto dos barcos ancorados. O desembarcadouro dotemplo de Amon oferece, de resto, um espectáculo semelhantesempre que chegam produtos enviados pelas propriedades dodeus, distribuídas por todo o país.

Na costa ocidental, os vestígios dos templos funeráriossituam-se nos limites das culturas e das colinas desérticas inva-didas pelas necrópoles reais e privadas Mais ao sul, os restosdo imenso palácio de Amenófis III e do porto que o serviaestendem-se não muito longe dos de um posto militar situadona orla do deserto. Um papiro do fim da época dos Ramesesdiz-nos que o vasto aglomerado de Tebas-Oeste, espraiado porvários quilómetros paralelamente ao Nilo, compreendia, entreestes centros religiosos e todas estas oficinas funerárias, as resi-dências dos sacerdotes, dos ferreiros, dos médicos, de todo o pes-soal menor e de alguns responsáveis locais. Algumas delas encon-tram-se representadas, rodeadas de pequenos jardins, nas paredesde algumas sepulturas. Instalada no leito de um pequeno ouadidesértico, retirado no vale, a aldeia dos operários do Túmulocontinua a ser, com as suas sucessivas muralhas e as paredesdas casas mais recentemente construídas, um dos testemunhosmais bem preservados da arquitectura civil do Novo Império.As muralhas não constituem fortificações protectoras, limitando-sea marcar os limites do aglomerado. É nelas que se apoiam ashabitações médias. Estreitas e fundas, parecem empurrar-se umasàs outras, enquanto as ruelas abrem caminho de norte para sule de leste para oeste. A longa existência desta aldeia justifica asirregularidades da sua configuração final. Nem espaços livres,nem vegetação em todo este conjunto; foi fora destes murosque se ordenaram os celeiros destinados a armazenar as reservasem cereais da comunidade e que capelas e salas de reuniõespuderam acolher a realização de assembleias de aldeia.

Tal como em relação a Mênfis, não conservámosnenhuma descrição literária egípcia de Tebas. É, noentanto, a estes dois modelos que se referem os escribasque decidiram fazer o elogio da residência dos soberanosrameses, na parte leste do delta:

«Sua Majestade —^vida, saúde, força— mandou construiruma residência chamada Grande-de-Vitória. Situa-se entre asregiões do Levante e o Egipto e abunda em géneros e alimentos.O seu plano é semelhante ao de Tebas, a sua existência dura-doura como a de Mênfis. O sol nasce no horizonte e aí se põe.

\a a gente abandona a cidade para vir instalar-se nas proximi-

dades. O bairro ocidental é o domínio de Amon, o bairro azulo de Seth. Astarté encontra-se a oriente. Ouadjit, a setentrião.A casa que aí se encontra é como o horizonte do céu, etc.»

Trata-se de uma obra de circunstância rica em ale-gorias, mas muito pobre do ponto de vista descritivo.Outra composição sobre o mesmo assunto é mais pre-cisa, mas apenas no que respeita aos inesgotáveis recur-sos da cidade. Contudo, só acessoriamente recorda osjardins e os lagos que a ornamentam, o porto e oscampos que a circundam.

Já estamos bem longe, não obstante as afirmaçõesdos escribas, dos complexos urbanos das duas famosascapitais. Estas constituem, simultaneamente, o modeloe a excepção. Sem podermos sequer citar todas as cate-gorias de aglomerados que o Egipto conheceu, limite-mo-nos a recordar, por ocasião deste panegírico dePi-Ramsés, os estreitos laços que sempre mantiveram,em todas as épocas, com o mundo agrícola. Nenhumacidade, incluindo as capitais, nenhuma aldeia vive total-mente isolada dos campos, dos pomares que a rodeiam,dos jardins que a embelezam. Talvez por isso nos sejatão difícil distinguir os verdadeiros burgos rurais.

II — Os campos

Se já certos textos literários consideram os campossimples reservas de víveres — «os pântanos abundamern peixe, os tanques transbordam de aves, os pradossão verdejantes de vegetação, etc.» — as representaçõesque cobrem as paredes dos túmulos não têm habitual-mente mais nenhuma função: os campos, os pomares,

SABER 214 — 6

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Fig. 8. — O parque das gazelas sagradas da deusa Anoukis; cenado túmulo de Neferhotep, em Deir el-Médineb.

as vinhas surgem para mostrar a futura colheita, os pân-tanos para demonstrar a existência de caça, de peixese de pastagens. Por vezes, porém, uma paisagem natu-ral é representada por outros motivos que não apenaso potencial económico que encerra. Assim, a flora e afauna aquáticas, que parecem apaixonar pintores e dese-nhadores, são muitas vezes escolhidas como cenárionos palácios de Malgata e de Amarna ou como meionatural de cenas mitológicas. Parques de animais sagra-dos também podem encontrar-se representados nas pare-des de capelas, como o das gazelas de Anoukis emSehel. Muitas vinhetas que ilustram capítulos do Livrodos Mortos desenvolvem-se sobre um fundo natural.A intenção do lapidicida também parece, por vezes,enciclopedista como, provavelmente, as evocações da«câmara das estações» do templo solar de Niouserrê,em Abu Gurob, ou o «jardim botânico» de Tutmés III,em Carnac. Por fim, nas cenas de cultivo ou de criaçãode animais tradicionais, como as de caça e de pesca,descobrem-se frequentemente rasgos do artista: algumaservas daninhas num campo à primeira vista impecável,uma profusão de aves coloridas numa acácia, um cro-codilo encolhido no fundo de um curso de água enquantoum rebanho o atravessa, um vitelo lambendo afectuo-samente a mãe, etc. Todos estes pormenores, exami-nados um a um, contribuem para dar vida a cenas cam-pestres com motivos previamente determinados.

Acontece que a alusão pictórica se torne mais geral,menos racional, em benefício de uma paisagem maisampla, mas mais bem situada do ponto de vista topo-gráfico. O solo é materializado, conforme o hábito, porum traço castanho que, serpenteando através dos cam-pos e das árvores, sugere a ideia de um relevo. Tambémos cursos de água, descrevendo curvas e recortes, divi-dem o plano em outros tantos registos irregulares quecriam a ilusão de volume. Estas tímidas tentativas de

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restituição do espaço natural seriam insuficientes paradespertar a nossa imaginação se o estudo da paisagemactual do Egipto, acompanhado pelo do subsolo pormeio de cortes e sondas inspirados nos métodos de pros-pecção geológicos, e ainda pelo das variações do cursodo Nilo, não viesse em nosso auxílio. No Sul, o vale,por vezes muito largo, encontra-se, em certos locais,encaixado entre as falésias dos planaltos líbico e ará-bico. De província em província, passa-se de uma pai-sagem de planície para uma paisagem de montanha.Mas, são sobretudo o rio e os canais que o prolongam,que animam efectivamente os campos, outrora limita-dos à zona inundada, todas as Primaveras, pelas cheias.Nestas terras baixas anualmente ameaçadas pelas águas,as cidades e as aldeias constroem-se em todas as eleva-ções: terraços aluviais, colinas, aglomerações de terrasao longo dos canais. Sabe-se pouco sobre o habitat cam-ponês, não obstante algumas belas descrições:

«Raia mandou construir uma bela casa em frente de Afrodi-topólis, mandou-a construir na margem, [...] (?) como obra paraa eternidade e rodeada de árvores por todos os lados. Em frenteda casa foi escavado um canal e o sono só é perturbado pelofragor das ondas. A vista é repousante. Sentimo-nos [logo] ale-gres só [de passar] pela porta. Enebriamo-nos nos salões. Osenquadramentos das portas, em calcário de Tura, contêm inscri-ções e são esculpidos. Os belos batentes foram refeitos de novoe as paredes incrustadas de lápis-lazúli. Os celeiros encontram-serepletos dos melhores cereais. As capoeiras abrigam gansos cin-zentos. Os estábulos estão repletos de vacas. Um tanque cheio deágua está reservado à reprodução de palmípedes. Os cavalos estãonas cavalariças. Barcas, barcaças e batéis destinam-se ao trans-porte do gado e estão amarrados ao cais, etc.»

A exposição, que começa por uma descrição daquinta como local de permanência agradável, passarapidamente à elaboração de um inventário do patrimó-nio, sem contudo abandonar totalmente o tema inicial.

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A paisagem do delta diferia muito da do vale. Cur-sos de água, pântanos e lagos surgiam abundantemente.A vegetação compunha-se sobretudo de papiros, cana-viais, plantas aquáticas de várias espécies, mas tambémvinhas, pomares e jardins. Junto ao Mediterrâneo esten-dem-se ainda vastas marinhas de sal, exploradas desdea Antiguidade. Os aglomerados, respeitando os capri-chos da morfologia do terreno, são formados por case-bres dispersos, construídos ao abrigo das cheias, emcolinas naturais que em árabe se chamam gezira —ilha —, ou nas margens escarpadas resultantes da esca-vação e da limpeza regular dos cursos de água. Contudo,estabeleceram-se cidades importantes nos principais bra-ços do Nilo, por razões históricas, religiosas ou comer-ciais. Formam, praticamente, colinas artificiais em queas novas habitações se sobrepõem aos vestígios de outrasmais antigas. Chamam-se kom ou tell.

Tanto no delta como no vale, a rede hidrográficaforma um elemento essencial na paisagem, que modelaà sua vontade. Fonte de vida, reserva inesgotável depeixe e de caça marinha, constitui a primeira rede decomunicação do país, muito anterior às estradas. Assim,é muitas vezes representada nesta função. A frota flu-vial era, portanto, importante no Egipto, dando origemao ordenamento de bacias portuárias, cais de embarquee ancoradouros vários que, por sua vez, suscitavam acriação de estaleiros navais, entrepostos, oficinas eanimados mercados. As margens do rio, e as dos canais,que, de resto, a iconografia não distingue, eram locaisde atracção que punham em contacto as populações cam-ponesas com tripulações vindas de outras regiões e doestrangeiro.

Às vezes, porém, os Egípcios sabem esquecer as con-tingências materiais, dando largas à imaginação. Foram,talvez, os escritores do Novo Império que nos deixaramas descrições mais desinteressadas sobre a natureza

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envolvente, nos Cantos de Amor. Estas composições,que se situam no campo, foram particularmente inspi-radas pelas árvores e jardins que se confundem cornos jovens, numa linguagem poética de subtis requintes:

«[...] Pertenço-te, como a terraQue semeei de flores,E de plantas de toda a espécie cujo aroma é suaveComo é encantador o canal que aí se encontra,E que as tuas mãos escavaram.Para nos refrescar, soprando o vento Norte:Um local de passeio maravilhoso [...]»

(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, segundoS. Schott, Lês chants d'amour de 1'Egypte on-ctenne, Paris, 1956, p. 77.)

III — Os desertos

Neste país, em que as culturas ocupam uma ínfimaparcela, as extensões desérticas, apesar de inquietantese inóspitas, fazem parte do quotidiano. Primeiramente,o deserto próximo, aquele que começa quando desapa-recem as terras inundáveis, o das necrópoles, das plan-tas espinhosas e herbáceas; os oásis vêm em seguida,reminiscências pontuais de um antigo vale fluvial para-lelo ao Nilo, no deserto ocidental; por fim, as monta-nhas, ricas em recursos minerais variados, mais oumenos distantes das zonas habitadas; e, depois, asregiões situadas nos confins do país, junto das fronteirasou sobre o litoral do Mar Vermelho, guardadas porfortalezas ou abrigando portos, domínios de populaçõesnómadas, ora atraídas pelas planícies do Egipto, orahostis à sua autoridade.

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De todas estas imensas terras áridas, só as primeirasforam frequentemente objecto de reproduções nostúmulos, na evocação do próprio túmulo e das cerimó-nias que com ele se relacionam, ou mais figuraçõessimbólicas da vaca Hator saindo da montanha tebana,ou ainda em cenas de caça ou de criação de gado miúdo.Esta zona intermédia entre as culturas e o verdadeirodeserto assemelhava-se muito mais a uma savana ou auma paisagem de Sael do que aos campos pedregosose estéreis das regiões mais longínquas.

Povoados desde a pré-história, colonizados desdeo Antigo Império, os oásis do deserto líbico esten-dem-se de Norte a Sul, ao longo de uma larga depressãoque prossegue em direcção a Darfur. Célebres poralguns dos seus vinhos, os vinhedos não são o únicorecurso destes distritos longínquos, administrados porgovernadores. A metrópole dos de Dakhla, remontandoao fim do Antigo Império, foi recentemente descobertaem Balat. Abrange uma área de 3 ha, rodeada por umamuralha de forma sensivelmente quadrada, da qual extra-vasam alguns bairros igualmente cercados por muralhas.Oficinas de oleiros confirmam a existência de um arte-sanato local relativamente desenvolvido. As manadasde burros fazem igualmente parte das imagens referen-tes aos oásis e os sais de natrão, produzidos no maissetentrional dos oásis, constituem matéria indispensávelàs práticas funerárias egípcias.

De facto, os recursos minerais são numerosos nosplanaltos montanhosos que enquadram o vale do Nilo.De naturezas geológicas variadas, foram desde muitocedo terreno propício para pedreiras e minas. Tantoumas como outras recebiam esporadicamente expediçõesde importância variável em função das necessidades.Algumas foram exploradas mais regularmente do queoutras, em determinadas épocas, consoante a políticados soberanos, e conservaram marcas da extracção depedras, metais ou minerais diversos, vestígios dos habi-

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tats operários e dos santuários construídos peloshomens — soldados, trabalhadores braçais, artesãos —separados, por períodos mais ou menos longos, da famí-lia, da casa e dos dos deuses.

A única figuração que conservámos destes territórios desoladosé uma espécie de «mapa do tesouro» de uma secção do ouadiHammamat, no deserto arábico, onde se encontram pintadasesquematicamente, num tolo de papivo, as montanhas escarpadassobre os caminhos que as percorrem, as minas de ouro e os jazigosde prata, as cabanas dos mineiros e o traçado de um poço, o san-tuário dos deus Amon e a esteia do rei Séti I, que também man-dou ordenar ao longo de uma estrada mais meridional uma sériede fontes para facilitar o percurso das tropas enviadas para tra-balhar em outras minas de ouro.

Estes distritos eram objecto de vigilância, assegu-rada por uma polícia especial.

Mais a leste, nas costas nuas do Mar Vermelho, napenínsula do Sinai, nos socalcos líbicos do delta e naBaixa Núbia, tribos beduínas, de diversas origens, vivem,mais ou menos pacificamente, da criação de animais.De vez em quando, por carências pessoais ou por pres-são de elementos externos, ameaçam os interesses egíp-cios nestes sectores estratégicos. Assim, a expediçãoenviada para o litoral do Mar Vermelho por Pepi IIfoi massacrada por um grupo de nómadas, precisamentequando os seus membros reuniam as peças do barcoque deveria conduzi-los ao país de Pount, transportadasdo vale através dos carreiros. Para evitar estes ataquese os de invasores mais perigosos, construíram-se praças--fortes nas diferentes zonas fronteiriças, a partir doImpério Médio. Garantiam não só uma certa segurança,como também serviam de feitorias comerciais nas trocaseconómicas regulares que o país mantinha com os vizi-nhos. As de Seti I, na parte norte do Sinai, foramrepresentadas na sua ordem geográfica, desde o posto

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fronteiriço de Tcharu, no actual canal do Suez, até àPalestina, na parede norte da sala hipóstila do templode Carnac, por ocasião de uma campanha que o reitravou nestas regiões contra beduínos revoltados.O aspecto geral das construções, a presença de poçose árvores encontram-se cuidadosamente descritos. O diá-rio de um oficial das tropas aquarteladas numa delas,no tempo de Merenptah, testemunha a importânciadestes movimentos em todo o sector. Os desertos doEgipto, como se vê, não são regiões desabitadas.

IV — O estrangeiro

Estabelecendo com os vizinhos relações muitas vezesambíguas, o Egípcio sente-se ao mesmo tempo atraídopor países que considera exóticos e assustado com aaventura que constitui, na Antiguidade, viajar pararegiões longínquas. De um ponto de vista mais terra aterra, consoante o potencial militar do Egipto, o estran-geiro constitui uma ameaça grave ou uma fonte consi-derável de enriquecimento para o país. No fim doAntigo Império, apesar das reticências e inquietaçõesque estas populações lhes inspiravam, vários nomarcasde Elefantina aceitam conduzir, em país núbio, expedi-ções das quais não regressam com vida. São enviadospelo soberano para explorar novas rotas e trazem dosseus périplos um grande número de produtos desconhe-cidos no Egipto. Por vezes, precisam de combater, porvezes intervêm em confrontos entre etnias diferentes,muitas vezes estabelecem acordos com algumas delas.Mas, nenhuma das narrativas autobiográficas que nostransmitem estes feitos compreende a descrição dasregiões atravessadas, nem observações sobre hábitos oumentalidades. Acontece o mesmo com as relações entreo Egipto e os outros vizinhos.

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A imagem do faraó massacrando um inimigo, que ficará consa-grada como alegoria profiláctica da supremacia egípcia sobre osvizinhos, já na i dinastia se encontra gravada no Sinai, num ro-chedo do ouadi Maghara. Outro método mágico carregado designificado semelhante só se tornou conhecido a partir da V dinas-tia: figurinhas de feitiço, em madeira, argila crua ou cozida,cera, alabastro ou calcário, cobertas de inscrições hieráticas queencerram listas de nomes de príncipes ou de princesas, simboli-zando os seus países, acompanhadas de fórmulas mais ou menosinjuriosas destinadas a atingi-los através do suporte escolhidopara aniquilar o perigo potencial que representam. Estas figuri-nhas podem ser substituídas por vasos. Encontram-se igualmenteoutras fórmulas mágicas. Muitas vezes despedaçadas e lançadaspara fossos por ocasião das cerimónias de fundação de um monu-mento ou de um conjunto monumental, protegem-se virtualmentecontra a intervenção das forças do mal, sejam elas quais forem.As mais numerosas, feitas de cera, desapareceram nas chamas.Este costume perdurará até à Primeira Época. Paralelamente,listas de nomes de cidades ou de países estrangeiros submetidosao Egipto, ou como tal considerados, inscritos em espaços ovaisaos quais se aplica a silhueta de um prisioneiro, expõem nostemplos, nas bases dos pilonos e das colunas, a imagem inofen-siva dos vencidos oferecidos ao deus. Outros costumes semelhan-tes destinam-se a afirmar o poder universal do Faraó em todasas épocas. A de concepção mais pacífica consiste em fazer figurarou em enumerar os tributários dos países vassalos oferecendo aorei ou ao vizir um contributo anual em homens, rebanhos, cavalos,carros e produtos de luxo.

Estas precauções rituais ou políticas não devemfazer-nos esquecer, porém, que, na prática quotidiana, aintegração das comunidades estrangeiras no Egipto,antes do i milénio, é uma evidência corroborada pormúltiplos testemunhos.

A julgar por um tema literário conhecido, o Egíp-cio, quando viaja para fora das fronteiras do seu país,quando é nomeado para um cargo num protectoradolongínquo, ou quando se exila por razões políticas,sente a nostalgia da terra natal e aspira a regressarpara aí passar os últimos dias, seja qual for o acolhi-mento dispensado pelos anfitriões:

«Vivo em Kenkenato. Não estou bem instalado. Não háhomens para fazer tijolos, nem existe palha nos arredores. A quetrouxe para as primeiras necessidades já acabou, embora não hajaburros para a roubar. Passo os dias a observar os pássaros epesco. Anseio pelo caminho que conduz à Palestina. Estou de-baixo de uma árvore que não dá frutos (?) comestíveis,, poismesmo as tâmaras que não amadurecem desapareceram. Há mos-quitos (?) ao nascer do Sol e moscas (?) ao meio-dia. Os mos-cardos (?) picam e chupam [o sangue] das veias [...].»

Quer se trate de um explorador isolado ou de umexército em deslocação, o trajecto raramente é evocadopor outros pormenores para além da menção de locaisatingidos, atravessados ou ultrapassados. As descriçõesde regiões estrangeiras são excepcionais e caem rapida-mente, como no caso do Egipto, no inventário dosrecursos locais:

«Era uma terra excelente, chamada laa. Produzia figos evinha; o vinho era mais abundante do que a água; havia muitomel e azeite em quantidade; frutos de toda a espécie cresciamnas árvores. Havia também cevada e frumento e os animais maisdiversos eram incontáveis.» (Segundo G. Lefebvre op. cit.,p. 11.)

Quanto às representações de paisagens por ocasiãode expedições pacíficas ou guerreiras, são quase exclusi-vamente reservadas às paredes dos templos, oferecen-do-se ao deus os benefícios daí retirados. Do país dePount conservámos apenas a imagem dada pelos relevosdo templo funerário da rainha Hatchepsout, em Deirel-Bahari. É também o único exemplo conhecido defiguração de uma aldeia africana antes da PrimeiraÉpoca.

Esta encontra-se construída à beira de um curso de água noqual nadam tartarugas e peixes. As cabanas que o compõem sãoconstruídas sobre colunas para as quais se sobe por uma escada.A ausência de perspectiva é compensada pelas dimensões variáveisdas habitações, pela disposição irregular das árvores de incense

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e dos ébanos e pela presença cie animais selvagens ou domés-ticos: um pássaro que voa de árvore em árvore, uma vaca deitadadebaixo de uma delas, um cão errando entre as casas.

As únicas evocações gráficas capazes de ser compa-radas com este quadro único não partilham da mesmaserenidade. Trata-se de aspectos de fortalezas semelhan-tes às cenas correspondentes dos baixo-relevos assírios.Mas, o assalto ou a destruição destas praças-fortessitua-se nos campos vizinhos, quanto mais não sejapara ilustrar a poda das árvores e as colheitas nos cam-pos, às quais se entregam os soldados vencedores. Estasoperações guerreiras não deixam de ser pretexto, porém,para que o artista mostre as florestas do Líbano ou ascolinas arborizadas da Síria.

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Fig. 9. — Uma cabana no país de Pount; cena do templo deHatcbepsotit, em Deir el-Bahari.

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CAPÍTULO V

A VIDA PRIVADA

Muitas vezes obrigado a afastar-se do lar paradesempenhar as tarefas que lhe são confiadas, o Egípcio,alto funcionário ou obscuro trabalhador manual, é muitodedicado aos seus, à cidade e ao país. De resto, esta-belece pouca distinção entre meio familiar, meio sociale meio profissional. Os colegas são muitas vezes o pai,os filhos, os irmãos ou os cunhados, e também os vizi-nhos e os amigos. Não é raro habitar numa casa desti-nada aos que desempenhem as suas funções, situadanum bairro onde residem também os seus parceiros.Se é explorador agrícola e constrói ele próprio a suacasa, esta é animada por pessoas que partilham a suavida de todos os dias e quase se tornam parte da famí-lia. Embora tenham chegado até nós informações pon-tuais sobre a vida privada de pessoas pertencentes adiversas categorias sociais, pelos mais variados proces-sos, quis o acaso que fosse uma comunidade operáriaa que nos legou um quadro mais completo, em todosos aspectos. Esta servirá, pois, como tema de referênciaou de comparação, de confronto com dados exterioresde que possamos dispor.

I — A família

A família no sentido lato, os ascendentes, os des-cendentes e os colaterais, constitui, para o Egípcio, umquadro tranquilizador que expõe com orgulho nos monu-mentos funerários e religiosos, embora não conheça

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nenhum termo especial para a designar. Dispõe, porém,de uma designação para todas as pessoas que moramna mesma casa. Seja qual for a força dos laços quemuitas vezes unem o filho ao pai, é dever do pai incitaros filhos a fundar um lar desde jovens, isto é, a cons-truírem uma casa, ou a repará-la se esta lhes. for forne-cida pelo empregador, e a escolherem uma mulher.A sociedade tende, pois, para a divisão da família emnúcleos mais restritos. Estes núcleos compõem-se dospais, dos filhos e dos parentes a seu cargo: uma mãeviúva, irmãos e irmãs órfãos de pai e demasiado jovenspara serem casados, etc. Estes novos núcleos familiaresestão, portanto, abertos aos membros isolados da famí-lia e, em particular, às mulheres sozinhas ou repudia-das. O bem-estar dos progenitores é uma obrigaçãomoral dos filhos, cuja dedicação pode ser encorajada,como nos nossos dias, pela perspectiva de uma herança.Na verdade, é conhecido um testamento que privavários descendentes da sua parte da herança. Em certasépocas, as sepulturas constituem a última ocasião dereunir os membros cie uma família, desta vez defini-tivamente. Assim, chegamos a encontrar cerca de vintemúmias amontoadas na mesma sepultura, no tempo dosRameses, mas a raridade das inumações ainda intactasaquando da chegada dos arqueólogos, não permite tirarconclusões dos casos examinados. Sabe-se, porém, queem outras épocas o túmulo estava reservado apenas aocasal, excluindo mesmo os filhos de tenra idade, inu-mados em cemitérios diferentes.

No Egipto faraónico, o casamento não parece sersancionado por um rito religioso ou por um acto jurí-dico. Não- é conhecido nenhum contrato de casamentoanterior à Primeira Época, ao contrário do que acontececom o divórcio, que necessita de um apontamentosobre a repartição dos bens pelo casal: cada um ficacom o que tinha quando se casou e os bens adquiridossão divididos pelos dois: dois terços para o homem

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e um terço para a mulher. O casamento, que não pareceser motivo para nenhuma festa familiar, era precedido,como no Egipto moderno, pela entrega de uma espéciede dote pelo pretendente, que esperava, assim, obtera concordância do pai da noiva. A união é, então, con-cretizada pela coabitação do casal. Ao contrário doque acontece com a família real, no interior da qual apoligamia e as relações consanguíneas se justificam pelaconstante preocupação de uma transmissão legítima dopoder faraónico, estas práticas nunca foram aprovadaspelas classes abastadas, nem pelos meios mais modestos,que condenam e punem adultérios e violações. Por outrolado, a separação do casal é frequente, sobretudo entreos indigentes e o novo casamento em caso de viuvezou de divórcio constitui uma regra. O celibato éconsiderado um comportamento associai. A homossexua-lidade só é evocada em contextos mitológicos, o quenão permite apreciar a atitude da sociedade egípcia aeste respeito. Esta, sem mostrar uma complacência acen-tuada pela expressão da sexualidade, parece condenaros falsos pudores. Um erotismo requintado, precursordo que floresce no Cântico dos Cânticos ou na poesiaárabe, está bem patente nos Cantos de Amor:

«[...] A ti dediquei o meu coração.Por ti faço o que ele desejar,Quanto estou deitada nos teus braços;O desejo que sinto de o fazer,É o brilho dos meus olhos [...].»

(Tradução francesa de P. Posener-Kriéger, op. cit.,p. 76.)

Desenhos, estátuas e um papiro pudicamente clas-sificado de «erótico» traduzem essencialmente umaingénua e alegre obscenidade.

As relações conjugais exprimem-se, na maior partedas vezes, na iconografia, sob a forma de respeitoso

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afecto. Mas, os escultores e os pintores raramente seafastam de um repertório de atitudes convencionais,com excepção dos períodos amarniano e dos Rameses,que conservaram algumas cenas íntimas da família real,eivadas de uma comovedora espontaneidade, mais pró-xima da nossa sensibilidade. A literatura romanesca,por seu lado, dedica-se mais à ilustração do ciúme e doadultério do que da ternura ou da paixão. Por sua vez,relatórios oficiais e textos jurídicos dão conta dos agra-vos, das disputas e das discussões que agitavam os laresda época, e mesmo o harém real, local privilegiado deintrigas e rivalidades. A correspondência real ou fictíciatambém realça as relações harmoniosas, ou até amorosas,como se pode ver nesta carta dirigida por um escribaà sua defunta mulher:

«Oh! venerável sepultura de Osíris, a cantora de Amon-Akhtay, que repousa em ti! Ouve-me e transmite [esta] mensa-gem. Pergunta-lhe, já que estás junto dela: "Como te sentes?Onde estás?". Dir-lhe-ás: "Que pena Akhtay não se encontrarvivai". Assim se exprime o teu irmão, o teu companheiro.Que dor por ti, tão bela, sem igual. Em ti, não havia nadade feio. Chamo todo o tempo por ti, responde [àquele] que techama [...].»

As famílias egípcias tinham geralmente muitos filhosmas estes não parecem tão numerosos em casa — doisem média—, devido à elevada mortalidade infantil eporque, desde muito cedo, eram confiados a escolas oucolocados em locais de aprendizagem de um ofício.Quando os pais se separavam, os documentos referen-tes ao divórcio nunca mencionavam quem asseguravaa educação dos filhos, embora estes sejam confiados aopai em todos os casos que se conhecem. Contudo, éprovável que os recém-nascidos ficassem com as mães,pelo menos durante alguns anos. Mas, o assunto nuncaé ventilado e, visivelmente, não oferecia dificuldades.Por outro lado, a esterilidade de um casal constitui

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tema de viva preocupação para os infelizes assim atin-gidos pela sorte. Quando as orações e as dádivas àsdivindades em causa não surtiam mais efeito do que osesforços dos médicos e dos feiticeiros, eram obrigadosa canalizar a sua afeição para filhos de terceiros. Igno-ramos, porém, se, de um ponto de vista legal, se tratade uma espécie de tutela ou de uma verdadeira adopção.

II — A casa

Já por diversas vezes tivemos ocasião de referir aconstrução e o aspecto geral das habitações em meiourbano e em meio rural, a sua atribuição a título pro-fissional, ou de considerar o seu valor. Resta-nos obser-vá-las na sua verdadeira função, como cenário da vidaprivada. Somos levados a classificá-las em duas grandescategorias: as grandes residências e as quintas que reú-nem, em volta do núcleo familiar, toda uma populaçãode empregados, por um lado, e as modestas cabanas emque vive a família em sentido restrito, por outro lado.

Como ignoramos qual o plano de uma exploraçãoagrícola média, do alojamento dos trabalhadores manuaise dos criados relativamente ao dos patrões, a maneiracomo se desenrolavam as refeições e as relações quetodas estas populações mantinham entre si, somos for-çados a recorrer, para ilustrar a primeira categoria, aoplano das residências da cidade da pirâmide de Sesós-tris II, ao das residências dos altos funcionários dacapital de Amenófis IV e às cenas íntimas dos túmulosdo Novo Império.

As casas de Illahoun, que cobrem, cada uma delas, umasuperfície de 2400 m2, são constituídas por sectores suficiente-mente distintos para que se torne possível, à primeira vista,atribuir-lhes as respectivas funções: cozinhas e armazéns possuemmmtas vezes uma entrada de serviço e comunicam por uma sóporta com um vestíbulo que serve o pátio, com pórtico, para

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o qual se abrem os diversos aposentos privados da casa, clara-mente separados uns dos outros; os estábulos têm ainda outroacesso. Das 70 divisões que formam este conjunto, cerca de umterço é ocupado por dependências, e o resto reparte-se por pátiosinteriores que parecem exercer uma função de locais de transição,de encontro e de recepção, uma entrada com quatro colunas quedevia servir de escritório do dono da casa e pequenos grupos dequartos. As residências de Amarna são relativamente menos espa-çosas — 1200 m2 em média — embora os diferentes corpos deedifícios que as compõem se distribuem pelo interior de umgrande jardim cercado — de 2000 a 4000 m2. Não faltam elemen-tos de prestígio —pórticos, rampas de acesso, átrios, vestíbulos,áreas de recepção —, nem de conforto — as casas de banhofazem a sua aparição. A habitação principal, que compreendesempre corpos distintos, mas menos nitidamente isolados uns dosoutros, está completamente separada, desta vez, dos sectoresdomésticos — cozinhas, armazéns c estábulos —, situados juntoda cerca, nas traseiras da casa e dos silos que, por sua vez, seexpõem ao olhar dos visitantes. Uma capela, rodeada de umpequeno jardim, possui uma entrada particular monumental e umacesso, mais discreto, à residência. Muitas pinturas mostram cenasde banquetes abrilhantados por conceitos que reúnem a família,ou cenas mais íntimas de mulheres em sessões de higiene, sendoobjecto de cuidados por parte das criadas.

Conhecemos ainda melhor a organização de uma casaoperária e a vida que aí se processa, graças aos vestígiosarqueológicos, etnográficos e epigráficos da aldeia deDeir el-Médineh.

Ocupando uma superfície que oscila entre 40 e 120 m2, apre-sentam-se habitualmente como uma enfiada de compartimentosde dimensões variáveis, todos eles situados no rés-do-chão. O pri-meiro, junto à ruela, apenas recebe luz da porta da entrada;destinado ao culto dos antepassados e dos deuses ou génios pro-tectores da fecundidade e do parto, comportava um altar con-venientemente decorado, esteias e bustos de deuses do lar.O segundo, situado ao nível da ruela, mais espaçoso e mais altodo que o primeiro, era iluminado por janelas altas dotadas degrades, possuía uma coluna central, escoras de pedra junto àsjanelas e, muitas vezes, portas secretas recordando o patrono daaldeia. Amenófis I e a mãe, Ahmés Nefertari, e ainda dipintivariados. E a sala-de-estar, aquela em que se recebia, onde setomavam as refeições e certamente, como as casas dos actuais

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feias, onde se dormia de noite. Um ou dois retiros ocupavamo espaço deixado livre pela escada que conduzia ao telhado, emterraço, e ao corredor que conduzia à cozinha, por vezes comple-tada, para arrumação dos géneros, por um silo ou uma cave;a cozinha, equipada com um forno para pão, com almofarizes, nosquais as mulheres ao serviço das famílias da aldeia vinham pilaros cereais, com masseiras e reservatórios de água, era descoberta.Para além dos ordenamentos próprios de^cada compartimento ede alguns nichos nas paredes, continham um mobiliário modestode madeira ou de pedra — bancos, cadeiras, camas, baús —, depalha —esteiras, cestos—, cerâmica e panos. Era provavelmenteneste recinto fechado que se desenrolava uma boa parte do diadas mulheres da aldeia e dos seus filhos recém-nascidos. Contudo,deviam visitar-se umas às outras e conversar, junto ao fogão,sobre os últimos mexericos da terra.

III — O meio envolvente

Para alérn da família e de todos os residentes emsua casa, o Egípcio estabelecia certamente laços de vizi-nhança ou de amizade com outras pessoas, comodemonstram inequivocamente certos indícios, se bemque raros. Abre-se pouco, todavia, quanto à sua vidasocial, que parece desenvolver-se sobretudo em voltado mundo profissional. Mas, há circunstâncias que opodem subtrair ao universo familiar: as grandes festasreligiosas e as manifestações oficiais da realeza nas quais,por vezes, se encontram pessoas de todos os meios, aguerra, as viagens em que o Egípcio se confronta comcostumes e mentalidades que o desconcertam, mas nasquais sabe estabelecer relações cordiais com os interlo-cutores ocasionais, e também os mercados, que põemem confronto negociantes de todas as origens com aspopulações autóctones. Mas, ignora-se completamentese estes contactos conduzem, por vezes, a relações regu-lares ou se são apenas epifenómenos. As raras activi-dades extraprofissionais do Egípcio, justas desportivas,caça, pesca, responsabilidades municipais, práticas reli-giosas e demonstrações de convívio desenrolam-se no

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,

estrito quadro da aldeia, do bairro ou, quando muito,da região.

As fontes de que dispomos são praticamente omis-sas quanto a estes temas, que só raramente surgemfigurados e que, mesmo neste caso, só excepcional-mente comportam algumas indicações sobre o contexto,a identidade dos protagonistas e o significado real dassituações evocadas. Quanto aos testemunhos epistolares,não contentes por aludirem sibilinamente a temas conhe-cidos apenas pelos correspondentes, o que é normal nascartas, mas limita o seu interesse documental, misturamassuntos pessoais e assuntos profissionais, o destinatário,uma esposa, um parente, um homem de confiança, clis-pondo-se a resolver toda a espécie de problemas: a vidaprivada parece ter sido muito mais pública do que hojese poderia admitir. Por fim, é a escolha das pessoas queo Egípcio pretende que figurem nos seus monumentosque mais nos diz sobre as suas afinidades electivas.Alguns mostravam preferência pelos seus superiores,outros por simples amigos, outros ainda por fiéis servi-dores, consoante o seu carácter e a natureza das rela-ções que mantinha, de facto, com uns c outros. Mas,mais uma vez, as informações são escassas e, em muitoscasos, convencionais.

Assim, teremos de restringir o estudo unicamenteà comunidade de Deír el-Médineh que, como é evidente,não nos pode dar conta de outros meios sociais. Paraalém do trabalho propriamente dito e das relações comas autoridades da região, que parecem ocupar durantemuito tempo os homens da aldeia, visivelmente beminformados sobre a actualidade e as suas consequênciassobre a existência, estes sacrificam-se bastante às exi-gências da vida comunitária. Se os chefes têm por mis-são zelar pela distribuição equitativa das rações, pelobom funcionamento dos serviços comunitários — abas-tecimento de água, distribuição correcta do trabalho dosescravos por cada lar, etc. — e assegurar a calma no

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trabalho e na aldeia por meio de medidas preventivas,com a ajuda do guarda, dos porteiros e dos polícias doTúmulo ou, se necessário, convocando o tribunal local,todos, incluindo as mulheres, participam quotidiana-mente no cumprimento destas tarefas. Encarregam-seda distribuição dos géneros alimentícios, emprestam oualugam burros para esta mesma distribuição ou, respei-tando o juramento feito ao entrarem para a equipa,denunciam os comportamentos delituosos que surpreen-dem, ou são jurados, se for caso disso. Toda esta gestãoe estas tentativas, mais ou menos desajeitadas, de manteruma disciplina indispensável num meio submetido àstentações que constituem as sepulturas reais e o seuconteúdo não se passam sem dificuldades, e turbulênciasfrequentes agitam este pequeno grupo logo que umapersonalidade um pouco mais forte do que as outrasprocura exprimir-se. As festividades locais e as devo-ções colectivas são outras tantas ocasiões quotidianasde reunião dos aldeões, assim como a atribuição deuma concessão no cemitério e a consequente procura daentrada perdida da antiga sepultura que aí se encontra,ou os trabalhos de construção do novo túmulo, quereúnem os amigos dispostos a dar uma ajuda.

Embora as relações entre os aldeões constituam oessencial dos seus contactos sociais, estes homens eestas mulheres não vivem totalmente fechados sobresi mesmos. Para além das visitas que fazem aos mem-bros da família disseminados pela região, ou das quedeles recebem, por ocasião de nascimentos e funerais,vão muitas vezes às aldeias ou templos vizinhos, aomercado situado à beira do rio, ou mesmo à outramargem, para tratar de assuntos, isto é, para fazer umpouco de mercado negro ou algum negócio, como teste-munham os contratos que legalizam estas operações ealgumas cartas referentes aos termos da encomenda, àsinstruções de execução, ou às recriminações que seseguem à entrega da mercadoria. Alguns homens da

aldeia, em particular os chefes, e as respectivas mulhe-res, usam títulos religiosos honoríficos que os unemaos cultos dos santuários da região, participando muitoprovavelmente nos serviços celebrados, em especial porocasião de cerimónias particulares ou das festas do deus,como cantores, por exemplo.

IV — As devoções

Os actos piedosos ocupam um lugar importante navida quotidiana do Egípcio, quer seja rei, cortesão ouhomem do povo. Habitante de um país rico em divin-dades, privilegia, em primeiro lugar, os deuses da suacidade, que honra de maneira diferente conforme a suasituação social. Faraó, construirá templos através detodo o Egipto, recheando-os de riquezas; nobre, man-dará erguer uma pequena capela, um nicho, uma esteiaou simplesmente uma estátua; mais modesto, quotizar--se-á com outros para proceder do mesmo modo. Poderáainda desempenhar uma função sacerdotal num santuá-rio próximo onde cumprirá regularmente os seus deve-res religiosos. Longe da sua cidade, recorda os seusdeuses, mas entrega-se à protecção dos deuses locaise pode mesmo ocupar cargos honoríficos junto deles.São sobretudo cartas que nos transmitem estas práticas,muitas vezes proclamadas em grajfití, e o seu autornunca entra em pormenores sobre o assunto sem pri-meiro colocar o correspondente sob a protecção dosdeuses da cidade que o recebe, o que nos informasimultaneamente sobre o local de emissão do documento.

As grandes festas do calendário e aquelas em queas divindades de uma região se visitam, em viagens debarco que se prolongam por procissões de santuário emsantuário, dão origem a feriados em que a populaçãoda região veste os melhores fatos a fim de participarou assistir. Estas festas processam-se ao longo do ano,

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à razão de várias por Lua. São festas epónimas dosmeses, muitas vezes relacionadas com as estações — ascheias, as colheitas, etc. —, que veneram os laços queunem os deuses entre si, ou apresentam um carácterfunerário e comemoram um episódio da vida de Osíris.Outras, ainda, perpetuam a memória dos reis defuntosmais populares no dia do aniversário da sua coroaçãoou da sua morte. Estas devoções colectivas não se pro-cessam de maneira uniforme. Umas deslocam multidões,outras celebram-se localmente, tanto nas grandes metró-poles como nas mais pequenas povoações. Algumas dãolugar a rituais adaptados, libações, sacrifícios ou oferen-das, outras consistem em ágapes.

No âmbito mais restrito do bairro ou da aldeia, opovo multiplica as imagens piedosas e transforma cadauma delas no suporte específico de uma crença parti-cular. Junta-lhes ainda os animais sagrados destas divin-dades, as insígnias, os emblemas. Atribui poderes sobre-naturais a elementos da paisagem, como os picos deTebas, ora serpente, ora leoa, e votados ao silêncio.Acolhe igualmente com entusiasmo cultos origináriosde todo o Egipto e dos países vizinhos, veiculados porprisioneiros estrangeiros, operários e artesãos enviadosde um estaleiro para outro. Este panteão popular e asdevoções que com ele se prendem assumem formasesquemáticas como as esteias de orelhas, destinadas atransmitir melhor as orações dos crentes. Forma-se umpequeno clero ern volta destes ícones e dos símbolosque geram e constroem-se edifícios sagrados em suahonra. Recebem regularmente oferendas, animais engor-dados para serem sacrificados, cerveja expressamentefabricada. Os devotos reúnem-se em celebrações priva-das. Os mais venerados são levados em procissão e tor-nam-se oráculos. Estas manifestações secundárias dareligião, que devem muito à magia, também se prati-cam na periferia dos grandes santuários: oráculos, oni-

Fig. 10. — Emblema da deusa Anoukis, proveniente de Deir el--Médineh, Museu do Louvre (cliché Chuzeville).

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romancia, astrologia, venda de feitiços são subprodutoscorrentes destes locais sagrados. Mas, a religião, sobtodas as suas formas, não se reduz a templos e capelas.Mesmo em casa, pinturas, esteias e estatuetas atraempara o lar a benevolência dos deuses, dos génios e dosdefuntos. Os gestos de devoção individual ou familiarnão são raros. A conservação do culto dos mortos cons-titui, evidentemente, a manifestação mais banal, masas peregrinações à cidade de Abidos, junto de Osíris,o príncipe dos Ocidentais — dos mortos — tornam-secorrentes a partir do Império Médio.

V — O lazer

O rei aborrece-se. Para o distrair, os filhos contam--Ihe, cada um por sua vez, os prodígios acontecidosno tempo dos antepassados. É o encadeamento esco-lhido pelo autor dos contos do papiro Westcar paraintroduzir as suas histórias. Uma delas refere-se aofundador da ni dinastia, Senéfru, que já nesse tempocarecia de diversões. O seu mago, precursor dos nossosprodutores de revistas parisienses, não foi apanhadodesprevenido:

«Que Sua Majestade se dirija para o lago do palácio — vida,saúde, força. Manda equipar uma barca com todas as jovens boni-tas que se encontrem no palácio. O coração de Sua Majestadedivertir-se-á ao vê-las remar, para cima e para baixo [...].»

A ideia seduziu o monarca:

«Vou certamente organizar um passeio aquático. Tragam-mevinte remos de ébano com incrustações de ouro e cabo de sân-dalo (?) enfeitado de ouro fino. E tragam-me vinte mulheres,bonitas de corpo e de peito, de cabelos entrançados e que aindanão tenham tido filhos. E tragam-me ainda vinte cortes de tecidoarrendado para entregar às mulheres, depois de se despirem.»(Segundo G. Lefebvre, op. cit., p. 78.)

Os soberanos do Novo Império, por seu lado, entre-gavam-se mais à arte da caça, que praticavam nos deser-tos do Egipto e mesmo na Núbia. A caça e a pescasão simultaneamente um desporto e a expressão sim-bólica da vitória do Faraó, e dos súbditos, sobre asforças do mal. Processam-se, ainda, nos pântanos doFayum ou do delta: aí, já não se trata de leões, nemde órix nem de búfalos, perseguidos e crivados deflechas, mas de crocodilos e hipopótamos, apanhados aarpão, de caça marinha pescada à rede, como peixes,ou atingida em pleno voo com a ajuda de uma arma dearremesso. Os combates desportivos também tinhamos seus adeptos. Luta e jogos de competição eram alvode atenções e os feitos de Amenófis II no tiro ao arcoforam considerados dignos da construção de uma esteiadestinada a comemorá-los.

A dança, bem como a música e o canto, têm muitasvezes uma conotação religiosa, mesmo quando se expri-mem num quadro profano. Contudo, os concertos ser-viam de complemento requintado dos banquetes, tãoapreciados pelos Egípcios, a julgar pelos relevos e pin-turas dos túmulos e pelos instrumentos de música queacompanhavam os restos mortais de operários, mesmodos mais modestos, que viveram na xvin dinastia.O teatro limitava-se a dramas mitológicos e não pareceter saído dos recintos sagrados, ao contrário do queaconteceu com outros géneros literários: contos, epo-peias míticas, fábulas, máximas e composições poéticaslidos ou recitados em público. Os jogos de sociedadeexistem desde as épocas mais remotas e alguns deleseram colocados na sepultura com o único fim de dis-trair o morto. Havia o jogo da serpente e outros jogosde dados e piões semelhantes aos actuais. Figuram, deresto, nas vinhetas do Livro dos Mortos. A invenção depalavras cruzadas literárias constituía uma maneira depassar o tempo mais intelectual. Mas todos estes jogos,

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espectáculos, actividades físicas, artísticas ou eruditasembora revelem recursos do corpo e do espírito, repre-sentam sobretudo excelentes pretextos para que o Egíp-cio exerça o seu passatempo favorito que, através detextos de todas as épocas e em todos os meios, pareceresidir em discussões e comentários animados e inter-mináveis. CAPÍTULO VI

AS MODALIDADES DO QUOTIDIANO

I — A alimentação

Se a função nutriente do Faraó — «as suas palavrascriam alimento» — é suficiente para mostrar a impor-tância que o Egípcio atribuía à alimentação na vidaquotidiana, as provisões previstas por ocasião da che-gada do soberano e do seu exército garantem-lhe lar-gamente a satisfação das suas necessidades: uma listade géneros alimentícios encomendados num destesmomentos nada fica a dever às que se elaboravam emhonra do Rei de França ao regressar de uma campanhamilitar.

Em primeiro lugar, recorre-se aos cesteiros para prepararem10 tabuleiros, 500 cestos e 100 coroas para a decoração floral.iDevem estar expostos nunca menos de 30 000 pães e bolosdiversos. Seguem-se 300 cestos de carne seca, e vísceras, leite,creme, 50 gansos, fruta, legumes e carvão para fazer lume. Maisadiante, aconselha-se mel, pepino, alfarroba e alho francês eresume-se o essencial: pão, cerveja, carne e bolos. Em seguida,a enumeração prossegue com óleos, carne de vaca, aves, todaa espécie de peixes, pombos, leite, creme, novamente legumes,uma qualidade especial de cerveja, vinho, etc. Aconselha-se viva-mente o requinte na apresentação das iguarias e no serviço:baixela de ouro e prata, os mais belos escravos equipados paraa ocasião, etc. Não estamos muito longe dos banquetes romanos,símbolo da decadência. Por outro lado, ignoramos as circunstân-cias deste acolhimento e a qualidade do anfitrião que o organiza.

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O Egipto dispunha de alimentos de toda a espéciee, se importa do estrangeiro, é porque se pode ofereceresse luxo, luxo que parece abranger, em diversos graus,a maior parte das categorias sociais, uma vez que seencontram etiquetas de jarros de vinho e de recipientesde óleo estrangeiros mesmo nas aldeias dos operáriosdo Faraó. De testo, talvez se trate de presentes ofere-cidos pelo próprio Faraó por ocasião de jubileus, porexemplo. A base da alimentação é o pão e a cerveja,fabricados respectivamente com frumento e cevada.A distinção entre pães e bolos não é muito nítida e,entre as dezenas de variedades existentes, algumas eramcontempladas com a adição de leite, tâmaras ou mel.Assim, encontram-se algumas espécies de cerveja, eoutras bebidas fermentadas, à base de tâmaras, comopor exemplo a seremet. Quanto ao vinho, embora a suapreparação seja um tema apreciado por pintores eescultores, é essencialmente uma bebida servida em fes-tas. Se as carnes não entram nas ementas quotidianas,os Egípcios nem por isso deixam de as consumir maisdo que durante muito tempo se pensou, como mostramestudos recentes. Este consumo não se limitava à carnede vaca, de caça e às aves de capoeira que ornamentamsobretudo os altares dos deuses e as mesas dos mortais:incluía igualmente cabras, carneiros e porcos, mais bara-tos e abundantes nas aldeias. Mas, era sobretudo opeixe, tão comum no Nilo, no Mediterrâneo e no MarVermelho, que se encontrava em todas as mesas. Tantoa carne como o peixe, quando não se comiam frescos,podiam ser secos ou conservados. De acordo com ostabus próprios das divindades de cada região, certosanimais eram localmente protegidos ou proscritos.O Egipto cultivava um grande número de legumes ede plantas aromáticas e toda a espécie de frutos, comose pode ver nas figurações e nos restos recolhidos detúmulos e habitações. O leite e os lacticínios encon-tram-se presentes mas não parecem fazer parte do con-

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sumo corrente, enquanto as gorduras animais e vegetaissão indiferentemente utilizadas.

Todos estes produtos nos foram transmitidos porimagens, pelo nome e pelos vestígios que a secura excep-cional do clima por vezes preservou até hoje, mas oshábitos culinários que presidiam à sua preparação man-têm-se herméticos a ponto de ser legítimo perguntai-se, para além de alguns princípios elementares de coze-dura, se pode verdadeiramente falar de culinária. Naverdade, é visível, por vezes, nas paredes dos túmulos,o acto de grelhar uma ave, assar um pedaço de carnede vaca ou cozer algumas pecas com osso. Mas, nadamais, a carne nunca é preparada, os legumes nuncasão cortados em pedacinhos, às rodelas. Não é conhe-cida a mais elementar receita de cozinha, de pastelariaou de molho. Os textos que louvam os méritos de umamesa ou comentam uma refeição referem-se ao cerimo-nial ou à disposição dos alimentos, mas nunca aostalentos do dono ou da dona de casa. Talvez a cozinhanão fosse objecto de transmissão oral. A curiosidadegastronómica dos Franceses não pode ser satisfeita.

Porém, os banquetes, mesmo num contexto familiar,parecem momentos privilegiados da vida dos Egípciose as atenções de que os rodeiam — flores, cones cie per-fume, concertos — são comparáveis aos nossos arranjosflorais, candelabros e ambientes musicais. Não se pense,contudo, que anfitriões e convidados se sentavam ale-gremente à volta de uma grande mesa, ou se sentavamem almofadas em volta de um tabuleiro. As figuraçõesmostram-nos sentados lado a lado em cadeiras ou ban-quinhos, não muito longe de aparadores carregados demanjares, e servidos por um grande número de criados,enquanto músicos e cantores os distraíam. Ao contráriodo que acontece com estes, vivos e graciosos, os con-vivas parecem demasiado ocupados em aspirar o aromada flor de lótus que têm na mão e em equilibrar, sobrea peruca, o cone de gordura aromática que derrete len-

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tamente para poderem comer ou conversar à vontadecom os vizinhos. Na verdade, exigimos a cenas rituaisde carácter funerário, a refeição do defunto e da esposa,venerados por alguns íntimos, que nos restituam oclima dos jantares profanos, momentaneamente iludidospela abundância das iguarias, pela graciosidade dos cria-dos, pelo encanto da música. Pensávamos encontraruma alegre companhia e deparamos com uma celebraçãofúnebre.

II — A saúde

O Egípcio inclui a saúde nos três votos de cortesiamais frequentemente formulados, logo a seguir à vidae à boa forma, que distingue da ausência de doença.O que sabemos do seu regime alimentar médio jogasobretudo a favor do equilíbrio alimentar: cereais, pro-dutos frescos, consistindo em peixe, legumes verdes eféculas, fruta, assim como carne e, ocasionalmente, pro-dutos lácteos. É verdade que, por vezes, se revelamcarências, mas estas não resultam de erros alimentaresgeneralizados. Embora alguns períodos de fome, pro-vocada por cheias demasiado fracas ou demasiado vio-lentas, tenham atingido o país por diversas vezes aolongo da sua história, nada nos diz que os pobres sofres-sem de fome habitualmente. Quanto à obesidade quecaracteriza, na iconografia, toda a classe dos funcioná-rios de uma categoria mais ou menos elevada, ela éprovavelmente sinal de uma alimentação demasiadoabundante e da ausência de exercício. Não pode, por-tanto, verificar-se no corpo do Faraó, cujos feitos des-portivos asseguram um aspecto fundamental do seupoder: a força física. Os antropólogos e os paleopatolo-gistas verificaram, nos corpos que tiveram oportunidadede examinar, um certo número de doenças, parasitoses,deformidades, fracturas e intervenções cirúrgicas mais

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ou menos radicais, etc., que contribuem para nos infor-mar sobre a higiene, os riscos corridos e os remédiosfornecidos.

A partir da xvm dinastia, encontram-se instalaçõessanitárias mais ou menos rudimentares nas habitações.Pode tratar-se, como na casa do mestre de obras quemandou construir o templo funerário de Tutmés IV,em Tebas, de um suporte, alto e em forma de tubomais aberto em baixo e de algumas tinas de cerâmicadispostas num compartimento destinado às abluções, deuma latrina como a do mobiliário do chefe da equipaKhâ, em Deir el-Méclineh, ou de verdadeiras casas debanho, com esgoto, como em Amarna. Contudo, exis-tem complicadas redes de canalização nos templos desdeo Império Antigo e um sistema de esgotos permitiaa evacuação das águas sujas no Império Médio, nafortaleza de Bouhen, na Segunda Catarata: é provável,pois, embora não tenham sido assinalados nas ruínas deKahun, que ordenamentos semelhantes já se encontras-sem presentes em palácios do Antigo e do Médio Impé-rio. A lavagem da roupa, muitas vezes representada nasparedes dos túmulos, faz-se nas margens dos cursos deágua, em grandes tinas de barro. Vassouras usadas,encontradas nas habitações, mesmo modestas, testemu-nham o zelo das donas de casa e das crianças, enquantoo grande número de camadas de cal que ainda hoje sepodem contar nas paredes das casas mostram o desejode asseio e saneamento. Apesar destas práticas dehigiene e do uso de produtos desinfectantes, como onatrão para a pele e a galena para os olhos, os Egípciosadoeciam.

Recorriam, então, ao médico, ao sacerdote de Sekmetou ao encantador de escorpiões, isto é, ao feiticeiro.Na maior parte das vezes, para maior segurança, com-binavam-se os dois métodos. Conhecemos a medicinaegípcia através de uma dezena de papiros médicos quecontêm tratados — tratado do coração e dos seus vasos,

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tratado das doenças do estômago, tratado de patologiaexterna e de cirurgia óssea, etc. — e de colecçõesde receitas classificadas por capítulos — olhos, ouvi-dos...—, que ora referem remédios caseiros, ora defeiticeiros. Estes métodos, para nós contraditórios, eramentão considerados pelos médicos, e pelos doentes, per-feitamente compatíveis, ou mesmo complementares.Apesar das intervenções exigidas pelos costumes e pelosembalsamamentos, os Egípcios não pareciam possuir umconhecimento muito desenvolvido da anatomia docorpo humano. Por outro lado, a ginecologia e a obste-trícia preocupavam muito os médicos, que descrevemdoenças, deformidades e remédios. As inflamaçõesoculares, os traumatismos de toda a ordem e as pertur-bações da digestão, juntamente com as várias espéciesde febres, são os males mais frequentes. Desde o AntigoImpério que se conhecem médicos. Seja qual for o seutítulo e a sua função, recebem uma formação mais oumenos científica ou mágico-religiosa nas Casas de Vidae nos templos e tratam ao mesmo tempo a manifesta-ção dos males por meio de poções, unguentos, fricções,etc., e as causas — um gesto que despertou a raivade uma divindade, por exemplo — por meio de encan-tamentos, do uso de um amuleto adaptado à situação oude um ex-voto ao deus enfurecido.

III — O vestuário

Para definir as diferentes maneiras de vestir dosEgípcios, dispomos de várias categorias de documentos:o próprio vestuário, quando conservado, as listas desti-nadas a controlar a lavagem da roupa, a distribuiçãode vestuário, ou a sua menção em contratos, e a icono-grafia. Estas três fontes, a priori complementares, nãoencaixam, muitas vezes, umas nas outras. Poucos nomesde tecidos e de peças de vestuário foram correctamente

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identificados e só muito raramente existe alguma seme-lhança entre o vestuário de linho fino, plissado e trans-parente que homens e mulheres usam com elegâncianas pinturas, nos baixos-relevos e nas estátuas de cer-tas épocas e os testemunhos mais ou menos grosseirosque chegaram até nós. A nudez não é encarada comonas nossas civilizações modernas. É própria da infância.Quanto aos adultos, o homem encontra-se muitas vezesde tronco nu, vestido com uma tanga curta quando exe-cuta um trabalho manual, ou com uma tanga maiscomprida nos outros casos, e a mulher usa, muitas vezes,uma saia vaporosa de alças largas que deixam ver opeito; de resto, o corpo apresenta-se frequentementecoberto com véus transparentes que o valorizam; ascriadas, por vezes, limitam-se a ocultar o sexo. Comoroupa interior, o homem usa uma pequena tanga trian-gular; não conhecemos peças de roupa interior feminina.

Os operários do Túmulo recebiam, como outrascategorias de funcionários, vestuário de trabalho: túni-cas (mss) e tangas curtas (rwdw), tangas compridas ougrandes xailes (d3iw) para os chefes. Na corte deSéti I, em Mênfis, as mulheres-escravas são dotadasdestas duas primeiras categorias de vestuário e a ter-ceira aparece no guarda-roupa das damas. O carácterunissexo dos fatos mais simples é compreensível: amaior parte limita-se a cortes de tecido de linho dedimensões variadas que podem usar-se de acordo comas situações e as modas; a única verdadeira peça devestuário que o Egípcio parece ter conhecido é a túnica.Existiam, contudo, vários modelos, como mostram cla-ramente as representações: curtas ou compridas, amplasou justas. Os exemplares conservados dividem-se emdois grupos. O primeiro compreende peças de um sócorte, em que o decote foi aberto e os lados cosidos,deixando uma abertura para os braços. O segundoabrange várias peças de vestuário semelhantes aos actuais

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vestidos: compõem-se de um encaixe feito de umpequeno rectângulo de tecido em que foi recortado odecote, de duas mangas, e de uma saia, formando umapeça única. Um casaco com mangas parece concebidosegundo o mesmo princípio. O enxoval do rei Tu-tankhamon compreendia ainda luvas.

O vestuário dos particulares apresenta, por vezes,pregas ou presilhas, como ornamento, e fragmentosarrendados, confeccionados segundo a técnica domacramê recordam, entre outras coisas, o vestuário dasremadoras de Senefru; mas, até agora, os tecidos maisricos foram encontrados nos túmulos reais: os enfeitesque os embelezam podem ser tecidos, pintados, bor-dados; as orlas são embainhadas, franjadas ou enfeita-das com galões de um só tom ou multicores. Por fim,vêem-se imitações de peles, feitas de linho em tecidoscuja utilização é mal conhecida, embora tenha chegadoaté nós uma imitação pintada de pele de leopardo dosacerdote sem datando do período greco-romano. Osrestos de vestuário que o clima excepcional do Egiptoconservou distribuem-se por toda a história do país,desde as primeiras dinastias. Com raras excepções, foramos tecidos mais fortes, menos delicados, portanto, queresistiram, transmitindo-nos uma imagem muito incom-pleta do vestuário egípcio. Importantes variações intro-duzidas em modelos à primeira vista pouco numerosos,sobretudo graças ao emprego de diferentes tramas e àsvariações dos plissados, testemunham uma fantasiainventiva. Felizmente, as representações estão de acordocom os vestígios encontrados. Se confirmam tendênciasestáveis na maneira de vestir, revelam modas no vestuá-rio festivo, o interesse dos Egípcios pelos tecidos colo-ridos vindos do estrangeiro, a partir do Império Médio,as diferenças entre o vestuário das damas e das criadas,quando estas estão vestidas, ou os fatos especiais reser-vados às divindades e a certos sacerdotes. Quanto àssandálias, fabricadas segundo um modelo único de

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biqueira curva e presilha passando entre os dois pri-meiros dedos, eram feitas de fibras vegetais entran-çadas, assim como de couro natural ou pintado debranco, com excepção das sandálias de Tutankhamon,impróprias para a marcha.

IV — A higiene e os adornos

A higiene da estátua do rei defunto ou do deus eaquela a que os sacerdotes procedem antes de pene-trarem nos sectores mais sagrados dos templos sãoo protótipo dos cuidados corporais usuais: abluções,purificação da boca por meio de natrão, corte da barba,depilações, fricções com óleos e unguentos perfumadose fumigações de incenso. A existência de barbeiros, decabeleireiros, de manicuras, pedicuras e esteticistas entreos criados e criadas de sua majestade ou dos cortesãosmostram bem os cuidados que os Egípcios dedicamao seu aspecto. Uma aparência desalinhada atrai o des-prezo dos outros. Práticas quotidianas de higiene etratamentos de rejuvenescimento ou cie beleza chegaramaté nós através das representações que, embora rara-mente propondo verdadeiras cenas de higiene, valorizamo resultado obtido, pelos objectos de higiene encon-trados nos túmulos e em habitações e, sobretudo, pelasreceitas preconizadas que figuram em tratados médicos.Umas destinam-se a purificar o hálito, outras a embe-lezar o rosto, a eliminar as sardas ou sinais desengraça-dos, outras, ainda, procuram lutar contra a calvície oucolaborar no rejuvenescimento do paciente. Os métodosutilizados vão de fumigações aromatizadas com madeirade olíbano e resina de terebinto até à preparação deunguentos utilizando mel, natrão vermelho e sal, comadição, ou não, de pó de alabastro, ou uma decoraçãode feno-grego.

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Os produtos de maquilhagem visíveis nas pinturasrepartem-se por duas categorias: os que se destinama realçar a beleza dos olhos, à base de colírio de anti-mónio, de malaquite ou de galena, e os que dão corà tez. As matérias utilizadas são trituradas em almofa-rizes especiais, e depois misturadas com óleos ou cre-mes, conservadas em pequenos boiões de pedra dura oude vidro, antes de serem recolhidas, provavelmentecom lindas colheres esculpidas, no momento da apli-cação. Os estojos de maquilhagem compreendem umfrasco e estiletes. Lâminas e pinças figuram entre osacessórios femininos e masculinos. Quanto aos perfu-mes, conhecemo-los melhor através dos textos gravadosnos laboratórios sagrados dos templos do que atravésdas menções profanas, embora se encontrem muitosfrasquinhos nos equipamentos funerários conservados.O cabelo constitui um elemento fundamental de adorno.Assim, tanto os homens como as mulheres lhe dedicamuma atenção especial, como testemunham os pentes, osferros de frisar, os alfinetes e, sobretudo, as perucas.De facto, se os homens usam o crânio rapado ou ocabelo muito curto, ou ainda uma longa peruca, váriascabeleiras femininas feitas de cabelo e de fios de lãentrançados em conjunto conservaram-se perfeitamenteaté aos nossos dias. Por fim, o Egípcio, quando se vestea rigor, não deixa de completar a sua aparência coma ajuda de jóias florais, de fantasia ou preciosas: grinal-das de lótus, colares, alfinetes de peito, brincos, anéis,pulseiras, etc. Para alcançar o gracioso efeito que asimagens nos transmitem, dispõem do olhar das aias oudos familiares mais próximos e dos reflexos um tantoconfusos que os espelhos de bronze cuidadosamentepolidos lhes devolvem.

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Fig. 11. — Peruca de Méryt proveniente de Deir el-Médineh,Museu Egípcio de Turim (cliché Museu de Turim).

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CONCLUSÃO

Em todos os períodos da sua história, o Egiptolançou um olhar lúcido sobre o país, o governo, oscostumes e as mentalidades da época que atravessava.Estas reflexões, ora optimistas, ora desencantadas, expri-mem-se através de alguns escritos de elevado nível morale de uma subtileza de espírito que os aproximam dopensamento filosófico. Os relatos sobre a concepçãodo mundo, que podemos ler nas paredes dos templosou nos monumentos deles provenientes, são elaboraçõesteológicas que sintetizam e explicam, por diversos arti-fícios materiais, mitológicos e filológicos, fenómenoscientíficos e abstracções. As colectâneas de preceitosmorais aconselham ou confirmam a maioria das obser-vações que fizemos sobre os costumes e as disposiçõesconsideradas justas ou injustas em relação aos supe-riores, à mulher, ao meio, aos subordinados, aos pobres,aos desonestos, aos violentos ou aos estrangeiros.O Diálogo do Desesperado com a sua Alma, que remontaao Primeiro Período Intermédio, confronta um pessi-mista com o seu ser imortal, que ameaça abandoná-lose ele não gozar a vida: trata-se provavelmente damais antiga pesquisa introspectiva da história da huma-nidade. Não é uma composição isolada, mas um ensaiorepresentativo de uma corrente de pensamento susci-tada pela ruína contemporânea do país. Mais tarde,no Império Médio e no Novo Império, O Canto doHarpista faz o elogio, nas suas mais antigas versões, damorte e da vida para além do túmulo. Em seguida,

surgem dúvidas quanto à existência no Além, as quaisservem de justificação para exortações de carácter hedo-nista. Mas, são talvez os versos que expõem a relativi-dade da condição humana, seja qual for o nível dasociedade em que nos colocarmos, e a natureza efémeradas nossas obras mais duradouras que propõem a melhordemonstração de uma reflexão que atingiu a maturi-dade:

«[...] As gerações desfalecem e desaparecem,Outras surgem no seu lugar desde os tempos dos

[antepassados,Os deuses que viveram antigamente,E repousam nas pirâmides.

Os nobres e os bem-aventurados também,Encontram-se sepultados nos túmulos.Construíram casa cujos vestígios já não existem.Que lhes aconteceu?

Escutei as palavrasde Irnotep e de liordjedefQue estão citadas em provérbios,E sobrevivem a todas as coisas.

Que aconteceu aos locais que lhes pertenciam?As paredes desmoronaram-se,As praças desapareceram^,Como se nunca tivessem existido f . . . J»

(Tradução francesa cio P. Posener-Krléger, op. cif.,p. 75.)

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BIBLIOGRAFIA

Os imperativos desta colecção não permitem, como é evi-dente, citai: os numerosos artigos especializados que inspiraramesta breve síntese, nem a totalidade das publicações consultadassobre determinados pontos. Contudo, importa remeter o leitormais curioso para algumas grandes obras que se debruçam sobreas estruturas da sociedade egípcia,, para colectâneas de traduçõesde textos e para estudos iconográficos, colocando os própriosdocumentos à sua disposição.

Respeitando às INSTITUIÇÕES E À SOCIEDADE, consulte-se:

D. D. Berliev, La classe laborieuse en Egypte au MoyenEmpire (em russo), Moscovo, 1972, e Lês relations sociales enEgypte au Moyen Empire (em russo), Moscovo, 1978; J. Cerny,A Commtmity of 'Workmen at Thebes in the Ramessidc Period,Cairo, 1973, e Valley of the Kings, Cairo, 1973; W. Helck,Untersuchungen zu àen Eeamtentitelm dês Ãgyptischen AltenReiches, Gliickstadt-Hamburg, 1954. e Zur Wervalttmg dês Mitt-leren und Newen Reichs, Leyde, 1958; G. Ogden, Tivo aspectsof the Royal Palace in the Egyptian Old Kingdom, Colômbia,1982; P. Posener-Kriéger, Lês archives du temple ftméraire deNéferirkarê-kakái, Cairo, 1976; e D. Valbelle, «Lês ouvriers de IaTombe», Deir-el Mèdineh à 1'époque ramesside, Cairo, 1985.

Sobre os PRODUTOS, SEU PREÇO, FABRICO E UTILIZAÇÃO:

W. Helck, Materialien sur Wirtschaftsgescbichte dês NewenReiches, Wiesbaden, 1961-1969; J. J. Janssen, Commodity Pricesfrom the Ramessid Period, Leyde, 1975; A. Lucas e J. R. Harris,Ancien Egyptian Materials and Industries, 4.* ed., Londres, 1962.

Sobre a LITERATURA propriamente dita:

G. Lefebvre, Romans et contes égyptiens de l'époque pharao-nique, Paris, 1949; M. Lichtheim, Ancient Egiptian Litterature,Los Angeles, 1975-1980, e S. Schott, Lês chants d'amour del'Egypte ancienne, trad. P. Posener-Kriéger, Paris, 1956,

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Sobre a LITERATURA HISTÓRICA OU POLÍTICA:

J. H. Breasted, Ancient Records of Egypt, Nova Iorque, 1906;R. A. Caminos» Late-Egyptian Miscellaniés, Oxford, 1954;A. H. Girdiner, Ancient Egyptian Onomástica, Oxford, 1947;G. Posener, Litterature et politique dam 1'Egypte de Ia XIIC dy-nastie, Paris, 1969; e A. Roccati, La liltéraure historique sonsV Ancien Empire égyptien, Paris, 1982.

Sobre a ICONOGRAFIA:

P. Montet, Lês scènes de Ia vie privée dans lês tombeauxégyptiens de l'Ancien Empire, Estrasburgo, 1925; c J. Vandier,Manuel d'Archéologie égyptienne, t. IV a VI, Paris, 1964-1978.

E, de um modo geral, para uma primeira abordagem, acon-selha-se a leitura de G. Posener, S. Sauneron c j. Yoyotte,Dictionnaire de Ia civilisation égyptienne, Paris, 1970, e, parasaber em que ponto se encontra o estudo de qualquer tema,Lexikon der Agyptologie, Wiesbaden, 1975-1986.