DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA - O Programa · Dom Quixote, o cavaleiro-filósofo, sai à pro-cura...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CELIA REGINA DE BARROS MATTOS DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA: UMA LEITURA HEIDEGGERIANA RIO DE JANEIRO 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CELIA REGINA DE BARROS MATTOS

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA: UMA LEITURA HEIDEGGERIANA

RIO DE JANEIRO 2007

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CELIA REGINA DE BARROS MATTOS

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA: UMA LEITURA HEIDEGGERIANA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética)

Orientador: Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro

RIO DE JANEIRO 2007

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Mattos, Celia Regina de Barros Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura heideggeriana / Celia Regina de Barros Mattos – 2007 429 f. Tese (Doutorado em Poética) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. Rio de Janeiro, 2007. Orientador: Manuel Antonio de Castro 1. Dom Quixote – Heidegger. 2. Dom Quixote – Leitura Poética. 3. Dom Quixote – Pós-modernidade. 4. Dom Quixote – Obra de arte. – Teses. I. Castro, Manuel Antonio de (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras. III. Título.

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CELIA REGINA DE BARROS MATTOS

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA: UMA LEITURA HEIDEGGERIANA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética)

Aprovada em ____ / ____ / _____

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________________ Prof. Dr. Manuel Antonio de Castro - Orientador

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________________ Profa. Dra. Angélica Maria Santos Soares

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________________ Profa. Dra. Idalina Azevedo da Silva

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________________ Profa. Dra. Ângela Maria Fabiano Mendes

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________________ Prof. Dr. Julio Aldinger Daloz

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________________ Profa. Dra. Martha Alkimin

Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________________________ Profa. Dra. Sílvia Cárcamo

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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AGRADECIMENTOS

Em respeito à Hierarquia agradeço à “Outra Voz”: no meio da madrugada, a Voz abrir um livro ao acaso, a Voz escrever enquanto caminha, a Voz a palavra certa, na hora, a Voz. Até do orientador que, impaciente, alertou: “Teu prazo vai-se esgotar!”, a Voz. São meus Guias, são meus Mestres são meus santos? São Francisco, São Miguel são tantos que nem sei. Voz do daimon, voz do logos... Só sei que ela não é minha ou essa Voz não é “outra” é todas; é uma só Voz.

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Ao meu orientador

Tem nome anjo de Deus e de Santo É aquele que emmana É Santo que tudo une Se não tem parte com o “outro” Só pode ter dom de adivinho Sem que nada se insinue Nem mesmo que se pedisse lá estava tudo na pasta: ensaios, resumos, artigos do conceito ao paradoxo todos os “inter” e os “entres” tudo aquilo que fica no “meio” Se é preciso pro-duzir espontâneo se antecipa __ Se tocados pela imagem, quem sabe, enxergam as “questões”? __ Questões, eu já disse: o que importa são as “questões”! Pode parecer que estamos mas isso não é brincadeira fingir é coisa mui séria pergunte ao que finge ser dor a dor que de veras sente Emmanuel Antonio Educador de Só Isso já basta.

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À Francisca Nóbrega, Laura e Lúcia Helena

Não foi só “Iniciação” Ficaram também os pilares Ficou também a senda

Aos amigos do Setor e do Departamento

Sei bem da expectativa de ver a última doutora fechando com ouro a excelência do Departamento Obrigada pela tolerância Agora, arregaçar e tra-ba-lhar

Ao amigo Júlio O respeito e a admiração sempre me incentivaram À Luciana Trazia-me tudo sem pressa

a cada semana um pouco provocava-me franqueava as vias do assédio deixava acontecer até o acontecer espontâneo, inesperado Foi ela que iniciou-me no ser E no tempo aproximou-me de Heidegger

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À família Agradeço a paciência de esperar disponibilidade e de ouvir sempre: espera! de alguém que tanto espera poder ser só disponível Às crianças da família Nem sei se ainda se lembram

Nem sei se perguntam mais Nem passeio na floresta Nem piquenique em Paquetá Nem tanto pela Tia Celia Aniversários, almoços e festas Se não ia a Tia Celia

também, o “Loreco” não ia

Aos amigos em geral Prometo não inventar

nada mais que me tire da vida ................................................. Trabalhava com afinco, sem pensar no que fazia doíam-lhe as pernas as costas os pés sem se importar prosseguia Em noite especial não serviu foi servida Num só cochilo com doze homens fez a ceia a última ceia É personagem de conto acho que se chama Teresa

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Ao meu Pai: no tempo do Mestrado: “E Ele tinha a esperança que eu não tinha por mim” hoje: Obrigada por tamanha esperança. A todos os sobrinhos, a todos os jovens deste mundo caduco, um exemplo, uma sugestão: “Vai (...) ser poiesis na vida”.:

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SINOPSE

Este trabalho é uma reflexão sobre o homem: o lugar de “entre-ser” que ocupa no real; Cura; as questões; o agir e o consumar entre vida e morte. Na leitura hermenêutica de Dom Quixote de la Mancha, vida e arte, manifestando-se em experienciar e narrar, constituem o homem em seu pensar essencial, e o resgatam, no século XXI, em possibilidades.

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RESUMO

MATTOS, Celia Regina de Barros. Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura heideggeriana. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência da Literatura (Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Este trabalho apresenta a obra Dom Quixote de la Mancha sob a perspectiva

poético-ontológica, dividida em três em périplos, ao modo de círculos hermenêuticos.

Dom Quixote, o cavaleiro-filósofo, sai à pro-cura da Cura e, entre nascimento e

morte, experimenta os existenciais fundamentais até o momento em que a

conjugação angústia-morte inclui “poder-ser” pastor e poder morrer, no elenco de

suas possibilidades essenciais. No epitáfio, no entanto, “La muerte no triunfó”.1

Desde então, passa por experiência originária; vira cavaleiro-hermeneuta; assume a

missão de enfrentar a Essência da Técnica __ a face mais radical do pensar

metafísico do Ocidente __, travestida de cavaleiro. A luta, há muito anunciada, é

inevitável e, no apagamento da modernidade, o esquecimento do ser como

destinação exige que Dom Quixote cumpra seu destino heróico e liberte o Ocidente

do encantamento metafísico. Na clareira da pós-modernidade, tem lugar uma

batalha singular: o cavaleiro-Quixote-vida, narrando-se em experienciar, dis-puta

com o cavaleiro-Quixote-ficção o lugar de verdade e, no jogo desvelar-velar, o

fidalgo-cavaleiro-filósofo-hermeneuta-pastor-poeta, ampliando infinitamente seu

espectro de possibilidades, cumpre seu destino heróico. Dom Quixote vence

como obra de arte.

1 A morte não triunfou

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ABSTRACT

MATTOS, Celia Regina de Barros. Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura heideggeriana. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência da Literatura (Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

This work observes the literary Don Quijote de la Mancha in an ontological-

poetic point of view divided in three periplus with the hermeneutical aspect. Don

Quijote, the philosopher-Knight went out to search for Cure and between birth and

death experiences the fundamental existential until the conjugation anguish-death

includes de “can-be” pastor and “can die” in the list of its essencial possibilities.

Nevertheless, in the epitaph “La muerte no triunfó”. From then on, Quijote faces the

original experience, becames an hermeneutic-Knight and takes the mission to

confront the Technic – the most radical face of the ocidental thinking – disguised as a

Knight. The long ago announced fight is inevitable; and in the extinguishment of the

modernity the oblivion of the being as destination imposes to Don Quijote the

fullfillment of his heroic fate and set the occident free from the metaphysical

enchantment. In the glade of post-modernity, a singular battle takes place: the

Knight-Quijote life, narrating himself in experiencing, dis-putes with the Knight-

Quijote-fiction about the place of Truth and in the game of unveil-veil the noble-

Knight-philosopher-hermeneut-pastor-poet amplifies his spectrum of possibilities and

performs his heroic destiny. Don Quijote wins as a masterpiece.

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RESUMÉ

MATTOS, Celia Regina de Barros. Dom Quixote à pro-cura da Cura: uma leitura heideggeriana. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Doutorado) __ Ciência da Literatura (Poética) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

A travail présente l’oeuvre Don Quijote de la Mancha sous la perspective

poétique-ontologique, divisé en trois périples, au uioyen de tors herméneutiques.

Don Quijote de la Mancha le chevalier – filosophe sort afin de chercher sa “Cura”

(Cure) et entre sa naissance et sa wort, il essaye les existentiels fondamentales

jusqu’au moment que la conjugaison entre l’angoïsse – mort y compris le pouvoir-

être pasteur et le pouvoir mourir dans la liste de ses possbilités essentielles, alors

que, dans son épitaphe « La muerte no triunfó ». Depuis lors, ilpasse par

l’expérience originaire, il deviente le chevalier herméneute, il prend la mission de se

mettre vis-à-vis la Thécnique – la face la plus radical du penser de l’occident travesti

en chevalier. La lute depuis long temps annoncé elle est inevitable ; et dans

l’effacernent de la modrnité, l’oubli du être comme une destinatin exige que Don

Quijote fasse honneur à son destin heroïque et qu’il liberte l’occident de son

ensorcellement methaphysique. Sons la claclairière de l’après – modernité, une

singulière bataille a lieu : le chevalier – Quijote – vie, qui expose sus expériences,se

batte contre le chevalier – Quijote – fiction pour conquérir sa vraie place et, dans le

jeu de se devoiler – se voiler, le noble-chevalier-philosophe-herméneute-pasteur-

poète en donnant amplitude infinitivement à son espectre de possibilités, il fait

devenir, e fait, son destín héroique. Don Quijote fait de sa vie une vraie oeuvre

d’art,une victoire complète.

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SUMÁRIO AGRADECIMENTOS .................................................................................................................... iv DEDICATÓRIA ............................................................................................................................ viii SINOPSE ................................................................................................................................... ix RESUMO ................................................................................................................................... x EPÍGRAFE ................................................................................................................................. xv INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 01 Capítulo I 1o Périplo __ DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA ........................................................ 13 1 O DIAGNÓSTICO DA LOUCURA ....................................................................................... 14 1.1 DOM QUIXOTE E A RIGOROSA ANAMNESE .............................................................................. 16 1.1.1 Por que lia tanto os livros de cavalaria? .................................................................... 17 1.1.2 Por que abandonou a leitura e decidiu ser cavaleiro? ............................................. 18 1.1.3 O que pretendia, afinal, Dom Quixote, sendo cavaleiro? ......................................... 21 1.1.4 Como se processou a metamorfose? ........................................................................ 23 2 A PROCURA DA CURA ÔNTICA, UM ERRO DE PERCURSO ......................................... 33 2.1 HEIDEGGER, A CURA COMO MITO E A EXISTÊNCIA DO HOMEM ................................................. 34 3 A QUE PAIDÉIA SERVE DOM QUIXOTE? ......................................................................... 38 4 PARA FAZER TRAVESSIA, SÓ INVENTANDO MUNDO ................................................... 53 4.1 DOM QUIXOTE INVENTA UM MUNDO ....................................................................................... 54 5 PREPARANDO A CURA ..................................................................................................... 68 5.1 INGREDIENTES FUNDAMENTAIS ............................................................................................. 70 5.1.1 “De largo en largo” __ do nascimento até a morte ..................................................... 70 5.1.1.1 O nascimento de Dom Quixote ................................................................................ 71 5.1.1.2 A morte de Dom Quixote .......................................................................................... 73 5.1.2 Para compreender o mundo, só com disposição ...................................................... 80 5.1.2.1 Há algum temor no ar? .............................................................................................. 82 5.1.3 Do estar-lançado ao lançar-se na existência ............................................................. 88 5.1.3.1 A pouca ocupação de Dom Quixote ........................................................................ 89 5.1.3.2 Pra que tanta pre-ocupação? ................................................................................... 93 6 CUIDANDO DE CURAR ...................................................................................................... 97 6.1 TROCANDO A ESTRATÉGIA DIDÁTICA ..................................................................................... 98 6.1.1 Do aprendizado ao diálogo como aprendizagem ...................................................... 100 6.1.1.1 Diálogos em cadeia

__ a coragem da renúncia ........................................................ 108

6.1.1.2 Enfim, uma aprendizagem ........................................................................................ 116 6.1.1.3 Errância não reprova ................................................................................................ 116 6.1.2 A decadência de Dom Quixote .................................................................................... 121 6.1.2.1 Silêncio, nesse falatório não há Cura que resista .................................................. 122 6.1.2.2 Entre curiosas ambigüidades ................................................................................... 127 6.1.2.3 Nunca em Espanha houve tanto escritório ............................................................. 131 7 TÉDIO, ANGÚSTIA, MORTE – AS DISPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS ............................... 134 7.1 O TÉDIO ............................................................................................................................... 134 7.2 A ANGÚSTIA ......................................................................................................................... 137 7.3 A MORTE .............................................................................................................................. 143 8 SER PASTOR OU SER POETA, TUDO É POSSIBILIDADE ............................................... 146

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Capítulo II 2o Périplo __ A VERDADE DO TEMPO DE QUIXOTE ............................................................ 156 1 DOM QUIXOTE, O HERMENEUTA

....................................................................................... 157

1.1 O QUE SE SABE DA LOUCURA, O QUE SE SABE DA RAZÃO? ...................................................... 158 1.2 UM MUNDO CHEIO DE CONTRADIÇÃO ...................................................................................... 171 1.3 A OUTRA FACE DA MORTE ..................................................................................................... 188

1.4 DOM QUIXOTE EM RETROSPECTIVA ........................................................................................ 191 1.5 É TEMPO DE NEGOCIAÇÃO. QUAL O “PRETIO” DO TEMPO DE DOM QUIXOTE? ........................... 196 2 MUDANDO DE DIMENSÃO, UMA DESCIDA AO OUTRO MUNDO .................................... 199 2.1 “LA CUEVA DE MONTESINOS” ............................................................................................... 200 2.2 DOM QUIXOTE ENTRA NA CAVERNA COMO FILÓSOFO ............................................................... 200 2.3 DOM QUIXOTE SAI DA CAVERNA COMO HERMENEUTA .............................................................. 235 2.4 A QUESTÃO DOS DOIS MUNDOS ................................................................................................... 246 3 DOM QUIXOTE E SUA TAREFA .......................................................................................... 253 4 TÁ DOMINADO, TÁ TUDO DOMINADO .............................................................................. 259 4.1 A TÉCNICA DOMINA A ÉTICA ................................................................................................... 260 4.2 A TÉCNICA DOMINA O HOMEM ................................................................................................ 269 5 DO ENCANTAMENTO DA TÉCNICA AO ENCANTAMENTO POÉTICO ............................ 272 5.1 PARA CONTAR E DESENCANTAR, NÃO BASTA FALAR; É PRECISO “FALAR” ................................ 284 Capítulo III 3o Périplo __ A VERDADE DA OBRA DE ARTE ..................................................................... 287 1 A OBRA DE ARTE E O TEMPO ............................................................................................ 288 2 A PÓS-MODERNIDADE, É CHEGADO O TEMPO ............................................................... 300 3 A POESIA E A “OUTRA VOZ” .............................................................................................. 303 4 DE IMITAR A SER “O OUTRO”, HÁ MUITA DIFERENÇA .................................................. 308 5 DESDE QUANDO, DOM QUIXOTE OUVE A VOZ? ............................................................. 313 6 CRÔNICA DE UMA BATALHA ANUNCIADA ...................................................................... 324 7 DA FORMA À FULGURAÇÃO, NESSE “FINGIR” SE MOVE DOM QUIXOTE ................... 335 8 PENETRANDO NO TERRITÓRIO DA ARTE ........................................................................ 340 9 DOM QUIXOTE, ANJO E DEMÔNIO DAS ARTES ............................................................... 341 10 APROXIMA-SE A DIS-PUTA FINAL; É TEMPO DE AGIR ................................................. 352 10.1 A HERMES O QUE É DE HERMES, A PAZ O QUE É DE PAZ ........................................................ 353 11 DOM QUIXOTE VIDA, DOM QUIXOTE FICÇÃO: A LOUCURA COMO CONTRAPONTO 357 12 DOM QUIXOTE, UMA LOUCURA “EXPERIENCIAL” ........................................................ 361 13 DOM QUIXOTE FALA, CONTA E SE CONTA POETICAMENTE ....................................... 374 14 A CORAGEM DO SALTO MORTAL .................................................................................... 381 CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 395 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................ 407

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“no soy tan loco ni tan menguado como debo de haberle parecido”

DON QUIJOTE

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INTRODUÇÃO

É surpreendente que a obra de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha,

garanta, passados tantos séculos, lugar privilegiado no “rank” da Literatura

Universal. É surpreendente o espaço conquistado, somado ao fato de a obra ocupar,

em diferentes proporções, uma fração do imaginário do homem do ocidente,

transformando-se em conhecido referencial dessa cultura. É surpreendente e

indiscutível que todas as vezes que mencionamos o nome Quixote, mesmo sem

atentarmos se à obra ou ao personagem, o que mais imediatamente vem à mente de

todos é a “loucura”, a história de um louco que luta com moinhos de vento. E mesmo

que ninguém se disponha a ler a obra para aprofundar-se em interpretações, é como

se houvesse uma “falta”, o intrigante e sedutor rabisco esquemático ali permanece,

deixando impressa a sensação de um vazio adiado.

Dispor-se a penetrar em obra tão vigorosa será sempre um desafio, desafio

que encontra sua primeira barreira no como. Indubitável é sua importância, mas

sabemos ter sido ele mal compreendido ao longo do tempo. O como remete ao

meio: é preciso um meio para atingir um fim. Que nome se dá ao meio como se

chega a um lugar determinado, no universo onde acontece a pesquisa?

O significado grego de meta foi desviado de seu sentido originário, sua

dimensão ambígua, perfeitamente conforme à aletheia, caiu nas malhas da filosofia

e se perdeu. Não suportando o mostrar-se da ambigüidade, tão inseguro e instável,

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sem limites nem definições, a filosofia faz, do logos, o fundamento do ente,

tentando fundar o real na identidade e na permanência.

O real não mais precisa manifestar-se, foi-se embora o espontâneo; a

aletheia é obrigada a ceder lugar a uma representação que se chama homoiosis:

uma máscara bem feita da verdade, mas desprovida da outra face; máscara estreita

em seus limites, mas que, por outro lado, não oferece riscos: ou é o que fica e

permanece ou não é verdadeiro. E isso, há muito tempo, tem sido o que basta para

estar-se de posse da verdade.

Bem sabemos por que paragens esse equívoco de percurso se estendeu,

alcançando até o real da obra, restringindo-a a um ir e vir que vai do conceito à

teoria, da teoria ao conceito, da teoria à metodologia, recomeçando, novamente, a

busca do conceito. A arte teve de submeter-se à nova ordem, à nova lógica, onde “o

caminho, a verdade e a vida” é a “logia”. Tudo isso, para garantir e ter sob

controle o aprendizado de uma disciplina que, em nosso caso, se chama Literatura.

O que estamos fazendo é começar esta pesquisa apresentando, com toques

sutis, esse tema __ questão: a metodologia, ela mesma, nosso primeiro obstáculo,

nossa primeira provocação.

Muitos são os caminhos que conduzem a Dom Quixote; muitas são as

reentrâncias por onde, escondido, podemos surpreendê-lo; muitas as possibilidades

de compreendê-lo. No acervo reunido nos quatro séculos de suas andanças,

esperar-se-ia encontrar, com traços bem marcados, seu completo e definitivo perfil.

Contraditoriamente, entretanto, nessa caminhada, clarões iluminaram veredas,

sugeriram atalhos, insinuaram fendas, reunindo tanta força que seu poder de

atração continua seduzindo, com o irresistível convite a novas buscas. Compreende-

se, assim, que vejamos sentido na voz que a cada leitura se renova em sugestivo

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recado: “Desde o século XVII, Cervantes continua buscando o seu leitor”2, busca

que fazemos nossa, a partir de agora.

Esse recado, contudo, exige que não sejamos ingênuos, tomando-o na

superfície. Caso o fizéssemos, a ilusão nos colocaria na trilha da crítica literária, e,

insistentes nos caminhos já percorridos, correríamos o risco do aprisionamento na

trama de sua bem tecida rede.

O enfoque no leitor que o recado veicula nos brinda com a hipótese do

arejamento. No entanto, isso nos contemplaria só parcialmente, se acaso não

encontrássemos, na obra, uma contundente resposta, essa sim dirigida diretamente

ao leitor: Léalos3.

O que dá a essa resposta marca especialmente significativa é o lugar onde

ela se manifesta: a obra. O recado é o mesmo, mas é de dentro da obra que ele

vem, desviando com isso o foco do autor, concentrando-o na obra. Sem contar que é

o próprio Dom Quixote quem se incumbe de transmiti-lo. Quem há quatro séculos

espera seu leitor, não é Cervantes, é Dom Quixote. Mas qual dos dois Quixotes, o

personagem ou a obra?

Cuidemos do caminho. Parece não restar dúvidas sobre o caminho a

percorrer. Este, inevitavelmente, exigirá grande esforço, posto que estará na

contramão de todos os já percorridos. Por ele tentaremos, mesmo esbarrando nos

equívocos de percurso, resgatar em sua origem o significado de meta. Com ele

surpreenderemos a obra com todo frescor, em seu vazio originário.

Se no meio do caminho tinha uma rede e nessa rede ficou cativa a Aletheia,

ela será nosso alvo de resgate.

2 A impossibilidade de localizar a frase que seguramente está escrita em Espanhol (“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue

procurando a su lector”) em algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa adaptação, caso contrário, a perderíamos. 3 Leia (os livros de cavalaria)

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Pretendemos lançar-nos numa aventura da qual nada sabemos. Antes

mesmo de tomarmos a decisão, é preciso disposição para enfrentar o incômodo da

incerteza, a insegurança do instável, o mal-estar do ambíguo, nossos companheiros

de aventura e, ao contrário, transmutá-los em excitantes desafiadores.

Do caminho, por enquanto, o único norte é o tortuoso de seu percurso, além

disso, com nada mais se pode contar. Portanto, se tem razão Antonio Machado: “se

hace camino al andar”4, ponhamos o pé no caminho, contando com a orientação que

o próprio caminho nos pode dar. Se a obra é o nosso caminho, só seus guardiões

nos podem ajudar.

Depois do convite à leitura, Dom Quixote nos seduz com uma viagem de

“infinitas cosas y maravillas [...] las cuales despacio y a sus tiempos te las iré

contando en el discurso de nuestro viaje”5. Franqueado o espaço da obra, tudo o

que ali acontece passa a ser nosso também. Afinal, como dispensar tamanha

generosidade? Além de um companheiro de viagem, fomos contemplados com o

carimbo que libera o passaporte no tempo, “a sus tiempos”.

Poderíamos nos considerar devidamente equipados para a viagem, não fosse

Hermes, o Senhor dos caminhos. Foi por isso que Dom Quixote tomou, para si, a

responsabilidade de acompanhar-nos. Ele conhece bem esse Senhor e, apesar do

respeito que lhe tem, sabe de seus antecedentes, há muito acompanha seu agir.

A precocidade de Hermes lhe confere a vantagem de lidar com a verdade em

seu sentido mais pleno. E, apesar da má fama de mentiroso, trapaceiro, velhaco e

enganador, sua marca diferenciadora é a proximidade do homem. Junto com

Dionísio, forma o par menos olímpico dos imortais. E Zeus, assim o redime:

4 O caminho se faz ao andar.

5 Coisas infinitas e maravilhas [...] as quais, devagar e a seu tempo, eu irei te contando nas conversas da nossa

viagem (CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>, versão Proj. Gutenberg. Acesso em: 31 jul 2007, parte 2, capítulo XXIII, p.446).

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“Hermes, tua mais agradável tarefa é ser o companheiro do homem”. Por isso, não

podemos dispensar sua companhia.

Se pelos caminhos o vimos roubando, seduzindo, metido em trapaças

ardilosas, quando ao homem são dadas oportunidades, pode-se estar seguro de que

Hermes está por perto. Se o surpreendemos na astúcia de amarrar galhos no rabo

de animais, com a finalidade de apagar rastros e desorientar, não nos é dado o

direito de julgá-lo. Afinal, é a ele que cabe intermediar mortais e imortais, ele é o

intérprete da vontade dos deuses, a própria palavra-verdade.

Com esse Deus, tudo é possível. Uma viagem em sua companhia exigirá

grande investimento, mas sem ele, não há viagem. Não acreditemos ser possível

viajar por seus caminhos, sem o pressentirmos escondido nas curvas, divertindo-se

e escarnecendo de nós. É preciso, portanto, ser precavido; é preciso assimilar algo

de sua esperteza; exercitar flexibilidades; observar suas entradas e saídas em cena;

reconhecer disfarces; treinar os truques do jogo. Enfim, familiarizar-se com o

fingimento.

Nosso compromisso é resgatar a Aletheia __ missão dura e difícil. Ao longo do

tempo, ela foi sendo encoberta por camadas outras que acabaram sufocando-a,

arrancando-lhe o que tinha de mais precioso: a dinâmica intrínseca à physis.

Nascida na abertura, ou melhor, sendo a própria abertura, livre para atuar na

dinâmica do tempo, praticante assídua do jogo do esconder, submetida, entretanto,

ao cativeiro, tinha que sucumbir; perdera a liberdade do espontâneo e, sem

memória, insiste agora em esconder-se definitivamente.

Aproximar-se da verdade-aletheia tem se tornado cada dia mais difícil, e nos

sugere esforço no movimento de busca. Foi assim que, em determinado momento

da obra, acreditamos ser correto o pôr-se em movimento em alguma direção,

incansáveis na procura da aletheia. Entretanto, ao descobrirmos grande

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familiaridade entre o universo vocabular que inclui “passos”, tanto como referente

que permite deslocamento no espaço, como, também, compondo outro universo

semântico: “a saída derradeira do último passo de uma longa seqüência de passos

questionantes”,6 percebemos que qualquer empreendimento na linha da obra-de-

arte precisa ir muito além do que nos chama a atenção mais diretamente, sempre

haverá algo por trás escondido.

É esse “por trás escondido” que põe em movimento a obra, fazendo-a o

espaço de abertura por excelência, aberturas abertas pelo insidioso provocar das

questões. Esses são os verdadeiros “passos” em direção à obra de arte: os “passos

questionantes”. Essas são as aberturas que mobilizam o homem a um verdadeiro

agir efetivo: o mover-se nas questões.

Orientados por Manuel Antonio de Castro, nos foi possível esse salto: não

abandonarmos o espacial; não perdermos nem deixarmos que Dom Quixote perca o

“passo”; mas nos sensibilizarmos, acima de tudo, para as questões, para o

reconhecimento da dinâmica dos “passos questionantes” que traçam a trajetória que

cada um realiza em contato com a obra.

Tomados dessa consciência, não podemos descartar de nossa abordagem,

as questões, esse ingrediente essencial. E, se “a arte é o por-se em obra da

verdade” e se “o sentido e vigor fundamental da “obra” de arte não vem dela, mas da

verdade”7, parece que, por elas, já estamos sendo tomados [é preciso estar atento;

não somos nós que nos movimentamos em sua direção, são elas, as questões, que

nos tomam]. Parece então que, depois do método e da metodologia, estamos sendo

tomados pela primeira questão, a questão da verdade da obra de arte.

6 HEIDEGGER, M. O originário da obra de arte. Trad. Manuel Antonio de Castro, parágrafo 158 (mimeo)

7 CASTRO, Antonio Manuel de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 44

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Ao nos dedicarmos a essa questão na obra Dom Quixote de la Mancha, não

nos resta alternativa, senão trabalharmos tendo em conta a ambigüidade do “entre”,

no jogo verdade e não-verdade.

Voltemos às questões; anteciparemos assim suas facetas. Apesar de ser a

obra de arte, na realidade, um grande feixe de questões, que se desdobram

ininterruptamente, algumas se mostram, pelo modo insidioso como se apresentam,

mais essenciais. Assim, percebemos que a mais essencial das questões, ou as mais

essenciais questões que “perpassam todas as culturas em todos os tempos e suas

obras de arte” são: “A emergência do homem e o âmbito de sua atuação e de seu

lugar dentro do real – e o enigma do seu destino”8.

No acolhimento de Hermes como nosso orientador, optamos pela

hermenêutica. Para surpreendermos a, cada vez mais acuada e escondida,

aletheia, a travessia não pode ser linear, será preciso “trans-vertere”, será preciso

franquear os caminhos percorridos ao espaço de liberdade.

Foi por isso que, inseridos que estávamos num contexto de viagem, na

magnífica companhia de Dom Quixote, lhe sugerimos que ela fosse realizada em

périplos. E assim o fizemos: tratamos cada périplo como uma questão, ou melhor,

tratamos cada périplo como desdobramentos, todos de uma questão – a questão da

Cura que intitula nossa pesquisa.

Périplo significa navegação, viagem para fora, que implica ir e vir: “ir para

fora” e “vir para dentro”, em contínuo movimento. Se aproximarmos a dinâmica do

périplo à dinâmica da hermenêutica, veremos serem perfeitamente afins: a cada

saída e percurso completo para fora, perfazendo uma circularidade, corresponde um

outro, em sentido oposto. Mas o curioso é que cada nova viagem não percorre

8 CASTRO, Antonio Manuel de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 44.

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jamais o mesmo caminho. Ou, mesmo que percorra, a cada volta, o mesmo é

sempre novo, tem sempre novidade para mostrar.

Não é permitido, entretanto, um rigor de planejamento; a cada volta no círculo

é preciso, sim, estar atento, mas sem expectativa. Na viagem de navegação é

preciso entregar-se, ao sabor das ondas, ao deixar acontecer na espontaneidade. É

por isso que o jogo desvelar-velar reserva sempre surpresas: mostra-esconde;

dissimula; deixa resquícios na lembrança; constrói pontes e lança-as até a memória.

Nossa pesquisa é assim: uma viagem em três périplos, capitaneada pela

verdade. A verdade, ela também se desdobra em facetas aparentemente

independentes e dissociadas, mas que, no fundo, são a mesma. Aquela que parece

apresentar-se com mais “cara” de ser a mesma, é “Cura”. “Cura” é a questão das

questões, por ser a que trata do que há de mais essencial na vida do homem: a sua

humanidade; por tratar do âmbito de atuação do homem, tentando dar conta do

lugar que ele ocupa dentro do real. Esse é, diríamos, o primeiro nível de “Cura”,

aquele que apresenta o homem mais próximo de sua humanidade, de tal modo que

é narrado como mito originário.

Cura, entretanto, vai além do homem em si, do homem como aquele que tem

por si mesmo cuidado. Se considerarmos o texto da citação acima, veremos estar,

dentre as questões, também o destino: “o enigma do destino”9. Se seguirmos mais

adiante, esbarraremos ainda em outra questão, esbarraremos na arte: “as questões

que perpassam todas as culturas em todos os tempos e suas obras de arte”.

Digamos, então, que vamos apresentar As Três faces de “Cura”, ou “Cura”

em três tempos”, ou Três paradas obrigatórias de “Cura”. Tudo isso caberia como

título. Ainda que não a vejamos tão explicitamente, em todos os lugares, com esse

mesmo nome, “Cura” tem essa abrangência, porque é em “Cura” que está o homem

9 CASTRO, Antonio Manuel de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 13.

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em sua dimensão de “entre-ser”, o homem como o único que dá acesso ao ser,

aquele no qual, no existir, está em jogo o seu próprio ser. Isso inclui,

inevitavelmente, o tempo e a arte.

“Cura” é cuidado, logo, é marca incontestavelmente humana com a qual está

essencialmente o homem comprometido. Assim está caracterizada nossa pesquisa:

pro-curar “Cura”, considerando sua abrangência – a obra-de-arte. Tanto na vida

como na arte, “Cura está presente”, tendo o homem como “inter”, como o “inter”-

mediário, como “entre-ser”, na tarefa de cumprir sua travessia e descobrir que sua

essência é poder-ser, é ser possibilidade.

É claro que essa travessia, de tão essencial, ultrapassa os limites da vida e

alcança a arte; a essência da arte é também ser possibilidade. Nessa abrangência,

essa é a nossa tese: o homem e a arte têm igual essência – poder-ser, ser

possibilidade.

No percurso dessa investigação, nosso objetivo é buscar, na obra, o caminho

que nos coloque na trilha do homem e da arte, naquilo que, em sua abrangência, os

acolhe e identifica. E ”Cura” os identifica.

Nosso objetivo é pro-curar o ponto crucial onde se cruzam homem e arte. Por

isso, estando, então, nesse universo __ um doutorado em Poética, que exige (usando

a forte expressão espanhola) “estar metido hasta las coronillas”10 num texto poético

__, esse é o espaço onde isso pode acontecer. É na obra-de-arte Dom Quixote de la

Mancha, publicada em 1605 por Miguel de Cervantes, que isso pode acontecer: o

acontecer poético, um acontecer dentre os muitos aconteceres poéticos que nessa

obra já tiveram lugar.

No 1o Périplo, nossa meta é alcançar a verdade de Dom Quixote, o fidalgo

que perde a identidade e vira cavaleiro louco. Nossa viagem transcorrerá como pro-

10 Estar envolvido até “o último fio de cabelo”.

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cura. De tanto ler livros de cavalaria, Dom Quixote, seduzido pelo fascínio daquelas

novelas, perde-se de si mesmo, é infectado pela imitação e assume personalidade

imprópria.

Sendo as novelas de cavalaria elaboradas dentro dos rigores da Paidéia,

Dom Quixote tomou, para si, a responsabilidade de consertar o mundo, segundo os

moldes de “la república cristiana”11, investindo-se da função de cavaleiro-filósofo.

Além de estar “enderezando tuertos y desfaciendo agravios”12, além de sua fixação

em fazer justiça com a força de seu braço e o poder de sua espada, cuida também

de fazer todas as demais justiças, e sai pelo mundo pregando todas as verdades

veiculadas pelos livros de cavalaria, verdades nas quais, de tanto acreditar, punha

até em risco sua vida para defendê-las.

A travessia de Dom Quixote nesse Périplo é em direção à Cura. A

caracterizamos muito mais como pro-cura, por ser Cura um processo ininterrupto do

homem enquanto reside na terra. Nesse caso, entre vida e morte, Cura jamais se

esgota. A pro-cura de Dom Quixote acontece no mundo, configurando-se na obra

desde seu nascimento __ aos cinqüenta anos __ até a morte. Nessa travessia, Dom

Quixote, entrando na vida, optando por viver a cavalaria na realidade, tem a

oportunidade de se expor ao acontecer espontâneo, ao sentir e experienciar. Só

assim Dom Quixote pôde e pode ser-no-mundo.

O que se pretende no 1o Périplo é que Dom Quixote faça a travessia e

recupere o seu próprio, que descubra que a sua essência é poder-ser.

Isso o mobiliza a um agir que, paulatinamente, o obrigará à renúncia. À

medida que cada experienciar vai dando novos sentidos a seu viver, Dom Quixote

vai renunciando às verdades adquiridas no duro aprendizado de sua formação de

11

A República Cristã (CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>, versão Proj. Gutenberg. Acesso em: 31 jul 2007, parte 1, capítulo XLVII, p.294). 12

Consertando injustiças e desfazendo desacertos (Idem, parte 1, capítulo XIX, p.101).

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filósofo. E o cavaleiro-filósofo vai dando lugar ao fidalgo que recobra, assim, a

propriedade que só o experienciar da aprendizagem lhe concedeu.

Como a essência do homem é ser possibilidade, é claro que não alcança

Dom Quixote a sua essência, definindo-se e enquadrando-se num determinado

perfil. Afinal, ao recobrar o próprio, Dom Quixote descobre, na verdade, que é

poder-ser muitos.

No 2o Périplo, a verdade perseguida está inscrita no tempo – a verdade do

tempo de Dom Quixote. Mesmo que o cavaleiro não se movimente nesse Périplo,

isso, entretanto, caracteriza uma viagem também. Por isso, nosso olhar para o 2o

Périplo tem uma dose de desconfiança. Nele, mais parece que Dom Quixote está em

repouso, como se fizesse uma parada para reflexão. Trata-se de uma viagem ao

centro da Terra. Dom Quixote entra em “La Cueva de Montesinos”13 e, em seu

interior, recebe revelações.

Parece aproximarem-se, neste 2o Périplo, o tempo e o destino. Entretanto,

embora Dom Quixote tenha franqueado o circuito de Cura a todos os homens, a eles

ficando muito atento para observá-los em diálogo com o mundo; embora tenha

lançado seu olhar ao “outro”, detectando, com esse olhar, a extensão-destino aliado

ao tempo; esse repouso, essa parada aparente, caracteriza também uma viagem,

viagem em nível mais profundo. No 3º Périplo, volta a verdade de Dom Quixote,

dessa vez, obra de arte.

Desse modo, podemos assim resumir a travessia que, junto com Dom

Quixote, faremos. No 1º Périplo, Dom Quixote, acreditando saber de si, de nada de

si sabe. E sai à pro-cura de si, sai à pro-cura da Cura, sai à pro-cura de sua

essência.

13 A caverna de Montesinos.

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No trânsito entre o 1º e o 2º Périplos, Dom Quixote inicialmente vai conjugar

sua missão de filósofo, com uma nova que estará anunciando-se: o hermeneuta, e

assume a responsabilidade de passar o grande conhecimento, adquirido no 1º.

Périplo, a todos os homens.

Para bem realizar essa nova missão, Dom Quixote precisa passar por

experiência originária, onde receberá, dentre as grandes revelações sobre o seu

tempo, a maior das revelações. Só aí se assume hermeneuta, aquele que, tendo

sido escolhido para receber a mensagem dos deuses, tem como compromisso

transmiti-la aos demais homens.

No 3º Périplo, Dom Quixote, estando ainda à pro-cura, precisa encontrar a

forma digna para falar aos homens, não só a seus contemporâneos espanhóis,

como também a todos os homens do mundo.

Depois de muito cavilar sobre o ser verdade ou não-ser verdade da obra de

arte, Dom Quixote, de maneira diferente da anterior, é novamente tomado pelos

deuses e descobre, afinal, a melhor forma de dizer aos homens a verdade: Dom

Quixote, homem, fidalgo, cavaleiro, filósofo, hermeneuta, quer descobrir sua

essência e a persegue como obra de arte.

Na viagem-travessia que realizaremos, a convite e junto com Dom Quixote,

teremos, por meta, descobrir a verdade do homem, a verdade da obra, e, com isso,

fazer a convocação geral para ocupação do mais digno e real lugar do homem, o

lugar de “entre-ser”, o único lugar onde o homem exerce sua maior grandeza do

homem: ser amoroso, estar aberto ao ser, entrar no jogo em que o amor assim se

resume: o desvelamento ama o velamento. Estando no “entre-ser”, estará o homem

no lugar do mais essencial idílio amoroso. Aceitemos todos o convite.

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Capítulo I

1o Périplo

DOM QUIXOTE À PRO-CURA DA CURA

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1 O DIAGNÓSTICO DA LOUCURA

“Yo sé quien soy”:14 15 assim entra Dom Quixote no mundo ficcional criado por

Cervantes. Abandona os livros e o lar, e vai ser cavaleiro.

Depois de a personagem tanto ler os muitos “requiebros” __ floreios

lingüísticos de Feliciano de Silva, seu autor preferido de novelas de cavalaria __,

somos informados, quase de chofre, de que “perdía el pobre Caballero el juicio”.16 17

Em fração de segundos, de fidalgo vira cavaleiro. E, assim, entre amadas e

escudeiros, entre cavalos e armaduras, vai Dom Quixote impondo a cavalaria

medieval à Espanha do século XVI, até o primeiro momento em que, defrontando-se

com uma oposição veemente e radical de seu vizinho Pedro Alonso, que lhe diz não

ser ele o cavaleiro que pensava encarnar “sino el honrado hidalgo del señor

Quijana”18.

E é nesse momento que, exasperado, Dom Quixote responde: “Yo sé quien

soy”. Seria a loucura por trás de suas palavras? Dom Quixote, o “cavaleiro louco”, é

talvez um dos lugares-comuns mais repetidos. Mas será Dom Quixote de fato

Louco? E por quê o seria?

14 Eu sei quem sou (1, V, p.35) 15

Ressaltamos que os três capítulos desta tese foram baseados na obra Don Quijote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Entre outras, foram consultadas as seguintes referências bibliográficas: CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Barcelona: Juventud, 1955. Ibidem. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br>, versão Proj. Gutenberg. Acesso em: 31 jul 2007. Pela grande quantidade de citações, a partir daqui, optamos por registrar como referencial bibliográfico da obra de Cervantes, somente a forma numérica das “partes”, em algarismos arábicos, e de “capítulos”, em algarismos romanos; as páginas referem-se à fonte eletrônica, acima citada [ex: (2, XXXII, p.487)]. 16 Perdia o pobre cavaleiro o juízo (1, I, p.18) 17

Como aqui ocorre, em muitos outros exemplos haverá encadeamento sintático entre as duas línguas: Português e Espanhol. 18 E sim o honrado fidalgo, o senhor Quijana (1, V, p.35).

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Do muito que se falou sobre a loucura no tempo de Dom Quixote, daremos

preferência à palavra de Ortega y Gasset19, pois o pensador espanhol é um dos que

mais se dedicaram à pesquisa do evento da leitura no século XVI e seu significado

para a época. Entretanto, embora ele reconheça ser a ficção impressa “la forma

artística que nos involucre de la manera más íntima, ya que tiene lugar en nuestro

propio espíritu”20, comenta com uma ponta de ironia que não era necessário ter sido

tão singularmente suscetível à leitura, a ponto de passar “por la misteriosa

experiencia de haber sido tomado – infectado espiritualmente por una obra de

ficción”21.

Para cada coisa existe a que lhe contrapõe e, sabe-se bem que a

contrapartida da doença só pode ser a cura. Por mais que Dom Quixote, teimoso e

de “cabeça quente”, pudesse relutar, isto só seria por pouco tempo. Cedendo, afinal,

acabaria concordando, e partiria em suas andanças à procura22 da cura.

Alonso Quijano, de tanto ler livros de cavalaria tomou a decisão de fazer uma

loucura: decidira por si mesmo e, a partir de si mesmo, ser cavaleiro andante.

Mesmo que não radicalizemos, avaliando sua decisão como loucura, é plausível que

a achemos estranha, pelo menos. Abandonar os livros que tanto o seduziam; de tão

estranho, chega a parecer louco. É compreensível, pois, que se levantem hipóteses

que a justifiquem. O que o teria levado a ser cavaleiro, afinal? Achamos melhor,

entregá-lo à autoridade competente – um médico. Se essa foi a decisão de nosso

herói, respeitando a avaliação de Ortega y Gasset, que a respeitemos também.

Pode parecer simples, mas a procura de Dom Quixote promete ser longa. Só é

19

C.f. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. 20 A forma artística que nos envolva da maneira mais íntima, visto que ocorre em nosso próprio espírito (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.25). 21 Pela misteriosa experiência de ter sido tomado – infectado espiritualmente por uma obra de ficção (Ibidem). 22

Em outros momentos, a palavra será grafada segundo Heidegger: “pro-cura”. Heidegger caracteriza como “pro-cura” a trajetória realizada, por todo homem, no processo de autoconhecimento.

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possível contar, por enquanto, com algumas informações fragmentadas,

ouvidas e lidas.

Mesmo contrariando os procedimentos médicos da época em relação ao

louco23, período em que os cuidados profissionais não tinham lugar no espaço de

reclusão, ainda assim, poderíamos aqui simular para Dom Quixote um atendimento

nos moldes dos tempos atuais, e assim tentar entender a loucura que o aflige e

infecta. Quem sabe assim não alcançamos a origem e/ou as causas de sua

“infecção”? Quem sabe assim não poderíamos compreender o porquê do caminho

que toma?

1.1 DOM QUIXOTE E A RIGOROSA ANAMNESE

O médico começa fazendo uma anamnese durante o exame clínico de seu

paciente. Tem sentido que assim se proceda, retrocedendo ao ponto em que ele não

apresentava ainda sinais de loucura. Dom Quixote precisaria responder a perguntas

de importância capital: 1) O que o levou a ler descontroladamente tantos livros de

cavalaria?; 2) E por que decidiu abandonar a leitura, optando por torná-la “real”, com

a decisão tão radical de viver um personagem da cavalaria?; 3) O que pretendia,

afinal, sendo cavaleiro?; 4) E como se processou a metamorfose?24

Perguntado insistentemente e provocado veementemente pelo médico às

reminiscências acerca do princípio e evolução de sua doença, por mais que se

23

Consultar, a este respeito, o primeiro capítulo de Jean Calmon Modenesi (MODENESI, J.C. O Dom Quixote de Foucault. Rio de Janeiro: Papers, 2003), que traça contundente análise do modo como a loucura era encarada e “tratada” nesta época. Foi no mesmo cenário moderno da afirmação crescente da razão moderna (ratio) e da ciência, que se começou a tentar “diagnosticar” a loucura, com os assim diagnosticados passando a ser simplesmente “trancafiados” em locais próprios, asilos que procuravam suprimir o desatino e a loucura da sociedade. 24

A investigação destas quatro perguntas constituirá o cerne das próximas subsessões, de “1.1.1” a “1.1.4”.

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esforçasse, Dom Quixote não conseguia atinar. Reconhecemos sua incapacidade de

responder com clareza, e decidimos auxiliá-lo nas respostas; o avançado da

infecção era visível, já turvava sua mente.

1.1.1 Por que lia tanto os livros de cavalaria?

Esta é a primeira pergunta do suposto procedimento clínico de anamnese do

relutante paciente. Muitas são as suposições sobre o mergulho histérico e radical de

Dom Quixote nos livros de cavalaria. Que o ócio era reinante naquelas terras, bem o

sabemos; o encontramos em qualquer estudo sobre a obra: “y los más locos son los

más ociosos”,25 além de estar presente em comentários na própria obra: “Este [...]

hidalgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año”26. O ócio era de tal

modo presente que se estendia até as coisas: “[...] el famoso caballero don Quijote

de la Mancha, dejando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante

[...]”27. Quem sabe o justificasse o tédio do cotidiano que acenava como uma

ameaça constante. Tal ameaça, por sua vez, incitava à fuga, lançando todos os que

o experimentassem, à qualquer lugar, desde que fora do alcance do raio incômodo

do tédio. Era preciso fazer algo para dissipar o tédio crescente na Espanha da

época.

Pierre Vilar nos dá mostras, quando descreve o perfil da vida espanhola: “todo

es divertirse en fiestas, jugar y cazar”; ou “no se habla de otra cosa que de las

25

E os mais loucos são os mais ociosos (VILAR, P. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1993, p.345). 26

Este fidalgo, os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano (1, I, p.18). 27

O famoso cavaleiro Dom Quixote de la Mancha, deixando as ociosas plumas, montou sobre seu famoso cavalo Rocinante (1, II, p.21).

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fiestas” 28. Dom Quixote nem ia a festas, nem caçava; mas, como também nos alerta

Vilar, antes de querer ser cavaleiro, agia do mesmo modo que todos “los de la

España de 1600”:29 preferia sonhar. Embora não fosse a festas, nem caçasse, lia;

fazia parte daquele grupo, infectado pela mesma máquina literária que, como um

furacão, sacudiu Madrid. Esse fenômeno está em sintonia com outro: a inchação do

setor “terciário”, não produtivo, que absorveu uma boa fatia da mão de obra ociosa30.

Dessa fatia, participavam desde “los encantadores” – intelectuais, no melhor sentido

da palavra, os que escreviam livros de cavalaria – até “los proveedores de leyendas”

– descendentes de heróis da cavalaria que, à base de encomenda, desdobravam

aventuras em mirabolantes e repetidas versões, do mesmo tema, “me parece que,

cuál más, cuál menos, todos ellos son una mesma cosa”,31 como atesta o texto

cervantino. E o público incansável, desde o rei e o clérigo, até o homem médio, se

nutria dessa literatura: “son leídos y celebrados [...] de todo género de personas”.32

Vemos com isso que o mergulho de Alonso Quijano no universo literário da

cavalaria não é novidade surpreendente. Antes estava rigorosamente dentro dos

“moldes vigentes” do espírito de sua época. Sabe-se que, na Espanha da época, a

leitura transformara-se numa paixão, chegando às raias do vício. Que a vida, na

Espanha do século XVI, não oferecia, ao fidalgo, nenhuma saída nem do ócio nem

da miséria parece ser evidente. No solo de Espanha, ou divertia-se em festas e

caçadas ou se lia. E a própria obra também o testemunha: Dom Quixote e todos

“pasaban las noches leyendo de claro en claro y los días de turbio en turbio”.33

28

Tudo é diversão em festas, jogos e caçadas [ou] não se fala de outra coisa, senão das festas (VILAR, P., op. cit., p.336-337). 29

Os da Espanha de 1600. (VILAR, P. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1993, p.344). 30

Cf. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.25. 31

Me parece que um mais, outros menos, são todos a mesma coisa. (1, XLVII, p.293). 32

São lidos e celebrados [...] por todo tipo de gente (1, L, p.304). 33

Passavam as noites de claro em claro e os dias de sombra em sombra. (1, I, p.18)

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1.1.2 Por que abandonou a leitura e decidiu ser cavaleiro?

Por que este teria decidido sair da ficção para a vida, abandonando o tédio

ocioso e a distração da leitura?

O que nos oferece de concreto o texto é que Dom Quixote experimentava a

ociosidade, negligente a todo e qualquer agir. Não fazia nada; não trabalhava, não

cuidava de suas terras, não produzia. Dom Quixote era pura estagnação: “olvidó casi

de todo punto el ejercicio de la caza, y aun la administración de su hacienda”34. Duas

causas podem justificar esse quadro: é possível que o fato de ser tomado pela

inatividade se devesse ao anúncio de uma nova época que se vinha instalando.

Esta, talvez, já disseminasse o impulso ao pensar. Pode-se também atribuí-lo à

mudança radical de hábito ali verificada, onde a velha leitura oral “estaba planead(a)

al parecer (al igual que un manuscrito) para leerse en voz alta. Es decir, se entonaba

palabra por palabra, para regocijo de un embelesado grupo de oyentes”35 __ era

substituída pela leitura silenciosa: “hacia 1605 un tal Alonso Quijano y otros que

compartían su adicción devoraban de manera silenciosa”36.

Do mesmo modo que essa modalidade nova incitou o fidalgo ao hábito

desmedido da leitura de livros de cavalaria, pode também ter contribuído para seu

abandono. Ela provocava grandes transformações no modo de viver da época.

Como observa ainda Gilman37, não se pode imaginar o impacto de tal mudança.

34

Abandonou quase de todo a prática da caça, e até mesmo a administração de seu patrimônio. (1, I, p.18). 35

Estava planejado ao que parece (assim como um manuscrito) para ler-se em voz alta. Quer dizer, entoava-se palavra por palavra, para regozijo de um extasiado grupo de ouvintes. (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.18) 36

Por volta de 1605, um tal Alonso Quijano e outros que compartilhavam seu vício devoravam de maneira silenciosa. (Ibidem) 37

C.f. Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

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Estaria Dom Quixote, como atesta Pierre Vilar, mergulhado num vazio

insuportável, ao que, na introdução, chamamos de “falta”? O psicanalista Mauro

Maldonato38 caracteriza essa patologia como “experiência do pânico”,

caracterizando a doença como uma ligação profunda com o “nada”. Haveria algo

que o angustiasse? Estaria Dom Quixote angustiado ou bastava o tédio para tirá-lo

da leitura devocional e arremessá-lo em terras medievais, procurando, na magia

perdida e que impregnara aquele ambiente, uma fuga ou uma ponta de motivação?

O que teria, afinal, levado Dom Quixote a tomar estranha decisão, e a querer,

assim, mergulhar na vida, tentando experienciá-la?

O mal poderia estar na própria leitura. Impossível, diriam todos; a julgar pela

descrição de Ortega y Gasset, que expressa um envolvimento pleno e profundo de

todos na leitura de vasta ficção disponível naquela época. O difícil é saber o

significado dos gestos que acompanhavam a leitura: “devoraban de manera

silenciosa, [...] sus labios aún se movían, [...] sus manos se contraían, [...] pasaban

las noches leyendo”39. Corresponderia esse gestual ao famoso e significativo

“levantar da cabeça”, aludido por Roland Barthes40. Ou estaria sendo

demasiadamente passiva sua leitura?

Não era medo nem pânico, não era tédio, não era angústia? Havia sim um

sentimento inexplicável que, talvez, Francisca Nóbrega41 nos possa explicar: Pode

parecer contraditório que Dom Quixote estivesse mal, por influência de alguma falta.

Segundo Francisca Nóbrega, tomando como base Riobaldo de Grande Sertão

Veredas, a “falta” é a maior grandeza do homem. Nesse caso, se no sertão um

homem também o experimentou, estaria Dom Quixote sentindo, nada menos, o que

38

MALDONATO, Mauro. A beira do nada. Revista viver, mente e cerébro. [S.l.]: Duetto, ano XII, n.148, mai. 2005. 39

Devoravam de maneira silenciosa [...] seus lábios ainda se moviam, [...] suas mãos se contraiam [...] passavam as noites lendo (Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.18). 40

BARTHES, R. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977. 41

NOBREGA, Francisca. Laboratório de literatura poética. Ano 1, n.1, março de 1998 (mimeo).

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é comum a todos os homens: este vazio sem fundamento, esta falta de que estamos

todos imbuídos? É claro que há perguntas que aqui ainda deixamos em aberto,

afinal de que falta estamos falando? E por que Francisca Nóbrega caracteriza isso

como a maior grandeza do homem?

1.1.3 O que pretendia, afinal, Dom Quixote, sendo cavaleiro?

A obra Dom Quixote de la Mancha foi reconhecida como inauguradora de um

tempo em que o experimentar e o existir se sobressaíram aos olhos de seus leitores.

E é exatamente a grande incidência do experimentar e do existir, como

componentes do perfil dessa manifestação literária, que a aproxima, de algum modo,

da decisão de nosso herói: sair do livro para entrar na vida, para ter a experiência

nos próprios acontecimentos, na própria existência.

Sabe-se, entretanto, ser esse dado limitado diante da grandeza da obra; por

isso, recomendável é ampliar o horizonte de possibilidades: está claro que algo

muito especial, algo que fosse digno, era o que Dom Quixote pretendia. Pois, se

entrou na vida com o firme propósito de ser cavaleiro, num tempo em que essa

realidade já não era possível – posto que o mundo medieval, com seus cavaleiros e

dragões, já se perdia na poeira do passado – só algo muito especial o moveria.

Segredemos aqui: Dom Quixote entra e não entra. É interessante que sai da ficção

da cavalaria, para entrar na vida. Mas essa vida é também, e ao mesmo tempo,

outra ficção, pois o mundo medieval que ele pretendia experienciar não mais

correspondia ao mundo da Espanha da época. Nesta ficção de mundo da cavalaria,

criada por Dom Quixote, ele mesmo, por sua vez, fora obrigado a viver também uma

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vida falsa ou fingida. Jogo de espelhos, reduplicação de mundo como ficção ou

ficção como mundo? Duplo fingir? Como explicar a necessidade de existir e ampliar

a experiência da vida assim? Como é possível a Dom Quixote viver de verdade,

fingindo na vida ou vivendo na ficção que ele mesmo criara? Infectado de ficção é o

viver de Dom Quixote.

“Yo sé quien soy” __ diante do anunciar-se do cavaleiro, Ortega y Gasset

passa a analisar sob outra perspectiva sua loucura: Como é possível, afirmar-se,

saber ser com tamanha certeza, aquilo que, a olhos vistos, não se é? Só a loucura

parece poder justificar equívoco desse calibre.

Voltemos à pergunta acima: Como é possível viver de verdade, fingindo na

ficção? A não ser que, como está bem expresso nas declarações que caracterizam o

romance, se confirme a estreita relação entre homem, vida e obra de arte42.

Até a terceira pergunta, Dom Quixote já tinha reunido o seguinte: a

importância da experiência; que havia uma estranha superposição entre existir na

vida real e existir na ficção. Isso, considerando que Dom Quixote, ao sair da ficção

para existir e experimentar a vida na vida, acaba caindo em outra ficção. Qual a

relação entre viver e fingir que aproximaria vida e ficção?

Para essa pergunta, encontramos somente a orientação de Carneiro Leão: “A

única via de acesso que resta é a vivência [...] das manifestações e dos produtos

que nos deixou a vida”43. E foi o que fez Dom Quixote, foi buscar a única via de

acesso num produto que lhe tinha deixado a vida – uma obra de arte, as novelas de

cavalaria. Pelo transparente da orientação, é bem possível que tenha mobilizado o

herói; pois parece que é esse seu procedimento: quer ter a vivência do que lera nos

livros de cavalaria, trazendo a ficção para a vida.

42

Estes pontos, que agora são deixados em aberto, serão retomados no 3º Périplo, quando abordaremos a relação entre arte e verdade na obra e na poesia. 43

LEÃO, E. C. Aprendendo a pensar. 4.ed. Petropolis: Vozes, 2000, v.1, p.35.

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Se estava tão seguro de si, precisaria Dom Quixote, sabendo bem quem é,

fazer tamanho investimento pelo puro desejo de experimentar essa “façanha”? Há

autores que atribuem coisas dessa categoria ao poder que tomou para si o homem

do Renascimento nessa época – que se caracteriza pelo crescente humanismo e

valorização da subjetividade, onde o homem é que tudo pode conhecer e criar44.

Como homem do Renascimento, Dom Quixote está tomado daquilo que transborda

no ar: um tudo querer saber; uma necessidade de dar conta do mundo; e a

prepotência de achar que tudo isso ele poderia. Nessa importante posição central

que lhe cobra a responsabilidade de responder aos grandes impasses da vida,

compreende-se a desmedida do fidalgo.

Que seja assim. De qualquer modo, entretanto, parece no mínimo estranha a

decisão de ser cavaleiro, e buscar viver uma realidade ultrapassada, dentro do novo

paradigma vigente e sem propósito maior, apenas por simples capricho. Será esta a

loucura de Dom Quixote?

1.1.4 Como se processou a metamorfose?

Quando falamos de metamorfose, pensamos logo em “transformação de um

ser em outro”45. Ter-se-ia transformado Dom Quixote em alguma coisa que não era

antes? Quem seria esse outro, que até então, ele não era? Afinal, para o poder que

ansiava o homem do Renascimento, tudo era possível; até transformações desse

porte.

44

Cf. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 17.ed. São Paulo: Ática, 2002. 45

HOLANDA, A. B. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1326.

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A Dom Quixote, para quem o projeto de ser cavaleiro era “tudo”, não lhe

interessavam tais questionamentos. Para ele, transformar-se era muito simples; tudo

parecia funcionar como um movimento em cadeia, cujos desdobramentos

comporiam, por si sós, o quadro medieval de que precisava para nele atuar.

Entretanto, do que precisava, naquele momento, era tomar a primeira decisão: sair

da leitura, abandonar os livros e partir para a vida. Dom Quixote precisava mesmo,

naquele momento, experimentar a vida e existir.

Acreditando em tudo o que aquela leitura gravara em sua mente, Dom

Quixote “fica seco” por um veículo que lhe dê acesso e o coloque nessa via. Lança

mão do pouco que está a seu alcance, ao alcance de suas mãos – o universo da

cavalaria que conhecera pela leitura, e vai experimentar a vivência daquela ficção. E

assim, toma carona em Rocinante que lhe pareceu adequado para percorrer os

“velhos caminhos medievais” da cavalaria.

A semelhança é uma grande estratégia de Dom Quixote para operar a

metamorfose. Gostaríamos de colocar foco sobre a semelhança. É ingenuidade, ou

Dom Quixote sabe bem o que faz, quando a usa? Descobriu-se que até o final do

século XVI havia no mundo um desdobramento infinito por semelhança; “sempre

havia uma similitude a ser desvelada, uma semelhança a ser descoberta, uma

analogia a ser interpretada por sob a marca do verbo e da natureza”46. Isso indicia

quão ainda estava aberta a realidade ao conhecimento e, nesse caso, é possível

compreender a crença de Dom Quixote nessa possibilidade de desdobrar-se. A

semelhança e a analogia se encarregavam de, pela provocação, garantir

possibilidades, de onde natureza e verbo pudessem emanar sempre mais e mais.

Dom Quixote ainda aproveita os resquícios daquela época que estava se

extinguindo, mas que lhe era fortemente próxima, porque nela estivera metido “hasta

46

MODENESI, Jean Calmon. O Dom Quixote de Foucault. Rio de Janeiro: Papers, 2003.

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las coronillas”47. Ao longo de bom tempo, Dom Quixote, de tanto ler, estava tão

familiarizado com essa estratégia, que a tinha próxima, bem ao alcance de suas

mãos: conhecia bem o processo, dispensava qualquer ajuda.

Temos, numa passagem, a estratégia usada pelo fidalgo, para virar cavaleiro

depois de muito apanhar, pelo arrogante que ele fora com “un mozo de mulas”48.

Dom Quixote, sem poder levantar-se, porque tinha o corpo moído, buscou, em sua

memória, alguma passagem semelhante para não perder a oportunidade de reviver

as histórias. Lembrou de Valdovinos que, também ferido, passara por situação

semelhante: “Ésta, pues, le pareció a él que le venía de molde para el paso en que

se hallaba”49 e, imitando-a como um louco, começou a arrastar o corpo na terra

dizendo as mesmas palavras do personagem. E assim vai Dom Quixote pelo

caminho: aproveita uma situação que esteja vivendo ao acaso, para copiar outra da

qual, por semelhança, pode aproveitar-se.

Examinemos o termo “de molde”, ele nos sugere haver sempre um molde, um

modelo a copiar. Aproveitemos também o termo “paso” para registrarmos a marca

da dinâmica da obra que conta uma história expressando movimento em alguma

direção. Dom Quixote se encontrava naquele ponto da caminhada, dando um

“passo” em direção a alguma coisa ou a algum lugar.

Em outro equívoco, Dom Quixote confunde seu vizinho Pedro Alonso,

acreditando ser ele um personagem de cena muito semelhante a de seus livros de

cavalaria, chamando-o de Don Rodrigo de Narváez – o Marquês de Mantua. Este,

ao ouvir Dom Quixote contar-lhe sobre sua amada e sabedor da identidade de

Dulcinea del Toboso, muito aborrecido, esclarece que nem ele é Marquês, nem Dom

47

“Até o último fio de seu cabelo” 48

Um moço que cuida das mulas. (1, IV, p.33) 49

Esta, pois, lhe pareceu que vinha muito a propósito para a situação em que se encontrava. (1, V, p.34)

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Quixote é cavaleiro. Isso deixa indignado de tal maneira o herói, que assim lhe

responde:

Yo sé quien soy – respondió don Quijote-; y sé que puedo ser no sólo los que he dicho, sino todos los Doce Pares de Francia, y aun todos los Nueve de la Fama, pues a todas las hazañas que ellos todos juntos y cada uno por sí hicieron, se aventajarán las mías.50

Não se entrega, não admite: nem que o vizinho não é Valdovinos, nem que

ele não é Dom Quixote, um Cavaleiro da Idade Média. Ao contrário, repete

histericamente saber quem é, além de saber poder ser todos os cavaleiros, de que já

teve notícia a história da cavalaria heróica, reforçando e confirmando sua loucura.

Essa fixação de Dom Quixote pode ser lida, também, como exacerbação

caracterizada, por alguns de seus estudiosos, como excesso de vaidade e crença

em seu poder. Não seria este eco do poder autoconferido, excesso de confiança em

si mesmo, orgulho humano, a cega confiança em seu poder racional, fogo roubado

dos deuses? Esse poder não adquiriu Dom Quixote no mundo da ficção da

cavalaria; antes o absorveu em seu próprio mundo, que transpirava os primeiros

ares da modernidade.

Não satisfeito em ser um cavaleiro, Dom Quixote quer e diz poder ser todos

os cavalerios que já existiram, e constantemente afirma sua consciência de ser

superior a todos. Ainda que se atribua seu comportamento à loucura, no que diz

Dom Quixote, há resquício de algo que não se deixa ver. É nesse ponto que outro

nível se insinua. Não sabemos esclarecer o que não se deixa ver; mas deixaremos

aqui um espaço para posterior conexão. Por enquanto, só percebemos que Dom

Quixote está muito seguro de si; além de saber-se cavaleiro, sabe que pode ser

50

Eu sei quem sou – respondeu Dom Quixote, – e sei que posso ser não apenas os que lhe disse, como todos os doze Pares de França, e até mesmo todos os nove da fama, pois a todas as façanhas que eles todos juntos e cada um por si fizeram, avantajar-se-ão as minhas. (1, V, p.35).

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muitos outros. O que nos intriga é a certeza: “y sé que puedo ser”. Parece nos estar

convocando a um nível mais profundo.

É necessário, portanto, não perder de vista que, além da certeza do que diz

Dom Quixote, e apesar de, pelo recurso da semelhança, ir fazendo as transferências

e atribuindo, por correspondência, nomes que identifiquem personagens das novelas

com pessoas da realidade de seu tempo, ele mesmo não se identifica com um

cavaleiro específico. Por mais que seu referencial maior seja Amadis de Gaula,

possui identidade própria, com nome só seu e tudo mais que lhe correspondia. Isso

o coloca na galeria dos antigos cavaleiros, ocupando o lugar de mais um dentre

todos: o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha. Ele não deseja de fato imitar alguém;

antes, é seu próprio caminho que deseja alcançar. É a sua própria identidade, não a

de nenhum outro, o que busca.51

Retomemos como se deu sua metamorfose. A semelhança é somente uma

das estratégias usadas por Dom Quixote em sua transformação em cavaleiro. Monta

no lombo de Rocinante e sai para o mundo, mas antes toma todas as providências

para realizar tal façanha radical. Já estava cansado da mise-en-scène de cavaleiro:

conta sua sobrinha que, muitas vezes, ainda enquanto lia, atirava longe o livro,

pegava a espada e representava, agindo como perfeito cavaleiro. Naquele

momento, entretanto, optando pela radicalidade, realiza a transformação com tudo o

que tinha direito um cavaleiro. Dom Quixote sai da biblioteca e põe o pé nos

caminhos de La Mancha. Dá seus primeiros passos na ficção, aos 50 anos de idade,

usando a estratégia da semelhança “que le venía de molde para el paso en que se

hallaba”52 Dom Quixote não perde o passo, aproveita-se do universo que as novelas

de cavalaria lhe ofereciam para com ele poder viver, pondo-se em diálogo com o 51

Há este insistir, ao qual o cavaleiro volta a todo momento: “Yo sé quien soy”, reforçado pela certeza do saber: “Y sé que puedo ser”; mas atenuado pelo verbo “poder” que indica possibilidade. Essa insistência não é gratuita; de tão evidente, não há mais dúvida de que insinua uma questão que, no mínimo, inclui a questão do eu e do outro que será retomada no 2o Périplo. 52

Que vinha muito a propósito para a situação em que se encontrava. (1, V, p.34)

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mundo, deixando falar o ser, permitindo que a linguagem lhe contasse a sua

verdade.

Presumir-se-ia que, pelos cinqüenta, já estivesse completo, que o tempo

vivido já lhe tivesse legado tudo de que precisa um homem ao longo da vida. Há,

entretanto, aqui, uma leve contradição: parece estranho que um homem de 50 anos,

tão seguro de sua identidade e completude, além de ter plena consciência de todas

as suas possibilidades: “puedo ser no sólo los que he dicho, sino todos”53, se lance

repentinamente no caminho da aventura. Segundo depoimentos, seu objetivo é

“andar por el mundo enderezando tuertos y desfaciendo agravios”54. Ou seja, seu

compromisso é colocar o mundo em ordem, e isso não parece indicar nenhum sinal

de busca.

Se Dom Quixote procurava algo que lhe faltava, onde poderia buscá-lo?

Chegamos a uma encruzilhada que requisita decisão de caminho: ou Dom

Quixote sabe quem é ou não sabe quem é, embora afirme sabê-lo. Viver essa

contradição, por volta dos 50 anos, sem ser acometido por nenhum conflito, mal-

estar ou sinal de estar em busca de algo, é quase impossível. E, mais ainda, sair

pelo mundo tão seguro, acreditando poder transformá-lo... Essa é só uma

perspectiva. Há outra, entretanto: o dinamismo contido no ser cavaleiro dá, à sua

escolha, outro significado provável. É possível que, por trás da ingênua missão de

“andar por el mundo enderezando tuertos y desfaciendo agravios”, buscando

somente aventuras, algo mais esteja escondido, algo em que, disfarçado, possa

viajar clandestinamente. Algo que dará sentido à sua caminhada.

Ao pensarmos a metamorfose do fidalgo Alonso Quijano no cavaleiro Dom

Quixote, se sobressaem para nós, repetidamente, no mesmo contexto, termos como:

53

Posso ser não apenas os que eu disse, como também todos os demais (1, V, p.35) 54

Andar pelo mundo consertando injustiças e desfazendo desacertos (1, XIX, p.101)

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“trajetória”; “caminhada”; “passo”... Estes normalmente indiciariam espaço geográfico

e deslocamento físico. Mas no caso específico do tema desta pesquisa, ao mesmo

tempo que estes termos indiciam essa perspectiva, parece também que a reforçam:

com a cavalaria andante contribuem, para o deslocar espacial, não só as quatro

patas de um cavalo, como os dois pés do cavaleiro. Sem contar com a mudança

radical que se processa no romance: a saída de um estado de repouso em que vivia

um fidalgo – “los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año”55, para um

movimento dinâmico: a opção de abandonar a leitura silenciosa estática, e “irse por

todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo

aquello”56. Parece que Dom Quixote interiorizou um desejo súbito, um inexplicável

“querer” ser cavaleiro. Por mais que busquemos uma explicação, só o “querer” faz

sentido.

Saindo do texto ficcional, fomos buscar em outras e novas fontes e

encontramos, ainda, outros termos afins a esse campo semântico que, talvez,

também pela semelhança, nos sirvam de pista. Ali lemos o seguinte: “A resposta à

pergunta é, como cada autêntica resposta, a saída derradeira do último passo de

uma longa seqüência de passos questionantes”57.

Aqui também há passos: “último passo” e “seqüência de passos” vêm ao

encontro do universo vocabular espacial e dinâmico que apresentamos. Entretanto,

há inclusão de outros termos que, com eles, são postos em tensão, aparentemente

inconciliáveis e que, por isso, merecem atenção. Entram aqui os termos “resposta” e

“questionantes” como partícipes da dinâmica dos “passos”. Isso reconfigura o visto,

anteriormente, e exige revisão do significado daqueles vocábulos. Deles, o que

necessariamente deverá ganhar nova dimensão é o significado de “espacial”. Assim, 55

Os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano. (1, I, p.18) 56

Ir-se pelo mundo com suas armas e cavalo a procurar aventuras e a praticar tudo aquilo. (1, I, p.19) 57

HEIDEGGER, Martin. O originário da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva, parágrafo 158 (mimeo).

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a “seqüência de passos” não se efetiva, num limite geográfico. Logo, não será na

dimensão espacial que Dom Quixote encontrará nada além de aventuras.

Retomemos, pois, o ponto. Estávamos nas estratégias por semelhança –

recurso usado fartamente pelo fidalgo, nas situações em que necessitava dar maior

realismo à vida de cavaleiro. Por semelhança, necessitava também de todos os

elementos que os demais cavaleiros dispunham em sua história: armas e uma

poderosa armadura; o melhor de todos os cavalos, que estivesse à altura do

cavaleiro que pretendia ser; e o amor de uma bela e nobre dama.

Dom Quixote elimina de cada instrumento do seu mundo todo o excesso não

necessário nem essencial para que tenha lugar no mundo da cavalaria, seleciona

rigorosamente somente o que esteja dentro dos limites que lhe conferem o status de

verdade; ao mesmo tempo, não descuida de manter um fio, mínimo que seja, para

garantir-lhe a realidade de que vai precisar para cruzar aqueles difíceis e tortuosos

caminhos. Observa-se, ainda, cuidado excessivo com o nomear. Tem-se a sensação

de que as coisas só ganham lugar no mundo, se nomeadas.

Vê-se, então, que além do recurso da pura e simples semelhança, Dom

Quixote selecionou criteriosamente os itens fundamentais que faziam parte do rol do

manual “Como ser cavaleiro”, diluído nas histórias e disponível em qualquer livro de

cavalaria, e buscou dar realidade concreta a cada um. Inteligente a providência: de

cada elemento selecionou só o necessário para defini-lo e colocá-lo no mundo.

A armadura foi o que mais trabalho exigiu, mas, finalmente, ele mesmo julgou,

por si só, ser uma armadura finíssima, o que tinha realizado da segunda vez.

Depois do fracasso da primeira experiência, em que o futuro cavaleiro, vendo

que a armadura “de sus bisabuelos”58 não era a melhor para aquela empresa,

porque não protegia a cabeça totalmente, deu um “jeitinho” e “aderezólas lo mejor

58

De seus bisavós (1, I, p.19)

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que pudo” 59 e, o que nela faltava, com sua “industria”, ele completou com papelão,

estando seguro de que, com essa providência, a armadura ficara com “apariencia de

celada entera” 60, e completa para dar conta de sua função.

Na dúvida, no entanto, resolveu “probar si era fuerte y podía estar al riesgo de

una cuchillada” 61. Contra a armadura arremessou algumas facadas, o que a fez virar

“pedacinhos”, pondo por terra o trabalho de uma semana. Refez tudo, substituindo o

papelão por ferro, e, mesmo sabendo da necessidade de submetê-la à nova

experiência, o ignora, concluindo por sua própria conta, estar “satisfecho de su

fortaleza”62. Só porque colocara uns “ferrinhos” por dentro, já lhe bastava para trazê-

la ao mundo como armadura; estava ajustadíssima, por correspondência, ao

significado que lhe dava aquele nome. E foi assim que, definitivamente, “la diputó y

tuvo por celada [...] de encaje”63.

Quanto ao cavalo – “tenía más cuartos que un real” 64, seus cascos sofriam da

mesma doença do cavalo de Gonela, e ele mancava; mas esse dado não era nada

importante, uma vez que a Dom Quixote seu cavalo “le pareció” superior, comparado

ao “Bucéfalo de Alejandro” e ao “Babieca el del Cid”65. Mais importante do que sua

performance física, foi encontrar-lhe um nome sonoro que estivesse à altura de

cavaleiro tão famoso; nessa tarefa gastou quatro dias. “Rocin-ante”: “ante”, prefixo

disponível na língua que, acrescentado ao nome, faz de qualquer cavalo, o anterior,

o primeiro, o melhor e mais importante de todos “los rocines”.

59

Reparou-as o melhor que pode. (1, I, p.19) 60

Aparência de celada inteira. (Ibidem) 61

Experimentar se era forte e resistiria ao perigo de uma punhalada. (Ibidem) 62

Satisfeito de sua resistência (Ibidem) 63

Reputou-a e teve como celada (antiga armadura de ferro para a cabeça) [...] de ajuste (Ibidem) 64

Tinha mais quartos que um real. (Ibidem) 65

Pareceu-lhe [superior (...) ao] Bucéfalo de Alexandre Magno [e ao] Babieca, o de el Cid (Ibidem)

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Seu pangaré foi elevado à categoria de “primero de todos los rocines del

mundo”66, por um critério unicamente seu, sem que o cavalo tivesse, em momento

algum, demonstrado, em nenhuma situação real e concreta, merecer tal posição de

privilégio. Muito pelo contrário, estava cheio de “cuartos”, e, por isso mancava. Como

é possível ser um cavalo, considerado o primeiro, o melhor entre todos, se é manco,

por ter as patas cheias de bicho? Mas nada disso importa para Dom Quixote; a

designação tinha simplesmente que estar em perfeito acordo com a pompa exigida

para o nome dos cavalos de ilustres cavaleiros. Isso foi só o que contou como

significativo.

Para sua amada Dulcinea, considerou a função primordial de que os gigantes,

seus futuros vencidos de guerra, precisariam ter a quem se apresentar:

Yo señora, soy el gigante [...] a quien venció [...] don Quijote de la Mancha, el cual me mandó que me presentase ante vuestra merced, para que la vuestra grandeza disponga de mí a su talante.67

Se era amor de verdade, não vem ao caso. Muito pelo contrário; do que

precisava mesmo era do mínimo suficiente para tornar visível o atributo platônico

daquele amor, elemento essencial, dentro dos contornos do mundo da cavalaria. E

Dom Quixote, disso cuidou: dizem tratar-se de uma vizinha de aldeia próxima por

quem estivera enamorado por algum tempo.

Apesar do cuidado de se manter no ar algum vínculo de realidade, ligando

Aldonza Lorenzo a Dom Quixote: “en un lugar cerca del suyo había una moza

labradora de muy bien parecer, de quien él un tiempo anduvo enamorado”, o

fundamental vem a seguir, depois da conjunção concessiva “aunque”: “aunque, [...]

66

Primeiro de todos os rocins do mundo (1, I, p.20) 67

Eu, senhora, sou o gigante [...] a quem venceu Dom Quixote de La Mancha, o qual me ordenou que me apresentasse diante de vossa mercê, para que vossa grandeza disponha de mim a seu talante. (Ibidem)

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ella jamás lo supo, ni le dió cata dello” 68. Fundamental porque é a concessiva, que

põe, no seu amor, o símbolo platônico.

Dera forma não só a uma amada, mas também a um amor platônico, tão

necessário para dar realidade ao único elemento que lhe faltava na composição do

instrumental cavaleiresco. Ao acaso escolhe uma vizinha, e lhe dá o nome de

“Dulcinea del Toboso”, por ser natural desse lugar. Se era nobre, não importa; só

precisava que o nome inventado não deixasse de atender a dois pontos importantes:

“que tirase y se encaminase al de princesa y gran señora” e que “no desdijese

mucho del suyo”69. E, assim, deu por consumada a situação, porque a Dom Quixote

“le pareció” estar aquela mulher sob medida para suas pretensões. Bastava que

tivesse nome de princesa e de grande senhora.

Todo o necessário para ser cavaleiro já estava arranjado e devidamente

nomeado; tudo “a su parecer”70. Tudo nomeado e definido do jeito como parecia

significativo e conveniente a Dom Quixote. Resta ainda compreender esse modo de

dar forma ao mundo, demonstrando cuidado com a realidade, ao mesmo tempo que,

desse cuidado se descuide.

2 A PROCURA DA CURA ÔNTICA, UM ERRO DE PERCURSO

Respondidas às perguntas do suposto médico, a dificuldade de respondê-las

somada a nenhum vislumbre – mínimo sequer – de definição de seu “quadro clínico

68

Em algum lugar perto do seu, havia uma moça lavradora, de muito boa aparência, pela qual, uma vez, andou apaixonado [O fundamental (...) “aunque”:] Ainda que [...] ela nunca tenha sabido ou buscado saber disso. (1, I, p.20) 69

Que lembrasse ou se aproximasse ao de princesa e grande senhora [e que] não destoasse muito do seu. (Ibidem) 70

Em sua opinião.

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e infeccioso”, faz-nos pensar que poderíamos estar equivocados. Estaríamos

procurando a Cura para a “infecção” de Dom Quixote no lugar certo?

Até agora, só procuramos Cura em sentido ôntico, factual, Cura como

contraposta à doença. Mas se a infecção de Dom Quixote é de outro tipo, resultado

do jogo de espelhos entre vida e ficção, vida e criação poética, não seria também de

outro tipo sua Cura?

O que este jogo de palavras esconde? Se Cura virou uma questão, é preciso

pedir ajuda, para melhor compreensão.

A princípio, optamos por refletir sobre a Cura no sentido que até aqui vem

sendo trabalhado, no sentido usual: aquele que sempre imediatamente nos vem ao

encontro, porque há muito já circula no senso comum. Nesse sentido, ela é

debilidade que exige cuidados médicos e remédios, implicando, assim, “o cuidado e

a dedicação”. Mas podemos falar de Cura em outro sentido? Que outra Cura para a

infecção71 de Dom Quixote procurar?

Séculos atrás, já é possível encontrar referência à Cura como algo de

“extrema importância” para o homem e seu viver. Há uma fábula de Higino que já

bem o destaca.

2.1 HEIDEGGER, A CURA COMO MITO E A EXISTÊNCIA DO HOMEM

71

O mesmo impasse em relação ao sentido de cura estende-se ao sentido de infecção, com o qual Ortega y Gasset diagnosticou Dom Quixote.

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A resposta a essa outra possibilidade fomos encontrar em Ser e tempo, na

interpretação do filósofo de uma das Fábulas de Higino72, que por ora

apresentamos, como um “testemunho pre-ontológico” da “Cura”73.

Certa vez, atravessando um rio, cura viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a lhe dar forma. Enquanto refletia sobre o que criara, interveio Júpiter. A cura pediu-lhe que desse espírito à forma de argila, o que Júpiter fez de bom grado. Como a cura quis então dar seu nome ao que tinha dado forma, Júpiter a proibiu e exigiu que fosse dado o nome. Enquanto cura e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a terra (tellus) querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno como árbitro. Saturno pronunciou a seguinte decisão, aparentemente eqüitativa: “Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito e tu, terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo. Como, porém, foi a Cura quem primeiro o formou, ele deve pertencer à Cura enquanto viver. Como, no entanto, sobre o nome há disputa, ele deve se chamar “homo”, pois foi feito de humus (terra)74

Assim foi criado o “Homo” – assim na terra como no céu – por ele

respondendo Terra e Júpiter. Foi apreendido como composto de corpo e espírito.

Entretanto, esse testemunho pre-ontológico dá novo significado à origem do homem

e atribui predominância ao seu viver. A origem do ser do homem é Cura, e “esse

ente não é abandonado por essa origem, mas, ao contrário, por ela mantido e

dominado enquanto for e estiver no mundo”75. À Cura, deve estar entregue o

homem, enquanto estiver nesta travessia entre nascimento e morte, construindo sua

existência no mundo.

Da leitura do mito, ressoam ainda fragmentos: “enquanto for e estiver no

mundo”; “percurso temporal no mundo”; “o homem mortal”... Parece que estamos

nos aproximando de um ponto de ancoragem: Cura é experiência do viver que

acontece na própria existência, entre as pontas: nascimento e morte.

72

Embora Higino seja um escravo egípcio, a fábula é latina. 73

Cabe ainda observar que Heidegger encontrou este mito em ensaio de Burdach, que mostra que Goethe extraiu de Herder a fábula 220 de Higino, trabalhando-a para a segunda parte de seu Fausto. 74

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.263-264. 75

Ibidem, p.264.

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A origem do homem, este ser preso na maravilha da vida, mas limitado pelo

insondável da morte, estaria, para Heidegger, expresso na Cura, como aquilo que o

sustenta na travessia entre estes dois pólos. Cura estaria aí capturada nesse

testemunho pre-ontológico sobre o ser-homem, testemunho determinante para

Heidegger, em sua interpretação ontológico-existencial da pre-sença76 que é o

homem como Cura.

Ao dizer: “Yo sé quien soy”, está Dom Quixote louco, ou é alguém que busca

Cura, na compreensão e construção de sua existência, alguém que está à pro-cura?

Dom Quixote tem tantas certezas! Mas é ele cavaleiro ou fidalgo? Está instalado o

dilema. Esse dilema parece ser da ordem do saber e do ser: estes são os verbos

reincidentes aqui.

É incontestável que Cura está intimamente ligada ao próprio “ser” do homem,

seu próprio existir. Na afirmação de Dom Quixote, o próprio verbo “ser” se encarrega

de dispor essa relação. Ele sabe quem é, com a firme certeza que não permite

questionamento; tem, firmes, todas as certezas que sustentam suas ações, as suas

crenças no mundo e em si mesmo. “Yo sé quien soy” Mas pode alguém de fato ter

tais certezas? Pode alguém de fato ter certezas definitivas?

Não é a morte, a finitude, a única marca inequívoca do homem? Dom Quixote

opta pelas certezas já dadas do mundo inerente à cavalaria, pelo já estabelecido e

sedimentado nos romances que lia, para acabar com o dilema da falta que o

persegue desde o início do romance. Se o que procura é preencher uma falta, o que

ele busca não são justamente as certezas definitivas para acabar de vez com a

incerteza e insegurança geradas pela falta? Dom Quixote está buscando segurança

76

Heidegger se refere ao homem como existente, ao homem em sua existência a partir do termo alemão Dasein, que é de tradução complexa e controversa. Em português, foi traduzido, na edição brasileira de Ser e Tempo, como pre-sença, termo que escolhemos usar nesta tese. Contudo, há autores que preferem traduzi-lo por ser-aí ou que optam por não traduzi-lo. Usaremos terminologia diferente nesta tese somente quando citarmos diretamente um autor que a use, por não acharmos correto alterar o texto em uma citação direta. A respeito da controvérsia em torno das traduções possíveis, consultar: INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Trad. Luisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p.29-33.

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e certezas para sua vida, dentre as alternativas que já conhece, dentre o elenco do

que já viu.

Heidegger retoma a questão da existência do homem em Ser e Tempo. Falar

do homem como existência é falar de um ser que se sabe ser, que tem consciência

da própria finitude e da morte, é, sobretudo, falar de um ser que sabe que sabe e

que sabe que é. O homem pensa, o homem fala, o homem poetiza. Desse modo, o

homem significa a realidade, e ao significar pensa o mundo e a si mesmo,

construindo sua existência e seu mundo. E constrói sua existência e seu mundo

sobre o abismo dos limites de sua própria não compreensão, o nada que lá no fundo

subjaz.

Mas é preciso despojar o nada das conceituações de que está carregado.

Trata-se de um nada onde a radicalidade e a cooriginariedade não só abrem ao

criativo, como também garantem o fluxo inesgotável das representações, jamais o

nada estéril da pura negação.

Além disso, pensar não se restringe a representar. Isso porque toda e

qualquer representação “inclui sempre um nível de pensamento que não representa

nada, toda representação vive de acolher e aceitar, em seus limites, o mistério da

realidade, subtraindo-se em todas as realizações”77.

Voltemos a Heráclito, para o relacionarmos com esta pesquisa, a partir da

seguinte asserção: “A harmonia invisível tem mais vigor de articulação do que a

visível”78. Sua palavra nos serve de ilustração para a constatação que expressamos

a seguir: O pensar do Ocidente e seus muitos descaminhos de representações

visíveis, nessa última encruzilhada em que se encontra, esforça-se por resgatar o

invisível. O que se busca é o sentido do ser. Por muitos caminhos o buscamos,

77

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.12. 78

Ibidem, p.13.

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desde a filosofia, da ciência, da arte e da religião, até na vivência de nossos

sentimentos. Mas o ser não se deixa determinar através ou a partir de outra coisa

que não ele mesmo. O ser só pode ser determinado a partir do seu sentido como ele

mesmo.

É claro que essa questão foi outrora grande esforço de pensamento.

Entretanto, depois de dar fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles, emudeceu

“como questão temática de uma real investigação”79. Sabe-se, também, que a

contribuição dos filósofos da Antigüidade percorreu os séculos violentada por

arranjos e distorções até alcançar nossa época totalmente desvigorada. O que, em

algum momento, foi digno do empreendimento do pensar, encontra-se agora

banalizado.

Tema tão misterioso deveria, ao contrário, ser o mais inquietante da vida do

homem, e, na verdade, foi, a ponto de outrora ter trazido, ao cenário da filosofia,

mentes tão vigorosas. Agora, porém, o misterioso, o encoberto inquietante, o

invisível passou a ser objeto de tratamento trivial.

Nessa introdução ao ser de Heidegger, reaparecem personagens muito

afinados com aquilo que se pode entender por falta: o nada, o vazio, o não visível, o

não pensado. Se tudo isso tem a ver com o ser, parece que Dom Quixote, na

situação em que se encontra, deve dar-se por satisfeito. Afinal, cheio de “não-ser”,

está de posse “da maior glória do homem”.80

3 A QUE PAIDÉIA SERVE DOM QUIXOTE?

79

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 27. 80

NOBREGA, Francisca. Laboratório de literatura poética. Ano 1, n.1, março de 1998 (mimeo).

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Para arrancar do mito de Cura todos os seus mistérios, custa trabalho. Agora

esbarramos no “fingere”. Teria ele alguma relação com o duplo fingir de Dom

Quixote, que acima deixamos no ar? Só sabemos que seu significado grego é

“formar”81. E tudo o que aponta para formação, nos traz a reboque, Platão. Haveria

relação, também aqui, entre Cura e Platão?

Pelo que sabemos, só a Paidéia pode conectar “formação” com Platão.

Verifiquemos, entretanto, na obra, se encontramos algum indício, ela que é a

sabedora de toda verdade.

Há várias menções à república, e uma delas encontra-se no fragmento que

avalia os livros de cavalaria como não recomendáveis: “Verdaderamente, señor

cura, y hallo por mi cuenta que son perjudiciales en la república estos que llaman

libros de caballerías”82. Resgatamos isso de uma conversa entre “el cura”83 e “el

canónigo de Toledo”. Na contrapartida, a outra nos comunica uma decisão

espontânea do próprio Dom Quixote, quando avalia as vantagens de ser cavaleiro:

[...] y fue que le pareció convenible y necesario, así para el aumento de su honra como para el servicio de su república, hacerse caballero andante [...] a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que el había leído que los caballeros andantes se ejercitaban [...] 84

Tem-se, aqui, duas posições bem claras e opostas: serem os livros de

cavalaria ou positivos ou negativos para a república. Não pode ser gratuita essa

dupla menção. Não somente pelo termo república em si, mas pelo que ela traz

81

Esse tema será retomado no 3o Périplo, conjugado com as transformações realizadas por Dom Quixote. 82

Na verdade, senhor cura, e acho, por minha conta, que são prejudiciais na república estes chamados livros de cavalarias (1, XLVII, p.293) 83

Serão mantidos em espanhol, os termos usados para designar, pessoas e suas atividades: “el cura”, “el barbero”, “el canónigo”, “el bachiller”, etc; bem como as localidades: “la Mancha”, “la cueva”, Sierra Morena”, etc. 84

E foi que lhe pareceu conveniente e necessário, tanto para o aumento de seu prestígio quanto para o serviço da república, tornar-se Cavaleiro andante [...] buscando aventuras e praticando tudo aquilo que tinha lido que os cavaleiros andantes praticavam (1, I, p.19)

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consigo de significação. Sabemos que a leitura era o ponto vital para Platão, no

tocante à sua influência nos jovens cidadãos, pois ela colocava em risco a república

por ele almejada e anunciada.

Apesar de ter emudecido “como questão temática de uma real

investigação”85, a questão do ser não deixou de ser retomada através dos séculos,

violentada é verdade, causa de a nossa época tê-la recebido tão desvigorada. Não

seria a Paidéia retomada no tempo de Quixote, resultado de um desses arranjos que

a falta de vigor acabou desorientando?

As reedições a que nos referimos incorporam o “soldado” que se configura no

Renascimento, ambiente plenamente propício a seu aparecimento, não só por estar

dentro das perspectivas do ideal humanista de formação do homem pleno, viajado,

aberto a todas as experiências possíveis, inclusive à batalha, como também pelo

quadro que o final da Idade Média acabou delineando – um ambiente de constantes

e intermináveis guerras.

Presume-se que a reedição da Paidéia, no Renascimento, coincide em

propósitos com a Paidéia platônica, considerando os valores humanistas, oferecer,

para a formação do homem pleno, o treinamento do corpo, esgotando, ao limite

máximo, suas possibilidades. Quanto mais preparado nos mais diversos níveis de

atuação, mais apto estaria para realizar o ideal renascentista, e o exercício físico

era, unido à disciplina, de vital importâmcia como preparação para o objetivo maior:

a abertura e alcance da verdade eterna e universal.

Esse procedimento pode ser justificado, com o encantamento que sobre

qualquer leitor exerce o discurso de Dom Quixote sobre “las armas y las letras”86, até

que se perceba ter ele função outra, muito mais fundamental que a até então

85

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.27. 86

As armas e as letras (1, XXXVIII, p.231)

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presumida. O sentimento de simpatia e de louvor com que Dom Quixote se refere ao

soldado, colocando-o como um grande herói, exatamente por sua capacidade para

enfrentar as agruras da vida militar da Espanha daquela época, pareceu-nos digno

de registro, não só pelo emocionante do discurso, mas fundamentalmente, porque

deixa claro a não mera coincidência entre armas e letras de um lado, e cavaleiro e

filósofo do outro. O perfil do soldado daquela época é apresentado meio

desfigurado, muito afastado, tanto do ideal do “guardião” da tradição, como do ideal

renascentista. Ao contrário do previsto como ideal para essas duas paidéias, o

soldado espanhol tem vínculo com o estado, luta pela pátria e tem salário; embora

muitas vezes nem chegue a recebê-lo, “porque está atenida a la miseria de su paga,

que viene o tarde o nunca”, a ponto de o soldado espanhol precisar fazer transações

paralelas, chegando até a roubar “lo que garbeare por sus manos, con notable

peligro de su vida y de su consciencia”. O soldado é tratado sem dignidade: passa

frio na campanha, dorme no chão, sem proteção sequer de lençol. No dia de pôr à

prova todo o seu exercício __ “el día y la hora de recibir el grado de su ejercicio: [...]

un día de batalla” __, se expõe a “algún balazo”, ou fica “estropeado de brazo o

pierna”. E, mesmo que a sorte o proteja, que “esos milagros vense raras veces”, não

é premiado por isso, porque “¿cuán menos son los premiados por la guerra que los

que han perecido en ella?”87. É por esses motivos que Dom Quixote sai em defesa

do soldado, porque “a cada paso está a punto de perder la vida”, se o inimigo

estiver“mirando hacia la parte donde él está [ele] no puede apartarse de allí por

ningún caso, ni huir el peligro que de tan cerca le amenaza”88.

87

[Ao contrário (...) recebê-lo] porque está restrita à miséria de seu soldo, que vem tarde ou nunca, [a ponto (...) roubar] o que pilhar por suas mãos, com notável perigo de sua vida e de sua consciência [O soldado (...) exercício __] no dia e na hora de receber o diploma de seu exercício [...] um dia de batalha [__, expõe-se a] alguma bala grande, [ou fica] estropiado de braço ou perna. [E (...) proteja, que] esses milagres raramente são vistos, [não (...) porque] quanto menos são os premiados pela guerra que os que nela pereceram? (1, XXXVIII, p.231) 88

A cada passo está a ponto de perder a vida [se o inimigo está] Está olhando para onde ele está [...] não pode afastar-se dali de nenhum modo, nem fugir do perigo que de tão perto o ameaça. (1, XXXVIII, p.232)

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Depois de listar muitas das dificuldades enfrentadas pelo soldado, dentro de

uma simulação de guerra, Dom Quixote resume seu discurso numa constatação

crudelíssima que é a de saber não ser possível a nenhum soldado, previsto por

qualquer formação, fazer frente, naquelas condições, a um inimigo muito maior, que

inviabilizava qualquer possibilidade de luta nos moldes antigos: “benditos siglos que

carecieron de la espantable furia de aquestos endemoniados instrumentos de la

artillería” 89. A dimensão desse inimigo é tal a ponto de Dom Quixote ter dúvidas

sobre se poderá continuar com seu projeto, já que suas armas são seu braço e sua

espada, ainda assim sentia muito receio, “me pone recelo pensar sí la pólvora y el

estaño me han de quitar la ocasión de hacerme famoso y conocido por el valor de mi

brazo y filo de mi espada” 90. Da investigação que inclui o soldado, talvez esse seja o

ponto mais significativo, caso contrário, não o encaminharia Dom Quixote até esse

ponto.

Parece ficar aí explicado o cuidado de não perder esse emocionante

desabafo do herói de la Mancha. O que dele pode-se aproveitar só o andar da

pesquisa pode dizer. Digamos, por exemplo, que não pode ser casual esse discurso.

Um discurso tão veemente não pode ser gratuito. E, segredemos aqui: é

possível ler, nas entrelinhas, um desabafo de Cervantes, dados os dissabores que a

vida militar lhe trouxe; vide o “balazo” que o deixou “estropeado”, não de perna, mas

“de brazo”.91

Pelo visto, por mais que a figura do soldado pudesse ter tido algum sentido na

vida espanhola dessa época, decidimos fazer a condução por outro caminho. A 89

Benditos séculos que careceram da espantosa fúria daqueles demoníacos instrumentos da artilharia. (1, XXXVIII, p.232) 90

Me assusta pensar se a pólvora e o estanho me impedirão de tornar-se conhecido pela força do meu braço e o fio de minha espada. (1, XXXVIII, p.233) 91

Se assim o considerarmos, o troco é dado com total maestria. Se Cervantes não tivesse caído na trama armada pelo Estado Espanhol, se poderia ter tido a chance de optar por outro caminho, se outras possibilidades poderiam ter-lhe sido apresentadas, nesse caso, podemos vislumbrar que Cervantes demonstra a lucidez de quem, à pro-cura da Cura fez a travessia. Se, passados os séculos, o autor de Dom Quixote retoma “el paso” perdido, exatamente no ponto em que precisava transmutar sua lucidez em loucura, enlouquecendo um pacato fidalgo para vingar-se da Espanha, e se, com isso, acaba enlouquecendo, não só Espanha, mas todo o Ocidente, o mundo inteiro que com sua obra se identifica. Se assim foi, isso são só conjecturas extra-textuais que não cabem em nosso estudo.

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relação entre a república, até aqui desenvolvida, só serviu para dela serem

descartados, além do soldado, o cavaleiro.

Pelo discurso de Dom Quixote em defesa do soldado, traçando-lhe o perfil

dentro do quadro hostil do exército espanhol da época, fica descartada a intenção

formadora do soldado para atender à república cristã. Pelo desabafo da sobrinha,

narrando as tristes e constrangedoras cenas que era obrigada a testemunhar:

[...] arrojaba el libro de las manos, y ponía mano a la espada y andaba a cuchilladas con las paredes; y cuando estaba muy cansado, decía que había muerto a cuatro gigantes como cuatro torres, y el sudor que sudaba del cansancio decía que era sangre de las feridas que había recebido en la batalla92

Cansada, sem mais saber sobre como afastar o tio enlouquecido das

famigeradas novelas de cavalaria, com esse desabafo da sobrinha, fica descartada,

também, a formação do cavaleiro, como alguma possibilidade de resgate do ideal

heróico. É claro que uma pontinha de cada permanece, mas não o suficiente para

maior dedicação.

Finalmente, se as novelas de cavalaria não tinham o cunho de formação, nem

do soldado, nem do cavaleiro, mas, se, ao mesmo tempo, elas deixam transparente

uma íntima relação com a república, isso nos leva a desconfiar de uma nova versão

da Paidéia platônica. Entretanto, que se deixe definitivamente esclarecida a sua

intenção. Se não foi nem o soldado nem o cavaleiro, que formação foi essa a que

Dom Quixote aderiu incondicionalmente, como leitor inveterado, chegando a ser por

ela tragado?

Se o único modelo que pudesse sustentar, na época, qualquer formação, era

o platônico; se desse modelo fica descartado qualquer resquício do “guerreiro-

92

Arremessava o livro das mãos e empunhava a espada e andava golpeando contra as paredes, e quando estava cansado dizia que tinha matado quatro gigantes que pareciam quatro torres e o suor que suava do cansaço dizia que era sangue das feridas que tinha recebido na batalha. (1, V, p.36)

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guardião” da Paidéia tradicional, inclusão adaptada à Paidéia platônica, com vistas à

sua eficácia, o que se resume de tudo isso é que a atenção da época de Dom

Quixote, resultante de um dos ajustes de que nos fala Heidegger, ajustes

conhecidos como platonismo, essa atenção estava centrada na formação do filósofo,

tendo em vista a crise do momento. Para isso, era preciso uma ação de urgência,

com vistas a atender a “la república cristiana”.

O problema agora se transfere para o risco da imitação no que toca à

formação do cidadão da república, além de seus desdobramentos, esses que vão,

desde a vida, alcançando até a ficção.

Vida e ficção, realidade vivida e realidade fingida, aí se encontra o ponto

nevrálgico da obra. Não é por acaso que uma dramática e maquiavélica sessão do

escrutínio segue povoando o imaginário de todos os leitores de Dom Quixote, como

um grande ritual de “caça às bruxas”. Essas duplas atormentavam a todos dessa

época. E mais ainda. A essas duplas, outra de maior porte se impunha: a dupla

mentira – verdade. Com isso fica bem explicada a pergunta que tanto atormenta

Dom Quixote “¿Habían de ser mentira?”. E ainda mais que “están impresos con

licencia de los reyes y con aprobación de aquellos a quien se remitieron” 93.

Parece que estamos diante de uma grande contradição: os livros de cavalaria

não ensinam, só atendem à distração e ao divertimento e, no entanto são todos

aprovados pelos reis. Outra contradição ainda, igualmente intrigante, é terem sido as

novelas de cavalaria veículo de formação, pelo menos é assim que somos obrigados

a justificar a perda de identidade do fidalgo Alonso Quijano. Este, de tanto ler, ao

mesmo tempo em que incorporava, tomando para si tudo o que povoava a realidade

medieval da cavalaria, enlouquecia exatamente por ter assumido a personalidade de

93

Haviam de ser mentira [E ainda mais que] estão impressos com licença do rei e com aprovação daqueles a quem foram dirigidos (1, L, p.304)

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um outro – o cavaleiro don Quijote de la Mancha, cuja finalidade era a de “andar por

el mundo enderezando tuertos y desfaciendo agravios”94, nos mesmos moldes que

aprendera, quando lia aquelas novelas. Desse modo, as novelas serviram de

modelo formativo – o modelo de um outro cavaleiro, não de um cavaleiro definido,

com seu lugar já ocupado no mundo, modelo no qual o fidalgo leitor se nutriu de

conhecimento para colocá-lo em prática na hora exata de sua necessidade.

Vê-se que essa constatação é real: Dom Quixote já é cavaleiro e se encontra

atuando no século XVI, por acreditar na necessidade de uma reedição da cavalaria

andante. Entretanto, não consegue ter paz nem tranqüilidade para assumir seus

compromissos de paladino da justiça, enquanto não encontra resposta para essa

pergunta “¿Habían de ser mentira?”.

Não consegue compreender nem se conformar com a contradição: se foi

naquelas novelas, as que tinha lido em tamanha quantidade e com tanto frenesi, que

teve toda a base de seus conhecimentos, para assim, estar liberado a realizar sua

missão de cavaleiro; se aqueles livros eram mentira, se não estavam comprometidos

nem com a realidade nem com a verdade, nesse caso, ele também seria uma

mentira. Ele que tão bem cumprira a determinação de ser cavaleiro exatamente por

ter sido um exímio leitor, acreditar em tudo o que as novelas veiculavam, poderia

estar correndo o risco de ser, ele mesmo, também uma mentira?

Pois se, revivendo o escrutínio, não há nenhum indício que esclareça esse

impasse, como e onde encontrará Dom Quixote explicações que lhe permitam seguir

em frente em seu propósito?

Só agora foi possível compreender onde se instalou essa dúvida.

É que a chave para esse entendimento, por falha “del cura” ou, talvez de

Cervantes, não nos foi oferecida no “escrutínio”. Ali, muito livro queimado, muita

94

Andar pelo mundo consertando injustiças e desfazendo desacertos (1, XIX, p.101)

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conversa, muitos comentários, muito julgamento, sem que fôssemos brindados com

duas informações fundamentais: a primeira é a de que o requisito essencial para ser

considerada uma boa novela e aceitável pela “república cristiana” é não poder fugir

“de la verisimilitud y de la imitación”, porque é nisso que consiste “la perfeción de lo

que se escribe95”. É essa a causa de todos os livros de cavalaria terem sido

considerados “dignos de ser desterrados de la república cristiana” por sua total

inutilidade – “como a gente inútil”96.

A outra é uma revelação que foi dita em situação particular, quase em

segredo confessado a dois – “el cura” e “el canónigo”. Não foi revelado isso no fórum

previsto para essa atividade – o escrutínio. Foi segredado, em conversa particular,

quase íntima, no capítulo XLVII, estendendo-se até o XLVIII, quando “el cura”,com o

grupo que o acompanhava no cortejo, conduzindo Dom Quixote enjaulado de volta à

sua casa, troca confidências com o outro.

O encontro foi casual: “volvió el cura el rostro, y vió que a sus espaldas

venían hasta seis o siete hombres”, dentre eles “uno de los que venían [...] era

canónigo de Toledo”97. Tendo Dom Quixote contado sua história ao “canónigo” e a

seus criados, este se aproximou “del cura” para com ele tecer alguns comentários a

respeito da loucura de Dom Quixote e, dos livros de cavalaria, os que possivelmente

o levaram à loucura.

É nesse capítulo XLVIII que acabam definindo bem o que caracteriza uma

novela de cavalaria. As consideradas más são aquelas que nunca tiveram um “buen

discurso”, nem “reglas por donde pudieran guiarse y hacerse famosos”98. Só agora

fica claro que se trata de um estilo, estilo tão bem definido que possui todos os itens

95

Da verossimilhança e da imitação [...] a perfeição do que se escreve (1, XLVII, p.294) 96

Dignos de serem desterrados da república cristã [por (...) inutilidade] como a gente inútil (Ibidem) 97

Virou o rosto o cura, e viu que às suas costas chegavam pelo menos seis ou sete homens [dentre eles] Um dos que chegavam [...] era cônego de Sevilha (1, XLVII, p.291) 98

Bom discurso [nem] Regras pelas quais pudessem orientar-se e tornar-se famosos (1, XLVIII, p.295)

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que lhe são necessários para desse modo definir-se – “novelas de cavalaria”. Cada

vez, mais nos aproximamos do modelo ideal adotado pelo platonismo, definindo até

a arte.

E como se isso não bastasse, mais adiante confessa, primeiramente, seu

desejo: “Yo, a lo menos - replicó el canónigo -, he tenido cierta tentación de hacer

um libro de caballerías, guardando en él todos los puntos que he significado”.

Depois, fala a verdade por inteiro: “Y si he de confesar la verdad, tengo escritas más

de cien hojas”, acrescentando, ao final, um comentário que quiçá não foi inocente

nem gratuito. Disse que tinha apresentado esse material a “hombres apasionados

desta leyenda, dotos y discretos” e que tinha, de todos, recebido “una agradable

aprobación” 99.

Foi por isso que custou muito trabalho compreender as contradições do

escrutínio. Foi duro, dele, arrancar a verdade. Apesar do risco da crítica, o longo

caminho foi necessário. Só assim tem-se clareza do real motivo da loucura de Dom

Quixote: perda de identidade por imitação; além do entendimento da opção de Dom

Quixote: entre soldado e cavaleiro, optou por ser filósofo. E o cavaleiro, afinal, qual o

seu lugar nessa história?

Se comparamos dois momentos em que exibe sua performance de cavaleiro

percebem-se diferenças em sua atuação: primeiramente, sua missão de cavaleiro

era tão real e indiscutível, a ponto de a ela poder entregar-se __ “y con esto se quietó

y prosiguió su camino, sin llevar otro que aquel que su caballo quería, creyendo que

99

Eu, pelo menos, – replicou o cônego, – tive certa tentação de escrever um livro de cavalarias, observando nele todo os pontos que observei [Depois (...) inteiro:] E se devo contar a verdade, tenho escritas mais de cem folhas [acrescentando (...) material a] homens apaixonados por esta lenda, cultos e de discernimento [e (...) recebido] uma agradável aprovação (1, XLVIII, p.295)

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en aquello consistía la fuerza de las aventuras”100. De tal modo estava traçado seu

destino que o entrega à irracionalidade de um animal.

Sua certeza de ser cavaleiro era tal que, ao sair pela primeira vez, pergunta:

“¿Quién duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la verdadera

historia de mis famosos hechos?”101. Apesar de não ter dúvidas de que sua história

será publicada, Dom Quixote demonstra nas entrelinhas certa insegurança a

respeito: o tom com que afirma a certeza traz, em si, a possibilidade de uma história

mentirosa que esconde uma história verdadeira. Além disso, Dom Quixote sai

realmente a caminhar pelo conhecido campo de “Montiel”, mas precisa acrescentar

ser isso uma verdade: “Y era la verdad que por él caminaba” 102.

Mais adiante, se dirige à amada ausente “como si verdaderamente fuera

enamorado”, sem esquecer, no entanto, de apresentar-nos àquele que seria o

contador de sua história - “¡Oh tú, sábio encantador [...] a quien ha de tocar el ser

cronista desta peregrina historia”103. Essa introdução deixa sinais de que há uma

grande e confusa proximidade entre realidade e verdade. Ao “verdaderamente” se

opõe, de algum modo, o “como si fuera”, mas, ao dar a atribuição da tarefa de

cronista ao sábio encantado, parece encarregá-lo de ser o responsável por tal

aproximação. Ao instrumental que deveria compor o universo da cavalaria, Dom

Quixote acaba de acrescentar um elemento importantíssimo que lhe servirá de álibi

para muitas situações, possivelmente contraditórias e desconcertantes. Essa é uma

possibilidade. Outra, entretanto, pode ser viabilizada: o acima descrito tem certa

aparência de jogo onde nada se define, mas que obriga a pensar nesse tema.

100

Com isto se tranqüilizou e prosseguiu seu caminho, sem levar outra coisa senão aquilo que seu cavalo queria, acreditando que naquilo residia a força da aventuras. (1, II, p.21) 101

Quem duvida que, nos tempos vindouros, quando venha à luz a verdadeira história de meus célebres feitos (1, II, p.21) 102

E era a verdade que por ele caminhava (Ibidem) 103

Como se verdadeiramente estivesse apaixonado [sem (...) história] oh, tu sábio encantador (...) a quem deve tocar ser o cronista desta peregrina história (Ibidem)

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Depois de armar-se cavaleiro, com muitos inconvenientes, chegamos ao

ponto acima anunciado: “Gracias doy al cielo por la merced que me hace, pues tan

presto me pone ocasiones delante donde yo pueda cumplir con lo que debo a mi

profesión, y donde pueda coger el fruto de mis buenos deseos”104. Com essa fala,

Dom Quixote agradece aos céus por ter-lhe colocado tão rapidamente no caminho

uma oportunidade de dar início à profissão para a qual estava designado.

Estava Dom Quixote diante de uma circunstância que exigia sua atuação de

cavaleiro desfazendo “tuertos”, providenciando a justiça: um menino estava sendo

espancado por seu amo e, “cada azote le acompañaba con una reprehensión”,105

Dom Quixote assim intervém:

Descortés Caballero, mal parece tomaros con quien defender no se puede; subid sobre vuestro caballo y tomad vuestra lanza – que también tenía uma lanza arrimada a la encina adonde estaba arrendada la yegua __, que yo os haré conocer ser de cobardes lo que estáis haciendo.106

Comparada a esta, a cena em que Dom Quixote, topando com um carro que

conduz leões, um presente do duque de Orán ao rei, desafia o ”leonero” a abrir a

jaula para que possa provar sua coragem. Apesar dos avisos de que estão todos

famintos, Dom Quixote insiste: ”¿Leoncitos a mí? A mí leoncitos [...]? Pues ¡por Dios

que han de ver esos señores que acá los envían si soy hombre que se espanta de

leones!”107

De tanto insistir, o leonero abre as portas, mas o leão “más comedido que

arrogante, no haciendo caso de niñerías, ni de bravatas, después de haber mirado, a

104

Dou graças aos céus pela mercê que me faz, pois logo me dá oportunidades para poder cumprir com o que devo à minha profissão e nas quais possa colher o fruto de meus bons desejos. (1, IV, p.29) 105

Cada açoite era acompanhado por uma repreensão (Ibidem) 106

– Descortês cavaleiro, mal parece lutar contra quem defender não se pode; subi em vosso cavalo e tomai de vossa lança – que também tinha uma lança encostada ao azevinho no qual estava amarrada a égua – que eu vos farei saber que é de covardes o que estais fazendo (1, IV, p.30) 107

Leõezinhos a mim? A mim leõezinhos [...]? Pois juro por Deus que hão de ver estes senhores que aqui os enviam se sou homem que se espanta com leões! (2, XVII, p.405)

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una y otra parte [...] volvió las espaldas y enseñó sus traseras partes a don

Quijote”108.

Não satisfeito de sua bravata, Dom Quixote recomenda com muita lucidez ao

“leonero” que conte aquela aventura ao rei, porque:

Bien podrán los encantadores quitarme la ventura, pero el esfuerzo y el ánimo, será imposible [...] pues, si acaso Su Majestad preguntare quién la hizo, diréisle que el Caballero de los Leones; que de aquí adelante quiero que en éste se trueque, cambie, vuelva y mude el que hasta aquí he tenido del Caballero de la Triste Figura. [Chega a oferecer] dos escudos de oro [ao leonero para que ele o exalte; e é o que faz:] Entonces el leonero [...] contó el fin de la contienda, exagerando como él mejor pudo [...] el valor de don Quijote.109

Duas situações em que o desempenho de Dom Quixote é contraditório, um

em relação ao outro. No segundo episódio desaparece sua missão de “deshacer

tuertos”, lutando pela justiça e pela paz. Seu interesse é nitidamente o de obter

glória e fama, chegando ao extremo de ele mesmo ser incoerente e contraditório no

que tange à sua proposta inicial. Se tomamos seu discurso da Idade de Ouro onde

critica veementemente as artimanhas de seu tempo: “No había la fraude, el engaño

ni la malicia mezcládose con la verdad y llaneza”110, vê-se nitidamente a contradição.

Se antes as aventuras a ele se dirigiam, sem que necessitasse esforçar-se

para isso, na 2a parte parece ter-se esgotado o elenco de aventuras dignas de um

perfeito cavaleiro. Agora é Dom Quixote quem, além de ávido procurar as situações

que poderão colocá-lo em destaque, não se constrange de usar estratégias não

dignas de um cavaleiro.

108

Mais comedido que arrogante, não fazendo caso de bobagens nem de bravatas, depois de ter olhado de um lado a outro [...] virou as costas e mostrou as partes posteriores a Dom Quixote. (2, XVII, p.408) 109

Bem poderão os encantadores tirar-me a aventura, mas o esforço e o ânimo, será impossível [...] portanto, se por acaso sua Majestade perguntar quem fez isto, direis que foi o Cavaleiro dos Leões, que daqui em diante que neste se troque, mude, volte e mude o que até aqui tive de o Cavaleiro da Triste Figura. [Chega a oferecer] duas moedas de ouro [ao leonero (...) faz:] Então o encarregado dos leões [...] contou o fim da contenda, exagerando como melhor ele pode a coragem de Dom Quixote. (2, XVII, p.409) 110

Não havia a fraude, a malícia e o engano se misturado com a verdade e a retidão (1, XI, p.60)

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Ainda que saibamos estar catalogado o desempenho da coragem do expor-

se, do ser valente e não covarde, no ideal do homem renascentista, pois o próprio

Dom Quixote se encarrega de justificar o acontecido com os leões, suas justificativas

não parecem ser convincentes.

Começa defendendo-se do estigma de louco que, “por no poder menos”111

precisou tolerar: “no soy tan loco ni tan menguado como debo de haberle

parecido”.112 Sabe que sua atuação não estava conforme com o código da cavalaria

andante, mas comparando um cavaleiro da corte em seus exercícios militares com

um cavaleiro andante, reconhece ter aquele, além de uma prática militar mais leve e

fácil, mais oportunidades de ser visto, admirado e reconhecido pelo rei:

Bien parece un gallardo caballero, a los ojos de su rey, en mitad de una gran plaza, dar una lanzada con felice suceso a un bravo toro; bien parece un caballero, armado de resplandecientes armas, pasar la tela en alegres justas delante de las damas, y bien parecen todos aquellos caballeros que en ejercicios militares, o que los parezcan, entretienen y alegran, y, si se puede decir, honran las cortes de sus príncipes [...]113

Na contrapartida, as dos cavaleiros andantes são muito mais duras; para

alcançar glória e fama, anda:

[...] por los desiertos, por las soledades, por las encrucijadas, por las selvas y por los montes anda buscando peligrosas aventuras [...] busque los rincones del mundo [...], intricados laberintos; acometa lo imposible [...] resista a los ardientes rayos del sol [...], la dura inclemencia de los vientos y de los yelos”, [até chegar onde queria:] “no le asombren leones [...]114

111

Por falta de alternativa. (2, XV, p.397) 112

Não sou tão louco nem tão mentecapto como devo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410) 113

Bem parece um galhardo cavaleiro, aos olhos de seu rei, no meio de uma grande praça, dar uma lançada de feliz resultado em um bravo touro, bem parece um cavaleiro, armado de resplandecentes arma, passar a paliçada em alegres justas diante das damas, e bem parecem todos aqueles cavaleiros que en exercícios militares, ou que se pareçam, entretêm e alegram, e, se cabe dizer, honram as cortes de seus príncipes (Ibidem) 114

[…] pelos desertos, pelos ermos, pelas encruzilhadas, pelas matas e pelos montes anda buscando perigosas aventuras [...] busque os rincões do mundo [...], intricados labirintos; acometa o impossível [...] resista aos ardentes raios do sol [...], a dura inclemência dos ventos e dos gelos [até (...) queria] não lhe assombrem leões (Ibidem)

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Como essas contingências se haviam esgotado, não perde uma que aparece

e está ao seu alcance.

Segue seu discurso dizendo que, nesse caso, entre os extremos da valentia,

é melhor optar pelo extremo do temerário, do que pelo extremo da covardia: “y en

esto de acometer aventuras, créame vuesa merced, señor don Diego, que antes se

ha de perder por carta de más que de menos”115.

Prefere ressaltar o conhecimento que Dom Quixote tem da cavalaria andante,

dizendo:

[...] que entiendo que si las andanzas y leyes de la caballería andante se perdiesen, se hallarían en el pecho de vuesa merced como en su mismo depósito y archivo. Y démonos priesa, que se hace tarde, y lleguemos a mi aldea y casa, donde descansará vuestra merced del pasado trabajo, que si no ha sido del cuerpo, ha sido del espíritu, que suele tal vez redundar en cansancio del cuerpo.116

Depois de muitas justificativas e explicações, Dom Quixote, usando tantas

“razones”, característica primordial de todo e qualquer discurso da obra, é Dom

Diego quem arremata a discussão. Nesse arremate, anulam-se as diferenças entre

cavaleiro da corte e cavaleiro andante, em nome de uma performance muito mais

elevada, e, que por sua vez, contempla os dois cavaleiros em sua essência.

Não são as lutas nem a exibição de seus talentos ao rei que estão em jogo. O

mais importante não tem sequer nenhuma ligação com o corpo “que si no ha sido el

cuerpo”. O que se quer ressaltar aqui é o conhecimento que Dom Quixote exibiu

brilhantemente; do que se quer tratar é do que traz Dom Quixote no peito: “si las

115

E nisto de acometer aventuras, creia-me vossa mercê, senhor dom Diego, que antes se há de perder por carta de mais que de menos (2, XVII, p.411) 116

[...] que entendo que se as ordenações e leis da cavalaria andante se perdessem, seriam achadas no peito de vossa mercê como em seu próprio depósito e arquivo. E apressemo-nos, por que está ficando tarde e cheguemos a minha aldeia e casa, onde descansará vossa mercê do passado trabalho que se terá não sido do corpo, terá sido do espírito, que acaso costuma redundar em cansaço do corpo. (Ibidem)

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ordenanzas y leyes de la caballería andante se perdiesen, se hallarían en el pecho

de vuesa merced”117.

Dom Quixote é a personificação do conhecimento da verdade que foi sendo

acumulado pelos platonismos; ele é um “depósito y archivo”. Embora esse depósito-

arquivo seja identificado com o conhecimento da cavalaria, isso só funciona como

um alerta para alocar as verdades que Dom Quixote precisa veicular, dentro do

universo da cavalaria andante, sem que isso seja necessariamente uma realidade. O

conhecimento que vai veicular não se restringe às “ordenanzas y leyes de la

caballería andante”. É um conhecimento muito mais amplo; foi o exercício desse

conhecimento que tanto exauriu Dom Quixote, a ponto de ele necessitar descansar

na casa de Dom Diego: “descansará vuestra merced del pasado trabajo”118.

Se não foi do corpo, de onde veio o esforço empreendido por Dom Quixote?

O texto diz que veio “del espíritu” que, por conseqüência pode ter cansado o corpo.

Mas que fica claro haver uma cisão corpo-alma, sensível-inteligível, isso é

indiscutível.

Esse é o compromisso de Dom Quixote, assumido com a obra: ser o porta-

voz dos valores medievais que estão por um “triz”, que estão em vias de perderem a

vigência. Esses valores aparecem reduplicados em cavalaria medieval e cavalaria

cortesã. Entretanto, não faz nenhuma diferença; porque, tendo sido esses

conhecimentos adquiridos ou no platonismo cristão-medieval, ou no renascentista,

tendo eles passado pela versão cristã ou pela versão neoclássica, não importa. Em

sua essência, a base de sustentação permanece a mesma: estão assentadas as

duas paidéias em platonismos originários da mesma tradição – a metafísica.

117

Se as ordenações e leis da caalaria andante se perdessem, achar-se-iam no peito de vossa mercê (2, XVII, p.411) 118

Descansará vossa mercê do passado trabalho (Ibidem)

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4 PARA FAZER TRAVESSIA, SÓ INVENTANDO MUNDO

O homem é um ente lançado no mundo. É por isso que Heidegger119 reforça a

importância do “ser-em”. Ao longo de sua travessia à pro-cura da Cura, é preciso

que sua relação com o mundo se dê no âmbito dos significados estabelecidos no

nível da manualidade do intramundano, significados que já estão dispostos no

mundo desde sempre, antes mesmo que o homem nele ingressasse. “O ser-no-

mundo” é, sem dúvida, uma constituição da pre-sença, mas de forma alguma

suficiente para determinar por completo o seu ser”. “Ser-em” é “ser-no-mundo”,

porque o ser só se dá na cotidianidade.

A relação do homem com as coisas do mundo se dá, inicialmente, como mero

instrumental ou como “simplesmente dado”. E essa relação do ser-no-mundo pode

abrir, no mais inesperado momento, novas possibilidades de significações e sentidos

nesse mesmo mundo.

Se Dom Quixote está à pro-cura da Cura, se já virou cavaleiro louco, se

precisa aliar, à força do seu braço, o conhecimento adquirido com a finalidade de

checar se é ainda possível remediar os males do mundo; sem alternativa, ele

reconhece a necessidade extrema de trazer, à realidade de seu tempo, o mundo da

cavalaria. Só desse modo será possível que as verdades se mostrem na

espontaneidade do acontecer da cotidianidade.

119

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998.

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4.1 DOM QUIXOTE INVENTA UM MUNDO

Dom Quixote abandona a leitura, sai do livro, olha ao redor e vê: Espanha

está desvitalizada, a crise do humanismo se alastrava, e já contagiava seus

domínios, ao mesmo tempo em que a dúvida de Descartes vibrava intensamente:

como afirma Pierre Vilar, entre 1598 e 1620, se experimenta “la primera gran crisis

de duda de los españoles” 120. Isso não pode ser mero acaso.

A crise espanhola ultrapassa o econômico e alcança o social. Pela prata que

chegava do Peru e do México, pagava-se cada vez mais caro, os gastos eram

vultosos, à medida que aumentavam os hábitos religiosos de nobres e burgueses

nascentes. Campos vazios, cidades superlotadas, a falta de mão-de-obra sentencia

a morte da economia castelhana; conseqüentemente a fome reaparece sempre com

brios renovados. O mouro convertido à força, sem identidade nem possibilidade de

assimilação, é mais uma vítima no cenário da crise. Assim mesmo, a expulsão do

resíduo mouro baixou em 30% os habitantes de Valencia, trazendo inquietação a

todos.

É visível a fragilidade do aparelho do Estado, na corrupção que deixa

transparecer. Se de um lado o vice-rei Almazán prende, incendeia e enforca; de

outro, os bandidos detidos e encarcerados negociam mediante propina, com sua

filha e esposa, a liberdade almejada: “los bandoleros son más señores de la tierra

que el rey”121, pronunciou o bispo Vic, ao constatar a dura realidade de ser

necessário que as autoridades se deslocassem pelo mar, nas operações “caça

bandido”, por estarem todos os caminhos infestados.

120

A primeira grande crise de dúvida dos espanhóis (VILAR, Pierre. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983, p.332) 121

Os bandoleiros são mais senhores da terra que o rei (Ibidem, p.336)

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Instigante é a simpatia que, tanto Dom Quixote como todo povo, nutria pelos

grandes chefes de quadrilha, cujas estratégias eram tão mirabolantes que não havia

quem não se surpreendesse. Dom Quixote os defende no episódio dos “galeotes”

quando os vê, presos, serem conduzidos a realizarem trabalhos forçados para o rei:

“Cuanto más, señores guardas __ añadió don Quijote __, que estos pobres no han

cometido nada contra vosotros”, participando até de sua fuga. Ele, enfrentando os

verdugos reais que “arremetieron a don Quijote que con mucho sosiego los

aguardaba” e Sancho “Ayudó [...], por su parte, a la soltura de Ginés de Pasamonte,

que fue el primero que saltó en la campaña libre y desembarazado, y, arremetiendo

al comisario caído, le quitó la espada y la escopeta”122

No cotidiano é comum a sucessão de ataques ao modo do viver espanhol:

“¡Todo es divertirse en fiestas, jugar y cazar! ¡Y que ardan el mundo y los

negocios!”.123 Na Espanha não se produz; ninguém responde por nada; tudo acaba

em diversão. “El no haber dinero, oro ni plata en España, es por haberlo, y el no ser

rico es por serlo”124. Nada havia, mas era como se houvesse, nada se fazia, mas era

como se se fizesse. A garantia e a certeza do dinheiro que cruzava o mar imperava,

gastava-se “por adelantado”; a riqueza espanhola “anda por el ayre”, “em papéis,

contratos, moeda, letras de câmbio, na prata e no ouro”125.

Espanha insistia no faz de conta. Ainda que Pierre Vilar demonstre que a

crise alcança até a consciência, esse alcance é tão reduzido que o obriga a

comparar o grau de amplitude que diferencia analistas e teóricos, do artista. Os

122

Tanto mais, senhores – acrescentou Dom Quixote, – que estes pobres não cometeram nada contra vós [participando (...) que] arremeteram contra Dom Quixote que com muita calma os aguardava [e Sancho] Ajudou [...], por sua parte, à soltura de Ginés de Pasamonte, que foi o primeiro que libertou na campanha, livre e desembaraçado, e, arremetendo contra o comissário caído, arrancou-lhe a espada e a escopeta. (1, XXII, p.121-122) 123

Tudo é diversão em festas, jogos e caçadas! E que ardam o mundo e os negócios. (VILAR, Pierre. El tiempo del “Quijote”. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. Disponível em: <http://www.cch.unam.mx/historiagenda/11/contenido/shv1.htm>. Acesso em: 27 jul 2007) 124 Não ter ouro ou prata na Espanha é por tê-lo, e não ser rica é por sê-lo (Ibidem) 125 VILAR, Pierre. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983, p.332-346.

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primeiros, de vista curta, só percebem superficialmente a crise, enquanto o artista

capta o naufrágio de um mundo.

Seguramente não precisaríamos incomodar Pierre Vilar, recorrendo a El

tiempo de Quijote126. À medida que vai percorrendo os caminhos, Dom Quixote

mesmo aproveita para, com pinceladas, ir compondo o quadro da Espanha de seu

tempo; os exemplos são muitos: Dom Quixote desperta numa manhã debaixo de um

cacho de bandoleiros enforcados e rodeado de outros quarenta vivos:

No tienes de qué tener miedo, porque estos pies y piernas que tientas y no vees, sin duda son de algunos forajidos y bandoleros que en estos árboles están ahorcados; que por aquí los suele ahorcar la justicia cuando los coge, de veinte en veinte y de treinta en treinta; por donde me doy a entender que debo de estar cerca de Barcelona.127

Essa situação sinalizou-lhe estar perto de Barcelona, onde a bandidagem

catalã, nos dez anos que separavam as duas publicações de Dom Quixote, já

alcançava seus níveis mais extremos. Desse modo, compreende-se que no capítulo

XI da parte 1, Dom Quixote, por comparação com a “dichosa edad”, a que os antigos

chamaram “Idade de Ouro”, traduz seu saudosismo cheio de lamento, no confronto

dessa época com o tempo que lhe coube viver.

Convocando todos a comerem juntos, desconsiderando sua condição de

cavaleiro, movido por amor, nesta cena, Dom Quixote atualiza o tempo em que a

abundância inviabilizava a separação; tempo em que todos a ignoravam porque

além do simples levantar das mãos para colher frutos, outro esforço não era exigido.

Ao falar de abundância, menciona as “sabrosas y transparentes aguas” de rios e

fontes, as abelhas “ofreciendo a cualquier mano, sin interés alguno, la fértil cosecha

de su dulcísimo trabajo”, árvores que se doam para “cubrir las casas, sobre rústicas 126

VILAR, Pierre. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel, 1983 127

Não tens de que ter medo. Porque estes pés e pernas que tateias e não vês, sem dúvida são de alguns foragidos e bandoleiros que nestas árvores estão enforcados; que por aqui os costuma enforcar a justiça quando os captura, de vinte em vinte e de trinta em trinta; de onde me vou entender que devo estar perto de Barcelona (2, LX, p.634)

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estacas sustentadas”, sem outra função que a de defesa “de las inclemencias del

cielo”, o fruto “dulce y sazonado”128. Nessa época só havia paz; até a chegada de

um tempo diverso de que agora nos fala:

[...] aún no se había atrevido la pesada reja del corvo arado a abrir ni visitar las entrañas piadosas de nuestra primera madre, que ella, sin ser forzada, ofrecía, por todas las partes de su fértil y espacioso seno, lo que pudiese hartar, sustentar y deleitar a los hijos que entonces la poseían.129

Dom Quixote lamenta, já mencionando o arado, comparando-o a uma ave de

rapina que violenta a Mãe Terra. Naquele tempo, as moças formosas, que viviam no

campo, se vestiam com um tecido feito da trama de “hojas verdes [...] y yedra”130

sem que, para isso, tivessem que, além de sacrificar animais, lançar mão de

processos sofisticados, sacrificando a “martirizada seda”, para vestir as mulheres de

seu tempo. Eram mulheres da corte que, correndo daqui pra ali, na busca incessante

de novidade, encontravam e vestiam “raras y peregrinas invenciones que la

curiosidad [curiosidade associada ao ócio] ociosa les mostraba”. Para falar “los

concetos amorosos”, não era preciso nada mais que a simplicidade com que a alma

“los concebía, sin buscar artificioso rodeo de palabras”.131

Se antes “no había la fraude, el engaño ni la malicia mezcládose con la

verdad”; se antes a justiça funcionava de acordo com suas próprias regras “sin que

la osasen turbar ni ofender los del favor y los del interese”; se a lei “del encaje” não

existia; se as donzelas e a honestidade andavam juntas por toda parte, e “la

128

Saborosas e transparentes [de rios (...) abelhas] oferecendo a qualquer mão, desinteressadamente, a fértil colheita de seu dulcíssimo trabalho [árvores (...) para] cobrir as casas, sobre rústicas estacas sustentadas [sem (...) defesa] das inclemências do céu [o fruto] doce e maduro (1, XI, p.60) 129

Ainda não se havia atrevido a pesada relha do curvo arado a abrir nem visitar as entranhas piedosas de nossa primeira mãe, que ela, sem ser forçada, oferecia, por toda parte de seu fértil e espaçoso seio, o que pudesse fartar, sustentar e deleitar aos filhos que então a possuíam (Ibidem) 130

Folhas verdes (...) e hera (Ibidem) 131

Raras e peregrinas invenções que a curiosidade [...] os conceitos amorosos [...] Concebia-os, sem buscar artificioso rodeio de palavras (Ibidem)

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perdición nacía de su gusto y propia voluntad”, o mesmo já não se podia dizer do

seu tempo.132

Se, na Idade do Ouro, tudo funcionava assim, é porque, em seu tempo, tudo

se mostra em radical oposição; é o que Dom Quixote chama de “nuestros

detestables siglos”133; o que justifica perfeitamente sua decisão de ser cavaleiro, em

um determinado tempo, “para cuya seguridad [...] se instituyó la orden de los

caballeros andantes”134.

Temos, com isso, o perfil da época de Dom Quixote. Se compararmos a visão

de Pierre Vilar com a de Dom Quixote, vemos tratar-se o perfil do mesmo: o perfil é o

mesmo; com a única diferença do modo de dizer. Não resta dúvida de que o

apresentado por Dom Quixote se refere a uma época vista com olhos poéticos, e, o

de Pierre Vilar, vista com os olhos historiográficos. E o mais interessante está em

que, para corroborar nosso ponto de vista, acreditando estar o perfil poético muito

mais próximo da verdade do que o outro, o historiográfico, é o próprio Pierre Vilar

escritor que, mesmo tendo uma proposta de olhar com olhos historiográficos,

reconhece os dois pontos de vista mencionados. Quando, ao resumir o quadro

lamentável em que se encontra Espanha, assim o registra: “Y en fin de cuentas, el

verdadero intérprete es en un caso Cervantes [...]. El arbitrista corto de vista percibe

la crisis a corto plazo, pero del naufragio de un mundo y de sus valores surge una

genial tragicomedia”135. Com isso, ele quer dizer que aquele perfil traçado por

analistas e teóricos de vista curta, por “persona(s) que imagina(n) sistemas, que

cree(n) infalibles pero que no tienen fundamento sólido, para resolver las dificultades

132

Não havia a fraude, o engano nem a malícia misturando-se com a verdade [...] sem que a ousassem turvar nem ofender os homens que se vendem e os interesseiros [se a lei] do ”pistolão” [...] a perdição nascia de sua própria vontade (1, XI, p.60) 133

Nossos séculos detestáveis (1, XI, p.61) 134

Para cuja segurança [...] instituiu-se a ordem dos cavaleiros andantes (Ibidem) 135

E no fim das contas, o verdaderio intérprete é em um caso Cervantes [...]. O arbitrista curto de vista percebe a crise a curto prazo, mas do naufrágio de um mundo e de seus valores surge uma genial tragicomédia (VILAR, Pierre. El tiempo del “Quijote”. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. Disponível em: <http://www.cch.unam.mx/historiagenda/11/contenido/shv1.htm>. Acesso em: 27 jul 2007)

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públicas, económicas o de otra clase”136, esse está longe do perfil feito pelo

traço da arte.

Muito bem disse Pierre Vilar: um mundo que está naufragando. Mas esse

que naufraga não é a unidade política de Espanha. O mundo que naufraga é o

mundo avesso ao da época de ouro que nos descreve Dom Quixote; pelo menos é o

que parece. De que mundo estará falando Dom Quixote?

Quando fala de seu mundo, para nós que já sabemos o que estamos

buscando, é fácil reconhecer: mundo dos conceitos subjetivos que, em sua

autonomia, negam o objeto, perdendo assim toda possibilidade de articulação; um

mundo esgotado que, sem articulação, não se beneficia do arejamento do vigor da

terra. Sem a articulação terra-mundo, sem arejamento, falta ar, falta o sopro da vida.

Assim fica fácil; a olhos sensíveis, o naufrágio desse mundo se torna sensível. É

desse mundo que emerge Dom Quixote; um mundo sem referência, “sin suelo”,

onde tudo “anda por el aire”, um mundo sem honestidade, sem justiça, sem amor.

Dom Quixote procura onde assentar o pé para transitar nesse mundo e não encontra

chão; não sabe para onde ir, não tem como se mover. Como “agir”, em todo e

qualquer sentido da palavra, sem que se possa mover? A essa realidade, o ócio se

ajusta plenamente: sem mundo, não há nada a fazer.

E o outro mundo, o desejável, aonde, cheio de cobiça, Dom Quixote lança o

olhar cheio de “querer”?

Sobre o perfil do mundo, sabemos da necessidade de a ele voltarmos. Ele

sinaliza forte relação com outros itens da Tese que trataremos mais adiante. Por ora,

dedicaremos só a Dom Quixote e a seu mundo da cavalaria toda a atenção.

136

Pessoa(s) que imagina(m) sistemas, que acredita(m) infalíveis, mas que não têm fundamento sólido, para resolver as dificuldades públicas, econômicas ou de outro tipo. (MOLINER, María. Diccionario del uso del Español. Madrid: Gredos, 1987, p. 232).

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É verdade que houve exagero na avaliação – “sem mundo”. É claro que

mundo sempre há; caso contrário, sequer o desejo de ser cavaleiro encontraria

lugar. Falamos de instabilidade, insegurança, dúvidas e incertezas. Por isso

usaremos uma imagem que poderá tornar claro o processo. Rede conceitual; assim

caracterizamos o mundo espanhol - uma rede conceitual.

Basta pensarmos numa rede rígida, sem mobilidade que possa favorecer a

articulação. Só isso e, imediatamente conheceremos sua fragilidade, sua pouca

resistência e durabilidade. A esses fios nos referimos, aos fios rígidos da verdade

contemplada, segundo os moldes medievais, moldes esses rastreados na Grécia

platônica e devidamente adaptados aos interesses da Igreja. Esses fios, há séculos,

vêm sendo submetidos à violenta luta entre a rigidez dos conceitos de um lado e a

physis violentada de outro, a mesma physis sugerida no discurso de Dom Quixote

sobre a época de ouro. Esse confronto insistente foi o que destruiu as malhas da

rede do Ocidente de Dom Quixote.

Esgarçada está a rede do mundo de Dom Quixote, esgarçado o

representativo das oposições, malha gasta poída e rota produzida por um

incontornável que luta violentamente para do contorno se libertar. E Dom Quixote,

sensível ao insuportável viver nesse mundo, é provável que tenha optado pelo

caminho mais curto: na falta de outro, ele recompõe a rede de seu tempo, a ela

superpondo a rede da cavalaria, familiarizado que estava com a ficção lida. Tal

decisão não parece má, já que “a rede conceitual é condição prévia para [...] sair do

encanto mágico-racional dos conceitos científico-metafísicos”137. Sair do

encantamento da razão significa abrir-se para questões. Desse modo, conceito é o

que não vai faltar no mundo de Dom Quixote, os do tempo da cavalaria, os de seu

tempo que, tímidos, querem se impor.

137

CASTRO, Manuel Antonio de. A questão e os conceitos. Art. Fac. Letras, UFRJ, 2007, p.3.

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Dom Quixote deixou bem claro a necessidade de a cavalaria fazer frente a

“nuestros detestables siglos”. Afinal, foi para isso que ela foi instituída: “para cuya

seguridad [...] se instituyó la orden de los caballeros andantes”138. Ele demonstra ter

plena consciência da validade de seu projeto. Por isso, mesmo reconhecendo quão

detestável é o seu tempo, é com os fragmentos que ainda percebe de seu mundo

que pode contar. Entretanto, falta-lhe ainda o mundo do confronto. Assim, não lhe

resta outra alternativa, senão buscar, nas novelas de cavalaria, os ingredientes

necessários para montar seu mundo. O que teria feito Dom Quixote acreditar ser o

mundo da cavalaria, comparável àquele mundo ideal que seu olhar tanto cobiça?

Falta de opção? É possível.

Mesmo que não compreenda muito bem sua própria escolha, de uma coisa

Dom Quixote está seguro: sabe muito bem que, se quiser compreender, só no

mundo. Heidegger deixou bem claro, ao integrar o “ser-em” à pro-cura da Cura.

No entanto, “ser-em” não significa lugar geográfico. Em Dom Quixote, este é

tão insignificante a ponto de ser localizado por um artigo indefinido e de sequer ser

guardado na memória: “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero

acordarme”139. “Ser-em” significa que o ser não se dá, fora de um contexto;

Heráclito, quando visitado por um grupo de turistas, ávido de curiosidade, percebeu

a imediata perda de interesse, ao se defrontar o grupo com o prosaico do agir de tão

grande celebridade em sua casa, e lamentou, porque os ingênuos curiosos não

sabiam que o acontecer da verdade é na espontaneidade do cotidiano mais

simplório que ele se dá. É bem possível que, por pura falta de opção, Dom Quixote

desprovido de mundo, e na urgência de compor mundo, só por isso tenha lançado

mão de um que lhe fosse familiar.

138

Nossos abomináveis tempos [Afinal...] para cuja segurança [...] instituiu-se a ordem dos cavaleiros andantes (1, XI, p.60-61) 139

Em um lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar. (1, I, p.17)

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No momento mesmo em que Espanha descobre o novo mundo, é quando

menos mundo tem. E se Espanha descobre um novo mundo, é justo que Dom

Quixote, sem referências, também invente o seu. Para ser, todos precisam de

mundo: em La vida es sueño140, alijado do mundo, Segismundo se transforma em

monstro cruel, e traz à discussão o destino e a possibilidade de previsão da vida.

Em Menino a bico de pena141, por mais que o menino seja moldado dentro dos

parâmetros de sua língua, com todos os referentes já estabelecidos e conhecidos

por todos, desse mundo não pode libertar-se, pois somente nesse mundo e a partir

desse mundo, novas compreensões e novos significados podem chegar a ser

realidade. Do mesmo modo, Dom Quixote também precisa configurar um mundo;

sem esse respaldo, sabe que seu projeto fica inviabilizado.

À construção de seu novo mundo, se interpõe aquela mesma pergunta, com

intenção bem definida: “¿Habían de ser mentira?”; a intenção de apoiar-se na força

do poder público: “los libros que están impresos con licencia de los reyes”142. Com

essa pergunta, Dom Quixote coloca-se na defensiva, com o intuito de proteger a

verdade dos livros de cavalaria que estava transpondo para os séculos XVI-XVII.

Seu mundo criado precisava de respaldo. Para compreender o processo com o qual

Dom Quixote criou o mundo da cavalaria, cabe aqui o registro de que esses já eram

sinais significativos da modernidade – o precisar afirmar-se na certeza trazia consigo

a necessidade da legitimação. Era esse o esquema das novelas de cavalaria. Para

seus autores, realidade para ser verdade era o registrado, o comprovável

documentalmente.

Do mesmo modo que Cervantes afirma ter sua história o suporte documental

dos anais de la Mancha: “pero, lo que yo he podido averiguar en este caso, y lo que

140

Obra teatral de Calderón de la Barca. 141

Conto de Clarice Lispector. 142

Haviam de ser mentira [a intenção (...) público] os livros que estão impressos com a licença dos reis (1, L, p.304)

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he hallado escrito en los Anales de la Mancha”143, Dom Quixote se afirma no mesmo

pressuposto para montar seu mundo cavaleiresco, a ponto de não ter tranqüilidade

enquanto não se arma cavaleiro: “mas lo que más le fatigaba era el no verse armado

caballero, por parecerle que no se podría poner legítimamente en aventura alguna

sin recebir la orden de caballería”144.

Esse mundo, Dom Quixote o vai construindo em níveis de intensidade

diferentes. Começa meio tímido “sin dar parte a persona alguna de su intención y sin

que nadie le viese”, sai ao campo pela primeira vez “por la puerta falsa de un corral”.

Inicialmente, mesmo que reconheça ser essa sua missão, sua insegurança é tal que

chega a sentir-se exultante por ter conseguido dar o primeiro passo para realizar seu

desejo. Porque teve a coragem e conseguiu sair, isso o deixou “con grandísimo

contento y alborozo de ver con cuánta facilidade había dado principio a su buen

deseo”145. Vivencia situações em que aceita insinuações maldosas sobre sua

atuação de cavaleiro, com a humildade de um discípulo. Ao chegar em “la venta”,

diante do jogo “del ventero” que pretendia demovê-lo da determinação de armar-se

cavaleiro numa capela do castelo, Dom Quixote aceita a sugestão de simplificar o

ritual com um pequeno gesto que realizaria no meio do campo, e em duas horas

somente: “Todo se lo creyó don Quijote, y dijo que él estaba allí pronto para

obedecerle”146.

Logo a seguir, entretanto, dá sinais de avançar em auto-afirmação e

confiança no que está fazendo: dessa vez, já faz ameaças, caso “aquella gente baja”

voltasse a agir do modo que o tinham feito todos: “comenzaron desde lejos a llover

143

Mas, o pude averiguar neste caso, e o que pude achar escrito nos Anais de La Mancha (1, II, p.22) 144

Mas o que mais o incomodava era não se ver armado cavaleiro, por parecer-lhe que não podia legitimamente meter-se em aventura alguma sem receber a ordem de cavalaria (1, II, p.25) 145

Sem comunicar a ninguém sua intenção e sem que ninguém o visse [sai (...) vez] pela porta falsa de um curral [inicialmente (...) deixou] com grandíssimo contentamento e alvoroço de ver com quanta facilidade havia dado principio a seu bom desejo (1, II, p.21) 146

Em tudo acreditou Dom Quixote, e disse que ele estava ali pronto para obedecer-lhe (1, III, p.28)

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piedras sobre don Quijote”147. E avisa que, a partir do momento que se arme

cavaleiro, tudo será diferente, que “si fuese otra vez acometido y se viese armado

Caballero, no pensaba dejar persona viva en el castillo”148.

Se percebe o cavaleiro que uma transfiguração não é aceita pelo outro e que

está a ponto de ser desmascarado, podendo correr o risco de perder sua confiança,

ou, o que é pior, deixar ele mesmo de acreditar na invenção que está construindo; a

solução encontrada pelo manchego cavaleiro será sempre a desculpa dos gênios e

sábios que promovem essas mudanças com a intenção de atrapalhar sua jornada

de glória. Quando percebe não conseguir convencer Sancho de que os moinhos são

gigantes:

-Calla, amigo Sancho – respondió don Quijote – que las cosas de la guerra, más que otras, están sujetas a continua mudanza; cuanto más, que yo pienso, y es así verdad, que aquel sabio Fristón que me robó el aposento y los libros ha vuelto estos gigantes en molinos por quitarme la gloria de su vencimiento [...]149

Dom Quixote, sem alternativa, em situações limite, aprende a lançar mão dos

gênios, a seu favor.

Em outro exemplo, percebe-se que, em sua afirmação da realidade, há um

crescendo que vai impondo e dando maior garantia de certeza àquilo que está

vendo com o olhar da cavalaria:

O yo me engaño, o ésta ha de ser la más famosa aventura que se haya visto, porque aquellos bultos negros que allí parecen deben de ser, y son sin duda, algunos encantadores que llevan hurtada alguna princesa en aquel coche [...]150

147

Começaram de longe a chover pedras sobre Dom Quixote (1, III, p.27) 148

Se fosse outra vez atacado e se visse armado cavaleiro, não pensaria deixar ninguém vivo no castelo (1, III, p.28) 149

– Cala, amigo Sancho – respondeu Dom Quixote – que as coisas da guerra, mais que outras, estão sujeitas à contínua mudança; quanto mais, que eu penso, e é assim a verdade, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos para tirar-me a glória de vencê-los (1, VIII, p.47) 150

Ou muito me engano, ou esta será a mais famosa aventura que se tenha visto, porque aqueles vultos negros que ali parecem devem ser, e são sem dúvida, alguns encantadores que levam furtada alguma princesa naquele coche (1, VIII, p.49)

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“Parecen”, “deben de ser”, “y son sin duda”151, com essas expressões

afirmativas progressivas, do mesmo modo que “Y es así verdade”, do exemplo

acima, Dom Quixote aumenta a possibilidade de que a realidade não lhe pregue

nenhuma peça, pondo a perder o seu projeto.

Para dar forma ao mundo da cavalaria, as estratégias usadas por Dom

Quixote são muitas: se acaso pairasse alguma dúvida no próprio Dom Quixote, em

relação às ousadias que estava realizando e precisasse, ele mesmo, tirar a dúvida,

perguntava, não tanto por vaidade, mas, fundamentalmente, para ter o alívio de que

nenhuma dúvida pudesse pairar:

Pero dime, por tu vida: ¿has tu visto más valeroso Caballero que yo en todo lo descubierto de la tierra? ¿Has leído en historias otro que tenga ni haya tenido más brío en acometer, más aliento en el perseverar, más destreza en el herir, ni más maña en derribar? [Tudo isso] facilitaba la prueba de su caballería.152

Era muito esperto, sabia estar pisando em terreno movediço, seu

empreendimento estava sempre por “um fio”. Foi assim que não deixou uma brecha

sequer, quando montou o mundo da cavalaria. Todos os elementos que o

compunham estavam assegurados na realidade: Rocinante era o seu próprio “rocín”,

era um cavalo simplesmente, o primeiro cavalo captado pela alma-mente humana;

isso está garantido pelo sufixo “ante”; quer mais garantia de realidade que essa?

Ele não era cavaleiro de lugares distantes e inusitados, pertencia àquele lugar que,

por mais que o defina um artigo indefinido __ “En un lugar de la Mancha”, está ali

mesmo, bem perto. Caso não seja seu lugar de origem, todos sabem tratar-se de

terra de Espanha. Do mesmo modo agiu com sua amada Dulcinea, a “del Toboso”,

lavradora que todos, se não a conheciam, ouviram “murmúrios”, pequenos boatos de 151

Parecem, devem ser, e são, sem dúvida. 152

Por favor, pelo amor que tens a tua vida: você jã viu cavaleiro mais valoroso do eu, em toda a extensão da terra? Você leu em histórias outro que tenha ou que já tenha tido mais brio em atacar, mais ânimo no perseverar, mais destreza no ferir, nem mais manha no derrubar? [Tudo isso] facilitava a prova de sua cavalaria. (1, X, p.55-59)

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que ele, por ela já nutrira um amor, mesmo sem confessá-lo. Em relação ao

escudeiro, este era seu próprio vizinho, figura bastante conhecida no lugar. E, para

não deixar escapar nem as armas de seu plano bem arquitetado, Dom Quixote, além

de tomá-las da galeria de antigüidades de seus bisavós, ainda tão próximos na

escala genética, as experimenta para, com isso, ter um aval de realidade

experimentada. De tal modo que só o realiza uma vez. E, mesmo percebendo sua

fragilidade para a empresa arrojada que precisará enfrentar, dá por terminada ali a

questão, porque seu intento fora alcançado: passara pelo experimento empírico pelo

qual, na época, todos eram fascinados. Circulava, nos arredores, o fantasma da

“mentira”. Como podia um cavaleiro com tão arrojado projeto, tranqüilo, montar um

mundo?

Quanto mais se assegurava da inventada realidade, mais se apossava de seu

ideal. Entretanto, na mesma medida, na realidade real, mais era tragado pelo que

não lhe era próprio.

Esse processo de fazer-se cavaleiro não foi simples; chegou ao limite do

doloroso. Ainda que soubesse jogar com o fundamental para dar forma a seu

mundo, Dom Quixote, metido em tantas artimanhas, se confundia e ficava

completamente transtornado:

Ahora te digo, Sanchuelo, que eres el mayor bellacuello que hay en España. Díme, ladrón vagabundo, ¿no me acabaste tu de decir ahora que esta princesa se había vuelto en una doncella que se llamaba Dorotea, y que la cabeza que entiendo corté a un gigante era la puta que te parió, con otros disparates que me pusieron en la mayor confusión que jamás he estado en todos los días de mi vida?153

153

Agora te digo, Sanchinho, que es o maior velhaco que existe na Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo, não me acabas tu de dizer agora que esta princesa foi transformada em uma donzela que se chamava Dulcinea, e que a cabeça que entendo cortei de um gigante era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na maior confusão em que jamais estive em todos os dias de minha vida? (1, XXXVII, p.226)

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O processo com que Dom Quixote inventa e instala o mundo da cavalaria vai

da exasperação, por nem ele mesmo conseguir acompanhar o sem-sentido de tanta

transformação, ao extremo da tranquilidade, ao receber, de fora, a comprovação da

realidade de seu mundo, quando os duques, com as honras devidas a um valoroso

cavaleiro, recebem-no em seu castelo: “Y aquel fue el primer día que de todo en

todo conoció y creyó ser Caballero andante verdadero, y no fantástico”154.

Para amenizar o conflito, cede muitas vezes aos conselhos de Sancho.

Sabedor de que essa ou aquela atitude, se descoberta, vai desmascará-lo em suas

convicções de que é realmente cavaleiro e de que o mundo que está construindo é

real, Dom Quixote prepara o escudeiro, obrigando-o a juras, com a finalidade de que

não paire suspeita sequer de sua condição, não só de cavaleiro mas,

fundamentalmente, de cavaleiro forte e destemido:

[...] que jamás, en vida ni en muerte, has de decir a nadie que yo me retiré y aparté deste peligro, de miedo, sino por complacer a tus ruegos; que si otra cosa dijeres, mentirás en ello; y desde ahora, para entonces y desde entonces para ahora, te desmiento, y digo que mientes y mentirás todas las veces que lo pensares o lo dijeres [...]155

Por muitas etapas passou Dom Quixote para dar realidade ao mundo da

cavalaria. Esse mundo não foi totalmente construído, para só depois Dom Quixote

nele começar a atuar. Não poderíamos restringir seu procedimento, listando

somente os ingredientes formalmente necessários para configurá-lo. O processo se

deu como um todo, concomitante ao seu ser-no-mundo.

De qualquer modo, Dom Quixote, finalmente, tem um mundo.

154

E aquele foi o promeiro dia em que tudo de tudo conheceu e acreditou ser cavaleiro andante verdadeiro, e não fantástico (2, XXXI, p.481) 155

Que jamais, na vida ou na morte, deves dizer a ninguém que en me retirei ou evitei este perigo, de medo, mas sim para comprazer a teus rogos; que se outra coisa disseres, mentirás nisso; e a partir de agora, para sempre e de sempre para agora, te disminto. E digo que mentes e mentirás todas as vezes que tal pensar ou disser (1, XXXVII, p.124)

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5 PREPARANDO A CURA

Sabe-se que Cura não é um dos muitos “fazeres” do homem, em que sua

subjetividade, provocada por algum mal-estar, toma providências, no sentido de

cuidar e, de preferência, eliminar o mal definitivamente. Nesse caso, estaríamos

falando da cura que, em determinado momento, tomou essa forma, entificou-se em

conceito e nele permaneceu. Essa cura, assim conceituada, é aquela mencionada

como cura ôntica.

Cura é, entretanto, experiência ontológica. Ela está na base de todas as

ações do homem, independente de seu querer; Cura é sua essência. Dessa forma,

Cura não possui limites, a não ser aquele estabelecido como sua finalização – a

morte. Nesse “entre” vida-morte, Cura é ilimitada. Por mais que não pareça, está

sempre presente. Sendo essência, não pode jamais ser extirpada do processo da

vida, como mais uma das elaborações entificadas do homem.

Se Cura é essência, não há nenhuma prevalência do homem sobre ela; é

Cura que o move. Esse mover-se, tão íntimo da essência, tampouco pode ser

simples e previsível; jamais poder-se-á ter uma fórmula dirigindo todos os passos

da Cura. Isso porque ela só se dá na dinâmica da vida, monitorada pelo ser. Ser,

querer e saber é a trilogia de sustentação da Cura; é esse o suporte que a

movimenta, enquanto vai configurando o homem, traçando-lhe o perfil, imprimindo-

lhe suas marcas. Mas o que há de mais interessante é a flexibilidade das linhas

responsáveis por esse perfil; estão sempre em estado de “stand by”, prontas para

ser. Do mesmo modo, as marcas impressas por Cura são pura solvência; ao mesmo

tempo que se imprime, reimprime-se.

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É possível que tenha a pre-sença, em Cura, sua feição última como um

registro divino fechado, a partir do qual tudo se mostra e evolui. Não uma evolução

progressiva e ordenada; esta caberia nos limites de esquemas, espaço improvável

da Cura, mas evolução em seu sentido mais poderoso e dinâmico. No caso de haver

dito registro, impossível será defini-lo; logo, fica descartado seu valor e importância.

É por isso que muitos e ilimitados são os modos que caracterizam presença e

ação de Cura. Nela, a pre-sença viaja sempre no vagão do “entre”, aquele rico

espaço onde, basta deixar-ser, e entregar-se à escuta, ao poder-ser.

5.1 INGREDIENTES FUNDAMENTAIS

O modo de ser da cotidianidade é a decadência. Heidegger diz que a pre-

sença, por si mesma, já sempre de-caiu no mundo, mesmo em seu mais autêntico

poder-ser. Tudo isso no empenho da convivência, porque o existir de fato só se dá

no mundo das ocupações e das pre-ocupações.

Participa desse processo todo o impróprio: a publicidade; o falatório; a

curiosidade; a ambigüidade, porque o de-cair “junto às” coisas do mundo e na co-

presença dos outros, é por eles conduzido. É um modo de ser no mundo em que a

pre-sença é totalmente absorvida pelo mundo.

Participam, ainda de Cura, o tédio e a angústia.

5.1.1 “De largo en largo” __ do nascimento até a morte

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“De largo en largo” __ tomamos esta expressão como imagem presente na

obra, que cobre o percurso todo da Cura, do nascimento até a morte.

5.1.1.1 O nascimento de Dom Quixote

Seu nascimento nos é anunciado lá pela meia-idade. Entra na crônica de sua

vida com pé firme, já cinqüentão. Nasce como biografia, sem que saibamos de seu

nascimento biológico. Em sua infância, se correu, brincou e traquinou, ou se cabeça

quebrou, não sabemos. Se teve adolescência problemática, como curtiu e viveu a

juventude, nem como foi obrigado a amadurecer naquela Mancha, não sabemos.

Chega a ser identificado como um herói singular, considerando-se,

fundamentalmente, que todo herói nasce e morre. Dom Quixote não nasce, ou

melhor, nada se sabe a respeito de um nascimento biológico. Isso é um dado que se

constitui, nos anais literários daquela época, surpreendente. A única coisa que é

declarada no primeiro parágrafo é que Dom Quixote era cinqüentão: “Frisaba la edad

de nuestro hidalgo con los cincuenta años”156 e que tinha uma sobrinha __ “que no

llegaba a los veinte”157, partícipe ferrenha do episódio do escrutínio da biblioteca, tão

zelosa da saúde do tio __, para quem, no leito de morte, deixa todos os seus bens.

Só isso nos é informado: que o herói tem família de consangüinidade fraterna.

Entretanto, na mesma medida em que Dom Quixote se distancia do arquétipo

tradicional __ pais nobres, nascimento problemático ou sigiloso, o alerta das

156

(1, I, p.18) 157

Que não chegava aos vinte (1, I, p.17)

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profecias reveladas via oráculo, a água como fluido que aparta ou elimina, a

salvação por animais ou por gente humilde, o encontro na idade adulta, o

reconhecimento, a vingança e a honra resgatada __; nessa mesma medida, a vida do

herói reduplica a vida literária de outro herói perfeitamente adequado a dito modelo,

a tal ponto criteriosa que assegura por parte de Cervantes um conhecimento

meticuloso das novelas de cavalaria.

Vejamos, então: Amadis de Gaula, modelo vitalíssimo de Dom Quixote, é filho

do rei Perión de Gaula e da princesa Elisena, filha belíssima do rei Garínter da

pequena Bretanha. Em grande arroubo de paixão, o casal não resiste ao primeiro

encontro e, dessa noite resulta uma gravidez que a princesa dissimulada mantém

em segredo até o nascimento. Amadis é posto numa caixa e lançado às águas de

um rio. Já desaguando no mar, a caixa é encontrada por um barco e resgatada por

Gandales, um cavaleiro da Escócia que leva o rebento a seu castelo, para por ele

ser criado em sua terra natal. Mais tarde, Amadis é reconhecido por seus pais e,

depois das muitas aventuras, chega a casar-se com Oriana, filha de Lisuarte, rei da

Grã Bretanha.

Tantos dados não deixam dúvida quanto ao modelo prototípico que é Amadis,

perfeitamente ajustado à tradição heróica. Seu mundo é paradigmático, nele tudo

conduz milimetricamente a formar um quadro fortemente marcado pelo determinismo

próprio do gênero épico-cavaleiresco. Seu autor garante que o que narra é matéria

histórica, o ciclo de uma vida imprensado entre as circunstâncias naturais de vida e

morte.Tais circunstâncias tornam o mundo do cavaleiro Amadis marcado por forte

determinismo e fechado sobre si mesmo.

Esse é o paradigma das novelas de cavalaria anteriores a Cervantes. Este

chega a comentar com certo tom de ironia: “Nos cuentan [os livros de cavalaria] el

padre, la madre, la patria, los parientes, la edad, el lugar y las hazañas, punto por

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punto y día por día, que el tal caballero hizo”158. Que mais necessidade tinha Dom

Quixote de nascer, antes de decidir armar-se cavaleiro? A medida de seu

nascimento é o quanto basta, para que com ele se possa impulsionar o movimento

que caracteriza a pro-cura.

Há quem diga que Dom Quixote levava uma vida ao modo da natureza,

sempre idêntica a si mesma. É possível que seja verdade, já que não há registro

nem informação de seu viver anterior. É como se não fosse digno o seu modo de

viver, antes do ingresso na história contada por Cervantes.

Só a partir da decisão de ser cavaleiro, Dom Quixote imprime à sua vida um

fluxo constante, uma dinâmica que vai possibilitando que ele exista na medida em

que vai experienciando o mundo. Só assim, Dom Quixote, aos 50 anos, começa a

ganhar corpo e a constituir-se vida.

Pelas características de seu nascimento, Dom Quixote foge aos padrões tanto

da biologia, como da literatura corrente em sua época. Isso nos autoriza a

reconhecer na obra os sinais que nos dedicaremos a perseguir: a Cura.

5.1.1.2 A morte de Dom Quixote

Um verdadeiro cavaleiro se expõe à morte por bravura, coragem e até pelo

voto de vassalagem, elementos comuns ao tempo da cavalaria. Morrer por doença

era algo não esperado, talvez não estivesse previsto no código da cavalaria.

158

Contam-nos [os livros de cavalaria] o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas, ponto por ponto e dia por dia, que o cavaleiro fez (1, L, p.304)

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Apesar de, ao limite máximo, de aventura em aventura, se dispor à luta, seja

ela qual for, onde quer que se apresente, correndo os riscos que forem, até mesmo

o de morte; apesar de sofrer danos físicos, e ser curado com bálsamos, Dom

Quixote não morre e acaba sendo protegido dos golpes certeiros que a lâmina de

uma espada pode dar. Cruza todo o percurso de suas andanças, dá conta de tudo

(pelo menos o suficiente e satisfatório para considerarmos feita a travessia).

É claro que pode morrer. E morre de modo tão atípico que nos leva a

desconfiar.

Na ordem comum da vida ordinária, os modos que caracterizam ou justificam

a morte são doença, dano físico ou, no máximo, suicídio. Mas Dom Quixote não é

acometido por nenhum desses. Dom Quixote vivencia a frustração e a decepção,

quando descobre, no capítulo “Cuerpo Muerto”, que um contemporâneo, por ele

tomado como cavaleiro, morre de morte natural, exatamente, quando sua

expectativa era de que morresse segundo os padrões da cavalaria: lutando. Essa

decepção tem, como base, o livro de Palmerín, onde o cavaleiro morrera lutando por

vingança; e, por isso, o cavaleiro manchego não escolhe o mesmo caminho, ou pelo

menos, não é semelhante o destino que a vida lhe reserva. Dom Quixote não morre

lutando, por pura consciência, Dom Quixote decide morrer.

Decide. Sem mais nem menos, decide morrer; deita-se na cama e, por pura

decisão, morre. É, sem dúvida, um modo atípico: morrer por decisão própria. Ainda

mais se essa decisão foge ao senso comum; o suicídio, por exemplo. Sabe-se que,

no modo ordinário de morrer por decisão própria, só dando cabo da vida. Nesse

caso, repetimos, a única forma acabível de morte, por decisão, só pode ser o

suicídio.

Além do modo atípico de morte, algo mais se dá na paródia diferente do

estabelecido no código da cavalaria. É bem possível que se ache estranho o modo

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como se davam os enfrentamentos de Dom Quixote. São todos muito raros e,

possivelmente, não se deviam a lutas que a tradição cavaleiresca previsse. São, ao

contrário, lutas resultantes dos desfechos em que o desafio do herói suplantou todos

os limites do que era por todos previsto e do conhecimento de todos. Exigir,

acreditando quase poder obrigar que pessoas comuns abandonassem suas

atividades cotidianas, e se deslocassem até a província “del Toboso”, com o simples

propósito de que ali fossem, ao final de alguma batalha da qual Dom Quixote saísse

vencedor, para levar à Dulcinea a notícia, com vistas a agraciá-la com um mimo.

Isso, num século com o qual a cavalaria, apesar de muito lida, de fresca e presente

estar no imaginário de todos, em nada era compatível, significava arriscar-se ao

limite máximo. Dom Quixote, no entanto, assim fazia.

Não só do atípico é alimentada a morte do cavaleiro de la Mancha. Outros

elementos estranhos desse acontecimento participam.

Se aquele herói __ que passa boa parte da vida lutando, expondo-se a

situações de risco surpreendentes, que dorme ao relento, que entrega a vida

apaixonada e desmedidamente a um ideal e não morre, e que, por sua condição

mesma de herói, não morre em meio ao turbilhão heróico em que, ao longo de sua

história se metera __ não morrera até então, não precisava morrer no final. Mesmo

que morresse, que morresse de modo coerente, dentro dos moldes em que desde

sempre se apresentara: lutando.

Essa providência não pode ser gratuita. É preciso que algo a justifique.

Comecemos por imaginar que a morte foi colocada no romance como um

ingrediente indispensável.

Sob vários aspectos será tratado o tema “morte”.

No 1o Périplo, se Dom Quixote quer saber de si __ apesar da contraditória

afirmação “Yo sé quien soy” __, se quer saber de si para curar-se na questão de

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saber, no sentido de saber “quem é que eu sou”; se Dom Quixote, depois de

nascido, sai à pro-cura de si, pro-curando Cura; se é esse seu propósito, a Cura

somente será alcançada quando ele souber finalmente quem é. Chegado esse

momento, só lhe resta morrer. Até porque, disso precisa dar conta para cumprir a

determinação de ser-para-morte.

Dom Quixote é um ser-para-morte porque sua verdade vai ser pro-curada

entre nascimento e morte. Isso não só compromete, como implica o 1o e o 3o

Périplos, porque seu nascimento, coincidindo com o nascimento do personagem da

obra, tendo nascido de forma atípica, sem nenhum dado significativo que aponte

para sua significação de ser biológico, é lógico que do mesmo modo se dê a sua

morte. Se nasce como ser literário, como ser artístico precisa morrer.

Perguntado sobre quem foi Aristóteles, Heidegger um dia respondeu:

Aristóteles nasceu, cresceu e morreu.

Como vemos, esse ciclo é de importância fundamental para a proposta

teórica de Heidegger sobre os existenciais. No que se refere ao ciclo da Cura –

nascimento e morte –, Dom Quixote, do mesmo modo que Aristóteles, dele dá conta

perfeitamente: nasce literariamente aos cinqüenta; morre, também, literária e

atipicamente.

Vimos que Dom Quixote, embora tenha como proposta encarnar a figura de

cavaleiro, quanto ao nascimento e à morte, dessa figura destoa, e é, a partir de

Amadis de Gaula, que o percebemos.

Isso nos convida ao movimento tentador de aproximar essas questões ao que

Heidegger nos diz em Ser e tempo159.

O que é morte para Heidegger?

159

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998.

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Em sua proposta de dar conta do homem, considerando-o a partir do que há

de mais concreto e paupável – que é a existência, Heidegger se vê obrigado a dar

espaço para a morte. É quase certo que, mais adiante nos deteremos nos

existenciais, ponto central do autor, na mira do homem como pre-sença. Por

enquanto, basta breve explicação sobre o tema.

Pois bem, nascer-viver-morrer, este é o ciclo. Entre nascimento e morte se

processa o que de mais humano o homem possui – a Cura. Esse processar-se da

Cura se dá na existência, e a morte assume, aí, papel preponderante. Com a morte,

cessa a existência. Ela é a última estação, o ponto final, o fim da linha da existência.

Com a morte, configura-se o cessar do ser-no-mundo. O homem não é um ser

acabado, fechado em possibilidades. A pre-sença é dinâmica, ela não é o momento

presente e sim é a totalidade do que foi no passado e o que projeta para o futuro. A

pre-sença é possibilidade. Daí estar o homem sempre buscando novas decisões e

possibilidades de ser, e só a morte põe fim a essas possibilidades de escolha. Ela é

a única certeza que tem o homem sobre a qual não tem sequer possibilidade de

escolha.

A morte é a única mola propulsora maior que a angústia. Na angústia, apesar

do sentimento de apatricidade, apesar da insuportável experiência do vazio, apesar

do esvaziamento conduzir para fora do impessoal, apesar de ser, dentre todas as

disposições fundamentais, a mais radical, ainda assim, nela vislumbra-se ainda a

possibilidade de volta para o mundo, porque este ainda está lá. No tédio, a falta de

sentido do mundo e, mesmo, o não suportar o vazio possibilitam a fuga e o

arremessar para a diversão, ou para qualquer outra atividade que o valha.Caso não

se escape pela via da diversão, a angústia tornar-se-á inevitável, porque o tédio é o

limiar da angústia.

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A morte, entretanto, é o existencial mais radical para a Cura. Frente à morte,

o homem é capaz de dar-se conta do sem sentido da existência de modo mais

profundo. É a finitude, que ela traz consigo, a responsável por evidenciar a

gratuidade, evidenciando, assim, que a essência do homem é poder-ser, é

possibilidade.

No 1o Périplo, o que há é um aniquilamento do impróprio. A morte é de Dom

Quixote, o cavaleiro. Por isso, no último capítulo diz: “Yo fui loco, y ya soy cuerdo”,

diz – “fui don Quijote de la Mancha, y soy agora, como he dicho, Alonso Quijano”160.

Ao mesmo tempo que constrói, habita. Nesse percurso, do nascimento à

morte, Dom Quixote também se constrói, também se realiza.

Vê-se, então, que morte e Cura estão intrinsecamente relacionadas; pois só

essa perspectiva, só o simples fato de saber que vai morrer, pode colocar o homem

em Cura.

Vimos que, em suas andanças, Dom Quixote se expõe ao limite máximo à

morte, chegando a sofrer danos físicos que curava com bálsamos, mas não morre.

Cruza todo o percurso da vida e dá conta de tudo, de todo necessário para

concretizar sua tarefa. Até que, feita a travessia, já curado161, pode morrer. E morre

de modo tão atípico que nos levou a buscar, em Heidegger, essa explicação. Como

já dissemos, os modos que caracterizam e justificam a morte são doença, dano

físico, suicídio. Dom Quixote, entretanto, não é acometido por nenhum.

Consciente, ele decide morrer. Deita na cama e morre, por pura e absoluta

de-cisão. É conveniente estar-se atento para a de-cisão que não é a mesma

estabelecida pelo senso comum. Essa decisão, em relação à morte, só pode ser

160

Já fui louco e já sou sensato [diz __] fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano. (2, LXXIV, p.699) 161

Todas as vezes que for mencionado o termo “curado”, ler: “ter passado pelo processo de Cura. Cura é processo, não finda antes da morte. Portanto, quando assim nos referirmos, isso atende à estratégia metodológica dos Périplos. Curado significa, neste caso, ter dado conta, ter finalizado o projeto do 1o Périplo.

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concretizada pelo suicídio ou por um intencional “acabar com a vida”. A de-cisão de

Dom Quixote pela morte é muito específica – é para marcar esse fim de ciclo, o ciclo

em que, do totalmente impróprio, consuma-se no próprio, é para marcar a zona

limítrofe da existência, entre o impróprio e o próprio mais radical.

É assim que, no 1o Périplo, a morte, além de se apresentar de forma tão

insidiosa, chegando a quase assumir a condição de personagem, Dom Quixote,

consciente de sua importância, lhe concede atenção tão especial, a ponto de

preparar-lhe um ritual: depois de fazer seu testamento, diz – “Cerró con esto el

testamento, y, tomándole un desmayo, se tendió de largo a largo en la cama”162.

Essa imagem significativa __ o leito de morte __, no sentido longitudinal, e o

fato de Dom Quixote deitar-se para morrer, “de uma ponta à outra” da cama, torna-

se a completitude perfeita do percurso. O ocupar toda extensão da cama “de largo a

largo” marca os extremos desse construir. Significa que, “de ponta a ponta”, Dom

Quixote construiu seu habitar.

Na vida ordinária, Dom Quixote não necessariamente precisaria finalizá-la

naquele momento; afinal, não sofria de nenhum mal onticamente característico, não

sofrera nenhum ferimento ôntico. Isso nos sinaliza tratar-se a vida de Dom Quixote,

não de uma vida comum, onde o viver é ordinário, e sim tratar-se de uma vida em

que está em jogo o ser-para-morte. É tão fora do ordinário sua vida, que o próprio

modo de morrer funciona como sinal de sua Cura; fora dos padrões da cavalaria.

Se o que mais fortemente caracteriza a morte é a solidão, quando Dom

Quixote decide morrer e deita, parece, com isso, precisar resguardar o espaço da

solidão própria da morte. No rito da morte, apesar da cama ser o mais instrumental

dos instrumentos, apesar do seu significado mais comum e prosaico, assume o valor

sagrado de altar, onde se realiza o clímax da solidão mais radical. Nesse momento o

162

Encerrou, com isso, o testamento e, tendo um desmaio, estendeu-se de ponta a ponta da cama (2, LXXIV, p.700)

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homem é só solidão – nada mais compartilha, nada mais é impróprio nem

impessoal. É a mais plena posse total do próprio.

Fica esclarecido, assim, o não acontecer da morte do Dom Quixote – plágio

de Avellaneda163. Não pôde nem pode morrer, porque não nasceu, porque não tem

corpo sequer, como então morrer? A ele só lhe cabe, viver-vivendo a vida ordinária,

viver-vivendo sua loucura ordinária, viver-vagando loucamente no estabelecido, até

que para ele construam manicômios, único lugar onde ele e outros que sofrem de

igual loucura, finalmente, podem acabar.

5.1.2 Para compreender o mundo, só com disposição

Na verdade, o que fez Dom Quixote lançar-se no mundo da cavalaria foi a

“disposição”. Heidegger diz que o existencial-compreensão é pre-racional, pre-

predicativo. Havia um pré que antecedia qualquer compreensão; uma disposição

afetiva, um humor, pois “a pre-sença já está sempre de humor”164. O humor abre

sempre o ser do “pré”, logo ele também participa do “estar-lançado”. “[...] na maior

parte das situações ôntico-existenciárias, a pré-sença se esquiva ao ser que se abre

no humor”165; o “pré” é sempre abertura e possibilidade de ser.

Isso significa que o homem é sempre tomado pela tendência à compreensão

do que já é, do que já está estabelecido como significado, mesmo sem que perceba,

e assume isso como responsabilidade: uma vez existindo, ele “tem de ser”166.

163

Entre a publicação da primeira e da segunda parte, aparece uma obra de mesmo nome, apresentada como continuação da verdadeira. Essa obra é escrita por Avellaneda. 164

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.188.

165 Ibidem, p.189.

166 Ibidem, p.189.

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“Pré”, na época de Dom Quixote, dava o tom, determinando o humor; humor

que tocava a todos e fazia com que não perseguissem a abertura que esse próprio

humor realiza. Dizemos isso, porque “É justamente na cotidianidade mais indiferente

e inocente, que o ser da pre-sença pode irromper na nudez do que é e tem de

ser”167.

Esse “pré” da época de Dom Quixote se chama ceticismo. Convivem, no

mesmo tempo, resquícios da Idade Média, como também a dúvida sobre esses

valores. Mesmo sem dar-se conta, o humor, inerente à época de crise, é

determinado por esse clima. A obra apresenta muitos exemplos que mostram a

fragilidade dos valores medievais-cristãos, interferidos que estão pela sua não

suficiência para a exigência do homem daquele momento.

No capítulo XXXII, há uma altercação entre Dom Quixote e um eclesiástico

que mostra estar a Igreja completamente transformada, segundo os valores da

cavalaria que professa Dom Quixote. A prova é que assim lhe responde o cavaleiro,

depois de uma reprimenda duríssima do eclesiástico: “El lugar donde estoy, y la

presencia ante quien me hallo y el respeto que siempre tuve y tengo al estado que

vuesa merced profesa tienen y atan las manos de mi justo enojo”168. E segue

dizendo-lhe que, se tem as mãos atadas, pode usar a arma que eles, os da Igreja

usam, que são as mesmas da mulher – a língua. Dom Quixote trava uma batalha

com o eclesiástico, falando com ele com a mesma dureza: “con vuesa merced, de

quien se debía esperar antes buenos consejos que infames vituperios”169.

Essa é a disposição em que todos estão. Todos estão dispostos na dúvida e

na incerteza do que possa ser ou não referencial confiável. É nessa disposição do

167

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.189. 168

O lugar onde estou, e a presença diante da qual me encontro e o respeito que sempre tive e tenho ao estado que vossa mercê professa têm e atam as mãos de meu justo asco (2, XXXII, p.185) 169

Com vossa mercê, de quem se devia esperar antes bons conselhos que infames vitupérios (Ibidem)

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“pré” que todos se responsabilizam, achando que o que lhes cabe é permanecer

lançado no estabelecido.

5.1.2.1 Há algum temor no ar?

Essa é a tonalidade afetiva, a disposição, é o que move na verdade a época.

O que caracteriza o momento, as vicissitudes históricas, aponta muito mais para o

conhecimento. Conhecimento de quê? O ambiente transpira dúvida, não-certeza,

não-segurança. As coisas reivindicam compreensão e explicação mais satisfatória,

as antigas já não servem. Talvez seja essa a tonalidade responsável pelo medo, o

temor de não se saber, o temor de não chegar a ser nem a saber, o temor da dúvida,

o temor de não conseguir dar conta da realidade, o temor, afinal, de não engrenar no

processo de sabendo, saber-se; de conhecendo, conhecer-se.

No discurso de Dom Quixote __ “las armas y las letras” __, o ponto crucial

aponta o elemento que radicaliza as duas épocas: “aquellos benditos siglos que

carecieron de la espantable furia”170, em confronto com “la edad tan detestable como

es esta en que ahora vivimos”. Essa evidência, a percebemos no desabafo final:

Como era possível treinar destrezas nas lutas marciais, exercitar e aprimorar o físico

com ginásticas, fortalecer a alma pelo controle das paixões; como isso era possível,

perseguido pelo medo e receio de “si la pólvora y el estaño me han de quitar la

ocasión de hacerme famoso y conocido por el valor de mi brazo y filo de mi espada,

170

Aqueles benditos tempos que careceram da espantosa fúria (1, XXXVIII, p.232)

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por todo lo descubierto de la tierra”171; como isso era possível? A tonalidade afetiva,

o humor com que se apreendia e compreendia o mundo inclui o modo do temor.

O medo que sentia talvez fosse de ser tragado pelo vazio ameaçador que,

mesmo não sendo ainda irreversível, já dava sinais de incômodo mal-estar. Para

fugir do mal-estar, cada um repetia ao infinito uma mesma atividade que lhe

parecesse um lenitivo para a sensação de ameaça de ter de experimentar o vazio.

Mas todos repetiam, e Dom Quixote também. Seguiam lendo silenciosamente “de

claro en claro [...] de turbio en turbio172”.

Que, um belo dia, poderiam optar por fuga diferenciada, isso é possível;

mas a história que Cervantes vai contar é exatamente a do herói que teve a coragem

de fazer a primeira tentativa.

Será muito difícil surpreender Dom Quixote demonstrando medo.

Observando-o, tudo o que dele se alcança remete à força e ao poder, característica

constantemente reforçada, como quando, dirigindo-se a Sancho diz:

[...] dime por tu vida: ¿has visto más valeroso caballero que yo en todo lo descubierto de la tierra? ¿Has leído en historias otro que tenga ni haya tenido más brío en acometer, más aliento en el perseverar, más destreza en el herir, ni más maña en el derribar?173

Como surpreender o homem do Renascimento em fragilidade, cheio de

temor, se o que se insinua já nesse momento é uma “[...] força que libera o homem

do medo causado pela ignorância e pela superstição”174; confiança que será

reforçada mais adiante pelo Iluminismo, mobilizando-o a procurá-la; confiança que

se transmuta em falácia, a falácia da racionalidade moderna.

171

Se a pólvora e o estanho me tirarão a oportunidade de tornar-me famoso e conhecido pelo valor de meu braço e o fio de minha espada, por todo o descoberto da terra (1, XXXVIII, p.233) 172

De claro em claro [...] de turvo em turvo (1, I, p.18) 173

Diz por tua vida: viste mais valente cavaleiro que eu em todo o descoberto da terra? Leste em histórias outro que tenha ou tenha tido mais brio em atacar, mais alento em perseverar, mais destreza em ferir, mais manha em derrubar? (1, X, p.56) 174

CHAUI, Marilena. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto de (Org.). Crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.346

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Impossível imaginar o poder controlador de Dom Quixote numa conversa com

um “cabrero” ignorante, corrigindo-lhe o significado das palavras, a partir do rigor do

dicionário: “Eclipse se llama, amigo, que no cris, el escurecerse esos dos luminares

mayores – dijo don Quijote [...] Estéril queréis decir, amigo - dijo don Quijote [...] Esa

ciencia se llama astrología – dijo don Quijote”175, sucumbir ao medo. Medo de quê?

Da ignorância prevista na citação acima?176. Por isso se apegavam tanto ao

conhecimento certo e seguro, tentando fazê-lo eterno e imutável?

Medo da instabilidade do momento em que a verdade estava sendo posta em

cheque, momento em que concorriam muitas possibilidades de verdade?

Medo do cavaleiro com quem terá de lutar em algum momento?

Não é possível, por enquanto, reconhecer e identificar o medo. A única coisa

que se sabe é que há algo que Heidegger chama de pre-reflexivo, pre-discursivo

mas que é só uma tonalidade afetiva, nada mais que um humor que não se

consegue detectar, porque é essa tonalidade que vai abrir o mundo como

compreensão.

Algo assustador ou, no mínimo ameaçador, está por vir e esse algo é o tal

ente temível que, por enquanto, só anda rondando o 1o Périplo; é impossível

detectar, definir, identificá-lo. Não precisaria Dom Quixote tanto se armar, tanto dizer

que é forte, tanto se exercitar. Havia sim um algo tão temível, por trás dos “tuertos y

agravios”177, por trás das viúvas e donzelas, por trás dos fracos e oprimidos que

exigia que Dom Quixote tivesse a certeza de que precisava ser forte, de que

precisava ter coragem, de que precisava ser destemido.

175

Eclipse se chama, amigo, que não cris, o escurecimento desses dois luminares maiores – disse Dom Quixote [...] Estéril queréis dizer, amigo – dijo Dom Quixote [...] Essa ciência se chama astrologia – disse Dom Quixote (1, XII, p.64) 176

CHAUI, Marilena. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, Adauto de (Org.). Crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 1992, p.346 177

Injustiças e desacertos (1, XXXI, p.184)

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Talvez fosse esse o motivo que o fez optar por ser cavaleiro: havia um

cavaleiro anunciado, com o quem deveria lutar, precisava tomar a providência de se

preparar em igualdade de condição. Cavaleiro com cavaleiro luta; se o outro era

cavaleiro, é claro que ele tinha que ser cavaleiro também.

Por enquanto isso são só projeções, não passam de possibilidades que já

estão aqui nos assediando, sem que tenhamos elementos para disso dar conta.

Entretanto, sabe-se não ser mais possível acreditar em Dom Quixote, depois

do flagrante da contradição – saber e não saber de sua identidade, outras

contradições podem ainda surpreender-nos. Se assim for, melhor é não descansar

enquanto não encontrarmos, escondido nas entrelinhas, seu temor.

Seguindo as pegadas de Heidegger, descobrimos que o temor tem um caráter

de ameaça causada pelos danos. Ainda que o ente pre-sença tenha algum

conhecimento desse temível que se aproxima, sua proximidade ainda não está em

estágio de ser dominável. Entretanto, o temível não pára de aproximar-se; e quanto

mais se aproxima, mais irradia raios de ameaça. Pode chegar ou não, o que o torna

mais terrível; pode passar ao largo. Nada disso diminui o temor; tudo isso o constitui.

Não é preciso que se constate algo que vai acontecer no futuro, para depois

temer. Não é essa a ordem: primeiro se constata o que se aproxima, para só depois

temer. Quando se teme o temer em sua temeridade já se descobriu o que se

aproxima. É preciso temer, é preciso o temor, porque só no processo de temer é que

se pode esclarecer e ter claro para si o temível. Esse temível, o capta a “circunvisão”

porque ele já está na disposição do temor. Na disposição tudo fica entregue aos

fatos, é aquilo que é de fato: o ser só é percebido na facticidade, como fato de ser,

como ser de fato. Isso significa que a pre-sença está lançada em seu “pré”.

Enquanto ser-no-mundo, o ente pre-sença é sempre o seu “pré”. Portanto, será

sempre no ser do seu “pré” (do pré da pre-sença), que o temor desentranha a pre-

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sença. E isso pode acontecer tanto no “ser junto a”, considerando que a pre-sença é

um ser em ocupações que pode temer “pela casa ou pela propriedade”; como “ser

com o outro”, considerando que a pre-sença é um ser de pre-ocupações. O que se

quer dizer aqui é que a ocupação e a preocupação são o modo de ser da pre-sença

lançada em seu “pré”. E a cavalaria foi o “pré” de Dom Quixote e Dom Quixote nela

se lança, ocupando-se, “sendo junto às” coisas da cavalaria e preocupando-se -

“sendo com o outro”.

Como ser de ocupações, o temor da pre-sença é privativo. Enquanto se

ocupa das coisas do mundo, a pre-sença experimenta o temor de tal modo que a

“confunde e faz perder a cabeça”; a ponto de “precisar se recompor depois que ele

passa”178. Eis que a encontramos; Dom Quixote se encaixa inteiramente nesse perfil.

Em meio às ocupações de seu cotidiano cavaleiresco, o que mais fica evidente é o

seu “confundir-se” acompanhado de um “perder a cabeça”, como no episódio dos

“desalmados yangüeses”179, onde Dom Quixote enfrenta, apesar do alerta de

Sancho, mais de 20 “gallegos”, achando que eram cavaleiros. Mesmo reconhecendo

não terem a estirpe de cavaleiros – “- A lo que yo veo, amigo Sancho, éstos no son

caballeros , sino gente soez y de baja ralea” 180, enfrenta-os para resolver o agravo

cometido contra seu cavalo Rocinante. O resultado é que, depois de ter Dom

Quixote atacado a facadas um dos gallegos __ “¿Quién dijera que tras de aquellas

tan grandes cuchilladas como vuestra merced dió a aquel desdichado caballero

andante, había de venir, por la posta y en seguimiento suyo, esta tan grande

tempestad de palos que ha descargado sobre nuestras espaldas?”181__, dessa vez,

vítimas são os três. Tanto apanha Rocinante por ter ido importunar as éguas de “los

178

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.196 179

Desalmados tratadores de éguas (1, XV, p.78) 180

Pelo que vejo, amigo Sancho, estes não são cavaleiros, mas sim gente de soez e baixa ralé (1, XV, p.79) 181

Quem diria que após aquelas tão grandes punhaladas como vossa mercê deu naquele pobre destitado cavaleiro andante, haveria de vir, a cavalo e em seguida a isso, esta tão grande tempestade de paus que se descarregou sobre nossas costas (1, XV, p.81)

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gallegos”, como apanham Sancho e Dom Quixote, acreditando este estar cobrando

a cavaleiros um desagravo da injúria cometida contra Rocinante e, só depois de

moído, precisando recompor-se do incidente que o levou a perder a cabeça,

reconhece o que produziu tamanha confusão: “[...] Yo me tengo la culpa de todo,

que no había de poner mano a la espada contra hombres que no fuesen armados

caballeros como yo [...]”182.

No mesmo episódio, Dom Quixote nos fala, ele mesmo, do temor, em meio às

ocupações. Nesse caso está referindo-se à época. Como a está vivendo em seu

cotidiano, como vive experimentando a cada dia aquele mundo estabelecido e

compartilhado, o seu “pré”, porque só nele pode-se abrir a verdade, já mostra

suficientes riscos porque passam todas as conquistas realizadas, sabe que, do

mesmo modo que se conquista, pode-se também perder, inclusive a propriedade.

Por isso orientando Sancho a como proceder quando tiver a propriedade de sua ilha

porque “[...] nunca están tan quietos los ánimos [...] que no se tenga temor”; daí a

necessidade de ter “[...] valor para ofender y defenderse en cualquiera

acontecimiento”183

O temor está em toda parte; nas ocupações e nas pre-ocupações. Como ser

de pre-ocupações, o temor da pre-sença é um modo de disposição, não mais “junto

às coisas do mundo”, mas junto com os outros, embora o temor não necessite ser

vivido junto. Pode-se temer em lugar de alguém. Esse, também, não tira do outro o

temor. Quem teme em lugar do outro pode sequer temer. Pode-se temer em lugar do

outro, sem necessariamente temer. Às vezes o outro teme também; às vezes “ele

não teme e audaciosamente enfrenta o que o ameaça”184.

182

Eu tenho a culpa de tudo, que não tinha de pôr mão na espada contra homens que não fossem armados cavaleiros como eu (1, XV, p.80) 183

[...] não estão tão quietos os ânimos [...] que não tenha temor [daí (...) de ter] coragem para atacar e defender em qualquer momento (Ibidem) 184

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.196.

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Podemos dizer que havia um humor, uma tonalidade afetiva no “pré” de cada

pre-sença, no “pré” de Dom Quixote; no “pré” de todos daquele momento histórico

em que Dom Quixote se insere. Essa tonalidade afetiva se manifestava no modo do

temor, porque este é um modo da disposição. Podemos dizer que havia algo de

ameaça no ar, algo que poderia produzir dano, mas numa distância desfavorável à

pre-sença. A proximidade em que se insinuava o dano não era suficiente para torná-

lo dominável. Podemos dizer que era no cotidiano, junto às coisas do mundo, que

Dom Quixote e todos temiam. Podemos dizer até que, no caso específico de Dom

Quixote, seu temor era, no viver as coisas do mundo, um temor por si mesmo e

também pelo outro; caso contrário, não precisava tomar iniciativa tão radical dizendo

com suas próprias palavras: “la falta que él pensaba que hacía en el mundo su

tardanza, según eran los agravios que pensaba deshacer, tuertos que enderezar,

sinrazones que emendar, y abusos que mejorar y deudas que satisfacer”185. Dom

Quixote estava determinado a sair pelo mundo como o paladino da justiça,

protegendo e defendendo seus semelhantes de toda sorte de males que o seu

tempo favorecia. Mas, afinal, onde está o ente temível?

5.1.3 Do estar-lançado ao lançar-se na existência

Custe o que custar, Dom Quixote toma, para si, o ocupar-se das coisas do

mundo e o pre-ocupar-se com os demais entes do mundo. O problema é que, ao sair

185

A falta que ele pensava que fazia no mundo sua demora, segundo eram os agravos que pensava desfazer, injustiças que consertar, desrazões que emendar, e abusos que corrigir e dívidas que satisfazer (1, II, p.21)

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pelo mundo com esse propósito, sai munido de um acervo adquirido na leitura

desmedida das novelas de cavalaria, segundo a metodologia do aprendizado.

Todo conhecimento lhe chegara, tendo como referencial o mundo organizado

segundo uma lei fixa, eterna e imutável. De tal modo, que é internalizando esse

referencial, que vai atuar. Desse modo, seu ocupar-se das coisas do mundo está, ao

mesmo tempo, intimamente ligado a seu pre-ocupar-se com as pessoas do mundo.

É isso que estará sempre regulando sua ação, que estará sempre à mercê da

fragilidade de suas crenças.

Se é condição essencial para o ser, o ser-no-mundo, o cavaleiro Dom Quixote

soube muito bem assumir a condição necessária de “estar-lançado” no mundo das

realizações e significações. Dom Quixote, como todos os homens, está-lançado, tão

mergulhado na leitura da cavalaria que esse era o seu referencial maior enquanto

lia, e supõe-se que, também, depois de virar cavaleiro.

Embora fosse essa sua proposta, a de permanecer no estar-lançado no

mundo, não será esse o rumo que tomará sua trajetória. Não percebeu o cavaleiro

que bastou colocar o pé no caminho, para constatar, irremediavelmente, que “no hay

camino”.

Ao optar por entrar no ritmo da vida, quanto mais no estar-lançado, mais o

assedia o ser. Quanto mais está no estabelecido, ocupando-se ou pre-ocupando-se,

mais o “estar” se torna presa do “ek”186, mais Dom Quixote é provocado pelo ser,

mais Dom Quixote é mobilizado a lançar-se em direção ao ser, mais é provocado a

ocupar seu lugar de “entre-ser”, mais o cavaleiro manchego está aberto ao

acontecer que pode constituir o mundo como mundo.

186

“Ek” significa o “lançar-se em direção ao ser”. Só nesse lançar-se, o homem existe. A expressão eksistência denota uma dinâmica, um movimento de saída em direção a possibilidades. Nesse sentido, a proposição ek significa esse movimento de dentro para fora.

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5.1.3.1 A pouca ocupação de Dom Quixote

Não é fácil a visibilidade da “ocupação” de Dom Quixote, segundo a definição

de Heidegger: “ser junto ao, manual intramundano”187. Sua condição de cavaleiro lhe

dá um escudeiro, cabendo a este a tarefa de providenciar as condições mínimas

para atender às necessidades cotidianas de seu amo; por isso colocamos a

ocupação atrelada à pre-ocupação. Era Sancho quem se “ocupava” da manutenção

e da sobrevivência de seu amo:

[...] como yo no sé leer ni escrebir, como otra vez he dicho, no sé ni he caído en las reglas de la profesión caballeresca; y, de aquí adelante, yo proveeré las alforjas de todo género de fruta seca para vuestra merced, que es caballero, y para mí las proveeré, pues no lo soy, de otras cosas volátiles y de más sustancia.188

Entretanto, Dom Quixote era rigoroso no cuidado de alguns referentes da

cavalaria, com os quais, de algum modo, se ocupava. Não é preciso muitas páginas,

lá pela 48, onde o armar-se cavaleiro é uma claríssima “ocupação” conduzida com

primoroso critério. A começar pelo grau de responsabilidade com o compromisso por

ele assumido, com ele mesmo e com o código da cavalaria. Sua seriedade está em,

depois de caminhando por la Mancha, acreditando ser já cavaleiro, lembrar-se de

uma falta que lhe tira completamente a tranqüilidade: “lo que más le fatigaba era el

no verse armado caballero, por parecerle que no se podría poner legítimamente en

187

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 257. 188

Como não sei ler nem escrever, como já disse, não sei sem cai nas regras da profissão cavaleiresca; e, daqui em diante, eu proverei os alforjes de todo tipo de fruta seca para vossa mercê, que é cavaleiro, e para mim as proverei, pois não o sou, de outras coisas voláteis e de mais substância. (1, X, p.58)

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aventura alguna sin recebir la orden de caballería”.189 E, apesar do olhar crítico de

todos os presentes, quanto ao que o “caballero [Quixote] hacía”, demonstrando

admiração “de tan estraño género de locura y fuéronselo a mirar desde lejos y

vieron”190, Dom Quixote à cerimônia dedicou-se, dela ocupando-se com diligência,

assim atuando:

[...] sobre una pila que junto a un pozo estaba, y, embarazando su adarga, asió de su lanza y con gentil continente se comenzó a pasear delante de la pila [...] con sosegado ademán, unas veces se paseaba; otras, arrimado a su lanza, ponía los ojos en las armas, sin quitarlos por un buen espacio dellas.191

Seu cuidado nessa ocupação é tal que, à simples ameaça de um homem,

desses que transportam mercadorias em cavalos, pelas estradas, um “arriero”192 que

entra no curral onde Dom Quixote está velando suas armas, e, para pegar água e

saciar a sede de seus cavalos, se aproxima da “pia” onde elas estão sendo veladas,

o nobre e ocupadíssimo cavaleiro, muito irritado lhe diz:

-¡Oh tú, quienquiera que seas, atrevido caballero, que llegas a tocar las armas del más valeroso andante que jamás se ciñó espada!, mira lo que haces y no las toques, si no quieres dejar la vida en pago de tu atrevimiento. [Foi uma pena que “el arriero” não tivesse escutado a recomendação de Dom Quixote. Como não escutou,] don Quijote [...] sin pedir favor a nadie, soltó otra vez la adarga y alzó otra vez la lanza, y, sin hacerla pedazos, hizo más de tres la cabeza [...] se la abrió por cuatro.193

É preciso não esquecer que, por não haver capela naquele castelo, castelo

que, na verdade, não passava de uma taberna, Dom Quixote estava velando suas

189

Mas o que mais o incomodava era não se ver armado cavaleiro, por parecer-lhe que não podia legitimamente meter-se em aventura alguma sem receber a ordem de cavalaria (1, III, p. 25-27) 190

[E, apesar (...) ao que o] cavaleiro fazia [demonstrando admiração] de tão estranho gênero de loucura e foram olhá-lo de longe e viram (Ibidem) 191

Numa pia que junto de um poço estava, e, abraçando sua adaga, segurou sua lança e com gentil continente começou a passear diante da pia [...] com sossegado gesto, algumas vezes passeava; outras, encostado em sua lança, punha os olhos nas armas, sem tirá-los por um bom tempo delas (1, III, p.26-27) 192

Arrieiro. 193

– Oh, tu, quem quer que sejas, atrevido cavaleiro, que chegas para tocar as armas do mais valente andante que jamais cingiu a espada! Olha o que fazes e não as toque, se não queres deixar a vida em paga de seu atrevimento [foi uma pena (...) não escutou,] Don Quixote [...] sem pedir favor a ninguém, soltou outra vez a adaga e ergueu outra vez a lança, e, sem quebrá-la em pedaços, fez mais de três a cabeça [...] a abriu em quatro. (1, III, p.27)

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armas no curral que ladeava “la venta”, ocupando-se seriamente do ritual presente

em qualquer código de cavalaria. Esse detalhado episódio tem, por finalidade, deixar

claro a ocupação do cavaleiro, ocupação prevista por Heidegger, como necessária

ao processo de Cura. Apesar do ridículo da situação, submetendo-se a um mero rito,

do qual muitos foram partícipes, um rito completamente desvigorado, considerando a

decadência dos valores religiosos, a impavidez de Dom Quixote, mergulhado que

está, entregando-se à vivência, é surpreendente. Não seria um sinal de falta da

experiência originária, que tem no mito essa possibilidade.

Se à “ocupação” não voltaremos, acreditando ser esse exemplo suficiente,

que não percamos a oportunidade de, dela, registrar outra grande mostra. Trata-se

da montagem do mundo da cavalaria, com a qual ocupou-se Dom Quixote:

ocupando-se das armas “Y lo primero que hizo fué limpiar unas armas que habían

sido de sus bisabuelos, que, tomadas de orín y llenas de moho, luengos siglos había

que estaban puestas y olvidadas en un rincón”; ocupando-se do cavalo “fué luego a

ver su rocín”194, não tanto quanto o desejável, porque, apesar de que tinha as patas

bichadas, isso não lhe parecera problemático. Para o futuro cavaleiro, seu cavalo

Rocinante era o melhor dos melhores; por isso, a Dom Quixote “le pareció que ni el

Bucéfalo de Alejandro ni Babieca el del Cid con él se igualaban”; ocupando-se da

amada, “porque el Caballero andante sin amores era árbol sin hojas y sin fruto y

cuerpo sin alma”, Dom Quixote “se holgó”, ficou muito feliz “cuando halló a quien dar

nombre de su dama! [...] una moza labradora de muy bien parecer”; ocupando-se

finalmente de si mesmo “quiso ponérsele a sí mesmo, y en este pensamiento duró

otros ocho días, y al cabo se vino a llamar don Quijote”195.

194

A primeira coisa que fez foi limpar as armas que haviam sido de seus bisavôs, que, tomadas de ferrugem e cheias de mofo, longo tempo havia que estavam postas e esquecidas num canto [ocupando-se do cavalo] foi depois ver seu rocim (1, I, p.19) 195

Pareceu-lhe que nem o Bucéfalo de Alexandre Magno nem Babieca o do Cid com ele se igualavam [ocupando-se da amada] porque o cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas e sem fruto e corpo sem alma [Dom Quixote] quando

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O simples preparar um contexto, para viver a cavalaria com tamanha

diligência, já anuncia o constituir um espaço onde “o existir de fato da pre-sença não

está apenas lançado indiferentemente num poder-ser-no-mundo, mas já está

sempre empenhado no mundo das ocupações”196

O incômodo de não se ter ainda armado cavaleiro somado ao aparato

ritualístico para tornar visível e dar evidência às coisas do mundo já é um leve sinal

da modernidade aproximando-se, insinuando seu perfil. Tudo precisava ser

legitimado. E, legitimar era perfeitamente possível, esse poder estava ao alcance do

homem, ou melhor, estava no próprio homem, em seu pensamento, poder que o

tornava apto a triunfar sobre todas as coisas. Seu simples pensar lhe dava sempre

razão.

5.1.3.2 Pra que tanta pre-ocupação?

Quanto a isso; e disso não será possível fugir; é Heidegger quem administra

Cura. Se ele diz ser preciso pre-ocupar-se, é porque é preciso pre-ocupar-se. Do

mesmo modo que não se está apenas lançado indiferentemente num poder-ser-no-

mundo, mas já está sempre empenhado no mundo das ocupações, o estar-lançado

inclui também a pre-ocupação.

Entretanto, em se tratando de Dom Quixote, a pergunta é, além de ingênua,

desnecessária. Basta vê-lo magro, “seco de carnes”, com o temperamento

caracterizado pelos adeptos da “teoria dos humores” como um perfil colérico,

encontrou a quem dar o nome de sua dama! [...] uma moça lavradora de muito boa aparência [ocupando-se (...) mesmo] quis pôr em si mesmo, e neste pensameno permaneceu outros oito dias, e em fim veio a chamar-se Dom Quixote (1, I, p.20) 196

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p.257.

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psicologicamente irado; forte e soberbo, nada preguiçoso e, ainda mais, amante da

justiça num contexto como o já descrito, contexto que tanto o desconcertava, a

ponto de, a partir do “mal-estar” que, silencioso, ameaçava, ver que “la cosa de que

más necesidad tenía el mundo era de caballeros andantes, y de que en él se

resucitase la caballería andantesca”197. Que esperar de um homem desse calibre,

num momento tão crucial, senão pre-ocupação?

Pois bem, Dom Quixote é um cavaleiro extremamente pre-ocupado.

É de tal modo pre-ocupado que, logo em sua primeira saída, antecipando-se

à qualquer solicitação de ajuda ou pedido de socorro, irrompe no capítulo IV,

agradecendo a Deus pelo favor de tal oportunidade: “Gracias doy al cielo por la

merced que me hace, pues tan presto me pone ocasiones delante donde yo pueda

cumplir con lo que debo a mi profesión”198

Por muito estar “pre-ocupado com” os outros entes, foi que Dom Quixote,

tentando salvar “el muchacho Andrés” das mãos de seu amo, o pôs a perder-se

definitivamente. Pela primeira vez, em suas andanças, Dom Quixote, acreditando

tudo saber sobre como desfazer “los tuertos y agravios”199, usou seu conhecimento

para dispor das decisões necessárias para um incidente entre amo e criado. Como

bom filósofo pre-ocupado achava que estava em suas mãos legislar sobre o certo e

o errado.

Neste relato está inserido o comportamento próprio do tipo de ensino que fora

ministrado a Dom Quixote: um ensino calcado no aprendizado.

O simples fato de ouvir queixas já o mobilizava à luta. Foi quando viu,

amarrado em uma árvore, “un muchacho, desnudo de medio cuerpo arriba, hasta de

197

A coisa de que mais necesidade tinha o mundo era de cavaleiros andantes, e de que nele se resucitasse a cavalaria andantesca (1, VII, p.44) 198

Graças dou ao céu pela mercê que me faz, pois tão logo me oferece oportunidade diante de mim para que eu possa cumprir com o que devo a minha profissão (1, IV, p.29) 199

Injustiças e desacertos (1, XXXI, p.184)

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edad de quince años”. Este jovem apanhava de seu amo, “un labrador de buen

talle”, aos quais respondia: “No lo haré otra vez, señor mío, por la pasión de Dios,

que no lo haré otra vez”200. Foi o suficiente para Dom Quixote intrometer-se,

chamando o amo de covarde, não querendo ouvir sequer suas desculpas de que a

altercação se devia ao fato de que, dizia ele, “estoy castigando [...] mi criado, que me

sirve de guardar una manada de ovejas”, e que “es tan descuidado, que cada día

me falta una”201.

Ordenou Dom Quixote que soltasse o rapaz, além de obrigá-lo a pagar o que

lhe devia: “Hizo la cuenta don Quijote y halló que montaban setenta y tres reales”.

Não permitiu que o amo-lavrador descontasse os três pares de sapatos que lhe

havia comprado, respondendo: “quédense los zapatos y las sangrías por los

azotes”202, achando terem sido pagos os sapatos com a surra que estava levando.

Feitas as exigências, impostas ao amo determinadas restrições no seu agir

com seu criado, “el muchacho” Andrés, Dom Quixote o abandona, deixando-o

entregue à sorte. Por fim, ficou provado que Dom Quixote não tinha o conhecimento

que acreditava ter para resolver situações daquele calibre, a ponto de, em posterior

encontro, receber de Andrés, como resposta para encerrar a história:

[...] que si otra vez me encontrare, aunque vea que me hacen pedazos, no me socorra ni ayude, sino déjeme con mi desgracia; que no será tanta, que no sea mayor la que me vendrá de su ayuda de vuestra merced, a quien Dios maldiga, y a todos cuantos caballeros andantes han nacido en el mundo.203

200

Um rapaz, nu da metade do corpo para cima, de até quince anos de idade [Este (...) amo] um lavador de bom tamanho [aos quais respondia] Não farei outra vez, senhor meu, pela paixão de Deus, que não o farei outra vez (1, IV, p.29) 201

Estou castigando [...] meu criado, que pastoreia uma manada de ovelhas minhas[e que] é tão descuiado que cada dia me falta uma (1, IV, p.30) 202

Fez as contas Dom Quixote e achou que montavam a setenta e três reais [não (...) respondendo] fiquem os sapatos e as sangrias pelos açoites (Ibidem) 203

Que se outra vez me encontrar, ainda que veja que me fazem em pedaços, não me socorra nem ajude, mas me deixe com minha desgraça, que não será tanta, que não seja maior a que me virá de sua ajuda de vossa mercê, a quem Deus maldiga, e a todos os outros quantos cavaleiros andantes nasceram no mundo (1, XXXI, p.185)

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A arrogância de Dom Quixote no que se refere saber-se autoridade por

conhecer todas as leis que poderão colocar ordem em seu país é tal que

desconsidera definitivamente os alertas do menino Andrés que se esforçara para

avisá-lo da desconfiança de que sua fórmula não funcionaria: “Mire vuestra merced,

señor, lo que dice”, dizia o menino Andrés; “[...] basta que yo se lo mande para que

me tenga respeto”, respondia Dom Quixote; “[...] pero este mi amo” que se nega a

pagar-me, explorando meu suor e trabalho, o que se pode esperar dele?, dizia

Andrés; Não se preocupe, porque “sabed que yo soy el valeroso don Quijote de la

Mancha”, respondia Dom Quixote204. Com essas palavras, deixou o rapaz nas mãos

de seu amo, seguro de que sua determinação seria uma ordem, que o amo

cumpriria sem restrições.

Capítulos depois, novo encontro revela o insucesso da ação de Dom Quixote.

Cheio de orgulho o cavaleiro, em meio ao conto, é interrompido pelo “muchacho”:

“[...] el fin del negocio sucedió muy al revés de lo que vuestra merced se imagina [...]

No sólo no me pagó [...] como [...] me volvió a atar a la mesma encina, y me dio de

nuevo tantos azotes [...] y, a cada azote que me daba, me decía un donaire y

chufeta acerca de hacer burla de vuestra merced”205, que declara frontalmente o

preço que pagou por sua interferência.

Dom Quixote sem refletir colocava rigorosamente em prática tudo o que

aprendera nos livros de cavalaria. Sem contar com a sensação de poder que tal

certeza lhe dava, fazendo-o dizer de si para si: Dom Quixote de La Mancha “hoy ha

desfecho el mayor tuerto y agravio que formó la sinrazón [...].206

204

Olhe, vossa mercê, senhor, o que diz [dizia o menino Andrés]; Basta que eu o ordene para que me tenha respeito [respondia Dom Quixote]; Porém, este meu amo [que se nega a pagar-me, explorando meu suor e trabalho, o que se pode esperar dele?, dizia Andrés; Não se preocupe, porque] sabei que eu sou o valente Dom Quixote de la Mancha, [respondia Dom Quixote]. (1, IV, p.31) 205

O fim do negócio aconteceu muito ao contrário do que vossa mercê imagina [...] Não só não me pagou [...] como voltou a amarrar no mesmo azevinho, e deu-me de novo tantos açoites [...] e, a cada açoite que me dava, me dizia uma graça e chiste sobre fazer burla de vossa mercê (1, XXXI, p.184) 206

Hoje desfez a maior injustiça e agravo que formou a desrazão (1, IV, p.32)

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Tanta pre-ocupação com as coisas do intramundano acabou levando ao

insucesso a sua tão desejada intervenção no “mayor tuerto y agravio que formó la

sinrazón”. Essa foi a primeira demonstração de falha em seu sistema de

conhecimento.

6 CUIDANDO DE CURAR

Tudo estava selecionado por Dom Quixote para a nova etapa da pro-cura.

Chamamos nova etapa porque, se quisermos ser mais precisos, já na leitura, o

fidalgo estava em processo de pro-cura. O motivo que o levou, não se sabe. É

possível que o estivesse consumindo o consumo exacerbado de tantas novelas de

cavalaria. Também, Alonso Quijano já dava sinais de desmedida. Afinal, “se pasaba

las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio”207 p. 37/38].

Apesar de tomar caminho diferenciado dos demais leitores – “los ratones de

biblioteca”, o fidalgo entra na obra querendo ser outro. E começa a pro-curar-se no

outro, no cavaleiro Dom Quixote. E mais, para não pecar por falta, estende esse

outro a outros mais, com eles pre-ocupando-se, numa proposta de solidariedade e

justiça. Mesmo tateando ainda, já está, de algum modo, no caminho, dispõe de todo

instrumental para pôr a engrenagem cavaleiresca medieval para funcionar.

Embora tivesse conhecimento adquirido pela via da ficção, todo o selecionado

está sustentado pelas coisas que Dom Quixote conhece e que, sendo do

conhecimento de todos, com tudo estão familiarizados. Entretanto, ainda assim, há

em Dom Quixote o incômodo da ansiedade. Não pára nunca, corre de lá pra cá, sua

207

Passavam as noites de claro em claro e os dias de sombra em sombra. (1, I, p.18)

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atenção está só voltada para a providência divina que lhe proverá com

oportunidades de fazer justiça. Acha que isso será possível com o acervo medieval

que traz consigo, crê num transcendente poder paralelo do qual necessita o homem

para suportar a vida, para agüentar conviver com a dor, com o medo, com a morte.

Constrói um mundo e, com essas convicções, por ele sai, com o conhecimento

aprendido debaixo do braço, e o propósito de reforçar no mundo a verdade de um

tempo que ainda crê possível.

6.1 TROCANDO A ESTRATÉGIA DIDÁTICA

Sai efetivamente pelo mundo Dom Quixote, e, naquilo que pensara ser fácil,

ele encontra dificuldades: vendo passar “unos mercaderes toledanos que iban a

comprar seda”, resolve, “por imitar en todo cuanto a él le parecía posible los pasos

que había leído en sus libros”, levantar a voz, exigindo que todos confessassem

“que no hay en el mundo todo doncella más hermosa que la emperatriz de la

Mancha, la sin par Dulcinea del Toboso”208.

Todos se negaram a confessar porque, se não a conheciam, impossível

semelhante confissão, precisavam vê-la primeiro, para só depois atestar. E

disseram: “señor Caballero, nosotros no conocemos quien sea esa buena señora

que decís; mostrádnosla”209.

Dom Quixote replica dizendo não haver vantagem num reconhecimento do

óbvio: “si os la mostrara [...] – ¿qué hiciérades vosotros en confesar una verdad tan 208

[Vendo passar] alguns mercadores de Toledo que iam comprar seda, [resolve,] para imitar em tudo que lhe parecia possível as passagens que havia lido em seus livros, [levantar (...) confessassem] que não há, no mundo todo, donzela mais bela que a imperatriz de la Mancha, a incomparável Dulcinea de Toboso (1, IV, p.32) 209

Senhor cavaleiro, nós não conhecemos esta boa senhora que dizeis. Mostrai-a-nos. (Ibidem)

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notoria?”. E segue: “La importancia está en que sin verla lo habéis de creer,

confesar, afirmar, jurar y defender”210.

O episódio termina de forma jocosa, quando os “mercaderes”, justificando-se

não poderem ser injustos com outras “emperatrices y reinas”, pedem a Dom Quixote

“que vuestra merced sea servido de mostrarnos algún retrato de esa señora”211.

Para eles não importa que a foto seja do tamanho de “un grano de trigo”, mas que,

para afirmar e confessar, o ver é fundamental.

Mais adiante, outro entrave no seu querer passar adiante, as verdades que

acreditava serem as únicas do mundo: a discussão, dessa vez, gira em torno do

equívoco de Dom Quixote. Ele se apropria de uma bacia de “el barbero” e afirma que

o equívoco é de “el barbero”: “vean vuestras Mercedes clara y manifiestamente el

error en que está este buen escudero, pues llama bacía a lo que fue, es y será

yelmo de Mambrino”212. E nessa polêmica entre “bacia” e “yelmo”, embora uma

brincadeira solucione o impasse optando-se por “baciyelmo”213, Dom Quixote sai do

episódio dizendo: “ponerme yo agora en cosa de tanta confusión a dar mi parecer,

será caer en juicio temerario”214.

Os sinais são contundentes, realizar o seu projeto não será tarefa fácil, Dom

Quixote percebe que seu discurso encontra aqui e ali barreiras com as quais não

contava. Mas não podia ser de outro modo, havia empirismos, nominalismos e

relativismos disputando, cada um, seu lugar de verdade. O diálogo que estava

usando emperrava, algo devia haver de errado.

210

Se eu a mostrasse a vós [...] o que farieis vós em confessar uma verdade notória? [E segue:] A importância está em que sem a ver terieis de crer, confesar, afirmar, jurar e defender (1, IV, p.32) 211

Que vossa mercê seja servido de mostrar-nos algum retrato dessa senhora (Ibidem) 212

Vejam vossas mercês clara e manifestamente o erro em que está este bom escudeiro, pois chama bacia o que foi, é e será elmo de Mambrino (1, XLIV, p.277) 213

“Bacielmo” 214

Meter-me eu agora em coisa de tanta confusão a dar minha opinião, será coisa de juízo temerário (1, XLV, p.278)

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O ponto marcante dessa percepção não obedece ao movimento linear da

obra. Digamos que Dom Quixote já o providenciara, por pura intuição, por obra da

providência, quem sabe. A providência já a tomara em sua segunda saída. É ela que

deixa na obra o registro fundamental do diálogo. Muitos estudiosos de Dom Quixote

consideram que a obra só começa, realmente, quando Sancho é convidado para

servir ao cavaleiro como escudeiro. Não por ser escudeiro, mas por dar, à obra, sua

marca essencial: o diálogo.

Ao munir-se de Sancho, Dom Quixote completa sua bagagem para fazer a

travessia. Percebe que o pro-curar-se não requer isolamento. Até então estivera

tentando colocar a máquina da cavalaria para funcionar, sem perceber que faltava a

linguagem, sem dar-se conta de que aqueles embates desconfortantes, onde outras

visões disputavam um lugar de verdade, era Cura anunciando-se já. Era Cura

verdadeiramente que, mesmo que Dom Quixote não tivesse consciência, já o

tomava com suas questões.

Para sair desse impasse, para desemperrar o que já sinalizava com o

emperrado, só o diálogo. Só o diálogo poderia mover as engrenagens necessárias

para a pro-cura da Cura.

6.1.1 Do aprendizado215 ao diálogo como aprendizagem216

A explicação para a febre da leitura de novelas de cavalaria pode estar na

disposição que dava o tom na compreensão do mundo. Um mundo cheio de dúvida

215

Aprendizado significa conhecimento aprendido como verdade absoluta, fixo e definido. 216

Aprendizagem significa conhecimento circular, possível a partir do diálogo, onde cada resposta se desdobra em novas perguntas. Na aprendizagem, nada é ensinado.

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e incerteza traça o perfil desse leitor; ele precisa de algo que lhe ofereça o mínimo

de sustentação. Afinal, de todo material que circula naquele território, apesar de sua

fragilidade, a verdade medieval-cristã é ainda o único referencial mais consistente de

que dispõem. Aliás, é essa disposição que move todo povo espanhol em direção à

leitura de novelas de cavalaria.

O modo como essa leitura vai afetar a cada um dos leitores é impossível

mapear. Imaginemos, portanto, como se processou somente em Dom Quixote: o

mito da caverna, colocado à disposição do cavaleiro foi, imediatamente reconhecido

por Heidegger como doutrina que traduzia o mito em verdade como adequação.

Foi com essa verdade que Dom Quixote sucumbiu à Paidéia e foi treinado

rigorosamente, segundo a metodologia platônica, fixada no mundo transcendente

das idéias. Usando a alma como veículo, o cavaleiro dali transpôs todo acervo de

conhecimento possível para o seu mundo.

O processo não fora tão difícil: fazer um ajuste do olhar para captar o

essencial com os olhos da alma racional, que desse acesso ao conhecimento certo e

seguro; separar o objeto do conhecimento de sua totalidade, num mar de incertezas,

isso era tudo do que precisavam todos, por isso foi possível realizar o que desejava

quase sem sofrimento.

Desse modo, transforma-se, o fidalgo, no ideal previsto pela república cristã:

hijo del entendimiento217. Esse é Dom Quixote, o filósofo, o homem que detém todo

o saber, um saber há muito estabelecido e compartilhado por todos.

O que era o conhecimento que a obra ressalta como o estabelecido e

compartilhado por todos?

O estabelecido e compartilhado é o viver nas amarras da ficção: Na Espanha

de Dom Quixote, todos liam: “con gusto”,218 os livros de cavalaria eram lidos “y

217

Filho do entendimento. (C.f. GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.108)

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celebrados de los grandes y de los chicos, de los pobres y de los ricos, de los

letrados e ignorantes, de los plebeyos y caballeros, finalmente, de todo género de

personas de cualquier estado y condición que sean”219. Todos liam, todos

compartilhavam o mundo da ficção. Pode parecer estranho, mas, encarnando o

cavaleiro, Dom Quixote era no máximo vítima do riso, mas era perfeitamente

conhecido, todos nutriam sentimento de afeto por ele. Todos aqueles referenciais

eram de algum modo familiares, afinal, todos liam, todos compartilhavam o mundo

da ficção.

Dom Quixote fora tragado pelo mundo da cavalaria e acreditava que, com o

conhecimento ali adquirido, poderia intervir em seu mundo tão incômodo e

inconsistente. Acreditando nisso, quem poderia demovê-lo de seu propósito?

É verdade que, neste Périplo, Dom Quixote, tendo nele ingressado, armado

do instrumental do homem do Renascimento, não assume o papel de perguntador.

Se sabia de tudo, se até de si mesmo sabia tão bem, para que perguntar?

Entretanto, querer saber de si, querer conhecer sua verdade __ anunciando: “Yo sé

quien soy” __ é pura contradição.

Essa afirmação vai, ao longo da obra, ganhando forma cada vez mais clara e

definida, ou melhor, vai se abrindo em variadas possibilidades. Neste Périplo, porém,

seu significado é o máximo da contradição, estratégia bastante comum à arte: na

razão inversa do propósito deste capítulo, razão esta que coincide com o querer do

herói, está “Yo sé quien soy”.

Se reconhecemos estar Dom Quixote, tendo assumido a persona de

cavaleiro, no grau máximo do seu impróprio, é contraditório que ele afirme, com

convicção, saber-se, e conhecer sua identidade própria. Esse foi o preço do exagero

218

Com apreciação. (1, L, p.304) 219

E celebrados pelos adultos e pelas crianças, pelos pobres e pelos ricos, pelos letrados e ignorantes, pelos plebeus e cavalheiros, finalmente, de todo gênero de pessoas de qualquer estado e condição que sejam (Ibidem)

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e da repetição da leitura de novelas de cavalaria – perda da identidade por imitação,

sem a consciência dessa perda. Entretanto, embora sem consciência, algo o

molesta de forma muito mais significativa.

O que o molestou, definitivamente, foi o perceber que, lendo aquelas novelas,

nos moldes das “más de cien hojas”220 escritas por “el canónigo”, essas sim, o

estavam ameaçando; o ameaçavam da perda da competência para questionar e,

conseqüentemente, para pensar. Com esse sentimento, Dom Quixote não consegue

conviver, e a providência é entrar na vida da cavalaria. É por isso que decide ser

cavaleiro.

É claro que não é esse o único motivo de decisão desse porte. Há ainda

aquela pergunta mal respondida e mal resolvida. “¿Habían de ser mentira?”221

A respeito do que, quer saber Dom Quixote a verdade, martelando repetidas

vezes em forma de pergunta às avessas: “¿Habían de ser mentira?”

Digamos que queira esclarecer sua situação assumida de cavaleiro-filósofo,

divulgador da verdade, num contexto onde sua escolha corre o risco de, sendo

avaliada como mentira, não dispor ele da sustentação necessária para pôr em

prática seu projeto. Digamos que esse impasse seja decorrente de outro – as

próprias novelas que lhe serviram de embasamento para ascender à categoria de

filósofo, essas também eram, do mesmo modo, ameaçadas, uma vez que o

escrutínio seguia ecoando na mente de todos: “sean condenados al fuego” 222.

Temos aqui uma tarefa hercúlea que Dom Quixote terá de realizar. Essa,

parece ser muito maior do que aquela em que acredita ser o “desfacedor de

220

Mais de cem folhas (1, XLVIII, p.295) 221

Haviam de ser mentira? (1, L, p.304) 222

Sejam condenados ao fogo (1, V, p.36)

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agravios, enderezador de tuertos”223 e promotor da justiça. Seria essa, a batalha

singular, do aviso que lhe dera um dia, um sábio?

Nada disso importa na verdade. Importa sim que, mesmo sem consciência,

Dom Quixote, conseguiu escapar do círculo vicioso que a todos tragava. Sua fuga

do tédio foi, pelo menos, diferente da dos demais de seu tempo que seguiram lendo

“de claro en claro, de turbio en turbio”,224 expressão que, por sua entonação ritmada,

sugere a repetição da decadência constante no circuito do tédio.

A pergunta insistente precisa encontrar via de resposta, mas Dom Quixote

não dispõe dos elementos necessários para tais esclarecimentos. E, do que ele não

sabe é que sua decisão o colocou, natural e espontaneamente, no caminho da

resposta. Resposta, mas que resposta? A resposta que responde à verdade da

obra, novelas de cavalaria, “impresos con licencia de los reyes”,225 mas,

contraditoriamente julgadas como mentira? Ou a resposta que responde à verdade

de si mesmo?

Começaríamos perguntando por que Dom Quixote estava perdendo sua

capacidade de questionar, quando, no ultimíssimo momento deu-se conta da grave

tragédia que estava por acontecer e tentou revertê-la, abandonando a leitura,

ingressando na vida.

Outro dilema enfrentado por Dom Quixote, assim que deu o salto

ultrapassando a linha divisória, foi o perceber a contradição da qual se tornara

vítima. Acabara de perceber o sério risco de perder a competência questionadora.

Entretanto, contraditoriamente, se propunha a lançar mão da mesma fórmula para

manutenção dos conhecimentos que obtivera em sua formação, de base platônica.

223

Desfazedor de agravos, consertador de injustiças (1, LII, p.312) 224

De claro em claro e os dias de sombra em sombra (1, I, p.18) 225

(1, L, p.304)

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Intrigado, põe-se Dom Quixote a pensar que o grande problema talvez

estivesse na didática usada para sua formação. Muito bem dito: formação. Uma

didática nos moldes da Paidéia só pode ter sido muito rígida, descartando qualquer

possibilidade de dúvida comprometedora do conteúdo ensinado. Daí, todo

conhecimento veiculado devia ser selecionado e transmitido nessa mesma medida:

na medida certa, de tal maneira certa que sequer permitisse a menor questão.

Com essa investigação, Dom Quixote se está aproximando da modalidade

didática chamada “aprendizado”, a mesma a que fora submetido em sua formação.

Como, fundamentalmente, funciona essa didática é questão só de

aproximação: funciona nos moldes da comunicação e da informação.

Desse modelo, ficam excluídos emissor e receptor, com suas singularidades.

Sua participação no circuito é meramente formal. Imbatível é o código, que ocupa o

lugar principal.

Impecavelmente fora planejado e montado o projeto formador de Dom

Quixote: sem folga que abrisse para identidades nem diferenças. Todo espaço do

“entre” era ocupado inteiramente pelo código – o conhecimento da cavalaria,

veiculado pelas novelas que por Espanha se alastravam.

Uma prova, não só de ser Dom Quixote porta voz do conhecimento medieval-

cristão veiculado nos moldes da cavalaria, como também da rigidez fixa desse

conhecimento, está no capítulo XVII da 2a parte, quando Dom Diego de Miranda,

elogiando Dom Quixote, lhe diz “que si las ordenanzas y leyes de la caballería

andante se perdiesen, se hallarían en el pecho de vuesa merced como su mismo

depósito y archivo”226.

226

Se as ordenações e leis da cavalaria andante se perdessem, achar-se-iam no peito de vossa mercê como seu próprio depósito e arquivo (2, XVII, p.411)

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Esse conhecimento, em forma de placa de computador, está incrustado no

peito de Dom Quixote e dali, nos mesmos moldes da comunicação e da informação,

cumpre seu desígnio: ocupa todo espaço, preenche o “entre” totalmente. Sem

espaço não há renovação possível, e a objetividade se torna lei – as leis da

cavalaria depositadas no peito-arquivo de Dom Quixote.

No entanto, até dar-se conta da “esparrela” didática do aprendizado, o

cavaleiro muito a exercitou. Inicialmente, Dom Quixote impõe o seu discurso, sem

que nele transpareça sinal de individualidade.

Selecionamos algumas situações em progressão crescente da flexibilidade

dialógica de Dom Quixote que estarão disponíveis no item seguinte. Antes,

entretanto, apresentaremos pequeno resumo dos diferentes modos como está

caracterizado o processo dialógico.

No diálogo com o outro, o entre está para além do código e as singularidades

do eu e tu, fazendo-se presentes, acionam fala e escuta. Esse é o diálogo

propriamente dito.

Eu e tu movimentam-se em distintos graus de proximidade e distância, de

acordo com a identidade e a diferença.

É preciso muita atenção ao “tu”. Quando o diálogo é com o outro, o tu – que é

o outro – é somente o marcador daquilo que eu não sou, portanto, de uma diferença

negativa. No diálogo com o outro se produz fala e escuta. Assim, tu e eu, eu e tu se

revesam em igualdade e diferença, em proximidade e distância, diferença e distância

que serão sempre maiores, por tratar-se do “outro”.

No autodiálogo, a auto-escuta é inevitável. Eu e tu dialogam numa

proximidade bem maior do que a do diálogo com o outro. Isso porque nada é mais

próximo de nós do que nós mesmos. Por isso, só o autodiálogo pode alimentar-nos.

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Mas como se dá essa auto-alimentação? Ela acontece no “entre”; no

autodiálogo; a diferença é positiva e negativa: ao mesmo tempo é e não-é. Fala e

escuta, identidade e diferença, proximidade e distância são internas, estão tão

próximas por isso, estão tão próximas do que eu sou, que são o que eu sou. São o

que em mim há de originário.

Desse modo, poderíamos afirmar que esse __ o autodiálogo __ é o melhor, já

que o diálogo com-o-outro não toca o originário.

Caso afirmássemos, estaríamos equivocados. Isso é um alerta. Isso quer

dizer que o autodiálogo é uma estação intermediária do diálogo com-o-outro como

modo de plenificá-lo: “a proximidade do outro, se for proximidade, alimenta a minha

própria proximidade”.227

A cada vez que dialogamos com o outro, corremos o risco da superposição do

eu do outro em nosso tu de interlocutor. E isso muito acontece. O verdadeiro diálogo

com-o-outro, entretanto, é aquele que não permite essa apropriação. Para tal, outra

é a dinâmica: no diálogo com-o-outro, havendo real proximidade e identidade, essa

proximidade-identificatória deve percorrer um caminho mais longo. Ao ser recebida

pelo tu, deve transitar no auto-espaço do tu-interlocutor, fazendo-se primeiro

autodiálogo no “entre” o que é e o que não-é, acionando a escuta originária bem de

pertinho, para que, só depois se mostre como proximidade com-o-outro.

Inicialmente, Dom Quixote, com a responsabilidade de perpetuar o

conhecimento que atendia aos interesses de “la república cristiana”, sai pelos

caminhos impondo seu discurso sem nenhuma flexibilidade. Sequer permitindo ao

outro o diálogo. Ainda que ao interlocutar deva ser dada a oportunidade de

expressar-se, ele o ignora, fazendo sempre prevalecer a sua verdade.

227

CASTRO, M. A. de. A configuração da obra como diálogo e escuta. Disponível em: <http://www.travessiapoetica.blogspot.com>. Acesso em: 25 jul 2007.

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Ao longo da obra, entretanto, vão se desenrolando situações cada vez mais

próximas do cavaleiro, situações cujos significados iniciais evoluem da significação

ao sentido. Apesar da “insistência” de Dom Quixote em manter-se na didática do

aprendizado, onde só um fala sem permitir que se interponha nenhuma oposição,

sem permitir, conseqüentemente, que se instaure o diálogo, porque, sem oposição,

não há diálogo, quanto mais é tocado por experiências radicais que lhe exigem

reflexão, obrigando-o a ceder ao assédio do ser, talvez, quanto mais a solidão o

ronda, mais o cavaleiro é obrigado a fazer o jogo da proximidade, vai substituindo a

rigidez pela flexibilidade; flexibilidade absolutamente necessária, isso Dom Quixote

vai percebendo, à medida que sente ser ele o que mais perde com a rigidez. E perde

porque, sem permitir a proximidade do outro, impede que se alimente a sua própria

proximidade, impedindo assim que, de tão próximo de si mesmo, seja tocado pelo

originário próprio, e o escute.

Foi esse o processo que quase o pusera a perder definitivamente. De tanto

ter se submetido a diálogos desse nível, foi assim que, vítima do aprendizado vazio

de diálogo, acabou sendo tragado pelo outro, por aquele que não dava nenhuma

folga para que se articulasse o jogo da proximidade e, por isso, de fidalgo, acabou

virando cavaleiro.

É possível que Dom Quixote tenha resquícios de lembrança do como isso

nele se processou. Talvez essa seja uma boa explicação, uma dentre outras para

justificar as mudanças que se operavam em Dom Quixote com respeito ao modo de

dialogar.

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6.1.1.1 Diálogos em cadeia __ a coragem da renúncia

“Hombre de entendimiento”, esse é Dom Quixote. Sancho o admirava porque

tinha de tudo o saber, era um verdadeiro demônio.

Precisaria desaprender todo o aprendido? Talvez precisasse; o incômodo, ele

mesmo o sentia. Estava encharcado de um aprendizado que já lhe pesava.

Carregava tanto conhecimento e, em alguns momentos lhe ocorria não ter nenhum

do qual pudesse dispor numa situação presente em que só o momentâneo poderia

dar conta.

Para Dom Quixote tudo começa a ficar claro: por mais que seu peito seja um

arquivo onde estão registrados todos os conhecimentos, desarquivá-los não é tarefa

simples, é preciso esforço para revolver e dali retirar o mais adequado. Sem contar

com a constatação, depois do muito esforço, de que o considerado mais adequado

não atendia a uma situação nova que se estava mostrando. Começa então a ceder.

De fato, de tão cheio, nada mais cabia. Era urgente renunciar, Cura só é possível

com renúncia.

Renunciar, depois de tanto trabalho? Só Deus sabe os mecanismos

complicados a que teve de submeter sua mente racional, com o propósito de

acumular tanto conhecimento. E o medo que sentia. Não sabia com a mesma

certeza de Emanuel Carneiro Leão, mas desconfiava de que “todo questionamento

exige transformação [...] crescer dói na alma e transformar-se traz consigo um

sofrimento essencial”228.

Vejamos se Dom Quixote vai ou não aceitar o desafio da renúncia.

228

LEÃO, E. C. Heidegger e a ética. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.157, p.73, abr-jun, 2004

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1o DIÁLOGO:

Dom Quixote faz uma pregação sobre o amor do ponto de vista do código de

cavalaria. O tema é a igualdade entre todos os homens: “se puede decir lo mesmo

que del amor se dice: que todas las cosas iguala”229. Com isso quer que todos

comam juntos, com o intuito de exercitar e comprovar a sua teoria da igualdade.

Depois de todas as justificativas de Dom Quixote, Sancho reage em oposição

ao ponto de vista de seu amo, e expõe o seu: que acredita ser melhor comer

sozinho justificando de várias maneiras: “tan bien y mejor me lo comería en pie y a

mis solas como sentado a par de un emperador. Y aun, si va a decir verdad, mucho

mejor me sabe lo que como en mi rincón, sin melindres ni respetos, aunque sea pan

y cebolla”. Sancho prefere a solidão porque não precisa “mascar despacio, beber

poco, limpiarme a menudo, no estornudar ni toser […] ni hacer otras cosas que la

soledad y la libertad traen consigo”. Por isso, finaliza suas razões e encerra dizendo

que tudo aquilo que lhe ofereceu Dom Quixote, ele “las renuncio para desde aquí al

fin del mundo” 230.

Ainda assim, com a justificativa de Sancho, Dom Quixote a ignora; exerce

sobre ele seu poder autoritário, dispondo do que lhe parece correto, e assim reage:

“Con todo eso, te has de sentar, porque a quien se humilla, Dios le ensalza […] Y,

asiéndole por el brazo, le forzó a que junto dél se sentase” 231.

2o DIÁLOGO:

229

Pode-se dizer o mesmo que do amor se diz: que a todas as coisas iguala (1, XI, p.59) 230

Tão bem e melhor comeria em pé e sozinho quanto sentado ao lado de um imperador. E ainda, para dizer a verdade, muito melhor aprecio o que como em meu canto, sem melindres nem respeitos, mesmo que seja pão com cebola [Sancho...] mastigar devagar, beber pouco, limpar com frequência, não espirrar nem tossir […] nem fazer outras coisas que a solidão es a liberdade trazem consigo [Por isso...] renuncio a elas daqui para o fim do mundo (Ibidem) 231

Com tudo isso, deverás sentar, porque a quem se humilha, Deus elogia […] E, agarrando-o pelo braço, forçou-lhe que junto dele se sentasse (1, XI, p.60)

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De fato, há uma grande recorrência na cobrança de Dom Quixote de que se

reconheça que Dulcinea é a mais bela dama e que os seus inimigos derrotados

sigam para Toboso para prestar homenagem a ela.

No capítulo VIII, sua exigência de prestar reverência a Dulcinea obriga que

um cortejo mude o seu percurso: “que volváis al Toboso, y que de mi parte os

presentéis ante esta señora y le digáis lo que por vuestra libertad he fecho”232.

Seu radicalismo é tal que acaba lhe valendo um desafio para uma luta, por

parte “del vizcaíno” que por ali passava e ficara indignado com a prepotência do

cavaleiro. Dom Quixote aceita a peleja e “y arrojando la lanza en el suelo, sacó su

espada y embrazó su rodela, y arremetió al vizcaíno con determinación de quitarle la

vida”233.

A tarefa de porta-voz da verdade, Dom Quixote de tal modo a acolhe que

chega ao extremo da luta física, com ameaça de morte, caso não seja acatada.

3o DIÁLOGO:

Um de “los cabreros”, vendo a orelha ferida de Dom Quixote, “le dijo que [...]

él pondría remedio con que fácilmente se sanase”234.

Dom Quixote muito confiava no bálsamo de Fierabrás, não tendo admitido

jamais que essa fórmula herdada da cavalaria pudesse falhar.

Mesmo depois da desastrosa experiência em que a beberagem complicada

no “fazer”, seguindo os mesmos passos do processo científico, lhe causou os

seguintes danos: “comenzó a vomitar de manera que no le quedó cosa en el

estómago”. Sentiu “ansias [...] del vómito”, “le dio un sudor copiosísimo” e “quedóse

232

Voltai a Toboso, e que de minha parte vos apresenteis diante desta senhora e lhe digais o que por vossa liberdade fiz (1, VIII, p.50) 233

E atirando a lança no chão, puxou a espada e segurou seu escudo, e avançou sobre o biscainho com determinação de tirar-lhe a vida (Ibidem) 234

Disse-lhe que [...] ele poria remédio com o qual facilmente sararia (1, XI, p.63)

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dormido más de tres horas”235; mesmo tendo sido as conseqüências as mesmas em

Sancho, ainda assim, dando todas as justificativas necessárias que assegurassem

sua validade, Dom Quixote firmou “la seguridad y confianza que llevaba en su

bálsamo”236, ainda assim tinha o famoso bálsamo como insubstituível.

Um dia, porém, com a orelha ferida e sem dispor do remédio oficial da

cavalaria, um homem simples, um “cabrero” sem o preparo de Dom Quixote, tem

uma receita perfeita e eficaz: “y tomando algunas hojas de romero, de mucho que

por allí había, las mascó y las mezcló con un poco de sal, y, aplicándoselas a la

oreja, se la vendó muy bien, asegurándose que no había menester otra medicina; y

así fue la verdad”237.

Em quatro linhas, muito é trazido para a zona de respostas.

Embora Dom Quixote tivesse o remédio para curar suas feridas, é no

cotidiano que outras possibilidades podem se mostrar plausíveis.

Uma delas é que a verdade é o que se mostra e não o que num dado

momento ficara comprovado como “claro e distinto”, assegurando seu lugar de única

eterna e universal verdade: o ser se dá na espontaneidade do mundo que já existe.

O cuidado da folha de “romero” ser encontrada com fartura __ “de mucho que por allí

había”238 __ mostra também que o bálsamo de Fierrabras não é o único, que as

possibilidades são infinitas, a cada passo as coisas pulsam em mistério para serem

revisitadas.

Com isso, põem-se por terra os esquemas sofisticados para dar realidade às

coisas. Não é preciso abstrações que lancem mão do mundo das idéias ou

235

Começou a vomitar de maneira que não lhe ficou nada no estômago [Sentiu] ânsias de vômito, deu-lhe um suor copiosíssimo [e] ficou adormecido mais de três horas (1, XVII, p.89) 236

A segurança e confiança que tinha no bálsamo (1, XVII, p.90) 237

E pegando algumas folhas de alecrim, do muito que por ali havia, as masticou e as misturou com um pouco sal, e aplicando-as à orelha, cobriu-a muito bem, assegurando-se que não havia necessidade de outra medicina; e assim foi a verdade. (1, XI, p.63) 238

De muito que por ali havia (Ibidem)

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arranquem da mente racional abstrações que logo que descobertas serão

arquivadas para novas necessidades de uso.

4o DIÁLOGO:

Pedro, “un cabrero”, rapaz sem estudos, mas cheio de conhecimento, sabia

toda história que naquele momento aguçava a curiosidade de todos.

E, pela curiosidade, característica de todos os que pela obra circulam,

naquele exato momento, seu conhecimento assumia lugar superior ao de Dom

Quixote. Era tudo o que o cavaleiro precisava e mais queria – saber com detalhes a

história de Grisóstomo, o rico pastor que se deixara morrer por amor. Sente-se essa

submissão quando “don Quijote rogó a Pedro le dijese qué muerto era aquél y qué

pastora era aquélla”239, referindo-se ao casal Marcela e Grisóstomo.

Apesar desse quadro, Dom Quixote não se abstém da sua condição de

filósofo. Sem desarmar-se entra no diálogo como senhor absoluto, o dotado de todo

conhecimento. E, a cada equívoco pronunciado por Pedro, se vê obrigado a corrigi-

lo: “Eclipse se llama, amigo, que no cris, el escurecerse esos dos luminares mayores

– dijo don Quijote”240. Ou, em outro momento, quando Pedro explicava a

interferência de Grisóstomo, orientando os melhores períodos para o cultivo do trigo,

da cevada ou do grão de bico, que isso era o mais importante da história, Dom

Quixote não perde a oportunidade de dar uma informação desnecessária ao seu

andamento, mas, para ele, primordial no cumprimento ético de seu “dever ser”.

Quis resumir tudo o que Pedro acabara de explicar, num só conceito:

“Astrologia”. “Esa ciencia se llama Astrología”241. Até aí, Dom Quixote não está

239

Dom Quixote rogou a Pedro que lhe dissesse que morto era aquele e que pastora era aquela (1, XII, p.64) 240

Eclipse se chama, amigo, que não cris*, o escurecimento dessos dois luminares maiores – disse Dom Quixote (Ibidem) __ *uma forma errada de falar “eclipse” (ex: “vi um clips da lua”). 241

Essa ciência chama-se Astrologia (Ibidem)

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acessível ao diálogo. Embora na aparência estejam conversando duas pessoas, não

é isso o que o caracteriza, no entanto.

Até que, a menção do termo “sarna” significando, no contexto, algo que tem

longa duração de vida, faz Dom Quixote interferir mais uma vez: “Decid Sarra –

replicó don Quijote, no pudiendo sufrir el trocar de los vocablos del cabrero”. “No

habréis oído semejante cosa en todos los días de vuestra vida, aunque viváis más

años que sarna.”242 Nesse momento, Pedro, já irritado, lhe responde: “y si es, señor,

que me habéis de andar zaheriendo a cada paso los vocablos, no acabaremos en un

año.”243 Com pedido de perdão: “Perdonad, amigo” e com tanta delicadeza embutida

no “amigo”, “__ dijo don Quijote __ ; que por haber tanta diferencia de sarna a Sarra

os lo dije; pero vos respondisteis muy bien, porque vive más sarna que Sarra”244.

Não satisfeito com o pedido amistoso de perdão, Dom Quixote se expõe ao

limite máximo, quando renuncia à sua verdade para acatar a de Pedro: “vive más

sarna que Sarra”. E, como um último pedido de paz, diz: “proseguid vuestra historia,

que no os replicaré más en nada”245.

5o DIÁLOGO:

No mesmo capítulo em que remata a situação de maneira violenta sobre

Sancho sentar ou não à mesa para comerem juntos, quando estão com os cabreiros,

do mesmo modo, logo a seguir, Sancho exerce seu poder sobre Dom Quixote e este

assente.

242

Dizei Sara – replicou Dom Quixote, não podendo suportar a troca dos vocábulos do cabreiro (...) Não havereis ouvido semelhante coisa em todos os dias de vossa vida, ainda que vivais mais anos que sarna (1, XII, p.65) 243

E se é, senhor, que me haveis de andar censurando a cada passo os vocábulos, não acabaremos em um ano (Ibidem) 244

Perdoai-me, amigo [e com (...) “amigo”] disse Dom Quixote – que por não haver tanta diferença de sarna a Sara vós o dissestes; mas me respondestes muito bem, porque vive mais sarna que Sara (Ibidem) 245

Prossegui vossa história que não replicarei mais em nada (Ibidem)

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O encontro de Dom Quixote com “los cabreros” termina amistosamente com

música: “bien podrás hacernos placer de cantar un poco”246, incentivou o

companheiro, e Antonio: “sin hacerse más de rogar [...] y templando su rabel [...]

comenzó a cantar”247. E assim, entraram pela noite, até que, diante da finalização do

músico, Dom Quixote rogou-lhe que cantasse mais; “no lo consintió Sancho Panza,

porque estaba más para dormir que para oír canciones”248. E por isso, assim, dando

ordens:

Bien puede vuestra merced acomodarse desde luego adonde ha de posar esta noche, que el trabajo que estos buenos hombres tienen todo día no permite que pasen las noches cantando [...].249

A tudo isso, recebeu Sancho a surpreendente resposta de Dom Quixote: “ya

te entiendo”; “no lo niego” 250 e desvia o assunto.

A sabedoria prática de Sancho supera, nessa situação, o conhecimento de

Dom Quixote que, a seu amo, acaba sucumbindo. Aqui é Sancho quem tem a última

palavra.

Muitos são os exemplos em que esse processo dialógico se mostra, talvez

nem tenhamos selecionado os melhores. O cuidado que tivemos foi o de, tomando

como referência o par dialógico Quixote-Sancho, começarmos e finalizarmos com a

radicalidade que caracteriza o primeiro e o último: Dom Quixote se impondo com a

última palavra e Sancho atuando igualmente no outro extremo. Entretanto

finalizaremos com menção a uma constatação já definida e nomeada no espaço dos

estudos cervantinos. Nos referimos ao par fartamente conhecido como

246

Bem poderás fazer-nos o prazer de cantar um pouco (1, XI, p.61) 247

Sem se fazer rogar [...] e afinando sua rabeca [...] começou a cantar (1, XI, p.61-62) 248

Não o permitiu Sancho Panza, porque estava mais para dormir que para ouvir canções (1, XI, p.63) 249

Bem pode vossa mercê acomodar-se logo onde deve repousar esta noite, que o trabalho que estes bons homens têm todo dia não permite que passem as noites cantando (Ibidem) 250

Já te entendo, não o nego (Ibidem)

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“sanchificação de Dom Quixote” e “quixotização de Sancho”. O chegar a assumir

essa dimensão é a prova de que a rigidez cede espaço à flexibilidade na relação

dialógica que Dom Quixote estabelece com o mundo.

6.1.1.2 Enfim, uma aprendizagem

A partir do processo que se evidenciou nos exemplos acima, é possível ver

quanto da diferença do outro pôde, primeiramente, mostrar a Dom Quixote que,

mesmo sendo a distância “entre” um e outro maior, ela é necessária, pois exige que

a proximidade seja resgatada em si próprio, no autodiálogo. Resgatada assim a

proximidade de “nós” mesmos, essa mesma proximidade reverterá em prol do outro.

Em segundo lugar, a experiência dos diálogos também deixou claro que o diálogo é

o próprio “entre”, e que o outro pode acionar o movimento para que em nós ressoe,

naquele espaço que é o espaço do que não-somos, algo que, ultrapassando os

limites do que eu sou, se mostra como possibilidade. Com isso, juntos e muito bem

conjugados e sintonizados, o diálogo com-o-outro mais o autodiálogo são, na

verdade, a grande mostra de ser o homem pura possibilidade. Desse modo, é

possível concluir ter em Dom Quixote o aprendizado cedido lugar à aprendizagem.

6.1.1.3 Errância não reprova

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Quanta novidade! Dom Quixote só podia entrar em conflito com tantas

avaliações, comentários e descobertas. Pois se sempre acreditara em seu saber

acumulado __ saber que lhe conferia todos os poderes necessários à sua ação no

viver, garantindo-lhe a confiança e firmeza em cada passo no solo da terra __; se

sempre soubera e em tudo confiara; como agora, de um momento para outro,

inesperadamente, vêm, não se sabe de onde, colocar dúvidas em sua cabeça?

O Renascimento garantiu-lhe, passado o impacto da descentralização divina,

a soberania do centro; deu-lhe tanta confiança em seu poder, a ponto de acreditar,

de si, tudo saber: “yo sé quien soy”. E Nietzsche lhe revela agora que sequer de seu

intestino e de sua circulação o homem sabe!.251 E diz-lhe ainda mais: que além

desse não-saber, o homem vaga pelo mundo, a isso, completamente indiferente.

Seria possível a verdade que lhe caía em cima; poderia haver algum não-

saber que Dom Quixote não soubesse? Mesmo transtornado pela dúvida, Dom

Quixote reluta, e insiste. Bem poderia aproveitá-la para dar uma guinada

considerável em seu modo de ser; mas prefere inscrever-se num modo de ser mais

confortável – alista-se na linha de frente da “errância”. Abramos um parêntese para

explicar o cuidado que exige o tratar o conceito de errância. É um equívoco acreditar

no confortável da errância. Heidegger já o tinha liberado, mas todos ainda o

confundiam com erro que deve ser evitado. Por isso, ainda confuso, Dom Quixote

quer saber como evitar o erro __ se ainda não sabia, nunca chegaria a saber tudo. A

abertura que se instituiu como essência da verdade só é possível graças ao

exercício, por parte do ser, de sua própria anti-essência: a errância. É errando, no

sentido de um lançar-se errante, rumo ao desconhecido, que se atinge a abertura do

251

C.f. NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a verdade no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979, p.53-60 (Coleção Os pensadores).

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mundo, ou da verdade, ou o sentido do ser em seu ser mais próprio; é o que lhe

responderia Heidegger.

E tudo recomeça: o ser insiste; Dom Quixote reluta; e, nesse relutar,

sobressai-se um relutar a que Heidegger dá o nome de dissimulação. Belo

dissimulador se torna Dom Quixote!

Era de se esperar que não pudesse acatar tão facilmente verdades que nem

ele mesmo sabia se nelas poderia confiar. Precisava insistir e perguntar. Nessa

dinâmica de pergunta-resposta, de ser e não-ser, de saber e não-saber, entravam

aquelas oposições com as quais se defrontara, assim que lhe foram apresentadas

as categorias da modernidade.

Considerando a “agitação inquieta”252 de que nos fala Heidegger, em Sobre a

essência da verdade, gostaríamos de abrir espaço de reflexão para algumas cenas

do romance, que parecem transitar nesse âmbito.

Heidegger alerta para a tendência simultânea da pre-sença de dirigir-se ao

que é corrente e desonerar-se de sua ek-sistência,253 afastando-se do mistério.

Esta maneira de se voltar e se afastar resulta, no fundo, da agitação inquieta que é característica do ser-aí. Este vaivém do homem, no qual ele se afasta do mistério e se dirige para a realidade corrente, corre de um objeto da vida cotidiana para outro, desviando-se do mistério, é o errar.254

Reapresentamos um mesmo fragmento do início do texto, por considerá-lo

perfeitamente ajustado a esse novo contexto. A história de Dom Quixote, por sua

marca característica – a andante cavalaria, guarda similaridade com a errância. Com

a cavalaria andante contribuem, para o deslocar espacial, não só as quatro patas de

um cavalo, como os dois pés do cavaleiro, o que reforça essa perspectiva. Sem

252

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas Cidades.1970, 42p. 253

Lembramos que “ek” significa o “lançar-se em direção ao ser”. Só nesse lançar-se, o homem existe. 254

HEIDEGGER, loc. cit.

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contar com a mudança radical que se processa no romance: a saída de um estado

de repouso em que vivia um fidalgo – “los ratos que estaba ocioso, que eran los más

del año”255, para um movimento dinâmico: a opção de abandonar a leitura silenciosa

estática, e “irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y

a ejercitarse en todo aquello”256. Tudo sugere uma “agitação inquieta”, um “vaivém”,

típicos da errância.

Se Dom Quixote __ não apenas pela semelhança estrutural do errar __ erra, in-

sistindo, desde as primeiras páginas, em se manter vítima da dissimulação do ente

em sua totalidade, e, por isso, ficando preso ao ente particular: o cavaleiro, essa

mesma errância poderá abrir-lhe a totalidade. Se existir é errar, quer lançar-se mais

errante do que a ousadia de Dom Quixote, um lançar-se sem saber aonde vai dar?

A errância de Dom Quixote é marcante e evidente. Sua própria condição de

filósofo a impõe. Por não ter sido aprendiz de uma didática aberta ao “seriado

questionante”, Dom Quixote a desconhece e também não sabe como reativá-la.

Reativá-la, porque esta já estivera na Antigüidade do Ocidente; mas agora está

quase esquecida.

A travessia de Dom Quixote é errante. Desde sua primeira saída sorrateira e

silenciosa pelo portão dos fundos do curral, até a derrota para o cavaleiro de “La

Blanca Luna” que o obriga a retornar à casa para finalmente morrer, ele in-siste no

ser ente-cavaleiro, um ente particular que in-siste experimentar a vida cavaleiresca,

afastado do mistério das coisas, dirigindo-se “para a realidade corrente”, correndo

“de um objeto da vida cotidiana para outro”257.

Quando Heidegger apresenta uma modesta lista de modos de errar, ficamos

tentados a localizá-los na vida de Dom Quixote. Há uma gama imensa de erros,

255

Os momentos que ficava ocioso, que eram os mais do ano. (1, I, p.18) 256

Ir-se pelo mundo com suas armas e cavalo a procurar aventuras e a praticar tudo aquilo. (1, I, p.19) 257

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades.1970, p.42

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desde o engano mais comum, a inadvertência, o erro de cálculo até o mais radical:

“o perder-se de nossas atitudes e nossas decisões essenciais”258. É possível que um

rastreamento criterioso tornasse viável a tentação, mas por ora deixemos assim.

O homem erra porque, no desvelamento do ente particular, ele esquece que o

ente total (velado) é um dissimulador. Então esquece e se engana sempre uma vez

mais. Entretanto, Heidegger também afirma ser a marcha errante, “componente

essencial da abertura do ser-aí”259. Isso significa que, estando na errância, o homem

está desgarrado, único modo possível de livrar-se do desgarramento, ou melhor, de

não se deixar levar pelo desgarramento. Quando Dom Quixote, no último capítulo

confessa: “vámonos poco a poco, pues ya en los nidos de antaño no hay pájaros

hogaño: yo fui loco, y ya soy cuerdo; fui don Quijote de la Mancha, y soy agora,

como he dicho, Alonso Quijano el Bueno”260, e compara seu estado no passado com

o atual, vê-se, nesses pares, que a integração se restabelece. Dom Quixote prova,

com isso, não ter sucumbido, porque o homem não sucumbe no desgarramento se é

capaz de provar a errância enquanto tal e não desconhecer o mistério do ser-aí261.

Não foi simples, gratuito, nem sem esforço o escapar do desgarramento.

Espontâneo foi, porque, ao colocar seu projeto na vida, mesmo não sendo esse o

seu plano, mesmo oferecendo resistência ao seu mundo real, Dom Quixote, também

“por no poder menos”, paulatinamente, acaba cedendo, acaba maleável à nova e

necessária didática da aprendizagem. Isso acontece, do mesmo modo que também

previra Heidegger, quando, no início deste capítulo, conjugamos os dois níveis de

significação de “passos”.

258

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades.1970, p.43 259

Ibidem, p.43-44 260

Vamo-nos pouco a pouco, pois já nos ninhos de antes não há pássaros agora: eu fui louco, e já sou sensato; fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano o Bom (2, LXXIV, p.699) 261

C.f. HEIDEGGER, op.cit., p.44

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Do mesmo modo que a euforia motivadora “da agitação inquieta” e do

“vaivém” contribuíram para o desgarramento de Dom Quixote, levando-o a, de luta

em luta, correr de lá pra cá, nos caminhos de la Mancha, procurando topar, com os

olhos ávidos, com um “tuerto y agravio”; do mesmo modo que, vendo-os iguaizinhos,

dentro dos moldes da cavalaria, procura torná-los realidade, para sobre eles lançar-

se com ímpeto de cavaleiro, atividade que, se não lhe dava descanso, por outro

lado, também o afastava do mistério; desse mesmo modo, os mesmos “passos”,

vistos sob outra perspectiva __ “a saída derradeira do último passo de uma longa

seqüência de passos questionantes”262__, foram os que permitiram que Dom Quixote

não sucumbisse à errância. Isso porque, “pelo desgarramento a errância contribui

também para fazer nascer essa possibilidade que o homem pode tirar da ek-

sistência e que consiste em não se deixar levar pelo desgarramento”263.

Desse modo, finalmente, Dom Quixote provou que o homem não sucumbe no

desgarramento se é capaz de provar a errância enquanto tal e não desconhecer o

mistério do ser-aí264.

6.1.2 A decadência de Dom Quixote

No estar à pro-cura da Cura, nem tudo são flores, e a fragilidade humana

acaba sucumbindo sempre que algo diferente, anunciando novos ares, ameaça

262

HEIDEGGER, Martin. O originário da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva, parágrafo 158 (mimeo). 263

Idem. Sobre a essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades.1970, p.44 264

C.f. Idem. Ibidem.

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apresentar-se. Heidegger bem sabia, e já o vaticinara: “A pre-sença, de início e na

maioria das vezes, é um ser decaído”265.

Estamos falando dos integrantes da Cura que, embora pareçam atuar contra,

dela são partícipes.

Na corrida em direção à Cura, “na maior parte das vezes”, a pre-sença

esquecida do ser, deixa-o escapar. Esse deixar escapar o ser coincide

irremediavelmente com algum tipo de decadência.

No caso de Dom Quixote, o que para muitos de nós é a derrocada do

cavaleiro, precisa ser reinterpretado sob o olhar de Heidegger: quanto mais Dom

Quixote decai, mais se liberta do impróprio; mais suas certezas se desvanecem. É aí

então que, apesar do sofrimento que lhe custou dias na cama, essa experiência

radical é esvaziamento e é a maior grandeza do homem.

6.1.2.1 Silêncio, nesse falatório não há Cura que resista

Esclareçamos: não se trata de ler falatório de modo pejorativo. Heidegger o

considera positivo por ser um modo-de-ser onde a compreensão e a interpretação

cotidianas se dão. Trata-se da linguagem como pronunciamento que já teve um nível

de compreensão e interpretação da pre-sença.

Isso não significa, no entanto, que o pronunciamento esteja no nível da mera

instrumentalidade ou do “simplesmente dado”, porque ele já contém em si o modo

de ser da pre-sença, mas essa compreensão, embora tenha se dado na abertura de

modo originário, numa abertura de mundo que se abre em dado momento, ela é

265

Idem. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. Parte 1, § 41, p.237 (original,11.ed., p.176).

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compreensão da co-pre-sença dos outros, é compreensão do próprio ser-em; refere-

se ao já pronunciado, ao já descoberto e estabelecido, ao já herdado.

Constatar isso como um fato é muito menos importante do que compreender

o modo de ser do discurso cotidiano da pre-sença. O ser do discurso cotidiano é

puramente comunicação. Nesse modo-de-ser da comunicação, ontologicamente só

se alcança o ser que já desde sempre se abriu para o referencial discursado.

Emissor e receptor, dele participam igualmente, numa compreeensibilidade só

mediana.

Porque se articula em pronunciamentos, o discurso é comunicado de modo a

ser compreendido plenamente, sem que se chegue a compreender do que ele trata.

O que fica é muito mais o que já se está cansado de ouvir no falatório, a respeito e

sobre o ente, da coisa mesmo de que se está falando. Esta é compreendida só por

alto. Pode-se pensar que estão falando da mesma coisa, mas, na verdade, não

estão. Isso porque tanto emissor, como ouvinte não chegam a ter em mente o ente

referencial e sim o que, de comum, ficou compreendido na medianidade.

Dessa maneira não há jamais uma re-ferência original com o ente referencial.

Fala-se uma fala comum, ocupa-se do falar como algo exigido pela convivência. O

que importa não é a experiência primordial com o ente, mas a autenticidade e

objetividade do discurso, sem que se faça sentir a apropriação originária desse ente,

por parte do que fala nem do que ouve. Falar, falar, ouvir, ouvir, repetir, repetir e

passar adiante é a lei.

No falatório se sente a subjetividade alcançando os mais altos níveis.O que

se diz não exige comprensões profundas, “as coisas são assim como são, porque

delas se fala assim”266. Nada do que se diz no falatório tem solidez. E não há chance

de que a tenha, pois seria seu fracasso. Nem solidez nem autenticidade, o falatório

266

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 228.

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transita por uma compreensibilidade indiferente só para, nessa indiferença, poder

abarcar tudo, nada deixando de fora. Sem uma compreensão autêntica maior se

torna a abertura para que o nada seja tudo.

Mas o grande perigo identificado por Heidegger no falatório está no

fechamento irreversível que este representa. De tanto serem repetidos, sem

compreensão primordial, os entes ficam à mercê do apagamento, e o que era

abertura se converte em “fechadura”.

Do ente do falatório nada mais precisa ser descoberto, porque ele se

encarrega de destruir irremediavelmente qualquer possibilidade de re-ferência, de

retorno ao fundamento originário. E, de tanto nos rondar, o perigo já é uma realidade

consolidada na pre-sença que, a essa altura, já não consegue ir além de uma

compreensão mediana no conhecimento das coisas, já não pode sequer, sentindo-

se livre, permitir-se o contemplar aquilo que lhe vem ao encontro. É impossível, “tá

dominado, tá tudo dominado”267, dizem os funkeiros, e confirma Emanuel Carneiro

Leão. O alcance da interpretação pública é tal que o impessoal determina, de

antemão, além do que se vê, até o como se vê.

Vemos nesse processo que, com o falatório instrumental ou “simplesmente

dado”, a pre-sença se encontra sem raízes, sem conexão qualquer que viabilize as

remissões originárias com o mundo, com a co-pre-sença e com o ser-em.

O espaço físico e espiritual da obra transpira falatório. Há um clima estridente

no ar. Do mesmo modo que transitam, em movimentação incontrolável.

Isso coincide perfeitamente com o que Heidegger apresenta como o

apagamento dos entes já dispostos no mundo, apagamento que tranca e inviabiliza

qualquer possibilidade de retorno à experiência originária.

267

Este verso de música funk é retomado por Emmanuel Carneiro Leão: “Está dominado, está tudo dominado”, no artigo A vigência do poético na regência do virtual, no livro organizado por Manuel Antonio de Castro: A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.83-90.

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Ainda que o ideal fosse o rastreamento do texto Dom Quixote, com vistas a

dali tirarmos os exemplos mais expressivos, por ora, pouco nos basta. Para

apresentar como evidência desse frenético exercício da “falação”, pondo em xeque

as grandes verdades que ensaiam para entrar em cena na modernidade, amparadas

pela razão, basta que citemos Juan David García Bacca que nos oferece dados

quantitativos: “En casi todas las páginas irrumpe la razón [...] 5000 son las veces que

don Quijote/Cervantes; Cide Hamete/Cervantes; Sancho/Cervantes se sienten

forzados a dar expresión - expresa y palabrera a la razón”268.

Assim, nos restringiremos a três exemplos somente: um de Dom Quixote,

outro de Sancho, e outro ainda que torna indiscutível esse dado significativo na obra

– a falação.

No episódio que trata de “las bodas de Camacho”269, observamos Dom

Quixote sem importar-se com o “como” os noivos passaram pela dura experiência de

terem seu casamento desfeito, por intervenção de Basílio que, usando de má-fé,

decidiu usurpar a noiva de que ele tanto necessitava para satisfazer sua “vontade-

capricho”.

Sem importar-se com o “sendo”, sem cuidar do “acontecendo” que diante de

seus olhos se desenrolava, prefere cumprir seu compromisso de filósofo que está a

serviço de “la república cristiana”, e dispõe do tema amor e casamento com a

autoridade que o habilita a tomar partido da “industria” maliciosa e manipuladora de

Basilio para conseguir seu intento.

Dentre muitas coisas, diz: que “la necesidad y la pobreza” são os inimigos

máximos do amor, que “la mujer hermosa y honrada cuyo marido es pobre merece

ser coronada con laureles y palmas de vencimiento y triunfo”, que, caso lhe 268

Em quase todas as páginas irrompe a razão [...] 5000 são as vezes que Dom Quixote/Cervantes; Cide Hamete/Cervantes; Sancho/Cervantes sentem-se forçados a dar expressão – expressa e palavrosa à razão. (BACCA, Juan David García. Sobre el Quijote y don Quijote de la Mancha. Barcelona: Anthropos, 1991, p. 45) 269

(2, XX, p.423)

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pedissem, se “atreveria a dar consejo” sobre “el modo que había de buscar la mujer

con quien se quisiese casar”, que “la buena mujer no alcanza la buena fama

solamente con ser buena, sino con parecerlo”270.

Dom Quixote faz recomendações a Sancho sobre seu falar:

También, Sancho, no has de mezclar en tus pláticas la muchedumbre de refranes que sueles; que, puesto que los refranes son sentencias breves, muchas veces los traes tan por los cabellos, que más parecen disparates que sentencias. [E que] cargar y ensartar refranes a troche moche hace la plática desmayada y baja. [Ao que Sancho responde:] porque sé más refranes que un libro [...] cuando hablo, que riñen por salir unos con otros, pero la lengua va arrojando los primeros que encuentra.271

Neste, mais geral, diz Sancho:

Este mi amo, cuando yo hablo cosas de meollo y de sustancia suele decir que podría yo tomar un púlpito en las manos y irme por ese mundo adelante predicando lindezas; y yo digo dél que cuando comienza a enhilar sentencias y a dar consejos, no sólo puede tomar púlpito en las manos, sino dos en cada dedo, y andarse por esas plazas a ¿qué quieres boca? ¡Válate el diablo por caballero andante, que tantas cosas sabes! Yo pensaba en mi ánima que sólo podía saber aquello que tocaba a sus caballerías, pero no hay cosa donde no pique y deje de meter su cucharada.272

Dizer falatório não significa dizer “disparates” e “tonterías”. Daí apresentar-se

o falatório, tanto veiculado por Dom Quixote __ um homem do entendimento __, como

pelo senso comum, representado por Sancho.

270

A necessidade e a pobreza [...] A mulher bela e honrada cujo marido é pobre merece ser coroada com louros e palmas de vencimento e triunfo [...] atreveria a dar conselho [sobre] o modo que havia de buscar a mulher com quem se quisesse casar [que] a boa mulher não alcança a boa fama apenas por ser boa, mas sim o parecendo (2, XX, p.423) 271

Também, Sancho, não deves misturar em suas falas a multidão de refrões que usas; que, visto que os refrões são sentenças breves, muitas vezes os trazes tão pelos cabelos, que mais parecem disparates que sentenças [E que] carregar e enfileirar refrões a torto e a direito torna a conversa entorpecida e vulgar [Ao (...) responde] porque sei mais refrões que um livro [...] quando falo que brigam para sair uns com os outros, mas a língua vai atirando os primeiros que encontra (2, XLIII, p.540) 272

Este meu amo, quando eu falo coisas de miolo e de substância costuma dizer que eu poderia tomar um púlpito nas mãos e ir por esse mundo adiante predicando lindezas, e eu digo dele que quando começa a enfileirar sentença e a dar conselhos, não apenas pode tomar púlpito nas mãos, mas dois em cada dedo, e andar por essas praças com boa acolhida. Valha-te o diabo por cavaleiro andante, que tantas coisas sabes! Eu pensava em meu ânimo que so podia saber aquido que concernia a suas cavalarias, mas não existe nada onde não opine e deixe de meter sua colher (2, XXII, p.436)

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6.1.2.2 Entre curiosas ambigüidades

Há muito está estabelecido que a compreensão está definitivamente

associada à visão. Só na claridade é possível, ou melhor, a claridade é a própria

abertura do ser-em da pre-sença. Esse é o modo como a pre-sença pode se

apropriar genuinamente dos entes, segundo suas possibilidades ontológicas.

Heidegger, ao apresentar-nos a curiosidade, a associa intimamente à visão.

Esse é o ver próprio da cotidianidade, um ver de raízes antigas, o cuidado em ver,

reconhecido, por Aristóteles, como modo-de-ser essencial. Apesar do termo

explícito, “visão”, essa é de outra natureza. A visão que dá abertura ao ser, nesse

caso, é puramente intuitiva. Só essa visão pode dar acesso à verdade originária.

Essa primazia do ver sobre os demais sentidos foi observada por S. Agostinho, ao

perceber que, quando o empenho é de conhecer, mesmo que o conhecimento seja

captado por outra via sensível, haverá sempre uma apropriação análoga ao esforço

do ver com os olhos.

Empenhado nas ocupações, o ser-no-mundo é dirigido pela circunvisão. Esta

deixa a seu dispor todo o manual intacto, perfeitamente preservado no estado de

descoberta de manualidade. Na ocupação, a manualidade e todos os procedimentos

já estão distribuídos, motivo pelo qual torna-se irreversível.

Assim, a curiosidade está na dependência do ver, sem que esse ver se

desdobre num ser, nem que chegue a alcançar um compreender. A curiosidade

precisa de movimento e renovação, daí não ser possível apreender um saber, nem

estar na verdade, já que o permanecer não a caracteriza. Quer mudar sempre; nem

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o ócio nem a contemplação lhe servem para alimentar seu estado permanente de

inquietação, aberta que está a tudo o que lhe vem ao encontro.

Está em estado permanente de dispersão e incompreensão e não tem tempo

que lhe permita esperar para compreender o não compreendido pelo espanto e

admiração. Nada quer compreender, só precisa tomar conhecimento. Nada

permanece na curiosidade, tudo se dispersa no agitado mundo das ocupações,

sempre em novas e novas possibilidades. Tanta possibilidade, impermanente e

dispersa, só pode gerar desamparo e também desenraizamento. A curiosidade é

mais um modo de -ser-no mundo cotidiano da pre-sença.

Esses dois modos de ser-no-mundo da pre-sença __ um, do discurso: o

falatório; e o outro, da visão: a curiosidade __ não convivem lado a lado em sua

tendência de desenraizamento; eles arrastam um ao outro __ um, tudo já

compreende; o outro, de nada se esquiva __, e nesse arrastar garantem à pre-sença,

que vive desse modo, arrastada, “uma vida cheia de vida”, uma pretensão de

autenticidade.

Cheios de curiosidade, sobre o enterro de Grisóstomo, Dom Quixote e

Sancho Pança dizem: “ha de ser cosa muy de ver”273. Esteja onde estiver o

interessante, só para tomar conhecimento, ainda que a viagem seja longa, de tudo

são capazes: “no digo yo hacer tardanza de un día, pero de cuatro la hiciera, a

trueco de verle”274.

Diante da possibilidade de ouvir uma história, Dom Quixote chega a mudar

seus planos, que era dormir em uma ermida: “don Quijote [...] como él era algo

curioso y siempre le fatigaban deseos de saber cosas nuevas, ordenó que al

273

Deve ser coisa muito de ver (1, XII, p.64) 274

Não digo fazer tardança de um dia, mas de quatro eu faria, a troco de vê-lo (1, XIII, p.67)

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momento se partiesen y fuesen a pasar la noche en la venta”275, lugar onde o

soldado, companheiro de viagem, contaria algumas histórias maravilhosas. Sem

resistir à curiosidade, Dom Quixote não volta a tocar em dormir na ermida, seu

projeto inicial.

Na ambigüidade, tudo vem igualmente ao encontro; não é possível distinguir o

que se abre do que não se abre, tanto nas coisas, na convivência, como também no

ser da pre-sença.

Na ambigüidade, todos sabem de tudo; desde o que já foi plenamente

discutido, este compreendido só superficialmente, como se não o tivessem esgotado

em sua autenticidade; até o que, sem ter sido discutido, vê-se compreendido, com

tanta propriedade, que parece que foi. Nesses casos, do que se dispõe é do que

está “em uso e em gozo”276. Mas a ambigüidade, ultrapassando esse nível de

compreensão, a compreensão do que efetivamente se dá e ocorre, além dessa,

outra também se consolida em outro nível – no nível do poder-ser. É possível saber

até o que ainda não aconteceu; é possível saber e discorrer sobre. É possível

porque já se pressentiu e farejou tudo o que todos pressentiram e farejaram

antecipadamente. É a compreensão – um poder-ser, no modo do projeto.

A ambigüidade permite que se discorra antecipadamente sobre o que ainda

vai acontecer, sobre o que deve ser feito. Considera-se estar de posse da verdade

só pelo longínquo e superficial “ouvi dizer”.277

Heidegger aponta essa ambigüidade, a mais perigosa e traiçoeira porque

fornece um sem número de possibilidades, possibilidades que jamais se abrirão à

pre-sença como verdade. Logo, possibilidades de minar as forças da pre-sença.

275

Don Quixote [...] como ele era um tanto curioso e sempre o incomodavam desenos de saber cosas novas, ordenou que logo partissem e fossem passar a noite na venda (2, XXIV, p.450) 276

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 234. 277

Ibidem.

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Esperar-se-ia que, aquilo que, mesmo impessoalmente, por todos é

pressentido, aquilo que, mesmo mero pressentimento, mesmo resultado de um

“ouvir dizer” se dá em comum, fosse, logo que transformado em fato, por todos

retomado com igual interesse. Mas não é o que acontece; não há compromisso na

comunidade que “recusa o compromisso no momento em que se dá início à

realização do que se pressentiu”278.

Tomaremos aqui o exemplo em que “el primo”, tocado pela simples referência

ao verbo “barajar”279, o compreende em seu mero sentido literal, significação que,

impessoalmente, circula no limite máximo da ambigüidade. Imediatamente é tomado

pelo pressentimento e, no pleno uso do pressentimento, interpreta, a seu modo, sem

nenhum compromisso com sua “realização”.

O não compromisso se faz sentir, tanto na pressa irresponsável de tomar uma

mera informação, ou melhor, um fragmento de informação que lhe ofereceu Dom

Quixote, sem que ele (“el primo”), sendo o que conhecia o caminho de “la cueva”,

sendo o que conduzira Dom Quixote, tivesse a sensibilidade de reconhecer a

necessidade e importância de ele mesmo descer ao interior de “la cueva” para viver

o que tinha vivido Dom Quixote. O que aconteceu é que “el primo” contentou-se com

a “comunicação e informação” que a “vida-vivida” tinha para lhe dar e Dom Quixote,

como sempre, foi “lá no fundo”, penetrou o mais perto que pôde do ser, para, só

assim, poder experienciar. “El primo” viveu, Dom Quixote experienciou. Para Dom

Quixote “la cueva” se abriu, para “el primo” não. Para ele, é tudo igual: na

ambigüidade, ele não distingue o que se abre do que não se abre.

Dizíamos que tanto na pressa da mera informação está o “não compromisso”,

comum à ambigüidade, e acrescentamos estar também na não capacidade de “el

278

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1998, parte 1, p. 234. 279

Embaralhar, misturar, manipular.

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primo” perceber e valorizar uma fala tão concentrada, como aquela dita por

Durandarte, “paciencia y barajar”, que, pelo curto e concentrado, além de ter sido a

única fala que expressou o morto Durandarte, exigia, no mínimo, alguma atenção e

interesse de valorizar o dito. Entretanto, “el primo” foi lançando logo mão de uma

constatação fácil, típica do falatório e da curiosidade. E, a partir daí, comete toda

sorte de calamidades interpretativas, imaginando, por sua própria conta, por puro

pressentimento, que os naipes do baralho são coisa muito antiga, eram do “tiempo

del emperador Carlomagno”, acreditando piamente que sua descoberta seria de

grande valia para a humanidade, principalmente tendo vindo de “autor tan grave y

tan verdadero como es el señor Durandarte”280.

6.1.2.3 Nunca em Espanha houve tanto escritório

Heidegger aproveita a semelhança para introduzir a caracterização de outro

fenômeno que, com o falatório, divide a cena.

Dois exemplos são fundamentais para serem retomados no 3o Périplo: o

primeiro é “el primo”, personagem que aparece no capítulo XXII da 2a parte, com a

missão de conduzir Dom Quixote a “la Cueva de Montesinos”. É primo “del

licenciado” e muito dado a “leer libros”. Além disso, “sabía hacer libros para imprimir

y para dirigirlos a príncipes”. Todos os seus livros eram “de gran provecho y no

menos entretenimiento para la república”281. Vê-se, com isso que os livros

280

Tempo do imperador Carlos Magno [acreditando (...) vindo de] autor tão grave e tão verdadeiro como é o senhor Durandarte (2, XXIV, p.448-449) 281

Sabia fazer livros para imprimie e para dirigi-los a príncipes [todos (...) eram] de grande proveito e não menos entretenimento para a república (2, XXII, p.437)

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publicados por “el primo” se enquadram nos moldes do cânon __ estilo novelas de

cavalaria, aprovado pela república cristã espanhola.

Há fragmentos que deixam transparente seu modo de escrever. Publica livros

“imitando a Ovidio”, com “metáforas y translaciones [...] que alegran [...] y enseñan a

un mismo punto”; outro que chama “Suplemento a Virgilio Polidoro”, onde vai listar

as coisas que Virgilio esqueceu de declarar, como, por exemplo: “quien fue el

primero que tuvo catarro en el mundo”, acreditando que “ha de ser útil el tal libro a

todo el mundo”282.

Sua preocupação é respaldar-se, comprovando o que publica: “y yo lo declaro

al pie de la letra, y lo autorizo con más de veinte y cinco autores”283. E, o mais

surpreendente é a avaliação que faz do importante que foi Dom Quixote ter cruzado

seu caminho: uma é “haber sabido lo que se encierra en esta cueva de Montesinos,

con las mutaciones de Guadiana y de las lagunas de Ruidera, que me servirán para

el Ovídio español”284. A outra remete para o que lhe contou Dom Quixote sobre o

modo de falar de Durandarte, o morto sem coração que estava dentro de “la cueva”.

O pequeno fragmento “paciencia y barajar”285, na boca do morto Durandarte que, por

estar morto, permanecera o tempo todo calado, foi o suficiente para que “el primo”

associasse “barajar” a cartas de baralho, e que fizesse, por conta própria, a seguinte

interpretação: que Durandarte não poderia ter aprendido esse modo de falar

enquanto estava encantado, e, sim, o teria aprendido “en Francia y en tiempo del

referido emperador Carlomagno”286.

282

Metáforas e translações [...] que alegram [...] e ensinam ao mesmo tempo [outro (...) exemplo] quel foi o primeiro que teve catarro no mundo [acreditando que] deverá ser útil o tal livro para todo o mundo (2, XXII, p.438) 283

E eu o declaro ao pé da letra, e o autorizo com mais de vinte e cinco autores (ibidem) 284

Haver sabido o que se encerra nesta cova de Montesinos, com as mutações de Guadiana e das lagoas de Ruidera, que me servirão para o Ovídio espanhol (2, XXIV, p.448) 285

Paciência e embaralhar (2, XXIV, p.449) 286

Na França e no tempo do referido Carlos Magno (Ibidem)

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E conclui, agradecendo muito a colaboração de Dom Quixote, que, não só

aquela averiguação, como a de que lhe dera a “certidumbre [sobre] el nacimiento del

río Guadiana, hasta ahora ignorado de las gentes”, tudo lhe caíra como uma luva

para outro livro que estava escrevendo: “me viene pintiparada para el otro libro que

voy componiendo”287.

Vê-se que “el primo” escreve livros dentro do esquema da informação e da

comunicação. Imita os já publicados e só consegue dizer o que lhe der garantias de

comprovação.

Trata-se do escritório, irmão gêmeo do falatório, compulsão de igual caráter.

Do mesmo modo que a compulsão ao falar impregnava a todos, também o escrever

impregnava. Do mesmo modo que o falatório se funda no “ouvi dizer”, o escritório se

nutre do que se lê.

É bem verdade que, embora esse fenômeno também se evidencie no texto de

Dom Quixote, mesmo que de modo diferente do falatório, não chegamos a dar-lhe

igual dimensão. Muito se escreve; o próprio texto de Dom Quixote é originário do

escrever. Foram encontrados documentos escritos que, por sua vez, são copiados e

traduzidos. Tudo passa a ser registrado pela escrita. O mercado editorial incentiva a

escritura, e esta se multiplica a todo vapor.

O que temos de significativo e digno de atenção é que grande parte da obra

está formada de um acúmulo de textos, os mais variados: desde pequenos bilhetes,

cartas, documentos, contos curtos, até as longas histórias, muitos considerados

desnecessários até.

Tanto o falatório, a curiosidade, a ambigüidade como o escritório, todos

concorrem para a Cura. Nessa travessia, Dom Quixote, no seu agir no mundo, nas

287

Certeza [sobre] sobre a nascente do Guadiana, até agora ignorada pelas pessoas [tudo (...) escrevendo] me vem de bandeja para o ouro livro que vou compondo (2, XXIV, p.449)

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muitas decadências do ser, já não lê romances de cavalaria. Ao optar por vivê-la,

ele, surpreendentemente começa a ler-se, a saber-se, busca consumar, levar o ser

ao sumo; que, não por coincidência, é curar. Dom Quixote está à procura do que lhe

é próprio. Dom Quixote lança-se, na linguagem, à pro-cura da Cura.

7 TÉDIO, ANGÚSTIA, MORTE __ AS DISPOSIÇÕES FUNDAMENTAIS

7.1 O TÉDIO

Como se processava a compreensão do mundo no tempo de Dom Quixote?

Haveria algo interferindo nessa compreensão que justificasse um mundo de

constantes repetições? O que afetava o homem do tempo de Dom Quixote em seu

viver, que se espalhava de forma avassaladora, a ponto de contaminar a todos e a

tudo com o ócio? Até os objetos assim estavam, ociosos: “el famoso Caballero don

Quijote de la Mancha, dejando las ociosas plumas”. No entanto, o trânsito realizado

do livro para a vida se dá, no exato momento, em que Dom Quixote “subió sobre su

famoso caballo Rocinante, y comenzó a caminar por el antiguo y conocido campo de

Montiel.”288, quebrando literalmente o ócio.

Por que, antes desse momento, a última referência que nos dá o texto é de

que Dom Quixote estava com a caneta na mão? Teria ele a intenção de escrever

288

O cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, deixando as ociosas plumas [No entanto (...) Quixote] subiu em seu famoso cavalo Rocinante, e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (1, II, p.21)

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algo? O que, afinal, pretendia escrever que a opção de sair para a vida o fez

desistir?

O grande responsável pelo ócio que se aninhou em Espanha encontrava

sustentação no tédio. Essa é a marca que o caracteriza: no tédio, resta sempre uma

muleta de sustentação, sobra sempre alguma brecha por onde escapar do

sentimento avassalador que se insinua, mas que não passa de insinuação,

permitindo que haja o mínimo de possibilidade de sair em retirada do enfrentamento

com o vazio. Era agindo assim que Dom Quixote sempre lia, lia cada vez mais. Cada

livro que lia, cada vez que insaciável buscava novas histórias, era uma fuga só pelo

tédio permitida. E não só Dom Quixote; como ele, todos os demais.

Que um dia cada um poderia também querer fazer a experiência de optar por

fuga diferenciada, isso é possível; mas a história que Cervantes vai contar é

exatamente a do herói que teve a coragem de fazer a primeira tentativa.

É bem verdade que Dom Quixote já se diferencia dos demais, quando sai do

imobilismo físico do tédio para o dinamismo da vida, na contrapartida da leitura

silenciosa que exige posição estática. Entretanto, mesmo entrando na vida real da

cavalaria, Dom Quixote ainda é tédio, porque o que houve foi somente uma

transferência do estar-lançado no mundo cavalaria-ficção, para o estar-lançado no

mundo cavalaria vida-real, mundo em que permanecia igualmente imerso no

estabelecido. É possível que, de algum modo, sua leitura tenha sido diferenciada

para obrigá-lo a lançar-se no “estar-lançado” do mundo da cavalaria.

É preciso atentar para o fato de que o ócio, que a todos imobilizava, estava

restrito às atividades ligadas à terra, talvez àquele agir que por tantos séculos

imobilizara o homem – o agir do trabalho, por exemplo, uma vez que “este [...]

hidalgo, los ratos que estaba ocioso – que eran los más del año [...] olvidó [...] el

ejercicio de la caza y aun la administración de su hacienda [...] vendió muchas

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hanegas de tierra de sembradura”289. Entretanto, convive com esse imobilismo do

cultivo da terra ou de qualquer outra atividade à terra ligada, uma dinâmica,

referente ao movimentar-se por sua superfície. Não há época em que a dinâmica do

ir e vir, fazendo, realizando, contando, numa ação frenética e ansiosa de

realizações, desse sinais mais evidentes. Isso pode sugerir o dinamismo, no entanto

superficial, que a todos contaminou em Espanha.

Com essa dinâmica, convive outra ainda. Essa mais afinada com a atividade

da leitura silenciosa que ganhava espaço na época. Dinâmica, não na superfície,

porque, para ler, presume-se o estar parado. Entretanto, o mover-se é outro, é

mover-se do pensamento.

Assim estavam todos os ociosos, leitores ou não leitores, estáticos de corpo,

mas dinâmicos de pensamento uns; dinâmicos de corpo e de pensamento aqueles

que transitavam pelos caminhos.

Dom Quixote foi o único a fazer o trânsito cumulativo – era fidalgo leitor

estático, de pensar dinâmico, e passou a cavaleiro dinâmico de pensar também

dinâmico.

Talvez seja por isso que, mais adiante, Dom Quixote vai dizer que é louco em

suas ações. Seria esse agir de Dom Quixote um agir do pensamento, uma

antecipação do agir da modernidade? Seria esse agir, louco, também?

Por ora não se sabe da modernidade, só se sabe de Dom Quixote no século

XVI. Sua marca de tédio está referendada pelas novelas de cavalaria. É para esse

mundo que sempre escapa, é nesse mundo que sempre decai. Em afinadíssimo

processo de tédio e decadência, Dom Quixote escapa sempre para o mundo

estabelecido da cavalaria, tanto na vida-ficção como na vida-vivida.

289

Este [...] fidalgo, os momentos em que estava ocioso – que eram a maior parte do ano [...] esqueceu [...] o exercício da caça e mesmo a adminstração de seus bens [...] vendeu muitos alquires de tierra de cultivo (1, I, p.18)

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Como Dom Quixote, todos estão mergulhados no mundo fartamente

conhecido e compartilhado da cavalaria, a própria obra demonstra esse

compartilhar. No entanto, no momento exato em que Dom Quixote passa a viver a

cavalaria, há reação tal, que ele precisa ser encaixado no rol dos loucos. Se

continuasse lendo, como os demais, ter-se-ia livrado do estigma de louco?

Dom Quixote não escapa do círculo do tédio nem da decadência. O que nele

se processa de modo diferente é que sai da sintonia com seus contemporâneos,

porque substitui a leitura para onde todos e ele mesmo sempre escaparam, por viver

na vida real aquilo que até então somente lera.

Não sai do circuito do tédio Dom Quixote, porque o tédio faz parte da Cura e

só ele pode dar acesso à angústia e, assim completar o quadro da errância. Só o

tédio configura a errância. Só o tédio dá acesso à angústia.

7.2 A ANGÚSTIA

“Como las cosas humanas no sean eternas, yendo siempre en declinación de

sus principios hasta llegar a su último fin [...]”290

Este fragmento é significativo, ele sinaliza, ainda que de modo sutil, a

sensibilidade de Dom Quixote, captando o sentido da finitude intrínseca ao homem.

Dom Quixote configurou o mundo da cavalaria, de modo a que pudesse

colocar seu plano de ser cavaleiro em prática. Ainda que pela via da ficção,

dispunha de um instrumental com o qual poderia construir o mundo da cavalaria.

290

Como as coisas humanas não são eternas, indo sempre em declínio de seus princípios até chegar a seu último fim. (2, LXXIV, p.696)

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Esse instrumental, seu velho conhecido, era o sustentáculo de todas as certezas de

que precisava para pôr em marcha seu projeto, cumprindo o ofício de “andar por el

mundo enderezando tuertos y desfaciendo agravios”291. Afinal, fora por esse mesmo

projeto formado.

Desse modo, dentre todos os de seu tempo, acreditava ocupar o mais alto

patamar na escala do saber. Para isso o formara a Paidéia, para estar habilitado a

governar. E, para governar, só o filósofo, o que tem o poder, o que tem

conhecimento real do Bem, o único capaz de manejar o leme com total segurança,

para conduzir todos os demais. Para esse desempenho, só muita “certeza”, que não

o fizesse resvalar em nenhum momento em um ponto sequer. Sua república cristã

não o perdoaria.

É com essa idéia que Dom Quixote quer dar conta do compromisso

assumido. E é, a partir dela, que seu declínio se dá. Não percebera, entretanto, com

essa iniciativa, estar se apropriando de todo o acervo significativo que transitava no

intramundano da cavalaria.

Esse é o seu primeiro equívoco: pensar que está apropriando-se, quando o

processo é diametralmente oposto. Estava sim, sendo apropriado, sendo ele mesmo

tragado por tudo o que já existia no mundo, sem que dele precisasse participar.

Contraditoriamente, àquilo que para Dom Quixote significava grandeza e

superioridade, Heidegger chama decadência.

Devemos esclarecer, portanto, que “declinación” __ termo usado por Dom

Quixote e que tomamos como referência __ será aqui usado como decadência.

Chegando ao mundo, o homem já “está lançado” num contexto de significações; o

homem é um ente decaído por natureza; sua tendência é manter-se preso às

verdades que circulam pelo mundo como verdades definitivas.

291

Andar pelo mundo consertando injustiças e desfazendo desacertos (1, XIX, p.101)

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Enquanto Dom Quixote é nutrido pela crença de estar de posse da verdade

absoluta, não abre mão de nenhuma de suas certezas. Ao lançar-se na vida, com a

intenção de colocar em prática seu propósito, no entanto, é surpreendido por uma

realidade com a qual não contava, uma realidade sobre a qual, os livros nada lhe

haviam contado. É preciso não perder de vista que, além de nada terem lhe contado

aqueles livros, o mundo dos séculos XVI/XVII que remendou, superpondo sobre ele

a rede da cavalaria, era um mundo com o qual os valores medievais já não se

afinavam.

A realidade que encontra Dom Quixote efetivamente vai obrigando-o a ir

paulatinamente substituindo a didática rígida do aprendizado com que fora formado,

por outra chamada “aprendizagem”. Essa mudança estratégica não foi planejada,

tendo em vista suas dificuldades e dissabores. Ela foi-se impondo por ela mesma, a

cada vez que a vida lhe colocava, na frente, um impasse.

É a essa série de impasses que Dom Quixote vai reagindo em graus diversos,

com respostas que vão da mais radical rejeição de qualquer outra possibilidade de

verdade, a um ceder irremediável, quando se vê diante do mais contundente

desmoronar das certezas que o sustentaram em sua grande travessia.

É por isso que têm sentido as palavras do cavaleiro manchego. Parece que

antecipam os embates que deverá enfrentar até o combate final, em que o edifício

tão bem estruturado das certezas deverá inevitavelmente cair.

Nesse momento, Dom Quixote sentir-se-á completa e definitivamente

esvaziado. Tudo o que para ele, desde sua decisão de virar cavaleiro, ao longo de

muito caminhar, e até o momento final tivera sentido, tudo em que acreditara

piamente perde, também, total e definitivamente, o sentido.

A citação, a tomamos por ser bastante sugestiva porque delimita, de algum

modo, o percurso da cura entre vida e morte; trata do homem relacionando-se com

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as coisas do mundo, o que sugere o “ser-no-mundo”; deixando bem claro cura como

processo de mudança do qual participa o homem.

Essa marcação de dinamismo sinalizada pelas preposições “de” e “hasta”; de

começo e de fim __ com “sus principios [...] su último fin” __, somada à indicação, não

só de que essas são coisas privativas do homem __ “las cosas humanas” __ mas

também e, fundamentalmente, a de que nada é para sempre __ “las cosas [...] no

sean eternas”292. Tudo concentra uma idéia maior: a idéia da finitude humana.

Aproveitando a imagem da rede cavaleiresca, ou seja, o mundo criado por

sua imaginação, pode-se arriscar que as muitas decadências iam, silenciosamente,

atritando os seus pontos mais seguros, sem que Dom Quixote disso se

apercebesse. De desgaste em desgaste, a trama da rede foi-se perdendo, a ponto

da impossibilidade total de conexão, e foi comprometendo a tessistura da rede, até

que a contínua fricção acabou desgastando e rompendo. Com o desgate, e o

rompimento, iam-se também aquelas referências tão necessárias que, mesmo

puídas, ainda permitiam retorno à rede.

Quando Dom Quixote se deu conta, sua tão prezada e firme rede, que lhe

assegurava tanta certeza a ponto de dizer “yo sé quien soy”, tinha todos os seus

pontos soltos, arrebentados, encolhidos, sem deixar vestígios, sem pistas que

permitissem recuperá-los, gerando o vazio total, a angústia.

Essa é a prova de que Dom Quixote passou pela angústia. A imagem figurada

pela rede reduplica o processo pelo qual passou o cavaleiro manchego, até

defrontar-se com a angústia quase irremediável. É exatamente nesse assalto final

que podemos arriscar que se efetuou a angústia mais radical.

Dom Quixote já tinha experimentado ao excesso a disposição fundamental

heideggeriana chamada tédio. Isso porque era o tédio que lhe concedia sempre uma

292

Seus princípios [...] seu último fim __ as coisas humanas __ as coisas [...] não sejam eternas (2, LXXIV, p.696)

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brecha para fugir e não precisar encarar radicalmente o ser, a verdade do ser, a sua

essência, a essência do ser. E a angústia tarda, mas chega, afinal.

Não é possível definir como a angústia é vivida ou sentida. Pode-se no

máximo, imaginar o grau dos efeitos de experiência tão radical à fragilidade humana.

Cervantes, entretanto, não deixou de contemplar-nos com a visibilidade desse

sentimento. Ao assumir a consciência de que “llegó su fin y acabamiento”, por ter

visto cair o último “véu de maia”, “se le arraigó una calentura que le tuvo seis días

en la cama”293. Dom Quixote teve uma febre altíssima que o colocou nocauteado

numa cama, deixando visível, a todos os que o cercavam, que experimentava a

angústia. Experimentava nada, ex-perienciava, vivia o “ex” mais radical, vivia o que

estava além de tudo o que pode o homem esperar.

Essa cena, além de estar no último capítulo, além dos termos “fin” e

“acabamiento”, ela está marcada pelo surpreendente “cuando él menos lo

pensaba”,294 porque não é possível prever o momento em que o esvaziamento

radical da angústia pode acontecer.

Poderíamos ter dúvidas quanto a ser ou não ser a febre, manifestação física-

ôntica da angústia. Por isso, essa possível dúvida é eliminada a partir das

suposições do narrador; sobre o exato motivo que o levou àquele estado: “la

melancolía que le causaba el verse vencido”.295 Bem sabemos que a angústia

heideggeriana é tão radical que não há nada, não há nenhum sentimento já

incorporado ao universo médico nem ao psicológico que dela possa aproximar-se.

Bem sabemos que angústia não é depressão, bem sabemos que angústia

heideggeriana não é melancolia. Entretanto, também, bem sabemos que, no mundo

ôntico, ninguém nasce aos cinqüenta anos, ninguém deita um dia na cama e decide

293

Chegou seu fim e acabamento [por (...) maia”,] pegou-o uma febre que o manteve seis dias na cama (2, LXXIV, p.696) 294

Quando ele menos o pensava (Ibidem) 295

A melancolia que lhe causava ver-se vencido (Ibidem)

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morrer. No espaço da obra de arte é preciso dar visibilidade, contando com o visível

do mundo ôntico, des-realizando-o, fazendo-o invisível. Tanto “la fiebre” com o

deitar-se à cama, como “la melancolía” de Dom Quixote precisam ser des-

realizados.

Se acaso não forem esses elementos suficientes para deflagrar a angústia, a

projetemos para mais adiante: Heidegger diz que a radicalidade da angústia é tal

que uma de-cisão também radical é a sua contrapartida, daí sua grafia fora do

padrão: de-cisão. E Dom Quixote, coincidentemente, depois de “la fiebre”, depois de

ficar “seis días en la cama”, depois de “la melancolía”, [e não percamos de vista que

a melancolia está devidamente acompanhada de “verse vencido”], como sua causa

mais contundente, depois de dizer essas palavras: “fuí don Quijote de la Mancha, y

soy agora, como he dicho, Alonso Quijano296”, deixando bem marcada a linha

divisória entre o “antes” __ fuí __ de ser arrebatado pela angústia e o “depois” __ agora

soy. Depois de tudo isso, ainda não satisfeito, Dom Quixote apresenta a projeto mais

radical de todos: de-cide ser pastor. Há outro índice ainda, assinalando não serem

ônticos nenhum desses elementos que se conjugam na vivência da angústia. A

causa da febre não fora uma “gripe”, um “resfriado”, nem uma “virose”. De ôntico já

basta a febre da qual Cervantes não pôde abrir mão. A causa da febre é outra, é a

melancolia, mas não uma ôntica melancolia, ela está definida no seguinte fragmento:

“llegó su fin y acabamiento cuando él menos lo pensaba; porque, o ya fuese de la

melancolía que le causaba el verse vencido, o ya por la disposición del cielo, que así

lo ordenaba”297

296

Fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano (2, LXXIV, p.696) 297

Chegou seu fim e acabamento quando ele menos o pensava; porque, ou já fosse pela melancolia que lhe causava o ver-se vencido, ou já pela disposição do céu, que assim ordenava (Ibidem)

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Esse evento ainda desencadeia outros. Um deles é a de-cisão. Só a angústia

possibilita a mudança radical da de-cisão. E Dom Quixote também a realiza: a de-

cisão de ser pastor “que tenía pensado de hacerse aquel año pastor”.298

Um lembrete é necessário: o passar pela angústia, o tomar de-cisão radical

não significa ter encontrado a Cura. Depois da experiência da angústia, impossível

será ao homem um retorno no mesmo nível de consciência. Isso porque lhe foi

revelado alguma coisa que, mesmo sendo-lhe essencial, ainda não descobrira.

Dom Quixote também volta ao impessoal. Se por um lado o lar está carregado

de significação do próprio mais íntimo, esse mesmo próprio que o fez tomar de-cisão

tão radical, por outro pode ser lido também como o máximo do cotidiano ordinário.

Visto assim, o voltar para casa significa reinício do ciclo, com nova decadência no

mundo das significações estabelecidas, significa decair no mundo da manualidade

do intramundano para, só assim, poder seguir à pro-cura da Cura, num ciclo infinito

de tédios e angústias, até que a morte anuncie a inevitável finitude.

Seja qual for a mudança radical, tem prosseguimento a pro-cura. Ainda que

de modo diferenciado, voltar ao impessoal é inevitável.

7.3 A MORTE

O círculo das disposições fundamentais se completa com a morte. Dom

Quixote lhe reserva lugar bastante especial: além de exercer sua perfeita função de

finalização do circuito da cura, nascimento-morte, ela assume outras nuances.

298

Que tinha pensado fazer-se aquele ano pastor (2, LXXIIII, p.695)

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Percebe-se que a morte cresce em significação e sentido. Caso contrário, não

precisaria ter urgência para morrer. Na vida ordinária, jamais disso se falou: ter

urgência de morrer. No entanto, Dom Quixote tem: “que me voy muriendo a toda

priesa”299.

A bem da verdade, não é Dom Quixote quem tem pressa de morrer. Sua

pressa é outra, de tal modo que chega a impacientar-se com os que o rodeiam com

brincadeiras: “déjense burlas aparte”300.

Essa pressa, ao mesmo tempo em que remete à morte como finalização,

onde as providências civis são de extrema urgência __ “tráiganme un confesor que

me confiese y un escribano que haga mi testamento”301__, remete também à

necessidade de conceder à morte um lugar de dignidade, esvaziando-a do peso das

contingências civis.

A dignidade que merece a morte fica patente em vários fragmentos: “que en

tales trances como éste no se ha de burlar el hombre con el alma”, demonstrando a

clara consciência do inevitável. Em outro: “y una de las señales por donde

conjeturaron se moría fue el haber vuelto con tanta facilidad de loco a cuerdo”302,

fica evidente aquilo que a todo o momento nos é informado – que na hora da morte

há como um flash back que sintetiza todo o vivido, sendo, por isso, o momento único

de plena lucidez. Esse flash back está presente na fala de Sancho que sintetiza o

passado, fixando-se em dois pontos.

Ao pedir a Dom Quixote, encarecidamente, que não morra, Sancho lhe

oferece dois bons motivos que mais parecem coincidir com os pontos nevrálgicos de

sua travessia: um deles diz respeito à cavalaria, eixo centralizador de toda a sua

299

Vou morrendo a toda presa (2, LXXIV, p.698) 300

Deixem-me longe das burlas (Ibidem) 301

Tragam-me um confessor que me confesse e um escrivão que faça meu testamento (Ibidem) 302

Que em tais transes como este não deve brincar o homem com a alma [demonstrando (...) outro] e um dos sinais pelos quais conjeturaram que morria foi o ter voltado com tanta facilidade de louco a são (Ibidem)

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história __ “Si es que se muere de pesar de verse vencido, écheme a mi la culpa”303;

e outro, ao ponto que se desloca para Dulcinéa: “quizá tras de alguna mata

hallaremos a la señora doña Dulcinea desencantada”304.

Outros dois fragmentos conferem especialidade à morte: “muerto

naturalmente” e “hubiese muerto en su lecho tan sosegadamente”305. Os dois se

implicam mutuamente. Morrer naturalmente significa não só morrer sem ter-se, por

algum motivo, antecipado a morte; morrer naturalmente significa, também, morrer

com a consciência de ter fechado o ciclo vital da Cura, com a consciência da missão

cumprida, com a consciência do cumprimento da travessia, com a consciência de ter

esgotado ao limite máximo a pro-cura, com a consciência de estar de posse de si, no

limite máximo da propriedade.

Foi por isso que pôde Dom Quixote morrer “en su lecho tan

sosegadamente”.306 Teve, assim, o fidalgo-cavaleirio-manchego o que Heidegger

denomina “uma boa morte”.

Está, então, explicado o epitáfio, escrito em versos, escolhido por Sansón

Carrasco para a sepultura do atípico manchego: “yace aquí el Hidalgo fuerte / que a

tanto estremo llegó / de valiente, que se advierte / que la muerte no triunfó”.307

Dom Quixote nasce aos 50 anos, porque só nesse momento começa a

ganhar “corpo”. Não o corpo material, que esse já o tinha desde o nascimento

biológico; não o corpo racional, porque o homem não é nem natureza nem razão;

303

Se é que morre de pesar por ver-se vencido, joguem em mim a culpa (2, LXXIV p.699) 304

Talvez atrás de alguma mata acharemos a senhora Dona Dulcinea desencantada (2, LXXIV p.700) 305

Morto naturalmente [e] houvesse morrido em seu leito são sossegadamente (2, LXXIV p.698) 306

Em seu leito são sossegadamente (2, LXXIV p.700) 307

Jaz aqui o Fidalgo forte / que a tanto extremo chegou / de valente, que se adverte / que a morte não triunfou (Ibidem)

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mas o corpo-preenchimento: corpo-preenchimento do oco; corpo-preenchimento do

vazio no experienciar a vida.308

Esse preenchimento acontece à medida que Dom Quixote ou qualquer outro

homem realiza; à medida que, ao mesmo tempo em que fazendo realiza, se faz

realizando-se.

Se o atípico Dom Quixote nasce de forma atípica, é justo que sua morte

também esteja coroada do atípico: fechado o circuito da Cura em sua forma mais

radical, alcançado o grau de propriedade em sua plenitude possível, fez-se a

travessia. Tudo está consumado, a morte não triunfou.

8 SER PASTOR OU SER POETA, TUDO É POSSIBILIDADE

Se a marca da pre-sença é antecipar-se a si mesma, talvez esteja aí o que foi

popularmente cunhado como “intuição”. Há, em Dom Quixote, algo que assim

poderíamos designar. Dentro do mundo de significações no qual esteve-lançado na

condição de ser-decaído, proferia afirmações que, naquele momento, de tão

contraditórias, pareciam loucas. Não foi gratuita a alcunha recebida, portanto.

Pronunciava em voz alta “Yo sé quien soy”, no momento exato em que tudo

indicava nada disso saber. Sendo, na realidade, um fidalgo, assumindo a persona de

um cavaleiro, como era possível afirmação tão fora de propósito?

Mais ainda extrapola sua medida, quando mais uma vez, ainda mais irritado

porque seu vizinho, insistindo para colocá-lo em seu lugar, o faz lembrar que ele não

308

Essa percepção a tivemos com a ajuda do professor Gilvan Volgel, por ocasião do evento organizado pelo titular em Poética Manuel Antonio de Castro, realizado no I Encontro de Interdisciplinaridade Poética, na Faculdade de Letras da UFRJ, em maio/2007, com o tema “Corpo, mundo, terra”.

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pode ser o cavaleiro Dom Quixote porque é o bom fidalgo Alonso Quijano. Dom

Quixote, com a rapidez típica da intuição, que traz aquelas verdades emanadas, não

se sabe de onde; daquelas verdades que surgem dos processos de “escritura

automática”, onde o homem, abrindo mão de todas as amarras morfo-sintáticas que

ordenam a língua, entra em sintonia com um emanar ininterrupto e profundo, assim

responde a seu vizinho Pedro Alonso: “y sé que puedo ser [...] los Doce Pares de

Francia”.309

Percebe-se que, intuitivamente, Dom Quixote está antecipando verdades

seguríssimas, mas que, entretanto, na superfície, não se enquadram dentro das

circunstâncias. Por isso, nos “viene de molde”310 para nossa necessidade e objetivo.

Fechamos este capítulo, encostando uma ponta na outra: começamos com “yo sé

quien soy”, sem que, do mesmo modo que com Dom Quixote, nos fosse possível

atinar para o seu sentido. Encerramos com “Yo sé quien soy”, com a compreensão

plena desse sentido.

Só a travessia proporcionou a Dom Quixote essa descoberta. Nesse dilema

de tanta confusão entre saber ou não saber quem era, Dom Quixote para verificar

afinal, onde estava a verdade, decide assumir outra persona. Entretanto, para tal

façanha, era preciso cruzar a linha de risco, a linha divisória entre todas as coisas,

linha há muito já presente no Ocidente, fincada com bases bem firmes. Ele teve a

coragem de ultrapassá-la e foi por isso que ficou estigmatizado como louco, estigma

do qual não conseguiu liberar-se até hoje.

Nessa travessia, Dom Quixote estava à pro-cura da Cura, e, nessa pro-cura,

acabou se encontrando, acabou descobrindo quem era afinal. É claro que na obra

esse ponto-chave, o ponto crucial que marca essa descoberta, aparece com uma

309

E sei que posso ser [...] os doze Pares de França. (1, V, p.35) 310

Vem bem a propósito (1, XXXI p.183)

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visibilidade indiscutível, no que se refere a não deixar restar nenhuma dúvida sobre

o que caracteriza Cura: libertação de todo o impróprio para ser o próprio. Isso,

entretanto, não é tão simples nem direto, há implicações outras.

De qualquer modo, a obra cumpre isso também magistralmente. O ponto-

chave, a este é concedido o espaço necessário, o espaço que marca a mudança

radical de uma coisa em outra: “fui don Quijote de la Mancha, y soy agora, como he

dicho, Alonso Quijano el Bueno”;311 “Yo no soy don Quijote de la Mancha, sino

Alonso Quijano”312, seguido de outros, onde o marcador “ya” denota transição no

tempo: “Yo fui loco y ya soy cuerdo”; “ya soy enemigo de Amadís de Gaula y de toda

la infinita caterva de su linaje”; “ya me son odiosas todas las historias profanas del

andante caballería”; “ya conozco mi necedad y el peligro en que me pusieron

haberlas leído”; “ya, por misericordia de Dios, escarmentando en cabeza propia, las

abomino”313.

É preciso compreender que essa relação oposta e radical expressa Cura. A

relação que aqui tem lugar, assim está exposta por ter sido essa com a qual a obra

esteve jogando todo tempo: ser e não-ser cavaleiro, mundo da cavalaria e mundo da

não-cavalaria. É óbvio que seu fechamento só pode se dar nesse mesmo jogo.

Entretanto, essa relação é só aparente. O que nelas há de verdade está por trás. O

que não é possível perder-se de vista é o jogo. É no ser e não-ser que se configura

aquilo que a obra quer realmente dizer: que há sempre um espaço em aberto, que

esse espaço é o espaço do “não-ser”, que esse espaço é um vazio de outra

natureza, que é o vazio mais pleno que se possa imaginar, que essa plenitude se

deve ao vigor de que está sempre esse espaço prenhe.

311

Fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano o Bom (2, LXXIV, p.699) 312

Eu não sou Dom Quixote de La Mancha, mas Alonso Quijano (2, LXXIV, p.697) 313

“Eu fui louco e já sou sensato”; “já sou inimigo de Amadís de Gaula e de toda a infinita caterva de sua linhagem”; “já são para mim odiáveis todas as histórias profanas da andante cavalaria”; “já conheço minha necessidade e o perigo que me puserem tê-las lido”; “já, por misericórdia de Deus, escarmentando em cabeça própria, as abomino” (2, LXXIV, p.697-699)

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Poderíamos seguir num encadeamento de “quês” interminável. Afinal ele é

puro mistério. Entretanto, paremos aqui para explicar que essa evidência foi o que

acabou revelando a Dom Quixote a sua verdadeira identidade, a verdadeira

essência do homem. Se juntarmos, não só os “Doce Pares de Francia” com todos os

demais cavaleiros que Dom Quixote diz poder ser __ “y aun todos los Nueve de la

Fama”314 __, e se levarmos em conta que Dom Quixote deixa de ser uma coisa para

poder ser outra, só é possível, assim interpretar: nada na pre-sença é fixo nem

definitivo; a pre-sença pode, caso queira, mudar sempre; pode ser o que ela quiser,

porque só ela pode deliberar sobre si mesma.

Nesse caso, fica claro para Dom Quixote que ele é todas as possibilidades,

puro poder-ser.

Novamente a obra, tendo mais ainda para dizer, de forma magistral diz. Não

fica satisfeita, e deixa o máximo de portas abertas que permitam muitas entradas e

saídas, possibilitando, conseqüentemente, o máximo de arejamento necessário ao

que merece o status de obra.

Falta dizer ainda, ou melhor, reforçar essa abertura máxima. Passada a

angústia ou, no auge mesmo da angústia, Dom Quixote toma uma grande de-cisão:

de-cide ser pastor. Com isso sai Dom Quixote do estreito limite ser e não-ser

cavaleiro, e, subindo mais um patamar na escalada do ser, revela saber poder-ser

outros também.

Uma sensibilidade aguçada percebe, nesse arranjo final da obra, uma espécie

de “caixa de surpresas infinitas” onde uma coisa está encondida dentro de outra. Na

caixa “ser pastor” __ “y que tenía pensado de hacerse aquel año pastor” __, atividade

para a qual, em tom de súplica, Dom Quixote __ “les suplicaba” __ convocava seus

amigos e vizinhos dizendo que, “si no tenían mucho que hacer y no estaban

314

Os doze Pares da França [com (...) ser] e mesmo todos os Nove da Fama (1, V, p.35)

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impedidos en negocios más importantes, quisiesen ser sus compañeros”,315

encontra-se implícita outra, a caixa “ser-poeta”.

A caixa “ser-poeta”, por sua vez, se desdobra em duas. Na primeira, a poesia

se mostra, segundo Sansón Carrasco, como puro entretenimento: compondré versos

pastoriles [...] para que nos entretengamos por esos andurriales donde habemos de

andar”.316 Há outra, entretanto, onde a poesia se mostra, escondendo-se um pouco

mais. É quando Dom Quixote resolve sugerir, a cada um, seu nome de futuro pastor.

É nesse ponto em que o poético se ressalta, pelo fato de ser posto em discussão.

De um lado, o poético se evidencia nos nomes: “pastor Quijotiz”, dando nome para si

próprio; “pastor Carrascón”, dando nome a Sansón Carrasco; “pastor Curambro”,

dando nome a “el cura”; e “pastor Pancino”, para Sancho Pança.317 De outro, a

forma como é apresentado o poético opõe-se à anterior.

Se compararmos as duas formas __ a do ponto de vista de Sansón Carrasco

com a de Dom Quixote __, algumas questões ligadas ao poético vêm à superfície. Na

de Sansón Carrasco, o poético é apresentado como entretenimento. Sabe-se,

entretanto, não ser a arte feita para entretenimento.

Comprometimento maior, portanto, se revela na segunda comparação.

Enquanto Dom Quixote nomeia seus companheiros, segundo os procedimentos

típicos da poesia, cuidando de não perder o vínculo com a realidade e, ao mesmo

tempo, cuidando de apartar-se dela, desrealizando-a, Sansón Carrasco sugere que

os nomes das amadas dos pastores sejam retirados “de las estampadas e impresas,

de quien está lleno el mundo”,318 nomes copiados dos já consagrados “Fílidas,

315

E que tinha pensado fazer-se aquele ano pastor [atividade (...) Quixote] Suplicava-lhes [convocava (...) que] se não tinham muito que fazer e não estavam impedidos em negócios mais importantes, quisessem ser seus companheiros (2, LXXIII, p.695) 316

Comporei versos pastoris [...] para que nos entretenhamos por esses ermos onde havemos de andar (Ibidem) 317

(Ibidem) 318

Das estampadas e impressas de que está cheio o mundo (Ibidem)

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Amarilis, Dianas, Fléridas, Galateas y Belisardas”.319 Eles são vendidos “en las

plazas” e, por isso, diz um deles, “bien las podemos comprar”.320 Mais uma vez fica a

arte à mercê do que já está disponível no mundo, a ponto de todos os seus

ingredientes poderem ser comprados nas feiras e mercados.

A discussão acima traz à tona, sob o ponto de vista do fazer poeta, o vínculo

da arte com a realidade.

De todo o apresentado, o mais importante, e que não se pode perder de vista

é a abertura com a qual Dom Quixote acena em sua despedida da obra: não só com

as possibilidades da vida que, sendo experienciada, permite que um fidalgo vire

cavaleiro; que, por sua vez, vire pastor; que, por sua vez vire poeta; possibilidades

que permitem que Alonso Quijano disponha do tempo que quiser para mudar de

nome: “duró (...) ocho días”,321 deixando um rastro de dúvidas sobre chamar-se

Quesada ou Quijada, fixando em Quijote, finalmente, seu nome, como também com

as possibilidades do poético, onde Quijote vira “Quijotiz”. Nomes que já não

precisam de sobrenomes, nem de títulos, porque foram conduzidos à abertura

máxima do poder-ser, que é essência do poético.

Desse modo, fica claro que pastor e poeta não são duas possibilidades mais

para Dom Quixote ser. Significa que o leque de opções é imenso e abertíssimo;

significa muito mais: que não foi casual a escolha dessas duas especialidades

“pastor” e “poeta”. Eles ocupam lugar privilegiado, dentro do universo poético. “O

homem é o pastor do Ser”.322

319

Fílidas, Amarilis, Dianas, Fléridas, Galateas e Belisardas (2, LXXIII, p.695) 320

Bem as podemos comprar (Ibidem) 321

Durou oito dias (1, I, p.20) 322

HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1995, p.51

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Com isso, se quer dizer que essa não é uma possibilidade a mais, essa é a

possibilidade das possibilidades, a mais essencial porque ela é comum a todos os

homens. Só o homem guarda a verdade do ser.

Para Heidegger, a linguagem é a casa do Ser, e nela habita o poeta. O poeta

habita na proximidade do ser, pois, ao poeta, a linguagem fala.

Toda palavra, todo nomear, é na sua essência originária, poesia: a

experiência pensante do ser que se vela, ao mesmo tempo que desvela significado.

O poeta é aquele que escuta o silêncio do Ser, o Ser em seu processo de

velamento. E nesse processo de velamento, constrói sua morada.

O poeta é o pastor do Ser, pois acompanha este processo – o processo por

meio do qual o pensamento atinge a significação pela travessia da linguagem –

como um pastor que segue seu rebanho, não sendo nunca um condutor voluntarista

e dominante, mas antes sendo ele conduzido.

Terminemos enlaçando a frase inicial deste Périplo: “Yo sé quien soy”. A

afirmação firme e resoluta é ambígua. Do mesmo modo que parece ser pura

contradição, assumir Dom Quixote outra personalidade, ao mesmo tempo que

garante saber quem é, desse mesmo modo, parece contraditória mas não é. Pois,

foi a partir desse jogo ambigüo, do demonstrar não-saber escondido sob um

aparente saber que pôde fazer nascer em Dom Quixote um “querer-saber”.

Temos, então, que com Dom Quixote, tudo acontece assim: é a partir do que

já sabe que Dom Quixote pode chegar ao que não-sabe. É a partir do “outro” que

pode enxergar a possibilidade de ser.

Mas, para ser ele mesmo autêntico, precisa submeter tudo o que o outro é ao

diálogo, a todos os níveis de diálogo. E isso só é possível na vida. Só o diálogo com

o mundo possibilita que não se imite o outro, que não se copie o outro, que não se

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encarne o outro, mas que simplesmente se submeta aquela possibilidade do outro à

vida.

Ao submeter-se a uma outra possibilidade, à possibilidade de ser outro, está

Dom Quixote abandonando o cículo vicioso e repetitivo da vida vivida, para ingressar

no círculo aberto e espontâneo da vida experienciada. Aberto porque no ex-

perienciar a vida, abre-se o espaço do “ex” que ultrapassa o limite estreito das

realizações, o limite de tudo o que se “ex-pera”, permitindo que a realidade se amplie

ao seu máximo.

Essa experiência só se efetiva no autodiálogo, aquele que Dom Quixote só

alcança via renúncia, jogando fora tudo o que não lhe é próprio.

A ambigüidade está em que Dom Quixote talvez soubesse o que estava

fazendo. Sabia e queria avisar estar consciente do seu agir. Porque precisava

mostrar e contar isso ao mundo. Logo, precisava fingir: fingir que era cavaleiro, fingir

ficar louco, e, como louco, sabedor da fragilidade de não ser acreditado, precisava

reforçar que sabia quem era. Travestido de cavaleiro, precisava que todos nele

acreditassem, sem correr o risco de ver seu plano posto por terra.

Se Dom Quixote tinha consciência do que fazia, se sabia quem era, quem era

aquele que afirmava saber quem era?

Seria o fidalgo? É possível, mas se justifica empresa tão complexa só para

avisar que tinha consciência de ser o fidalgo e não cavaleiro? Por trás desse aviso

tem de haver outro saber: o saber ser possibilidade. Na frase retumbante que abre a

história de Dom Quixote já está contida a verdade da obra: ser-possibilidade. Por

enquanto, neste 1o Périplo, só deixamos registrado que o homem Dom Quixote é

poder-ser, essa é sua marca essencial.

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Se Dom Quixote é, ao mesmo tempo vida real e ficção, é quase certo que

assim também seja a obra: possibilidade. Essa tarefa fica, entretanto, para o 3o

Périplo, onde terá lugar a investigação do processar-se dessa verdade.

Embora a questão maior desta pesquisa esteja centrada em Dom Quixote

realidade e Dom Quixote ficção, o cavaleiro sente que precisa ainda fazer outra

volta, precisa traçar outro círculo depois de constatar que seu ângulo de visão muito

ampliou o horizonte. Dessa ampliação participa agora o outro, seu olhar, antes tão

centrado em si mesmo, se estende e alcança todos os homens. Assim, vendo mais,

por mais questões é tomado e, embora em outro nível, a pro-cura continua.

Participam do “pré” de Dom Quixote, três “prés”: um, dos séculos XVI/XVII,

por ele avaliado como ”detestables siglos”; o segundo “pré”, constituído pela leitura

das novelas de cavalaria como o mundo ideal de perfeição; o terceiro “pré” está

contido na desconfiança permanente, na dúvida contínua em relação aos “prés”

anteriores, dúvida que não é só sua, pertence ao tempo. Com tanto “pré”,

mergulhado em tanto intramundano, cheio de manualidade, Dom Quixote é

provocado pelo ser ao “ek”, ao lançar-se em direção ao ser. E quem o impulsiona é

exatamente a força dos muitos “prés”, porque o “pré” é condição sine qua non para

novas possibilidades do ser. Esse é o movimento realizado por Dom Quixote. Para

saber a verdade de si no ”ser-em”, precisou sair do mundo engessado e estático das

idéias já realizadas, para imprimir-lhe o dinamismo necessário ao ser. Para isso

precisou superpor as duas redes, a do mundo medieval e a de seu mundo, único

modo de torná-las experienciáveis concomitantemente.

Depois de ter passado pelo experienciar-cura, Dom Quixote tem um

pressentimento: de todos, o terceiro “pré” lhe parece aquele que permanece cheio

de vigor, pronto, disponível para novas descobertas. Intui, na instabilidade da

dúvida, uma necessidade de certeza. Sente que não está encerrada sua missão,

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precisa ainda transitar, nesse “pré”; alguma grande verdade dali pode desvelar-se. É

só isso que capta Dom Quixote, é com essa bagagem que o cavaleiro, com os olhos

bem abertos, faz a passagem do 1o para o 2o Périplo.

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Capítulo II

2º Périplo

A VERDADE DO TEMPO DE DOM QUIXOTE

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1 DOM QUIXOTE, O HERMENEUTA

É indiscutível a missão de filósofo que Dom Quixote tomou para si no 1º

Périplo. Ser porta-voz dos valores medievais, veiculados pela “república cristiana

española”, foi o passaporte que, dando-lhe acesso à Cura, abriu-lhe caminho de

acesso a si mesmo. Entretanto, neste 2º Périplo, uma vez conhecedor de sua

verdade, sua prestação de serviço estará a serviço do outro.

Não esquece Dom Quixote, entretanto, de um aviso que fora somente

insinuado como tarefa a cumprir, sem que lhe tivessem feito muito alarde. Trata-se

de algo que está planejado no futuro, por isso, desde então, o cavaleiro é só

expectativa.

Na verdade, Dom Quixote, desde sempre fora conhecedor dessa tarefa. De

tal modo que não foi informado diretamente sobre ela. Identificou-a, bastando para

isso que sua sobrinha lhe narrasse, com poucos detalhes, o incidente que dera fim à

sua biblioteca.

Disse que o autor do incidente tinha sido um encantador que “vino sobre una

nube”,323 montado numa serpente (“apeándose de una sierpe”),324 entrou na

biblioteca e, em fração de segundos, saiu, deixando a casa “llena de humo”.325

Quando foram verificar, não tinham desaparecido somente os livros, como também

toda a biblioteca. Mandou recado para Dom Quixote “en altas voces que por

enemistad secreta que tenía al dueño de aquellos libros y aposento, dejaba hecho el

323

Veio sobre uma nuvem (1, VII, p.43) 324

Desmontou de uma serpente (ibidem) 325

Cheia de fumaça (ibidem)

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daño en aquella casa que después se vería”.326 Dom Quixote o reconheceu

imediatamente. Era o sábio encantador “Frestón”.

É quando ficamos nós, leitores, além de avisados, também, cientes de que

esse sábio encantador é inimigo de Dom Quixote, porque é protetor de um cavaleiro

com quem ele, “andando los tiempos”,327 terá de “pelear en singular batalla”.328 E diz

mais: “que le tengo de vencer, sin que él lo pueda estorbar”.329 Dom Quixote conclui

que esse sábio encantador só age desse modo, por saber que será uma batalha

inevitável na qual ele não poderá interferir. E que, por isso, fica criando situações

que o desagradem, pois “procura hacerme todos los sinsabores que puede”. O que

ficamos sabendo ao final é que “mándole yo, que mal podrá él contradecir ni evitar lo

que por el cielo está ordenado”.330

Na pressa, esquecemos uma informação. Pode ser que não seja importante,

mas é melhor não deixar nada escapar. Esse sábio encantador tem uma marca

especial: tem parte com “artes y letras”.

1.1 O QUE SE SABE DA LOUCURA, O QUE SE SABE DA RAZÃO?

É impossível, depois de semelhante aviso cifrado, ficar tranqüilo. É o que

acontece com Dom Quixote. Por sua cabeça começa a passar uma série de

possibilidades sobre quem será esse cavaleiro protegido de um encantador inimigo.

Sem descobrir, ou, enquanto não descobre, o preocupa aquela outra missão que

326

Em altos brados que por inimizade secreta que tinha pelo dono daqueles livros e aposento, deixava feito o dano naquela casa que depois se veria (1, VII, p.44). 327

Tempos depois (ibidem) 328

Combater em singular batalha (ibidem) 329

Que tenho de vencê-lo, sem que ele possa evitar (ibidem) 330

Mando-lhe eu, que mal poderá ele contradizer ou evitar aquilo que pelo céu está ordenado (ibidem)

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não se sabe ser missão ou de-cisão, uma de-cisão a mais, desencadeada da de-

cisão de ser pastor. Trata-se da de-cisão-missão de contar aos demais homens a

experiência pela qual passara que o tornou conhecedor de si mesmo, sabedor de

sua verdade. Verdade que lhe valeu a consciência da liberdade, da liberdade de

poder-ser.

Quem, descobridor dessa verdade, consegue não desejar informá-la aos

demais homens? Isso lembra um pouco a proposta de Platão de retorno à caverna,

com a mesma intenção – a de libertar os prisioneiros de seu interior, os prisioneiros

da ignorância. Só que aqui há grandes diferenças, mas parece que Dom Quixote

não as percebe muito bem.331

Por enquanto, da única coisa que sabe é que, se pretende contar para todos

os homens, só poderá contar com a palavra, pois esse é o único instrumento de

comunicação entre os homens. E se preocupa. Acreditariam no que dissesse?

Considerando a mostra dada no 1º Périplo, ficou pública e notória a sua

derrota para outro cavaleiro, com o compromisso de retorno ao lar, sem voltar a

exercer a velha função, a ponto de morrer sem jamais ter voltado a subir em seu

alazão. Logo, aquele cavaleiro louco desaparecera, sem quê nem porquê. E ainda

que, segundo o epitáfio de Sansón Carrasco, a morte não tivesse triunfado (“que la

muerte no triunfó”),332 pincelando com toques míticos seu desaparecimento dos

caminhos de la Mancha, ainda assim, o fato de reaparecer, contando inúmeras

novidades, e assegurando ser conhecedor da verdade, impossibilitava que nele

viessem a acreditar.

Dom Quixote fica agora mais preocupado diante do desafio que precisa

enfrentar. Antes era só o contar, agora é o contar de modo a que todos acreditem. E 331

Depois de sair da caverna e de ter tido acesso à verdade maior, à Idéia do Bem, o homem recém saído da caverna, dotado da prerrogativa de ser filósofo, é impelido a resgatar os demais homens que permanecem no interior da caverna, cativos da ignorância da verdade. 332

Que a morte não venceu (2, LXXIV, p.700)

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ainda mais, carregando o peso de ter tomado conhecimento da luta inevitável com

um tal cavaleiro desconhecido. Dom Quixote apenas conhece o sábio encantador

que tem parte com as “artes e letras”, o que lhe vale, por extensão, uma parcela de

parte com o diabo. A própria ama já o havia mencionado: “porque todo eso se lo

llevó el mesmo diablo”,333 no sumiço da biblioteca.

Diabos à parte, sua preocupação está voltada mesmo para o falar. Agora sim,

compreende-se o seu aviso veemente, ao requisitar a atenção de todos: “soy loco en

mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo”.334

No entanto, é claro que não falou diretamente: sua mensagem chegou de

forma enviesada, a partir da motivação dos que o observavam. É preciso dar voz

novamente ao herói Dom Quixote, porque o contexto o requisita. Diante da presente

contradição, quem sabe se, constrangido, Dom Quixote se sinta na obrigação de

explicar-se: “¿habían de ser mentira, y más llevando tanta apariencia de

verdad [...]?”335

De qualquer modo, ressurge a mesma pergunta do 1º Périplo; lá, a serviço da

anamnese, quando, depois de a identificarmos com a Paidéia platônica,

transformou-se no motor que mobilizou Dom Quixote a pro-curar Cura.

Parece que há mais coisa para Dom Quixote descobrir. Até então, acreditara

ser a única verdade a liberdade essencial do homem de poder-ser todas as

possibilidades. Entretanto, se há uma batalha prevista para o futuro, isso nos dá

sinais de que a história ainda não acabou, e que algo mais está no ar, para ser

desvendado.

333

Porque tudo isso o próprio diabo levou (1, VII, p.43) 334

Observado pelos olhos atentos de Tomé Cecial e de Dom Diego de Miranda, instala-se o paradoxo “loucura-lucidez” e a perplexidade de todos. Dom Diego, intrigado, não compreendia porque Dom Quixote “lo que hablaba era concertado, elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, temerario y tonto” * (2, XVII, p.410), deixando visível uma linha divisória entre as ações (lo que hacía) e o falar (lo que hablaba); linha que igualmente separa “loucura” e “razão”. Sensível a tudo, Dom Quixote responde com uma frase assim simulada por nós: “soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo” ** * o que falava era coerente, elegante e bem dito e, o que fazia era disparatado, temerário e doido. ** sou louco em minhas ações, mas não sou louco no que falo. 335

Haveriam de ser mentira, e ainda mais tendo tanta aparência de verdade [...]? (1, L, p.304)

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Para Dom Quixote, por enquanto, é disso que necessita: fazer com que o

mundo nele acredite no que tem para contar-lhe. Lembra então Dom Quixote que

estivera, todo o tempo do 1º Périplo, muito voltado para si mesmo, e que será

preciso também flexibilizar seu olhar, descentrá-lo de si mesmo, para ter acesso ao

outro. Pressente que não basta contar sua experiência sem estar a par do mundo

real até então transformado, por ele mesmo, em outro mundo – o mundo da

cavalaria medieval, através de seu imaginário.

Essa percepção faz Dom Quixote desconfiar de que precisará, mais uma vez,

ser porta-voz. Mas porta-voz do quê, afinal? Dom Quixote começa a dar sinais de

confusão, o que sempre nos preocupa a todos. Melhor deixar que ele vá

caminhando passo a passo, sem exageros no exercício mental.

Do que precisa inicialmente é olhar ao redor, sensibilizar-se para o mundo.

Dom Quixote se dá conta de que está sendo olhado também, e que, as pessoas que

o olham se mostram intrigadas, dando indícios de perplexidade. A mesma

perplexidade que o obrigou a responder com a seguinte frase: “soy loco en mis

acciones, pero no soy loco en lo que hablo”.336 Entretanto, quando se dá conta, ele

mesmo se põe perplexo, não com sua própria afirmação, mas com a perplexidade

dos demais que o observam. Percebe haver, aí, algum nó.

Vejamos se o podemos ajudar. Nós, leitores da obra, também nos

sensibilizamos para esse dilema. Afinal, nos intrigam muito, também, as coisas que

nela encontramos. É claro que isso basta para que o cavaleiro sensível volte a

ocupar-se e pre-ocupar-se.

Ele mesmo nos alerta de que Cura não se esgota, que é para toda vida. Ele

mesmo que tomara o cuidado de não acreditar estar livre definitivamente da

decadência, porque para “estar lançado”, basta ser homem. Ele mesmo que, depois

336

Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.

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do filtro doloroso da angústia, sabe não ter chegado ao fim sua jornada, a ponto de

não mais afirmar a velha frase retumbante com que abre o 1º Périplo: “Yo sé

quien soy”.337

Foi possível comprovar seu cuidado ao fazer afirmações categóricas e

definitivas: a segurança e a certeza, ele as substitui por asserções mais cautelosas;

como por exemplo, afirmar pela negação: “yo no soy el don Quijote impreso en la

primera parte”.338 Mais significativo ainda é: “no sé si soy bueno, pero sé decir que

no soy el malo”,339 onde a relação saber e não-saber, ser e não-ser vai ao limite

máximo.340 Dom Quixote deixa evidente a mudança radical entre um extremo “Yo sé

quien soy”341 e outro “no sé si soy”,342 demonstrando consciência do transitório

do “ser”.

Depois de tanta experiência só ele mesmo para alertar que a resposta

encontrada para o 1º Périplo não pode fechar-se em si mesma. Ainda que tenha sido

satisfatória à pergunta que a gerou, ela é incontornável. Por isso, na brecha do

incontornável, nova força o impulsiona, lançando-o circularmente a novas perguntas,

que exigem novas respostas.

Por mais que Dom Quixote tivesse insistido em contornar a natureza, fazendo

valer suas teorias e conceitos, a realidade era outra: a realidade é paradoxal. O que

vigia não se submetia aos limites impostos pelo que já era conhecido. Flutuavam

numa zona intermediária – nos interstícios.

Não tendo conseguido chegar ao fim da viagem, inevitavelmente, novo

Périplo se impõe. Nesse Périplo, o impasse ser ou não ser louco nos obriga a

337

Eu sei quem sou (1, V, p.35) 338

Eu não sou o Dom Quixote impresso na primeira parte (2, LXXII, p.691) 339

Não sei se sou bom; mas sei dizer que não sou o mau (Ibidem) 340

“Bueno” e “malo” são epítetos dos dois Quixotes da obra: um deles, “El Malo”, corresponde ao personagem plagiado e publicado por Avellaneda.

341 Eu sei quem sou (1, V, p.35)

342 Não sei se sou (2, LXXII, p.691)

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retornar a Dom Quixote a questão, pedindo-lhe explicações: ninguém mais que ele

mesmo, para saber o que pretende nessa nova volta. Entre mentiras, verdades e

aparências, que nos diga ele mesmo qual a grande questão deste 2º Périplo. Ou,

caso ele mesmo não saiba responder, que perguntemos à obra.

“La razón de la sinrazón que a mi razón se hace, de tal manera mi razón

enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura. [...] Con estas razones

perdía el pobre caballero el juicio”.343 Não é possível ignorar um fragmento retirado

da terceira página da obra, nem deixar de reconhecer, nele, nova contradição: razão

e perda do juízo.

É bem verdade que o fragmento aparece como um mero e inocente exemplo

das novelas de Feliciano de Silva, o autor preferido de Alonso Quijano. Entretanto, a

leveza da inocência se desfaz em duas passagens: a primeira, ao verificar-se estar a

citação, no mesmo parágrafo que introduz o personagem, com insinuações de que

perdera o juízo, acrescido de: “Y llegó a tanto su curiosidad y desatino”;344 a

segunda, no parágrafo imediatamente subseqüente, que revela com todas as letras,

a causa de sua loucura: aquele estilo cheio de “entricadas razones”;345 verdadeiros

“requiebros”346 do famoso Feliciano de Silva, “la claridad de su prosa y aquellas

entricadas razones suyas le parecían de perlas”.347 Essa é a causa da loucura de

Dom Quixote; sem tempo sequer para refletirmos, o parágrafo seguinte a apresenta

de chofre: “Con estas razones perdía el pobre caballero el juicio”.348 Temos então

que a razão, aqui, aparece comprometida irremediavelmente com a loucura. Mas o

choque contraditório não pára por aí. Antes mesmo de que nos alerte o cavaleiro

343

A razão da desrazão que a minha razão se faz, de tal maneira minha razão debilita, que com razão me queixo de vossa formosura […] Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo (1, I, p.18). 344

E chegou a tanto sua curiosidade e desatino (ibidem) 345

Intrincadas razões (ibidem) 346

Floreios. 347

A clareza de sua prosa e aquelas intrincadas razões suas, que lhe pareciam de pérolas (1, I, p.18) 348

Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo (Ibidem)

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sobre ser louco nas ações, mas não ser louco no que diz, a obra já nos lança em

desconcertantes contradições. Como é possível demonstrar interesse e entusiasmo

taxados de desatino, por algo classificado como pérolas - “parecían de perlas”349 se,

ao mesmo tempo, com isso “perdía el pobre caballero el juicio”?350 E mais; a causa

de perder o juízo estava exatamente no esforço empreendido para atender às

referidas pérolas literárias que lia, pois Dom Quixote “desbelábase por entenderlas”,

deixando claro que o que lia não fazia nenhum sentido. Daí precisar o cavaleiro

fazer sobrenatural esforço “por entenderlas y desentrañarles el sentido”.351

Sob várias perspectivas, aparece e reaparece a razão. Ora aparece por

oposição radical, indo ao extremo do irracional: Dom Quixote entrega o plano do

itinerário de suas andanças à orientação de Rocinante:

En esto, llegó a un camino que en cuatro se dividía, y luego se le vino la imaginación las encrucejadas donde los caballeros andantes se ponían pensar cuál camino de aquéllos tomarían, y, por imitarlos, estuvo un rato quedo; y, al cabo de haberlo muy bien pensado, soltó la rienda a Rocinante, dejando a la voluntad del rocín la suya.352

É contraditório que num contexto em que o cavaleiro é homem do

conhecimento, um filósofo bem formado segundo os padrões da Paidéia platônica,

se deposite total confiança na orientação de um animal irracional. Pode-se

interpretar essa opção de Dom Quixote, como um confronto entre a rigidez dos

modelos racionais de apreensão da verdade, e o acaso; uma abertura à

possibilidade do surpreendente e do espontâneo acontecer da verdade.

Ora a razão aparece em oposição sutil, desenhando o perfil psicológico de

dois personagens: Dorotea e Cardenio, como espelhos nos quais se possam ver.

349

Pareciam pérolas (1, I, p.18) 350

Perdia o pobre cavaleiro o juízo (Ibidem) 351

Para desentranhar-lhe o sentido (Ibidem) 352

Nisto, chegou a um caminho que em quatro se dividia, e logo lhe veio à mente as encruzilhadas onde os cavaleiros andantes se punham a pensar qual dos caminhos tomariam, e, para imitá-los, esteve um momento quieto; e, após haver pensado muito bem, soltou as rédeas de Rocinante, deixando à vontade do rocim a sua (1, IV, p.32).

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Um deles, Cardenio, cujo perfil é o conflito evidenciado entre loucura e razão.

De tal modo que, quanto maior a razão, maior a loucura. Há muito Cardenio exercita

o esforço de buscar, no intelecto, as respostas que sempre acreditara estarem ali

disponíveis para uso. E, assim acreditando, é que também Cardenio se entrega ao

vício do “lançar-se”. Sem dúvida, seu lançar-se é diferente do lançar-se de Dom

Quixote. A cada urgência de um agir, se lança para dentro, em direção aos

caminhos tortuosos da introspecção. Cardenio é reflexivo, mestre em cogitações;

seu raciocínio é lento, entrecortado de perguntas, desculpas e imprecações. Avança

no pensar, pára, retrocede, se perde, volta à direção inicial, e acaba caindo em total

confusão. Todo seu agir mental se esgota em buscar argumentos, sem os quais

suas razões não se sustentam, e com os quais gasta um tempo infinito. Nesse

proceder, sua mente racional, que lhe prometera a garantia de certezas e verdades,

se revela em desordem irreversível. Como resultado, seu projetar-se para fora, na

tentativa de solucionar os impasses que a vida lhe reserva, é sempre um fracasso;

ou melhor, não se concretiza. Isso acaba por imprimir, em Cardenio, sua marca

característica: o temor que culmina com a falta total de tomada de decisões, ou de

tomar a iniciativa para resolver problemas. Cardenio se mostra assim um

personagem-questão. Ele é o grande impasse da razão buscando-se em si mesma.

Para isso, é de uma inabilidade profunda, deixando de cumprir seus propósitos, ao

menor obstáculo que se apresente.

Seus temores não se manifestam de modo concreto; ao contrário, são

difusos; verdadeiros fantasmas, contra os quais reage com descontrole total,

objetivando-se em incoerência, contradição, fuga de si mesmo, em loucura, afinal.

Nessa corrida desenfreada que acaba sendo de si mesmo, Cardenio está sempre

em descompasso em relação ao “estar aí”: No limite da cena em que sua amada

desmaia, por não querer casar-se com o homem a quem estava prometida, mas que

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não amava, Cardenio foge, assim dizendo: “en aquel punto me sobrase el

entendimiento que después acá me ha faltado; y así, sin querer tomar venganza de

mis mayores enemigos”.353 A dissonância entre o tempo mental e o tempo real do

ser volta-se contra ele mesmo, invertendo a vingança que deveria ser dirigida contra

seus inimigos, todos os que tinham contribuído para que seu projeto amoroso não se

cumprisse, “quise tomarla de mi mano y ejecutar en mí la pena que ellos merecían; y

aun quizá con más rigor del que con ellos se usara si entonces les diera muerte”354.

O descompasso razão-realidade assim o expressa: “que, por estar tan sin

pensamiento mío, fuera fácil tomarla”,355 referindo-se à vingança contra os inimigos:

caso estivesse com a mente limpa, sem pensamento, caso não estivesse tão

comprometido com os “requiebros” mentais, medindo, avaliando, teria sido fácil pôr a

vingança em prática.

A falta de ritmo entre realidade-tempo-ser faz Cardenio, que tem seu

surgimento na obra cheio de mistério, perder esse mistério, e transformar-se num

amontoado de fragmentos, onde razão e loucura se intercalam, sem que nenhuma

unidade se configure: quando ele aparece numa rachadura da serra (“en la

quebrada de la sierra”) fala “cosas que no podían ser entendidas de cerca, cuanto

más de lejos”.356 Interessante sua marca de ente fragmentado aparecer exatamente

em lugar tão acidentado – uma rachadura da serra.

O uso exacerbado da razão leva Cardenio a pronunciar a frase admirável que

revela a perda da confiança naquilo que para ele representara a verdade

transcendente: “Quedé falto de consejo, desamparado, a mi parecer, de todo el

353

Naquele ponto me sobrasse o entendimento que depois aqui me faltou, e assim, sem querer tomar vingança de meus maiores inimigos (1, XXVII, p.157). 354

Quis tomá-la de minha mão e executar em mim a pena que eles mereciam, e ainda quiçá com mais rigor do que com eles usasse se então lhes desse morte (ibidem) 355

Que, por estar tão sem pensamento meu, teria sido fácil tomá-la (ibidem). 356

Coisas que não podiam ser entendidas de perto, quanto mais de longe (1, XXIII, p.129).

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cielo, hecho enemigo de la tierra que me sustentaba”.357 Ao lamentar-se, reconhece,

não só a grande fragmentação, como a falta total do amparo que só a terra

misteriosa lhe concedia; porque vivia no mundo racional contava somente com as

benesses do céu que andava alijado da terra.

E, para completar, tem também Cardenio um contato com pastores, com os

quais parece manter uma relação de confronto. No auge e desespero da loucura, os

pastores tentam reconfortá-lo, oferecendo-lhe espontaneamente algo que demonstra

não querer receber. Parece não estar familiarizado com a entrega, com o deixar

acontecer, com a leveza do insinuar-se, parece preferir arrancar de modo mais

artificial e violento: “porque cuando está con el accidente de la locura, aunque los

pastores se lo ofrezcan de buen grado, no lo admite, sino lo toma a puñadas”.358

Tudo isso faz de Cardenio uma presa fácil do outro. Entre acatar o desejo

interesseiro de seu pai, indo servir a um “un grande de España”359 e lutar por seu

amor, acaba optando pelo que dita o estabelecido, demonstrando, com isso, que

ficar totalmente dominado pela razão o imobiliza a um agir espontâneo diante dos

grandes desafios da realidade.

O contraponto de Cardenio em relação a Dom Quixote é Dorotea, ótima atriz

que participa de um fingir, dentre os muitos providenciados para convencer Dom

Quixote a regressar para casa. Assumindo o papel de Princesa Micomicona, Dorotea

revela uma mente “arejadíssima”, e seu desempenho intelectual em tudo contrasta

com o de Cardenio. Enquanto este foge do adversário que precisava enfrentar,

adversário meramente representado por Dom Fernando, mas que, na verdade, é a

própria realidade da vida, enquanto isso, a impulsividade de Dorotea a faz sair à

357

Fiquei carente de conselho, desamparado, a meu ver, de todo o céu, tornado inimigo da terra que me sustentava (1, XXVII, p.157). 358

Porque quando está com o ataque de loucura, mesmo que os pastores o ofereçam de bom grado, não o aceita, em vez disso o toma a socos (1, XXIII, p.129). 359

Um grande de Espanha (1, XXIV, p.131).

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procura do traidor: “y me puse en camino de la ciudad a pie, llevada en vuelo del

deseo de llegar”.360 Dorotea é movida, não só pela razão, mas também pelo querer.

Além disso, seu destaque está em, assumindo papel relevante no projeto “del

cura” e “del barbero”, repatriar Dom Quixote, pois sua atuação é quase totalmente de

atriz. Assim, seu desempenho revela claramente um jogo entre a realidade e o fingir:

[...] sé que me fue forzoso tener cuenta con mis lágrimas y con la compostura de mi rostro, por no dar ocasión a que mis padres me preguntasen que de qué andaba descontenta y me obligasen a buscar mentiras que decilles. Pero todo esto se acabó en un punto, llegándose uno donde se atropellaron respectos y se acabaron los honrados discursos, y adonde se perdió la paciencia y salieron a plaza mis secretos pensamientos.361

Na linguagem é ágil, rápida, esperta e astuta. Por esse desempenho, de

acordo com a necessidade, dependendo do modo como ela se apresente, encontra

sempre um rol de palavras para expressar sua rapidez de compreensão das coisas

que vão lhe aparecendo pelos caminhos do diálogo. Joga com idéias, tem facilidade

de expressão, faz jogos de palavras como ninguém; é feliz na escolha dos melhores

termos, brilhante em recortar frases e fazer trocadilhos:

“Mas, por acabar presto con el cuento, que no le tiene, de mis desdichas,” “no hallé derrumbadero ni barranco de donde despeñar y despenar al amo [...] Digo, pues, que me torné a emboscar, y a buscar donde” “En fin, señor, lo que últimamente te digo es que, […] si ya es que te precias de aquello por que me desprecias” [conversando com Clara] “Habláis de modo, señora Clara, que no puedo entenderos: declaraos más y decidme”362

360

E pus-me a caminho da cidade a pé, alçada em vôo pelo desejo de chegar (1, XXVIII, p.166). 361

Sei que fui obrigada a conter minhas lágrimas e manter a compostura de meu rosto, para não dar oportunidade de que meus pais me perguntassem por que andava triste e me obrigassem a inventar mentiras que contar. Mas tudo isto se acabou de repente, chegando ao ponto onde se atropelaram os respeitos e acabaram os discursos honestos, e onde se perdeu a paciência e saíram à praça meus secretos pensamentos (1, XXVIII, p.165). 362

“Mas para acabar logo com o conto, que não lhe concerne, de minhas desditas,” (1, XXVIII, p.162) “não encontrarei penhasco nem barranco de onde despencar e despenar o amo […] Digo, portanto, que voltei a emboscar, e a buscar onde” (1, XVIII, p.167) “Enfim, senhor, o que ultimamente te digo é que, […] se já é que te apraz daquilo por que me desprezas” (1, XXXVI, p.221) [conversando com Clara] “Falais de modo, senhora Clara, que não vos posso entender: declarai-vos mais e dizei-me” (1, XLIII, p.265)

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Pode-se ver, em Dorotea, semelhanças com Sancho, no seu desvario de

ditos populares. Porém é diametralmente oposta sua atuação. Em Dorotea não há a

repetição estéril praticada pelo escudeiro que, para cada situação, força e distorce

seu conteúdo, para fazer nela caber algum velho conhecido refrão, a ponto de,

deles, desencadear uma avalanche, sem lhes dar nenhum sentido. A Dom Quixote,

entretanto, talvez muito se assemelhe. Basta que lembremos da relação intrigante

entre Dom Quixote na vida e Dom Quixote na ficção.

Dorotea é espontânea, entrega-se ao sabor da conversa, sem premeditar

suas intervenções. Seu nome dispensa explicação: significa “presente da deusa/

deus”. Desse modo, ao contrário de Cardenio, é um manancial de possibilidades. É

conveniente, entretanto, deixar claro que Dorotea não é louca. Todo seu

desempenho criativo e brilhante é resultante do pleno estado de razão.

Está formado um par: enquanto Dorotea demonstra ter qualidades típicas

particulares do uso da razão com desempenho literalmente atípico e especial;

Cardenio é louco exatamente porque é escravo da razão. A interdependência

loucura-razão permanece.

São tantas as provocações do par loucura - razão que o tema não se esgota.

A loucura pode, ainda aparecer, desde a superposição com a razão, até o confronto

de realidades, opondo verdadeiro e falso.

Sabe-se que Dom Quixote era “cuerdo” e que, depois, fica louco. Sabe-se

que, do par, cavaleiro-escudeiro, um é louco, o outro é “cuerdo”, ou seja, não é

louco. Sabe-se também, da loucura e da razão que, surpreendentemente, a

oposição dá lugar à superposição: há dois loucos, assim reconhecidos e

caracterizados: além de Dom Quixote, há o outro; ele tem o seu duplo; “Dom Quixote

II”, personagem que Avellaneda aproveitou, na brecha entre a primeira e a segunda

parte, para plagiar. Pois é, Dom Quixote tinha um duplo, mas esse duplo a ele se

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opunha radicalmente, era Dom Quixote “El Malo”, cognome que lhe coube para

marcar a diferença. O verdadeiro Dom Quixote era “El Bueno”. Com a inclusão

desse novo personagem, ficam marcados os limites entre bom e mau, delimitam-se

os rigores da adequação: o que não cabe dentro dos limites da correspondência

adequada é lançado para fora do terreno da verdade, não é verdadeiro, é falso. Mais

um par paradoxal entra em cena.

Embora o racional já tenha feito sua aparição no 1º Périplo, sua marcante

presença na obra exige atenção. Atenção que Dom Quixote, “hombre de

entendimiento”363 teve. Sem ter precisado abandonar a consciência de tudo o que

fizera, fora capaz de ficar louco; sabe mais do que ninguém que é preciso ter

atenção, e tem. De tal modo que, assim que lhe entregamos material de nossa

pesquisa, apresentando-lhe o quadro que opõe loucura à razão, logo percebe haver

dissonâncias.

Logo de início, Dom Quixote fica surpreso com uma personagem até então

por ele desconhecida, pelo menos com esse nome. Não é tanto pelo nome, mas

muito mais pela novidade que sua presença marcante insinuava, acenando-lhe com

algo novo.

No 1º Périplo, da competição ao lugar de verdade, Dom Quixote só lembra

terem participado o relativismo, o nominalismo e o empirismo, como concorrentes de

peso. Dessa competição ele participava como concorrente forte também,

patrocinado “por la república cristiana”. Por mais que se esforce, não consegue

lembrar de nenhum outro participante da peleja.

É preciso mais investigar. Dom Quixote não se conforma com os meandros

por onde o leva essa nova personagem. Para ele não é possível que loucura esteja

tão atrelada à razão. Os exemplos levantados sobre a loucura o intrigam e não o

363

Homem de entendimento (1, XX, p.103)

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convencem. O que se pretende nesse jogo loucura-razão, se não é possível definir

seus liames? Pelo que se pôde observar, o fator determinante para definir o limite

“louco” – “não louco” é a relação que as coisas mantêm com a realidade. Por ora,

entretanto, Dom Quixote seguirá em investigação para ver se surpreende, na relação

loucura-razão, algo mais que lhe sirva de suporte.

1.2 UM MUNDO CHEIO DE CONTRADIÇÃO

Tentar resolver esse problema é voltarmos à obra e deixá-la falar.

“Loco [...] por no poder menos”.364 O fragmento sugere uma oposição radical.

Parece que Dom Quixote optou pela loucura, tendo consciência do inevitável de tal

decisão. Diz-se que a loucura sempre esteve entre os homens; tem-se assegurado

desde Platão, que não chega a ser um mal, “mas, na verdade, porém [...] inspirada

pelos deuses”365. Desde Eros e Afrodite até as Musas, a loucura é sempre uma

espécie de delírio comum aos adivinhos, àqueles que têm o dom de prever o futuro,

superando, em, grau qualquer sabedoria dos homens: “o delírio que provém dos

deuses é mais nobre que a sabedoria que vem dos homens”,366 com o homem

colaborando como meio para libertá-lo de seus males.367

De todas essas espécies de delírio que caracterizam a loucura, a mais

inspiradora é a das Musas. Ai daquele que ouse aproximar-se “dos umbrais da arte

poética, sem o delírio que é provocado pelas Musas”.368

364

Louco [...] por falta de alternativa. (2, XV, p.397) 365

PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p.79-80. 366

Ibidem, p.80. 367

C.f. Ibidem, p.81. 368

Ibidem, p.81.

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Caso creia ser possível algum êxito nessa arte, contando apenas com o

intelecto, estará enganando-se, com uma produção pálida, desprovida da paixão

que só os deuses podem veicular.

Toda essa grandeza sempre tivera a loucura. Entretanto, por muito tempo

estivera trancada a sete chaves; travaram-lhe a passagem, impedindo-lhe que

transitasse livremente. Alguma ameaça representaria, para precisar ser enquadrada

como coisa proibida ou, no mínimo, perigosa. Caso contrário, essa opção tão radical

não exigiria de Dom Quixote a justificativa de não ter ele outra alternativa (“loco por

no poder menos”). Essa seria uma das explicações, mas falta ainda aquela que,

também sugerida no fragmento, justifica a necessidade de o fidalgo enlouquecer;

necessidade que nos soa como vital __ “por no poder menos”. De qualquer modo,

fica caracterizada a definição de um espaço, não só delimitado, mas também

nomeado “loucura”. Dom Quixote, sem outra alternativa, opta por esse espaço e não

pelo seu oposto literal e paradoxal __ a razão.

No 1º Périplo, a asserção __ “loco por no poder menos” __ funciona como

alternativa de ordem prática. A opção atende à urgência do inadiável: trazer, ao seu

tempo, o mundo da cavalaria, para nesse mundo se lançar, à pro-cura da Cura.

No 2º Périplo, “loco por no poder menos” adquire outro sentido: mais

consciente, Dom Quixote lança o olhar para o horizonte e vê toda realidade cindida.

É quando se dá conta de que vão se formando dois blocos estanques, definitiva e

rigorosamente em oposição.

Tendo de decidir, Dom Quixote, “por no poder menos”, no 1º Périplo optou

pela loucura e virou cavaleiro louco; pois se não havia opção, sem outro jeito, opta

pela loucura. Essa decisão, entretanto, põe em cena um dilema. A situação que se

instala efetivamente é paradoxal: ao exercer a função filósofo, que Dom Quixote se

esforçou para cumprir com perfeita diligência, a sua face razão acabou,

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contraditoriamente, tendo de conviver com sua face loucura. Esse convívio deveria,

por si só, desfazer o paradoxo ou, no mínimo, convocar a pensar. No entanto, não

foi isso o que aconteceu.

E Dom Quixote pensa. Pensa e fica apreensivo, como todos nós.

Se Dom Quixote já sinalizara a possibilidade de convivência loucura-razão,

isso acaba sendo impossibilitado por outra aparente cisão. Não satisfeitos em

separar loucura e razão, ao primeiro sinal de, com sua sensibilidade, Dom Quixote

atinar para essa possibilidade, impõem outra.

Na verdade, não se trata de outra cisão, ela é a mesma que separa loucura

e razão. O que se vê é a inviabilização de qualquer convivência. Apesar de

participarem energeticamente na mente, a força e o poder da cisão acabam

anulando uma à outra. Foi o que revelou a avaliação sempre positiva do

entendimento, exaltando o lado racional, em detrimento da imaginação, uma vez que

esta estava irremediavelmente doente. Todas as vezes que Dom Quixote tem

oportunidade de exibir sua faceta racional de homem do entendimento, é por todos

percebido e elogiado. Junto com o elogio, não se deixa de fazer menção, entretanto,

à sua faceta que extrapola os limites do racional, faceta por onde transita,

livremente, o que nele persiste do cavaleiro:

En los que escuchado le habían sobrevino nueva lástima de ver que hombre que, al parecer, tenía buen entendimiento y buen discurso en todas las cosas que trataba, le hubiese perdido tan rematadamente en tratándole de su negra y pizmienta caballería.369

369

Naqueles que o escutaram, sobreveio nova lástima de ver que homem que, ao que parecia, tinha bom entendimento e discurso em tudo de que tratavam, o houvesse perdido tão rematadamente, em se tratando da negra e obscura cavalaria andante (1, XXXVIII, p.233).

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Assim, o paradoxo permanece. Mesmo que Dom Quixote tivesse provado ser

possível a dupla atuação, ela parece ser inviabilizada porque uma delas é rejeitada,

criticada e avaliada como lamentável.

Voltemos a Platão: dos quatro tipos de loucura que descreve; uma é a loucura

profética, a de Apolo; a segunda é aquela que dá abertura a todas as transgressões

possíveis com a finalidade de promover a purificação de todo o imposto pelas

exigências éticas limitadoras: é a loucura de Dionísio, a praticada nos Mistérios de

Eleusis; a terceira é a loucura auspiciada pelas Musas. Essa loucura é a loucura

inspiradora, a que surpreende e toma os escolhidos para produzirem grandes obras.

Homero e Hesíodo foram tomados pelas Musas. A última é a loucura passional, a

loucura de Eros ou Afrodite que se apresenta junto com o sentimento do amor.

Platão considera a loucura também divina e a caracteriza como liberação divina dos

módulos ordinários dos homens: “liberación divina de los módulos ordinarios de los

hombres”370.

Seria essa liberação do ordinário, o espaço da imaginação que, por seu turno,

coincide com a loucura? E, por que representaria perigo? Localizada para além do

ordinário, parece dividir espaço com o “ex”, aquele mesmo espaço do “experienciar”

que lança tudo para fora dos limites.

Pois bem, essa informação talvez sirva para mais adiante. Por ora, o que está

em questão é exatamente a concorrência de entidades diametralmente opostas.

Essa oposição se desdobra infinitamente, haja vista as duas zonas em que está

cindida a mente de Dom Quixote: “entendimiento” e “imaginación”. Observa-se,

entretanto, o destaque que o entendimento tem sobre a imaginação. Basta

370

Liberação divina dos módulos comuns dos homens (ARÊAS, James. O delírio dos deuses e a loucura dos filósofos. Comum. Rio de Janeiro, Facha, v.11, n.25, p.5-24, jun-dez 2005. [impresso])

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selecionarmos os comentários decorrentes da avaliação feita pelos que observavam

seu desempenho, como ficou comprovado no discurso acima.

A obra está cheia de marcações que revelam isso. Consideramos, aqui,

imaginação, tudo o que estiver na zona de atuação de Dom Quixote correspondente

à cavalaria da Idade Média; essa era a zona doente, essa era a zona louca.

É claro que Dom Quixote não é o primeiro a receber esse diagnóstico: doença

da imaginação. Também o filósofo Demócrito Abderita, como está registrado por

Unamuno em Vida de don Quijote y Sancho, retomado por Stephen Gilman371, foi

tido como louco pelos habitantes da cidade de Abdera e acabou nas mãos de

Hipócrates que, da Ilha de Coos, partiu com a urgente missão de curar o ilustre

filósofo, providência pela qual lhe prometeram altíssimas recompensas. Interessante,

e que merece registro, é que o paciente de Abdera é também um filósofo; do mesmo

modo que Dom Quixote.

O enfermo Demócrito foi submetido por Hipócrates a uma sabatina de cunho

puramente racional, obtendo resultado, na avaliação de seu sabatinador,

surpreendentemente positivo, dizendo inclusive que loucos e desatinados eram

todos os demais que assim o tinham diagnosticado porque, no breve tempo que

Demócrito “razonó”372 com Hipócrates, proferiu belos discursos de entendimento,

não de imaginação. Concluiu-se, assim, que a lesão estava localizada num único

setor de sua mente – na imaginação.

Se, do mesmo modo que Demócrito, também filósofo, Dom Quixote tinha

desempenho brilhante nas situações de “entendimento”, é natural que todos

concluíssem ter ele o mesmo mal: ser a lesão de Dom Quixote da mesma natureza.

É verdade que se mostra perfeitamente lúcido em determinados momentos;

371

Apud GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. 372

Ponderou.

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entretanto, parece que sua mente dá saltos constantes da razão à imaginação,

oferecendo uma gama imensa desses trânsitos, que vai desde a opinião de

personagens com quem Dom Quixote contracena até as do próprio herói.

Nessa avaliação, fica patente que a mente não funciona porque não é

saudável em sua totalidade. No tempo de Dom Quixote, a mente já se mostra

fragmentada em compartimentos. Na obra, junto com “entendimento”, são

mencionados os termos razão e racional, em franca oposição à imaginação e à

fantasia: “yo imagino que todo lo que digo es así, sin que sobre ni falte nada; y

píntola en mi imaginación como la deseo”.373

Na tentativa de compreensão, fomos buscar o seu significado: “ingenio” é

apresentado como força natural de entendimento, força investigadora de tudo aquilo

que, pela razão ou pelo discurso, é possível alcançar-se, tanto nas ciências e na

arte, como em qualquer área. Acatar esse significado como possível, torna-se

simples, também. Tanto Dom Quixote, como todos os do seu tempo estão voltados

para a aquisição de conhecimento. A todo o momento, encontramos, no texto de

Cervantes, referência às “armas” e às “letras”, como fortes elementos característicos

daquele momento. Nosso herói sabe tudo, sabe tanto, a ponto de Sancho, um dia,

compará-lo com um demônio por sua capacidade de deter todo tipo de

conhecimento: “Digo de verdad que es vuestra merced el mesmo diablo y que no

hay cosa que no sepa”.374

Dom Quixote tem muito bem delineado o perfil do homem das letras, o

suficiente para provar já estar configurado esse homem em sua época: para que um

homem daquela época fosse eminente nas letras, “le cuesta tiempo, vigilias, hambre,

373

Eu imagino que tudo que digo é assim, sem que sobre ou falte nada; e pinto-a e minha imaginação tal como a desejo (1, XXV, p.142). 374

Digo de fato que é vossa mercê o próprio diabo e que não há nada que não saiba (1, XXV, p.143)

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desnudez, vaguidos de cabeza, indigestiones de estómago, y otras cosas”.375 Se

eram as letras a preocupação da época, como se justifica a loucura como presença

constante na obra? É extremamente contraditório que a história de um louco tenha

como título “El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha”,376 em oposição radical

à sua temática. Por que Cervantes denomina, com tanta seriedade, seu louco

protagonista de “ingenioso”?

Além desse exemplo, Dom Quixote se mostra “muy subido ingenio”;377

quando dá uma verdadeira aula, ao definir poesia:

La poesía, señor hidalgo, a mi parecer, es como una doncella tierna y de poca edad, y en todo estremo hermosa, a quien tienen cuidado de enriquecer, pulir y adornar otras ciencias, y ella se ha de servir de todas, y todas se han de autorizar con ella.378

Muitos outros exemplos ilustram essa tendência investigadora na trilha do

conhecimento. É preciso estar atento, entretanto, para o que alertou Dom Quixote: a

seus olhos, a razão não parece configurar-se na dependência tão estreita da

loucura. Mesmo sem querer preocupar-se com isso, no momento, Dom Quixote

precisa chamar a atenção para o cuidado que se deve ter a esse respeito. Nesse

fragmento, por exemplo, não se percebe relação razão - loucura, a relação parece

ser de outra ordem. Embora nossa interpretação declare estar a poesia restrita

também aos limites do conhecimento, é possível também antever, nas entrelinhas,

uma certa ambigüidade, apontando para um possível jogo entre ciência e poesia,

apontando para o que nelas há de essencial, talvez.

375

Custa-lhe tempo, noites em claro, fome, nudez, tonturas de cabeça, indigestões de estômago, e outras coisas (1, XXXVIII, p.232). 376

O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. 377

Muito elevado engenho. 378

A poesia, senhor fidalgo, em minha opinião, é como uma donzela compassiva e de pouca idade, e em tudo bela em extremo; a quem têm o zelo de valorizar, polir e adornar as outras ciências, e ela há de servir-se de todas, e todas hão de abonar-se nela (2, XVI, p.402).

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Digam o que digam: se por excesso de leitura, se por “calentura” lhe secaram

os miolos, não importa. Importa sim, que sua imaginação é que acabou ficando

comprometida. Na aparência é isso que a obra indica; mas seria possível levantar

outra possibilidade. Não seria a imaginação, uma contrapartida para garantir-lhe a

saúde? Dom Quixote não é um ente da vida real que necessite comprovar sua

existência civil, logo, essa saúde se refere a algo bem maior do que está previsto

dentro dos limites ônticos. Essa saúde é extensiva a todos os homens. Isso porque,

Dom Quixote é uma imagem que abarca todos os homens em todos os seus

problemas e questões.

Nesse caso, se a imaginação pode ser abertura para a saúde, isso significa

que Dom Quixote tem razão quando desconfia não se restringir a razão ao par

loucura. É possível que a razão jogue, também, com outros pares; a imaginação, por

exemplo.

Ao mesmo tempo em que avançamos, recuamos, ao mesmo tempo em que

pensamos ter em mãos a resposta, aparece Dom Quixote para flexibilizar.

Embora sabedores agora das diversas modalidades de loucura, embora já

saibamos serem suas possibilidades muito amplas, seguimos, nós e Dom Quixote,

intrigados. É inegável a visibilidade com que aos poucos vai ganhando forma a cisão

que põe em confronto loucura e razão, sem que o justifiquem motivos plausíveis. Na

verdade, com que está mais preocupado Dom Quixote, não é com a razão, e sim

com algo mais que sua sensibilidade sonda no ar. Esse algo mais talvez seja o

responsável pela a cisão que traz o mundo todo contornado dentro de limites. De tal

modo que já estão se tornando perceptíveis a todos que para esse fenômeno olham

com olhos questionadores.

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Foi o que aconteceu com Dom Quixote, que exigiu que ele próprio desse

explicações: “soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo que hablo”.379 O

problema mais ainda se agrava, porque, diante do olhar de todos, é o próprio Dom

Quixote quem acaba sendo obrigado a plasmar o estranho paradoxo.

Na obra, é a primeira vez que a loucura de Dom Quixote é posta em xeque,

de modo a que o próprio personagem possa opinar e participar dessa avaliação: em

busca de glória e fama, Dom Quixote, sem deixar escapar a mínima oportunidade,

desafia “el leonero”, o homem que conduz uma carroça com bravos e famintos

leões, um presente do Marechal de Orán ao rei, a abrir a jaula para que possa

provar sua coragem a todos os que puderem testemunhar seu ato de bravura e,

desse modo, defender, junto ao rei, o seu prestígio.

Mesmo diante dos alertas de todos, e das súplicas de Sancho, o cavaleiro

leva seu propósito adiante. É salvo pelo rebate falso: aberta a porta, o leão,

“después de haber mirado a una y otra parte [...] volvió las espaldas y enseñó sus

traseras partes a don Quijote”,380 desmentindo a bravura e a fome propagadas.

Don Diego de Miranda que nada havia proferido, observava o fato e anotava

cuidadosamente as palavras de Dom Quixote. Intrigava-lhe o manchego

“pareciéndole que era un cuerdo loco y un loco que tiraba de cuerdo”;381 intrigava-lhe

o gênero de sua loucura; por isso em alguns momentos “ ya le tenía por cuerdo”,382

em outros o tirava “por loco”. E tudo porque “lo que hablaba era concertado,

elegante y bien dicho, y lo que hacía, disparatado, temerario y tonto”.383

379

Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo. 380

Depois de olhar de um lado a outro [...] virou-se de costas e mostrou suas partes posteriores a Dom Quixote (2, XVII, p.408). 381

Parecendo-lhe que era um sensato louco e um louco que parecia sensato (2, XVII, p.410). 382

Já o considerava sensato (ibidem) 383

O que falava era ajustado, elegante e bem dito, e o que fazia, disparatado, temerário e tolo (ibidem)

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Mesmo que Dom Diego de Miranda não as tivesse anotado, Dom Quixote

cuidou de confirmá-lo. Confirmou a observação de Dom Diego, reafirmando a linha

divisória que separava em si mesmo duas performances:

¿Quién duda, señor don Diego de Miranda, que vuesa merced no me tenga en su opinión por un hombre disparatado y loco? Y no sería mucho que así fuese, porque mis obras no pueden dar testimonio de otra cosa. Pues, con todo esto, quiero que vuesa merced advierta que no soy tan loco ni tan menguado como debo haberle parecido.384

É possível que Dom Quixote, tocado pelo rigor da ordem discursiva que a

época exigia, se preocupasse em esmerar-se em cuidados: sua fala possui

estruturação sintático-gramatical impecável, na mesma medida da exigência do

desempenho brilhante de seu papel de filósofo. Com excesso de lógica eram

elaborados seus discursos:

No esperaba yo menos de la gran magnificencia vuestra, señor mío – respondió don Quijote –; y así, os digo que el don que os he pedido, y de vuestra liberalidad me ha sido otorgado, es que mañana en aquel día me habéis de armar caballero, y esta noche en la capilla deste vuestro castillo velaré las armas; y mañana, como tengo dicho, se cumplirá lo que tanto deseo, para poder, como se debe, ir por todas las cuatro partes del mundo buscando las aventuras, en pro de los menesterosos, como está a cargo de la caballería y de los caballeros andantes, como yo soy , cuyo deseo a semejantes fazañas es inclinado.385

Vêem-se, nessa estruturação, vestígios do modelo discursivo das novelas que

serviram de modelo a Dom Quixote:

384

Quem duvida, senhor dom Diego de Miranda, que vossa mercê não me tenha em sua opinião como homem disparatado e louco? E não seria muito que assim fosse, porque minhas obras não podem dar testemunho de outra coisa. Pois, com tudo isto, quero que vossa mercê advirta que não sou tão louco nem tão mentecapto como devo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410) 385

Eu não esperava nada menos que uma grande magnificência vossa, senhor meu – respondeu Dom Quixote; __ e assim vos digo que o dom que vos pedi e que a vossa liberalidade me outorgou é que amanhã vós me armareis cavaleiro, e esta noite, na capela do vosso castelo, velarei as armas; e amanhã, como já disse, cumprir-se-á o que tanto desejo, para poder, como é o correto, ir por todas as quatro partes do mundo, buscando as aventuras em prol dos necessitados, como está a cargo da cavalaria e dos cavaleiros andantes, como eu sou, cujo desejo a semelhantes façanhas é inclinação. (1, III, p.25)

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Amadís fue el norte, el lucero, el sol de los valientes y enamorados caballeros, a quien debemos de imitar todos aquellos que debajo de la bandera de amor y de la caballería militamos.386

Dom Quixote, no exercício de filósofo, no exercício de exímio comandante e

senhor do conhecimento, se esmera dando verdadeiras aulas sobre qualquer tema

que se apresente cruzando espontaneamente seu caminho, dando clareza a tudo o

que diz para garantir ao ouvinte a segurança da certeza inquestionável.

Podemos contar, inclusive, com a existência de pesquisa nesse sentido,

responsável pelo levantamento rigoroso das diversas estruturas discursivas

encontradas na obra moldadas para exercer ou cumprir funções, todas orquestradas

pelo poder da lógica racional. Juan David García Bacca registra evidência do

exercício frenético do racional que vai desde “Raciocinancia objetiva”; Raciocinancia

y racionalidad”; “Raciocinancia, refranes”; “Aventura y raciocinancia”; “Raciocinancia

y argumentación”; até “Inconexión de porqués y paraqués”387. O saldo desse

exercício está registrado, com gráficos, e tudo o mais que uma pesquisa quantitativa

exige, e resume-se no seguinte fragmento:

Añádase que en casi todas las páginas irrumpe la razón [...] y no será exagerado mas sí ilustrativo y sugerente afirmar que; la dosis total de razón distribuida a lo largo de la obra es 2.500 X 2, es decir: unas 5.000 o expresado en otra forma: 5.000 son las veces que Don Quijote/Cervantes, Cide Hamete/Cervantes, Sancho Cervantes se sienten forzados a dar expresión –expresa, palabrera – a la razón [...]388

Na pesquisa contrastam o discurso literário-filosófico com o científico-

filosófico; apontam cadeias de “porquês” comuns e próprias da ciência, nivelam as

386

Amadís foi o norte, o luzeiro, o sol dos valentes e apaixonados cavaleiros, a quem devemos imitar todos aqueles que sob a bandeira do amor e da cavalaria militamos (1, XXV, p.137) 387

“’Raciocinância’ objetiva”; “’Raciocinância’ e racionalidade”; “’Raciocinância’, refrões”; “Aventura e ‘raciocinância’”; “’Raciocinância’ e argumentação”; até “Desconexão de ‘porquês’ e ‘paraquês’”. 388

Acrescente-se que em quase todas as páginas irrompe a razão [...] e não será exagerado, mas sim ilustrativo e sugestivo afirmar que; a dose total de razão distribuida ao longo da obra é 2.500 X 2, ou seja: umas 5.000 ou expresso de outra forma: 5.000 são as ocasiões nas quais Dom Quixote/Cervantes, Cide Hamete/Cervantes, Sancho Cervantes vêem-se obrigados a dar expressão – expressa, palavrosa – à razão (GARCÍA BACCA, Juan David. Sobre el Quijote y Don Quijote de La Mancha. Barcelona: Anthropos, 1991, p.45)

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cadeias discursivas em mais ou menos lógicas: “[...] no hay refrán que no sea

verdadero, porque todos son sentencias sacadas de la mesma experiencia, madre

de las ciencias todas”389 [grifo nosso].

Depois de tanto atuar como cavaleiro louco, precisava desfazer a imagem que

começava a se tornar conhecida, não só em la Mancha, mas em todos os caminhos

de Espanha: no castelo dos duques:

El eclesiástico, que oyó decir de gigantes, de follones y de encantos, cayó en la cuenta de que aquél debía de ser don Quijote de la Mancha, cuya historia leía el duque de ordinario, Y él se lo había reprehendido muchas veces, diciéndole que era disparate leer tales disparates; y enterándose ser verdad lo que sospechaba, con mucha cólera [...].390

Dom Quixote, surpreendentemente, ainda circulava em la Mancha, no pleno

exercício da ficção, e já era, não só conhecido de todos, mas era também lido: “que

era disparate leer tales disparates”. Sua fama de louco corria no rastro de sua

própria criação, o que possibilitava ser ele avaliado, não só a partir do olhar dos que

o cercavam, mas também daqueles que o liam.

Se, para receber honras e glória, a ação de Dom Quixote no enfrentamento

com os leões seria submetida à avaliação do rei, é lícita sua precaução: “Pues si

acaso su majestad preguntare quién la hizo, diréisle que el caballero de los

Leones [...]”.391

Era preciso estar atento ao que falava: Tomé Cecial participara da luta

improvisada intencionalmente para reconduzir o cavaleiro à sua casa. Ao dar-se

conta de que, ao contrário do que estava previsto, ele e Sansón Carrasco, os dois

389

Não há refrão que não seja verdadeiro, porque todos são sentenças tiradas da própria experiência, mãe das ciências todas (1, XXI, p.111). 390

O eclesiástico, que ouviu falar de gigantes, de estrepolias e de encantos, caiu em si que aquele devia de ser dom Quixote de la Mancha, cuja história lia o duque ordinariamente, E ele o repreendera muitas vezes, dizendo-lhe que era disparate ler tais disparates; e interando-se ser verdade o que suspeitava, com muita cólera [...] (2, XXXI, p.486) 391

Pois se por acaso Sua Majestade perguntar quem a fez, dizei-lhe que o Cavaleiro dos Leões (2, XVII, p.409).

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que premeditaram a ação, saíram feridos, sem resistir, lançou ele a pergunta

sintomática:

Don Quijote loco, nosotros cuerdos, él se va sano y riendo; vuesa merced queda molido y triste. Sepamos pues, ahora: cuál es más loco: ¿el que lo es por no poder menos, o el que lo es por su voluntad?.392

Sua loucura, portanto, está sendo avaliada minuciosamente, a partir de outros

personagens e sob vários pontos de vista.

Dom Quixote percebe que a verdade já não depende dele somente; dela

participa também o olhar do outro. A certeza e segurança com que abre o 1º Périplo:

“Yo sé quien soy”,393 agora, já lhe parece ameaçada. Não é mais possível sair pelo

mundo, dizendo o que lhe vem à cabeça; Dom Quixote precisa mostrar a face que

poderia garantir-lhe a segurança de ser reconhecido em seu tempo. Agora está

também, em jogo, o outro.

O impasse loucura-razão acolhe perfeitamente as duas possibilidades acima

apresentadas, pelo menos, por enquanto: tanto Dom Quixote já percebia o incômodo

da contradição, e, por isso, também incomodado com a não compreensão de seus

expectadores, tenta tranqüilizá-los, explicando o seu desempenho contraditório

como possível; como também Dom Quixote conhecia os rigores da ordem discursiva

que a gramática já trouxera e deles sabe não poder escapar.

A mudança em seu desempenho, ou melhor, o anúncio dessa mudança deve

ter peso maior que seu conteúdo. “Soy loco en mis acciones, pero no soy loco en lo

que hablo”394. Por isso, optaremos por ficar com a terceira possibilidade: o aviso de

Dom Quixote está dirigido ao leitor; provavelmente, quer anunciar o papel que

392

Dom Quixote louco, nós sensatos, ele vai sadio e risonho; vossa mercê fica moído e triste. Saibamos, pois, agora, qual é o mais louco: o que é por falta de alternativa ou o que é por sua própria vontade? (2, XV, p.397) 393

Eu sei quem sou (1, V, p.35). 394

Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo.

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desempenhará em sua nova jornada. Um papel que exige muito mais que “el

entendimiento” tão propagado. O papel que desempenhará exige muita

compreensão. E por que não falar, interpretação?

Esse cuidado de Dom Quixote não pode ser gratuito; parece sugerir atenção

ao outro. Por isso, do mesmo modo que o linear da escrita só permite que uma coisa

se apresente de cada vez, aguardemos alguma surpresa que pode nos estar

reservando Dom Quixote, surpresa embutida na forma como ele insiste em explicar-

se para os demais, explicar-se para os olhos ordinários: “soy loco” e “no soy loco”,

além de “soy loco” e “no soy tan loco”.

No 1º Périplo, enquanto a disposição que dava a tonalidade indispensável à

compreensão era a dúvida, o estabelecido e o compartilhado estiveram a serviço da

Cura. Partindo daí, Dom Quixote, “ocupando-se” e “pre-ocupando-se”, pôde ir deles

renunciando e libertando-se: à medida que, a partir do ser, realizava, realizando-se

como verdade; à medida que trazia para si, a consciência, cada vez maior do ser

que, desde sempre fora; à medida que o não-querer ia dando espaço ao querer, e

determinava a excelência e dignidade do poder-ser, mais ia consumando-se o seu

ser.

O estabelecido e o compartilhado, apesar de Dom Quixote tê-los como

suporte no empreendimento da Cura, deles precisou libertar-se: quanto mais a

verdade estabelecida e compartilhada era derrubada e desmascarada, mais o

impróprio cedia lugar ao próprio; mais Dom Quixote se Curava.

Passada a experiência de Cura, seu olhar divisa horizonte mais amplo. Sente

agora uma necessidade de outra loucura que não reconhece ainda, em todas as

suas sutilezas, mas que sabe não ser aquela que a todo momento lhe sinalizam

existir. Tem a impressão de que todos em Espanha estão loucos. E, por mais que se

esforcem em manter a aparência de seres normais, usando disfarces que driblem a

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mente mais esperta, não chegam a convencer Dom Quixote. Por isso precisa o

manchego persegui-la incansavelmente.

Isso aumenta mais ainda o leque de possibilidades. Se antes já tinha sido

mais um novo item do lado da razão – abrindo a possibilidade de ela jogar não

somente em par opositivo com a loucura, mas também com a imaginação, agora

surge outro item do lado da loucura, mostrando que há um novo tipo de loucura.

Esta parece ser a mais complicada de todas, pois parece estar respaldada pelo que,

no dizer corrente, no senso comum, é o máximo do certo, do seguro e do

comprovável. É aquela loucura para qual já se havia chamado a atenção

inicialmente: a loucura perfeitamente enquadrada dentro dos limites da realidade. Ou

melhor, a loucura vista pelos olhos sensíveis de Dom Quixote é que é assim

avaliada. Para o senso comum, entretanto, isso não tem nada de loucura, todos os

que são por ela acometidos a consideram normal, do mesmo modo que também se

consideram perfeitamente normais e saudáveis.

O que terá acontecido para que o mundo esteja dando todos esses sinais?

Se antes o mundo sem consistência nem definição, o mundo da dúvida e da

incerteza se retrai; com o tempo, a disposição da incerteza cede espaço; e o

sentimento que impregna Espanha sugere certeza e estabilidade. O sentimento que

dá o tom à compreensão do mundo nesse momento é uma nova razão que se

aproxima recolhendo, no mundo, o máximo de possíveis garantias de certeza: “les

han de traer ejemplos palpables, fáciles, intelegibles, demonstrativos, indubitables,

con demostraciones matemáticas que no se pueden negar”.395 O compartilhado

ainda se apresenta integralmente em sua funcionalidade, como elemento de

ocupação e de pre-ocupação. O que muda é o olhar de Dom Quixote. Quanto mais

395

É preciso dar-lhes exemplos palpáveis, fáceis, intelegíveis, demonstrativos, indubitáveis, com demonstrações matemáticas que não se possa negar (1, XXXIII, p.193).

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se impõe a razão, mais insidiosa se torna a loucura: sua presença é constante,

disfarça, dribla, engana, confunde; parece aquele cavaleiro que se submete a muitos

cavalos fogosos; ou escravo, a quem lhe mandam muitos senhores. E ele, no

esforço máximo de compreensão, insiste. Para isso adquiriu força e poder; a

experiência do 1º. Périplo, já o tinha transformado. E, porque já não o escravizam, o

estabelecido e o compartilhado estão sob seu domínio; sua insistência é diferente de

seu insistir decadente, sua insistência agora é pura resistência.

O estabelecido e o compartilhado seguem seu caminho e permanecem no

mundo. Seria ingenuidade acreditar ser possível descartá-los; a participação da

“dissimulação”, da insistência e da errância, no jogo do conhecimento, foi

fundamental, deixou bem definida a indefinição dos limites do ser.

Que fique claro: entre insistências e errâncias, a apropriação do próprio nunca

encerra o processo de Cura. O que pode, de algum modo e no máximo, sugerir

ainda finalização, é a morte. E dizemos “de algum modo” porque, na obra, o

desempenho da morte como personagem deixa no ar sua realidade efetiva. Basta

lembrarmos do epitáfio - “que la muerte no triunfó”,396 suficiente para deixar aberto o

ciclo da Cura, tanto na obra como em nossa pesquisa. Foi assim que a deixamos no

1º. Périplo, dela recolhemos o que foi possível, sabedores de que não a tínhamos

esgotado.

Triunfando ou não a morte, neste 2º. Périplo, o foco estará na consciência que

ela traz ao homem. Melhor ainda, o foco estará na consciência que adquiriu Dom

Quixote, por Cura tê-lo lançado a outro patamar mais alto. Desse ponto de vista, sua

visão está ampliada e, por isso, recolhe novos dados, dados que concorrerão para

dar-lhe outro nível de consciência.

396

Que a morte não venceu (2, LXXIV, p.700).

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Esclarecemos que, neste 2º. Périplo, o lugar de centro não é ocupado pela

morte, mas que à morte estaremos dando outro foco. Ter Dom Quixote

experienciado a morte e por isso ter adquirido mais consciência de que viver é

poder-ser, isso mais aumenta o seu compromisso no 2º. Périplo – o compromisso do

hermeneuta que, tendo recebido essa mensagem interpretativa, precisa “falar”,

precisa contar aos homens a grande descoberta.

O que contribuiu para que aquele cavaleiro que entrou na história como um

louco tenha conquistado degrau tão alto de onde lançar um novo olhar? Não

discorreremos sobre suas experiências no 1º. Périplo. Contudo, seria leviandade

deixarmos passar acontecimento que, dentre todos, é o de maior relevância no

projeto ôntico de Heidegger. Trata-se da morte e suas ressonâncias.

1.3 A OUTRA FACE DA MORTE

Dom Quixote compreende a radicalidade com que se apresenta a morte; já a

experimentou, e agora sabe. E, de posse desse novo saber __ a morte como finitude

radical e o “poder-ser” como essência da pre-sença, Dom Quixote articula os

saberes e capta uma mensagem que lhe é enviada do futuro: pela voz de

Heidegger, o homem é irremediavelmente um ser-para-a-morte. Tal revelação mais

acentua sua condição essencial de ser possibilidade. Diante da finitude radical da

morte, só se pode esperar uma valorização mais essencial da vida. E é para isso

mesmo que Heidegger dá destaque à morte. Como dissemos antes, a morte não

interessa a Heidegger em nada que aponte para o pós-morte. Dela, só lança mão,

para colocar em evidência a existência e, conseqüentemente, todos os existenciais.

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Nesse estreito comprometimento da morte com o existir, é só nesse momento que

Heidegger a redimensiona, e sobre ela projeta luz, iluminando a sua outra face. Dom

Quixote, antes de morrer, toma todas as providências civis em relação à morte. Para

isso, mais uma vez, precisa exercitar os desdobramentos impostos à sua condição

de ser ficcional: ao mesmo tempo em que “vive” a morte como “morte” ontológica,

desdobra-se para exercer o papel de falecido ou finado, nos moldes de morto ôntico.

Para destacar e dar à morte a dimensão que lhe interessa, Heidegger

estabelece, a propósito, uma escala entre perecer, falecer e morrer. Perecer é

comum a qualquer vivente que não compreende. Apesar de parecer muito

semelhante à morte, no perecer, aquilo que pode assemelhar-se à morte nada mais

é do que instinto de sobrevivência e de preservação.

Falecer é experiência de chegar ao término, à completude; experiência jamais

experimentada porque, enquanto ser-no-mundo existente, nada se pode saber do

que é ser finado. Já o morrer é um modo-de-ser da pre-sença – “ser-para-a-morte”,

e, ainda que, jamais possa ser experimentada, a morte é um existencial porque é um

modo-de-ser da pre-sença. Todos sabem do falecer, todos o experimentam das mais

variadas maneiras. Até o próprio Dom Quixote parece que se deu o direito de tratar

da morte como falecimento. Como e porque já experimentara a morte dos outros,

Dom Quixote sabe que esse final já se instituiu em seu mundo compartilhado,

definindo algumas regras. É por isso que é tão diligente em seu testamento, como

vimos no 1º. Périplo, em que atende prontamente às exigências religiosas orientadas

ao falecimento: um padre é chamado para ministrar a extrema-unção; todas as

providências jurídicas são tomadas no nível da vida civil: o testamento, a sobrinha

como única herdeira, a doação de algumas poucas coisas a Sancho, o ritual

fúnebre, com direito a acompanhamento de choro e tudo mais que o compõe e que

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levou Sancho a chorar pela morte de seu querido amo; a presença dos vizinhos e

amigos, sempre garantida nesses momentos finais.

Conclui-se então que, no espaço dessa zona limítrofe nascimento-morte, o

homem, ao mesmo tempo em que constrói, habita e, nesse processo, se dá conta de

sua condição. Sabida ou não, sentida ou não, desejada ou não, é únicamente por

esse estreito comprometimento com a vida, que Heidegger considera a morte

também um existencial; a morte é, então, um caráter da pre-sença: o homem é um

ser finito, o homem é um ser-para-a-morte. Essa consciência de finitude acende no

homem um valor maior para a vida. Existir não se resume a estar na vida em

contagem regressiva à espera de que o perecer se encarregue de colocar um ponto

final e determinar o fim. Assim, como a morte, a existência ganha também outra

dimensão e, com isso, redimensiona Cura.

Dom Quixote é capaz de, mais distanciado, ver-se a si mesmo em sua

atuação, em sua performance do passado. É capaz de fazer escolhas, articulando o

presente com o passado, projetando-se para o futuro. Dom Quixote se encontra

numa encruzilhada de sua travessia e faz uma escolha consciente do caminho que

vai agora seguir.

Mostrada em sua nova face, a morte e tudo o que ela representa funciona

como o alerta máximo para Dom Quixote. É a voz da consciência que ele ouve.

É possível sentirem-se pequenos sinais da recuperação do cavaleiro; parece

que o poder perdido está voltando ao normal; surpreendido em sua loucura, pela

razão; Dom Quixote está em estado de prontidão para perguntar.

Para a nova posição que pretende assumir __ a de porta-voz das novidades

que se anunciam, é preciso responsabilidade; por isso não deseja a ela entregar-se

“às tontas e às loucas”; de loucura já basta a do seu frenético e necessário agir

cavaleiresco. Do novo horizonte que divisa, sem dúvida, muito já viu, muito já

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conhece. Entretanto reconhece a urgência, não só de decifrar melhor os sinais que

nesse momento são ainda tímidos e difusos, como também de reinterpretar o

anteriormente visto. Por isso quer e precisa perguntar mais.

A cada passo, Cura não o poupava; estava sempre surpreendendo,

colocando-o em situações em que uma pergunta-questão se impunha, obrigando-o,

se não a respondê-la diretamente, ser da resposta partícipe. Agora, no entanto, mais

maduro e preparado, pode se impor, formalizando ele mesmo as questões, exigindo-

lhes compreensão.

Conclui ser necessário também fazer uma retrospectiva que lhe dê mais

subsídios para o seu “falar”, tarefa que precisará realizar, a seu ver, de modo

brilhante, já que todos precisarão acreditar em sua verdade.

1.4 DOM QUIXOTE EM RETROSPECTIVA

Dom Quixote, em retrospectiva, decide: “Se quero ‘ver’ mais, só posso

começar pelo que já ‘vi’; isso é ‘viver’”. Com ajuda da memória empreende

movimento e vai encontrar-se em meio a mercadores exigindo-lhes a declaração

confirmatória da beleza de sua amada: “Si os la mostrara, replicó don Quijote, ¿qué

hiciéredes vosotros en confesar una verdad tan notoria? La importancia está en que

sin verlo lo habéis de creer, confesar, afirmar, jurar y defender”.397

E nisso percebe os primeiros sinais de um modo de pensar sustentado pela

comprovação do “ver”. Era a velha crença que cedia espaço ao “saber certo” e

397

Se eu a mostrasse a vós, replicou Dom Quixote, que mérito teríeis em confessar uma verdade tão notória? A importância está em que, sem ver, deveis crer, confessar, afirmar, jurar e defender (1, IV, p.32).

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racional que entra pelos olhos. Até então, era negação total dos sentidos, mas

imediatamente, parece começarem os sentidos a insinuar-se, exigindo espaço.

A respeito de Dulcinea, não seria preciso ir tão longe; Dom Quixote assim

preferiu: A questão ser Dulcinea fruto de encantamento, dado que lhe confere ou

não realidade, estivera, até então, restrita ao espaço doméstico cavaleiro-escudeiro,

atormentando os dois: quando um vê uma lavradora, o outro vê uma linda princesa.

E as posições se invertem, sem que o problema nem ganhe outra cara, nem seja

resolvido. Por isso Dom Quixote decide ampliá-lo, estendendo aos outros sua

necessidade de confirmação. E, a partir daí, nenhum transeunte dos caminhos de la

Mancha tem mais sossego. Todos precisarão participar da testagem de Dom

Quixote: acreditar na beleza de Dulcinea sem precisarem do respaldo da visão.

A memória também surpreende o episódio em que disputavam definição, uma

bacia e um elmo. Mais um desafio se insinua: até onde vão os limites que definem

com rigor um ente no mundo? E a semelhança, um dado provavelmente angustiante

no cotidiano do homem daquela época que estava com a batuta nas mãos,

cabendo-lhe pôr ordem no mundo, onde fica? A experiência da semelhança já tinha

sido fartamente exibida na fronteira que divide o tempo de Dom Quixote do tempo da

cavalaria andante.

Tudo isso, sem contar com o que fora capaz de fazer, movido pela urgência

de ser cavaleiro: “tabernas-castillos”, “castillos-tabernas”; “damas-prostitutas”,

“prostitutas-damas”. Sem essas imaginações, jamais se teria armado cavaleiro.

Mais adiante, novo embate: primeiro são ovelhas que seus olhos definem

como exército; depois vêm os moinhos. Esses são os que lhe exigem tempo maior

de reflexão. De todos, o moinho de vento é o que ficou gravado na mente do mundo.

Ali, aparentemente inerte, tanto vigor emana, que é capaz de produzir tal impulso

que lança o pensar para mais adiante.

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Se o vigor do moinho é incontido, é melhor que nele estejamos atentos. Pelo

menos, nisso estão os moinhos de acordo com todo resto: tudo insinua movimento

em direção ao futuro que se estava gestando, lenta e silenciosamente. Estariam os

inocentes moinhos de vento guardando silenciosamente alguma surpresa dirigida

também para o futuro?

De tudo isso, duas coisas se podem tirar: primeiro que Dom Quixote já havia

visto aquela mesma cena em outros momentos históricos. A Idade Média já tinha ido

buscar, no passado, referentes conhecidos e cheios de êxito. Novo retorno ao

mesmo passado, e lá estavam de novo, tentando recuperar, na Antigüidade, novas

compreensões. Havia mais para saber, o contexto era por demais contundente.

Não há mais como fugir; Dom Quixote sente que um mandato, muito superior

aos que recebera antes, cobrava-lhe participação. Que ele assumisse o leme. É

claro que isso o deixou inseguro e desconfiado; afinal no 1º. Périplo já estivera no

comando uma vez, até que a falácia, de tão cruel, virasse angústia. Já estivera

nessa posição de comando: por muito tempo, fora o filósofo, por muito tempo,

acreditara ter sido, dentre muitos homens, o único preparado para conduzir os

demais.

Estaria sendo novamente convocado para assumir o comando? Comando

igual ao que assumira no 1º. Périplo, impossível.

Sem saber o que fazer, incompleto de orientação, resolveu entregar à

intuição, como em outras vezes o fizera, o dilema de retomar uma situação que lhe

parecia resolvida e encerrada, depois de ver cumprida a sua missão de filósofo.

Entregou-se à intuição e, entregando-se incondicionalmente, sem que

pudesse prever nem explicar, começou a sentir desejos de conhecer um lugar de

que já ouvira muito falar. E, com esse desejo “pidió don Quijote al diestro licenciado

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le diese una guía que le encaminase a la cueva de Montesinos, porque tenía gran

deseo de entrar en ella”.398

E colocou-se ali, diante do cavaleiro, a providência: “el licenciado” tinha ali, à

mão, “un primo suyo, famoso estudiante y muy aficcionado a leer libros de

caballerías, el cual con mucha voluntad le pondría a la boca de la mesma cueva”.399

É possível que, na falta de orientação, Dom Quixote tenha feito essa escolha,

sugestionado pela caverna de Platão, onde tudo começara. Afinal, esquecera-se

desse item de seu manual: voltar à caverna para libertar os prisioneiros que em seu

interior deixara. Estamos somente arriscando, até porque, sabemos que Dom

Quixote, depois que saiu da caverna e cumpriu sua missão como cavaleiro, acabou

tomando outro rumo.

Imaginemos, porém, que Dom Quixote, em mais um estado de desorientação,

confundindo-se mais uma vez, tenha voltado a acreditar que era ainda filósofo e

tenha entrado assim na caverna.

Mesmo orientado pela intuição, Dom Quixote não consegue abandonar sua

inclinação de “hombre del entendimiento”400 e, assim, antes de penetrar na caverna,

não deixa de dar uma última olhada ao redor: parece que o mundo dá sinais de nova

configuração, parece estar numa extremidade oposta à que experimentara

anteriormente, tendo ido da dúvida reinante no momento em que decidira ser

cavaleiro, ao extremo da certeza agora. Se é assim, parece que houve mudança

com rapidez surpreendente.

Aproveita então para avaliar a crise anunciada por Pierre Vilar, já descrita

anteriormente, no 1º. Périplo. Enquanto isso, Dom Quixote também sinaliza, do seu

398

Pediu Dom Quixote ao hábil licenciado que lhe desse um guia que o conduzisse á caverna de Montesinos, porque tinha grande desejo de nela entrar (2, XXII, p.437). 399

Um primo seu, célebre estudante e fanático pela leitura de livros de cavalaria, o qual com muito prazer o poria na boca da própria caverna (ibidem) 400

Homem do entendimento (1, XX, p.105)

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modo, essa surpreendente mudança. Mudanças que não se deram na linha real do

tempo, mas que, em fração mínima, se tornaram sensíveis de forma muito radical e

contundente. De tal modo que acionaram, em Dom Quixote, uma busca de

ancoragem na memória.

Em discurso sobre a Idade de Ouro, Dom Quixote põe em confronto, não as

duas épocas, mas dois tempos: tempo em que, fundamentalmente, o vestir só tinha

compromisso com o que “la honestidad quiere y ha querido siempre que se cubra”,

sem os “adornos de los que ahora se usan”, produzidos graças ao sacrifício de “la

martirizada seda”,401 dizia Dom Quixote.

Um tempo em que “no había la fraude, el engaño ni la malicia mezcládose

con la verdad”, em que não havia o “artificioso rodeo de palabras”, em que “la justicia

se estaba en sus propios términos, sin que la osasen turbar ni ofender los del favor y

los del interese”402. Resumindo: tempo que se opõe radicalmente a “nuestros

detestables siglos”,403 diz Dom Quixote referindo-se a seu tempo.

Foi esse mesmo tempo que justificou a cavalaria: “para cuya seguridad [...] se

instituyó la orden de los caballeros andantes”.404 Agora tudo indica que com

cavalaria ou sem cavalaria, os “detestables siglos” continuam desestabilizando,

cobrando atenção de todos. Assim considerando, a necessidade de instituir a

cavalaria não é sentida só por Dom Quixote. A mola propulsora do tédio que jogava

a todos no mundo da leitura não podia ser gratuita. Tinha de haver alguma

expectativa por trás dessa mania inocente. Teriam todos a mesma capacidade

avaliadora que tinha Dom Quixote?

401

A honestidade quer e sempre quis que se cubra [sem os] adornos desses que agora se usam [produzidos (...) de] a martirizada seda (1, XI, p.60). 402

Não havia fraude, o engano, nem a malícia, misturados com a verdade [...] artificioso rodeio de palavras [...] a justiça funciona dentro de seus próprios termos, sem que ousassem turvar nem ofender por favores e interesses (Ibidem) 403

Nossos abomináveis tempos (1, XI, p.61). 404

Para cuja segurança [...] instituiu-se a ordem dos cavaleiros andantes (ibidem)

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Talvez não, porém, em diferentes graus, o desejo cavaleiresco se justifica na

voz de Dom Quixote que, dispondo com clareza de todos os elementos necessários

para justificá-la, bem como para deixar evidente a seriedade do tempo que estão

cruzando, acaba se tornando sua imagem-questão.

De um modo ou de outro, o desejo cavaleiresco habitava o imaginário do

povo espanhol: “cavaleiros” e “quixotes” havia muitos, até porque a rigidez das

verdades importadas do platonismo e instituídas pela “república cristiana”, não

franqueavam abertura à imaginação. A leitura maciça de novelas de cavalaria pode

indicar compensação nesse sentido. Querer assim encarnar um cavaleiro medieval

pode trazer escondido, no inconsciente coletivo, o mesmo propósito do qual Dom

Quixote é somente imagem-questão, o mesmo propósito para o qual fora instituída

a ordem da cavalaria andante.

1.5 É TEMPO DE NEGOCIAÇÃO. QUAL O “PRETIO” DO TEMPO DE DOM QUIXOTE?

É, a partir dessa avaliação que se percebem os sinais de desdobramentos

desses “séculos detestáveis” projetados para um futuro, quiçá desolador.

Da dúvida mais radical do 1º. Périplo à certeza mais absoluta do segundo,

desse modo, deslocou-se a disposição que dava o tom à compreensão. Espanha

sinaliza, com euforia, o novo modo de compreender o mundo: uma compreensão

disposta na segurança da certeza. Essa tinha um matiz diferente da disposição

eufórica do Renascimento, a disposição é, agora, tomada pela razão, mas também

de um modo sensivelmente diferente. É como se a razão tivesse reunido mais força,

mais poder e se estivesse apresentando com perfil mais definido, o perfil do

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racionalismo, aquele que não estivera, até então, disputando com nominalismos,

empirismos e relativismos, lugar de verdade

No 2º. Périplo, com o que já sabe, Dom Quixote projeta seu olhar para o novo

horizonte e se depara com um olhar “hipnoticamente centrado”: vê o homem

reduzido à mais estreita visão de mundo. Isso contribui perfeitamente para a

formação do mito do homem como destinação histórica da civilização ocidental,

contribui para sua ascensão e queda no panorama do Ocidente. O epílogo dessa

epopéia recebe o nome de “crise do humanismo”.

Assim, caracterizaremos este Périplo como mercado – o lugar onde Dom

Quixote vai negociar o valor de cada coisa que se mostra no viver. Desse lugar, ao

mesmo tempo em que interpreta, vai traçando o perfil histórico de seu tempo, para

anunciá-lo ao mundo.

Com a simplicidade de levantar na obra passagens que remetam ao segundo

projeto “quixotesco” – o de assumir-se hermeneuta, pretendemos localizá-las no

quadro acima proposto. Nesse quadro, Dom Quixote atento, muito mais ouvido que

olhos, tenta reconhecer a vigência de todo o manancial que aflui em direção à

modernidade.

Não é, portanto, irresponsável a exigência de “performance especial” para

ocupar esse posto de negociação. Assim denominamos um reconhecimento das

vicissitudes históricas que, no mundo de Dom Quixote, tinham lugar e, além disso, o

fato de ser ele dotado fundamentalmente de um modo de “falar” que estava à altura

de sua tarefa, indiscutivelmente grande em dignidade. Já estaria Dom Quixote

plenamente preparado para assumi-lo?

Presume-se que sim. Revisto o processo dialógico da aprendizagem que o

conduzira à Cura e sentindo ecoar, em seus ouvidos e em sua mente, as palavras

de Nietzsche __ que o homem não sabe nada sobre si mesmo, uma vez que a

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natureza não lhe revela sequer o movimento de seu próprio intestino nem de sua

circulação sangüínea, o que demonstra grande rebaixamento da condição humana;

que mesmo desmascarado “na indiferença de seu não-saber”, o homem, o

responsável pelos estragos da metafísica, ainda estava refugiado na “orgulhosa e

charlatã consciência”405 __, Dom Quixote não encontra alternativa, senão cumprir o

mandato que ele, confuso, e desconfiado, sem atinar ainda sobre sua nova

condição, acredita ser ainda de Platão: voltar à caverna para finalizar a sua missão.

Dom Quixote ascende no plano da consciência, mas, sem saber o que fazer

com o que tinha nas mãos, movido, entretanto, pelos resquícios que ainda lhe

sobravam da função de filósofo, acaba voltando à caverna, sem, no entanto,

reconfigurar-se ainda hermeneuta. Vale a pena lembrar que os círculos

hermenêuticos não se fecham totalmente.

Pode parecer que nos estamos perdendo, que a consciência conquistada por

Dom Quixote descrita acima não é compatível com o mandato de Platão, e nisso

vemos sentido. No entanto, é só com isso que pode contar Dom Quixote. Nessa

circunstância, sem outra alternativa, acaba acatando o levar boas novas para o

interior da caverna – sua experiência positiva e poderosíssima de alcance da

verdade extraída da também poderosíssima luz do sol. Ou será que entrava na

“cueva-caverna” para dar aos prisioneiros, que estavam em seu interior, a chave da

Cura, essa sim, que os libertaria definitivamente?

É preciso dizer que esse conflito de cavernas não nasceu da mente fértil de

Dom Quixote, nem de um simples capricho, e nem sequer da pura intuição. A

providência lhe colocara, na trilha, um lugar subterrâneo, igual à caverna, ao qual

poderia ter acesso qualquer homem, que tivesse o requisito especial de ser movido

405

NIETZSCHE, F. Sobre a mentira e a verdade no sentido extra-moral. São Paulo: Abril, 1979 p.54 (Coleção Os pensadores)

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pelo querer. Isso é tão verdade que “el primo”, grande estudioso e conhecedor de

sua localização e de seu caminho, não se dispõe a descer em “la Cueva de

Montesinos”, simplesmente porque o “não-querer” não mobilizou o seu “querer”,

como com Dom Quixote aconteceu.

Se neste périplo, o propósito era saber de seu tempo, qual o primeiro lugar

onde Dom Quixote efetivamente fez a primeira negociação e começou a mensurar o

“pretio”; o valor das coisas do mundo? Não se pode esquecer que dessa negociação

depende a verdade perseguida por Dom Quixote, formulada no viés da mentira,

desde o início do romance. Onde e com quem realizou a transação?

2 MUDANDO DE DIMENSÃO, UMA DESCIDA AO OUTRO MUNDO

Por enquanto, para efeito de título, “outro mundo” é simplesmente o

aproveitamento da expressão repetidamente usada no episódio de “la cueva”. Assim

o chamamos por sua caracterização atípica de estar num nível onde o acesso não é

apropriado ao homem comum. Na vida ordinária, não se vêem homens introduzindo-

se no fundo da terra.

2.1 “LA CUEVA DE MONTESINOS”

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Voltemos à caverna onde tudo começou. Dom Quixote também esteve por lá

e conta sua experiência. É claro que nos estamos reportando a “la cueva de

Montesinos” que intitula este item.

Partindo do ponto que sua intuição o chamou, e reassumindo o leme da

embarcação, lembrando do compromisso firmado por todo e qualquer filósofo, de

voltar à caverna para com eles compartilhar a “boa nova”, Dom Quixote se investe

de filósofo e vai tentar retomar a ponta do fio, dizendo: “Yo voy a despeñarme, a

empozarme y a hundirme en el abismo que aquí se me representa, solo porque

conozca el mundo”.406 Dom Quixote mesmo define seu propósito: conhecer o

mundo.

2.2 DOM QUIXOTE ENTRA NA CAVERNA COMO FILÓSOFO

Faz-se necessário uma explicação inicial: Cide Hamete Benengeli anotou, na

margem do original que continha a história de Dom Quixote, uma história contada

pelo tradutor: diz a anotação que o autor do documento encontrado pede desculpas,

por não ter a mínima condição de provar ser essa aventura verdadeira, de tal modo

a vê e reconhece fora dos padrões racionais. Flexibiliza sua avaliação, no entanto,

dizendo não dispor de nada convincente que possa imprimir em Dom Quixote o

estigma de mentiroso – ele, o mais nobre e verdadeiro cavaleiro do seu tempo;

impossível. Mais desconcertado fica Cide Hamete, quando revela ter Dom Quixote,

na hora da morte, confessado ter sido essa história realmente uma mentira. Cide

406

Eu vou precipitar-me, meter-me no poço e afundar no abismo que aqui a mim se representa, apenas para que o saiba o mundo [...] que aqui me representa (2, XXII, p.439).

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Hamete, diante desse impasse, se rende à sua incapacidade de julgar, e solicita ao

leitor que o faça; “esta aventura parece apócrifa, yo no tengo la culpa; y así, sin

afirmarla por falsa o verdadera, la escribo. Tú, letor, pues eres prudente, juzga lo que

te pareciere”.407

Vemos que, com outra roupagem, retorna o jogo mentira-verdade. Dessa vez,

de forma mais sofisticada, Cide Hamete, seu autor, se arrisca quanto à fixação do

verdadeiro ou falso. Pelo delicado da situação sobre a veracidade do episódio, há

um desdobramento onde as responsabilidades são repassadas: o descobridor do

original, o autor e o tradutor querem eximir-se, e por isso acabam jogando o

compromisso nas mãos do leitor.

A obra registra a descida a “la Cueva de Montesinos”. Entretanto, veremos:

no que mais se poderia aproximar “la cueva” ao mito, é exatamente onde a ele se

contrapõe.

Dom Quixote desce a uma cova que tem a profundidade de “doce o catorce

estados”.408 Colocamos aqui a profundidade por ser “estado”, a unidade de medida

tomada como referencial para essa caverna, equivalente à estatura de um homem.

Isso indicia estar, tudo o que ali vai desenrolar-se, comprometido com a questão

fundamental – o que é ser homem. Na profundidade de “la cueva”, Dom Quixote

encontra alguns seres – homens e mulheres que ali estão presos, encantados por

Merlín, condição que os impede de alcançarem o exterior. A impressão que Dom

Quixote teve foi tão forte que chegou a imaginar ser sonho, dúvida que logo

descartou: “Despabilé los ojos, limpiémelos, y vi que no dormía, sino que realmente

407

Esta aventura parece apócrifa, e não sou o culpado; portanto, sem a declarar falsa ou verdadeira, a escrevo. Tu, leito, visto que és prudente, julga o que te parecer (2, XXIV, p.448) 408

Doze ou treze vezes a altura de um homem.

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estaba despierto; con todo esto, me tenté la cabeza y los pechos, por certificarme si

era yo mesmo el que allí estaba, o alguna fantasma”.409

Ao mesmo tempo que, ao sair “de la cueva”, descarta ter sido sonho, logo que

desperta do transe, a primeira frase que diz é: “En efecto: ahora acabo de conocer

que todos los contentos desta vida pasan como sombra y sueño, o se marchitan

como la flor del campo”.410 Extremamente intrigante essa avaliação geral de “la

cueva” feita por Dom Quixote. Parece apresentar o real, sob dois pontos de vista:

enquanto sombra e sonho, o que se apresenta é o mundo sensível veiculado pelo

platonismo, definitivamente incompatível com a verdade. Em se tratando das flores

do campo que, ao se apresentarem como realidade, é inevitável que murchem, estas

guardam proximidade com as idéias de Descartes e a sua prova de que o sensível

não é uma mentira, confiando na perfeição de Deus e, por extensão, na perfeição de

sua criação. O que se apresenta é uma valorização do sensível porque ele traz em si

alguma verdade. Essa verdade, o homem a tem, sendo possível, assim, pela análise

de si mesmo extraí-la.

Embora a verdade para Descartes esteja, do mesmo modo que para Platão,

também no inteligível, este não se encontra separado do sensível, motivo pelo qual

é possível, pelo sensível, chegar à verdade. É o reconhecimento de que o real, para

sustentar-se, durar e permanecer no mundo, só é possível, usando o expediente de

arrancar algo que lhe dê realidade, tornando-o realização. Caso contrário, ao

homem pensante lhe parece que nada existe, tudo se corrompe e acaba,

corrompendo-se como a flor do campo que o tempo se encarrega de fazer murchar.

Dentre os encantados no interior de “la cueva” estão dois primos e grandes

amigos, dos quais um está morto. Além de primo e amigo, coube a Montesinos 409

Abri os olhos, esfreguei-os, e vi que não dormia, antes estava realmente desperto; com tudo isto, toquei minha cabeça e tronco, para certificar-me se era eu mesmo quem ali estava, ou algum fantasma (2, XXIII, p.441). 410

De fato: agora acabo de conhecer que todos os contentamentos desta vida passam como sombra e sonho, ou murcham como a flor do campo (ibidem)

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arrancar-lhe o coração grande, típico coração dos valentes, atendendo a pedido do

próprio morto que lhe encarregou de entregá-lo à sua amada. Parece haver um

exaltar o valor do coração. É possível que seja uma intenção de deslocar do lugar

potente e poderoso, onde estão registradas e arquivadas todas as idéias

verdadeiras: o mundo ideal das formas platônicas ou o mundo da substância

pensante de Descartes, para outro centro – o coração. No mínimo se está

requisitando atenção para o fenômeno chamado razão, e seu poder avassalador.

Poderia também o coração ser um símbolo a mais para ser tensionado com a razão,

Nesse caso, o coração concorreria, em igualdade, com a imaginação.

O que há de curioso no episódio de “la cueva de Montesinos, uma “cueva”

onde Dom Quixote passa por experiência originária é o seguinte: seu interior não é

escuro, cheio de trevas, iluminado pela luz artificial do fogo, como o é o interior da

caverna. Apesar de que, na superfície “Éntrale una pequeña luz por unos resquicios

o agujeros”,411 a luz de fora entra sim, mas de forma muito modesta (pequeña luz) e

por pequenos buraquinhos (resquicios o agujeros). Isso fica claro, quando diz que

esses buracos “lejos le responden”; dizendo que os buracos mal atendem ao

propósito de lançar luz ao interior de “la cueva”. Sente-se a intenção de dar

pouquíssima relevância à luz exterior. Dentro de “la cueva” há palácios com muros e

paredes transparentes de claro cristal. O cavaleiro morto está deitado num sepulcro

e seu corpo não é uma representação em mármore ou em bronze; é em carne e

osso que se mantém o morto, permitindo que se anteveja a morte mantida em vida,

ou, ao contrário, a vida mantida em morte. É claro que tudo bem justificado pelo

encantamento de Merlín, que “no fue hijo del diablo, sino que supo, como dicen, un

punto más que el diablo”.412 Quem encanta en “la cueva” é mais que o “diablo”.

411

Entra uma pequena luz pelas fendas e buracos (2, XXIII, p.441) 412

Não foi filho do diabo, mas sim soube, segundo dizem, um pouco mais que o diabo (2, XXIII, p.442).

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Se nos reportamos à fala de ama, no início da obra, no episódio do

desaparecimento da biblioteca de Dom Quixote, veremos que, naquele momento,

ela deixa registrado o seu equívoco de referir-se ao sábio encantador Frestón como

diabo, consertando imediatamente o equívoco com a substituição de “diablo” por

“encantador”: “No era diablo –replicó la sobrina–, sino un encantador que vino sobre

una nube una noche, después del día que vuestra merced de aquí se partió.”413

Parece isso indicar a necessidade de tornar claros dois tipos de

encantamento. Se o primeiro, o desaparecimento da biblioteca, não está relacionado

com o diabo e sim com um simples sábio-encantador, que, além de tudo, pertence

ao mundo das “artes y letras”; se o segundo encantamento – o que tem lugar no

interior de “la cueva”, - ao qual estão submetidos todos os que estão em seu interior,

encantamento que os faz prisioneiros a todos, nesse caso, para caracterizá-lo, não

basta o ser filho do diabo (“no fue hijo del diablo”), mas, do encantador, lhe é exigido

mais que isso, é exigido que saiba “un punto más que el diablo”. Tudo parece

conduzir para uma gradação de encantamentos a serem decifrados. Um deles

remete ao diabo e o outro não. Se essa gradação está relacionada a algum juízo de

valor, se um encantamento é bom e o outro é mau, não nos cabe sequer arriscar,

somente deixar aberta a possibilidade de dois encantamentos plausíveis.

Ao declarar não saber o motivo do encantamento, o próprio Montesinos nos

brinda com a resposta “El como o para qué nos encantó [...] dirá andando los

tiempos [...].”414 e antecipa que um grande acontecimento está para chegar, ou

talvez já tenha chegado, sem que um perfil se tivesse ainda definido, uma vez que

“no está(n) muy lejos” (brevemente) uma novidade que revolucionará o modo de o

homem relacionar-se com a vida chegará. Essa novidade é aliada do diabo e

413

Não era diabo – respondeu a sobrinha –, mas sim um encantador que veio sobre uma nuvem, depois do dia que vossa mercê daqui partiu (1, VII, p.43) 414

O como ou para que nos encantou [...] dirá andando os tempos, que, segundo imagino (2, XXIII, p.442)

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provoca encantamento, mais que isso, só o avançar do tempo poderá revelar. Essa

revelação é também o que a obra reserva para que o tempo, ele mesmo e só ele

possa dispensá-la: é revelação daquilo que estamos fazendo no tempo – buscando,

em pleno século XXI, o que na obra está em obra da verdade. Não é em vão que,

por motivos semelhantes, Dom Quixote descarta uma observação superficial feita

por Sancho, sobre um episódio, dizendo-lhe: sua “averiguación no es de

importancia, ni turba ni altera la verdad y contexto de la historia”.415

É possível que esse “otro mundo” de “sueño”416 esteja disfarçando-se de

mundo mágico medieval. Entretanto, em “la cueva”, não era necessário nenhum

esforço para ver as coisas. A transparência era tal que a visão a tudo alcançava;

naquele espaço cabia tudo; cabia até o “pedir dinheiro emprestado e é o que fazem

as donzelas lavradoras: a mando de Dulcinea pedem dinheiro emprestado a Dom

Quixote. Sancho, além de não crer na história, chama o lugar visitado por Dom

Quixote de “otro mundo”. “Outro mundo” sugere que há um mundo além daquele em

que vivemos. Esse “outro mundo”, ao mesmo tempo em que anuncia um novo

mundo que se está configurando, o mundo que se submete à realidade cartesiana,

mundo que marca, pela ausência, ou quiçá por superposição, um mundo diferente

que também já existiu. Este pode ser o mundo das idéias platônicas às quais, para

se ter acesso, é preciso, inevitavelmente, ir ao exterior da caverna para ali, poder, no

caso do real filósofo, centrar o olhar diretamente no sol. De qualquer forma, platônico

ou cartesiano, “outro mundo” é a realidade metafísica. Em “la cueva” parece que

sensível e inteligível em seu interior se concentram, sem que seja necessário fazer

nenhum movimento em direção ao exterior.

415

[sua] averiguação não é de importância, nem turva nem altera a verdade e o contexto da história (2, XXIII, p.442) 416

Sonho.

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Para Dom Quixote, entretanto, é um lugar maravilhoso: assim o descreve

para Sancho; que Montesinos lhe havia mostrado “entre otras infinitas cosas y

maravillas [...]”.417 A “la cueva” chegavam pessoas de todas as partes e de todas as

épocas: “estaban otras muchas señoras de los pasados y presentes siglos [...] la

reina Ginebra y su dueña Quintañona, escanciando el vino a Lanzarote”.418

É Sancho quem mais tenta desautorizar Dom Quixote quanto à verdade do

que seu amo encontrou e viveu no interior de “la cueva”. Chega a reclamar, dizendo

que Dom Quixote estava tão bem enquanto fora de “la cueva”, “con su entero juicio,

tal cual Dios se lo había dado, hablando sentencias y dando consejos a cada

paso”.419 Diz que, bastou ele entrar “en la cueva” para sair “contando los mayores

disparates que se pueden imaginarse”.420 Isso indicia ter “la cueva” o dom de

produzir alterações no juízo. Além disso, são todos imortais, os que dentro de “la

cueva” estão: quinhentos anos se passaram e “no se ha muerto ninguno de

nosotros”,421 diz Montesinos em discurso a Durandarte.

Nesse lugar cabe tudo, não falta nada; todas as realidades do tempo e do

espaço ali têm seu lugar reservado. É o espaço rigorosamente preservado e

protegido da maléfica assustadora e perigosa ação do tempo que corrompe e

destrói, o tempo que submete as flores do campo e se encarrega de murchá-las.

Dentro de “la cueva” todas as coisas são eternas e imutáveis. Na abstração, até uma

flor pode ser eterna, mesmo que, para arrancar-lhe significado, para torná-la eterna,

seja preciso tirar-lhe todo o vigor, seja necessário murchá-la.

Ao saber que Dulcinea também fazia parte do grupo dos encantados no

interior de “la cueva”, Sancho mais se sente no direito de não crer nos disparates de

417

Entre outras infinitas coisas e maravilhas (2, XXIII, p.446) 418

Estavam outras muitas senhoras dos passados e presentes tempos [...] a rainha Guinevere e sua ama Quintanhona, servindo o vinho a Lancelot (2, XXIII, p.441). 419

Com seu inteiro juízo, tal qual Deus lhe concedera, falando ditames e dando conselhos a cada passo (ibidem). 420

Contando os maiores disparates que se possa imaginar (2, XXIII, p.446) 421

E nenhum dos nossos morreu (2, XXIII, p.443).

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seu amo; afinal ele mesmo tinha participado do fingido encantamento da “sin par”

Dulcinea. Dom Quixote, porém, o compreende, dizendo que sua descrença se deve

a não estar ele muito familiarizado com as coisas do mundo, negando, por isso,

como possível, qualquer realidade que indique qualquer esforço de dificuldade. Mais

uma vez, é sinalizado, agora pelo próprio Dom Quixote, mais experimentado nas

coisas do mundo do que Sancho, que o que viu dentro “de la cueva” é verdade:

“verdad que ni admite réplica ni disputa”.422 E assim explica a Sancho: “como no

estás experimentado en las cosas del mundo todas las cosas que tienen algo de

dificultad te parecen imposibles”.423 Para alcançá-la, essa realidade exige esforço e

dificuldade, sem ser, no entanto, impossível.

A dificuldade a que se refere Dom Quixote pode ser desde o esforço do

centrar a visão para com os olhos da alma alcançar a essência de todas as coisas,

até o complicado processo pelo qual tem de passar o pensamento, submetendo-se

aos rigores do método matemático, em análises e simplificações, sínteses e

comprovações, até o esgotamento, única forma que encontrou Descartes de chegar-

se à verdade. No que se refere a não admitir “réplica ni disputa”,424 não importa se o

que quer provar Dom Quixote é ser ou não verdade o que aconteceu “en la cueva”.

Com isso, é bem possível que nos esteja querendo falar da radicalidade dessa

verdade: a verdade trazida por Descartes, a verdade que recrudesce a verdade

metafísica, dando-lhe nova cara, a verdade única e última que não admite

contestação. Além dessa verdade, poderia estar falando de outra? É possível, mas

fiquemos atentos: essa verdade não admite réplica nem disputa. O que não admite

réplica nem disputa: a experiência que teve Dom Quixote no interior de “la cueva”,

ou a realidade que ali se desenrolou? 422

Verdade que não admite réplica nem discussão (2, XXIII, p.448) 423

Como não estás experimentado nas coisas do mundo, todas as coisas que têm alguma dificuldade parecem-te impossíveis (2, XXIII, p.447) 424

Réplica nem disputa (2, XXIII, p.448)

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É claro que esse processo difícil é só para quem está fora de “la cueva”. Para

Dom Quixote e todos os que ali estavam, não havia nenhuma dificuldade, porque

tudo estava ali, disponível, sem que fosse preciso nenhum esforço que

representasse dificuldade. Por que essa verdade vivida dentro de “la cueva” era

vivida sem dificuldade por todos dentro, mas não era para os que estavam fora?

Parece que não é bem assim. Todos os que estavam dentro e fora a viviam

sem dificuldade, esse era o acesso que lhes dava o encantamento, o encantamento

de acreditarem todos serem detentores desse poder. É preciso, no entanto, não

confundir a “não dificuldade” com verdade. Sancho era um dos que estavam fora de

“la cueva” vivendo sem dificuldade, e nem por isso, deixava de estar encantado. Por

isso Dom Quixote afirma que ele não está experimentado nas coisas do mundo: “y

como no estás experimentado en las cosas del mundo”.

Parece que o que nos está querendo falar Dom Quixote é do “experienciar”.

Isto, sim, é o que Sancho não tem, nem ele nem todos os que estão aprisionados

pelo encantamento da metafísica que, como um recorte para pesquisa, tem lugar

reservado no interior de “la cueva”. O que se torna dificuldade para Sancho é

imaginar que haja outras realidades, além da realidade metafísica pela qual, como

todos os demais, também está encantado. O que pode parecer difícil para Sancho é

supor que as coisas do mundo, nas quais não está ele experimentado, não são

meros objetos em suas mãos de sujeito dominador e controlador. O que não sabe

Sancho, e por isso é para ele difícil, é que dentro de todas as coisas do mundo há

sempre mistério passível de tornar-se sempre nova realização, porque, nas coisas

do mundo, a terra permanece. Difícil para Sancho e para todos os encantados é

reconhecer seu lugar de “entre-ser”.

Outro detalhe ainda é a manifestação espontânea da donzela, ao receber de

Dom Quixote “los cuatro reales” que pedira sua ama Dulcinea: “en lugar de hacerme

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una reverencia, hizo una cabriola, que se levantó dos varas de medir en el aire”,425

acrobacia também realizada por Dom Quixote quando estava em “Sierra Morena”:

[...] luego, sin más ni más, dio dos zapatetas en el aire y dos tumbas, la cabeza abajo y los pies en alto, descubriendo cosas que, por no verlas otra vez, volvió Sancho la rienda a Rocinante y se dio por contento y satisfecho de que podía jurar que su amo quedaba loco.426

Há uma substituição do gestual comum estabelecido e compartilhado por

todos em situações semelhantes de agradecimento. Essa reverência de

agradecimento é, no entanto, substituída por cambalhotas __ “cabriolas”,

procedimento incomum em contexto real: a donzela, recebendo dinheiro das mãos

de Dom Quixote, sai dando cambalhotas em agradecimento.

Ainda que pouco soubéssemos sobre o significado simbólico de cambalhota,

já seria suficiente a inversão radical do comum para o incomum. Além disso, em

outro lugar deste texto, fez-se referência a movimentos circulares que, ultrapassando

seu significado, acenam com o sentido de totalidade e plenitude. As cabriolas, tanto

em “la cueva”, como também em Sierra Morena indicam concepção diametralmente

oposta ao modelo que, dentro de “la cueva” se desenvolvia. As “cabriolas” são

sugestivas, na medida em que, num contexto de certezas absolutas, num contexto

onde cada coisa tem seu devido lugar, com a devida correspondência no mundo,

assinalam a relação direta e retilínea entre o mundo sensível e real e o mundo

inteligível. Tal correspondência exige um certo esforço para realizá-la, é verdade, e

um preço alto que vale a pena pagar, pela garantia da certeza absoluta que o

esforço pode trazer. Nessa mesma medida, o contexto de “la cueva”, sendo de

425

Em lugar de fazer-me uma reverência, fez uma cambalhota, que se ergueu duas varas de medir no ar (2, XXIII, p.447). 426

Depois, sem mais nem menos, deu dois saltos no ar e duas piruetas, de ponta cabeça, mostrando coisas que, para não as ver outra vez, Sancho deu volta às rédeas de Rocinante e deu-se por contente e satisfeito de que podia jurar que seu amo estava louco (1, XXV, p.144)

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verdades eternas e imutáveis, de correspondência retilínea, não é compatível com o

sugestivo das “cabriolas”: movimentos circulares indicando plenitude.

Dentro dessa medida, as “cambalhotas”, o soltar-se e distanciar-se do solo, a

mudança do movimento retilíneo que apresenta as realidades migrando diretamente

do pensamento, para fundar um mundo rigorosamente semelhante, uma bela e

perfeita representação; tudo isso se revela impróprio, por seu caráter diametralmente

oposto. Ao contrário da contenção, manifesta-se, nas cabriolas, um excesso, um

extrapolar os limites, numa dinâmica que lembra a physis-zoé, aquela que nos

legaram os pensadores originários e que se viu encoberta e represada por tantos

séculos. As “cabriolas” podem ser uma chamada de atenção para o perigo do

fechamento que se estava impondo à natureza na passagem da physis para “bios”,

o perigo de inviabilizar definitivamente o dinamismo necessário ao prosseguimento

da vida. Não seria essa uma das dificuldades de Sancho, o ver, nessa forma atípica

e incomum de agradecer, algo possível? Não é esse um modo de insinuar que a

terra segue pulsando em todas as coisas entificadas e estabelecidas, possibilitando

que se modifiquem em possibilidades outras?

Submeter o real aos parcos limites da subjetividade racional acaba, em algum

momento, promovendo insurreições que hora e outra, espontânea e

inesperadamente, se apresentam. As “cabriolas” são um exemplo.

O seguinte exemplo reforça esse mundo imutável de correspondências:

quando Montesinos, depois de contar a triste história de Belerma, a esposa de

Durandarte, seu primo e amigo, dizendo que ela não era feia, que feia assim

parecia, em conseqüência de seu sofrimento, tanto pelo encantamento que a

obrigava a ficar noites em claro, como também por seu pesar pelo destino do marido

que teve seu coração arrancado. Dom Quixote mesmo, estando nesse contexto de

justificar a feiura de Belerma, a viúva de Durandarte, aproveita para descartar a

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possibilidade de “su amarillez y sus ojeras [...]” poderem indicar estar ela “en su mal

mensil, ordinario en las mujeres, porque ha muchos meses, y aun años, que no le

tiene ni asoma por sus puertas!”427 A correspondência do mundo real ao “outro

mundo” é tão perfeita e equilibrada que nele não pode faltar sequer o mal da

menstruação dentro do elenco de justificativas possíveis para a palidez de Belerma,

a esposa de Durandarte.

Com relação à Belerma, outra leitura é possível, tanto para a palidez (la

amarillez) como para sua falta de menstruação: a elas pode somar-se aquela em

que o foco é o coração. Tanto a falta de sangue como o arrancar do coração

denunciam falta de vigor, revelando que, aquele modo de viver dentro de “la cueva”,

não permite renovação, que ali, nem a vida, nem o homem, nem a linguagem se

renovam.

Pois bem, no final da história sobre a feiúra de Belerma, Montesinos comete o

erro de compará-la à Dulcinea; dizendo que, se não fora por tudo o que já tinha

passado, Belerma igualar-se-ia “en hermosura, donaire y brío la gran Dulcinea del

Toboso.428 Isso foi o suficiente para Dom Quixote demonstrar uma ponta de irritação,

como é comum no romance, em temas semelhantes, e lhe responder: “no hay para

qué comparar a nadie con nadie. La sin par Dulcinea del Toboso es quien es, y la

señora Belerma es quien es [...] y quédese aquí”.429 Correspondência é

correspondência, cada coisa com o seu devido correspondente, uma é uma e outra

é outra, isso, nem Dom Quixote deixa escapar. Aliás, há muito, já está dito e redito

no codinome de Dulcinea: “la sin par”, acentuando, com isso, o limite da identidade

de cada coisa no mundo.

427

Em seu mal menstrual, normal nas mulheres, porque há muitos meses, e mesmo anos, que não o tem nem aparece às suas portas! (2, XXIII, p.444). 428

Em beleza, donaire e brio a grande Dulcinea del Toboso! (Ibidem). 429

Não há para que comparar a ninguém com ninguém. A incomparável Dulcinea Del Toboso é quem é, e a senhora Belerma é quem é [...] e paremos por aqui (Ibidem)

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Embora as referências feitas a Dom Quixote recebam o adjetivo “claríssimo”:

(“señor clarísimo”); embora os que ouviam sua história fossem “clarísimos

oyentes”,430 embora os muros e paredes fossem de “claro cristal”; as mulheres que

repetem diariamente a procissão-ritual de entrega do coração do morto estão de luto

e choram. É contraditório um espaço tão claro, cheio de luz e transparência,

assinalado por significantes de abertura que sugerem alegria, conjugar-se com a

escuridão do negro e com as lágrimas que remetem para o fechamento um, e para a

tristeza o outro. Parece indicar que a clareza há tanto tempo e diligentemente

buscada pelo Ocidente é uma falácia. Nesse caso, desfaríamos aqui a relação

estreita e unívoca significante/significado, acreditando poder a felicidade também

estar no escuro, e, conseqüentemente, poder também a verdade estar na não-

verdade; do mesmo modo que, com a excessiva claridade de “la cueva” é

necessário que conviva o escuro do não-ser, mas nunca o luto nem as lágrimas do

esquecimento do ser.

Em relação à claridade-escuridão, outro par significante é a roupa negra que

vestem as donzelas da procissão que diariamente desfilavam com o coração de

Durandarte nas mãos: “todas vestidas de luto, con turbantes blancos sobre las

cabezas.”431 Fechava o cortejo, Belerma; esta vestia toucas também brancas, que,

de tão longas, chegavam ao chão e “besaban la tierra”.432

É sugestivo que a claridade do branco esteja na cabeça e o negro na parte

inferior dos corpos. E segue o jogo negro-branco contornando toda cena,

insinuando, nas primeiras, uma relação de separatividade entre a terra negra e o

céu/sol/luz branca. Só a Senhora Belerma, a que fecha o cortejo, mostra, com os

turbantes que vão da cabeça até o arrastar no chão, uma conexão terra/negra –

430

Claríssimos ouvintes (2, XXIII, p.441). 431

Todas vestidas de luto, com turbantes brancos sobre as cabeças (2, XXIII, p.444). 432

Beijavam a terra (ibidem)

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luz/branca, chamando a atenção para o risco da fragmentação, sugerindo o diálogo

necessário céu-terra.

Se por um lado, Dom Quixote defende a verdade do que viu “en la cueva”,

opondo-se a Sancho, que em nada acredita; ao finalizar sua defesa, se refere a uma

verdade que “ni admite réplica ni disputa”. Percebe-se o poder com que a verdade

metafísica chegou no Ocidente como símbolo de certeza e como aí, absoluta,

instalou seu reino.

Se por um lado, Montesinos, o velho que habitava “la cueva” homônima,

confessa sua fé total em Dom Quixote como o único que poderá salvá-los da prisão

e do encantamento: “[...] don Quijote de la Mancha [...], por cuyo medio y favor

podría ser que nosotros fuésemos desencantados”,433 por outro, o convoca a ser o

porta-voz de tudo o que viu dentro de “la cueva” “para que des noticia al mundo de lo

que encierra y cubre la profunda cueva [...] de Montesinos”434. Essas notícias são

“las maravillas que este transparente alcázar solapa, de quien soy alcaide y guarda

mayor perpetua, porque soy el mismo Montesinos, de quien la cueva toma

nombre”.435 É intrigante que de um lugar que encerra maravilhas, seus habitantes

precisem libertar-se. Parece que a tarefa de Dom Quixote é, ao contrário de levar a

“boa nova” de fora da caverna, local onde a luz do absoluto fora evidenciada por

Platão, para seu interior; deverá ser, na realidade, a de levar para fora o que viu

dentro de la cueva”, invertendo, assim, a ação do homem. Essa é uma boa

sugestão.

Ao agir assim, Dom Quixote estará contando, com detalhes, as contradições

que ali acontecem: ao mesmo tempo que aquela “cueva” é uma maravilha, é

também uma prisão. Essa contradição pode ser desfeita com a extensão do 433

Dom Quixote [...] por cujo meio e favor poderia ser que nos desencantássemos (2, XXIII, p. 444) 434

Para que dês notícia ao mundo do que encerra e encobre a profunda cova [...] de Montesinos (2, XXIII, p. 442) . 435

As maravilhas que este transparente castelo encobre, do qual sou alcaide e guarda maior perpétuo, porque sou o próprio Montesinos, de quem a cova toma nome (ibidem)

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“nosotros”, todos os que estão dentro de “la cueva”, ao homem em geral: tanto os

que estão dentro de “la cueva”, como os de fora. É possível que, com o alerta de

Dom Quixote, o homem do exterior, sabedor da “boa nova”, fique atento e não se

deixe cair nas malhas da sedução de “la cueva”: uma caverna que maravilha para

aprisionar.

Vista desse modo, a tarefa de Dom Quixote é dupla e deverá estar embutida

numa só ação: maravilhar e aprisionar são opostos radicais. Juntar os dois, para

deles dar conta é tarefa dificílima, mas Dom Quixote precisará encontrar um modo

de bem-dizer, um modo de trazer à compreensão essa oposição. Sua preocupação

com o “falar” tem sentido. Talvez pudéssemos, aí mesmo, encontrar leve contradição

e aproveitar para desfazê-la. A contradição falar X dizer. Parece a mesma coisa,

mas não é. O falar é típico de sua condição de filósofo e o dizer, de sua nova

performance de hermeneuta. “Não sou louco no que falo” requisita do leitor atenção;

atenção ao liame entre falar e dizer, [ou ao falar a voz do logos] porque será no

dizer, (ou ao falar a voz do logos) que as grandes verdades vão se mostrar. Há duas

oposições em dois sentidos. Maravilhar e aprisionar: embora, na superfície, os atos

pareçam contraditórios, não os são. Falar e dizer, embora aparentem não indicar

contradição, observa-se que, entre eles, há uma radical diferença.

Há ainda a possibilidade de que esse dizer - requisitado por Montesinos para

contar ao mundo um evento tão significativo, que descreve de forma tão oblíqua as

vicissitudes históricas daquele momento, seja o dizer da obra de arte. Nesse caso,

quem está sendo convocado, não é o personagem Dom Quixote, mas a obra de arte

Dom Quixote de la Mancha. De qualquer modo, a interpretação é inevitável. Tanto o

personagem em sua realização hermeneuta interpreta para ser porta-voz do que se

está mostrando no fundo de “la cueva”, como a obra garantirá, para todos os

tempos, a salvaguarda de interpretações futuras.

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Outras ocorrências dentro de “la cueva” tornam ainda mais confusa e

contraditória a interpretação que possamos lhes dar, ambigüidades que

seguramente se desfarão quando, em forma de obra chegarem às mãos do leitor.

Uma contradição: Guadiana, o escudeiro do cavaleiro morto, lamentando sua

desgraça foi convertido em rio, e quando saiu de “la cueva” “y vio el sol del otro cielo,

fue tanto el pesar que sintió de ver que os dejaba, que sumergió en las entrañas de

la tierra”.436

Aquele que, sob a forma de rio sai de “la cueva” e vê o sol, não desfruta nem

se regozija da condição superior alcançada. Ao contrário, seu pesar de deixar os

demais dentro de “la cueva” foi tamanho que preferiu meter-se no fundo da terra, só

aparecendo de vez em quando; “de cuando en cuando sale y se muestra donde el

sol y las gentes le vean”,437 para formar lagoas. Ademais, o escudeiro, que teve o

privilégio de sair de “la cueva” e ver o sol, “por dondequiera que va muestra su

tristeza y melancolia, y no se precia de criar en sus aguas peces regalados y de

estima, sino burdos y desabridos”438.

Por mais que se assemelhe essa passagem com o mito de Platão, insinuam-

se controvérsias, uma vez que, no mito, quem sai da caverna fica encantado com o

privilégio de ver o sol do “otro cielo” - sol exterior que metaforiza o Bem, onde estão

arquivadas todas as verdades. Este céu, a que se refere Guadiana, é “outro”,

diferente do céu interior de “la cueva”, é um céu sombrio e sem luz. A situação

privilegiada do sair da caverna deveria redundar em encantamento e prazer,

sentimento inverso ao que experimenta Guadiana, escudeiro do cavaleiro morto e

vazio de coração, também cativo e encantado no interior de “la cueva”.

436

E viu o sol do outro céu, foi tanto o pesar que sentiu de ver que os deixava, que submergiu na entranhas da terra. (2, XXIII, p.443) 437

De quando em quando sai e se mostra onde o sol e as pessoas o vejam (ibidem) 438

Por onde quer que vá, mostra sua tristeza e a melancolia, e não aprecia criar, em suas águas, peixes saborosos e estimados, mas, sim, grosseiros e sem sabor (ibidem)

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No que se refere ao sentimento de pesar, este o reconhecemos familiar,

considerando a prisão à qual ficaram submetidos os do interior de “la cueva”. Não

há, entretanto, nenhuma manifestação da parte de Guadiana com o compromisso de

descer, voltando ao interior de “la cueva” – caverna para contar a nova – para levar a

visão do Bem e da verdade, aos que ficaram dentro de “la cueva”, cativos do falso.

Ao contrário, Guadiana os olha com pesar, o “pesar que sintió de ver que os dejaba.”

Nesse caso, é possível que o convidado para essa missão não seja

Guadiana, mas seja Dom Quixote, não em sua versão cavaleiro louco, mas como “el

gran caballero de quien tantas cosas tiene profetizadas el sábio Merlín”.439 Parecem

estar reservadas ainda muitas realizações para Dom Quixote. Como obra de arte,

talvez. Quem, dirigindo-se a seu primo Durandarte o alerta sobre o porte de Dom

Quixote, quanto ao poder e ascendência que o habilitavam a assumir posição de

destaque naquela empresa tão dolorosa, é Montesinos. É Montesinos que, dirigindo-

se ao primo Durandarte, lhe avisa que “unas nuevas os quiero dar ahora”,440 que lhe

tranqüiliza dizendo que essa boa nova pode servir de “alivio a vuestro dolor” ou, pelo

menos, contribuirá para não aumentar a dor, “de ninguna manera”. É Montesinos

quem diz que quem poderá desencantá-los é um cavaleiro, um cavaleiro especial:

“aquel don Quijote de la Mancha”, o mesmo que já havia feito uma aparição no

cenário do Ocidente “en los pasados siglos”, por isso usa a expressão “de nuevo” e

que “ha resucitado” agora, “en los presentes siglos”. É Montesinos que conclui

dizendo duas coisas: que “por cuyo medio y favor podría ser que nosotros fuésemos

desencantados”, e que “las grandes hazañas para los grandes hombres están

guardadas”.

439

Grande cavaleiro de quem tantas coisas tem profetizadas o sábio Merlín (2, XXIII, p.444) 440

Umas notícias, quero dar-vos, agora. (ibidem)

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Vê-se, pois, que, embora se refira Montesinos ao homem Dom Quixote, para

quem estão guardadas “las grandes hazañas”, os fragmentos selecionados acima

nos induzem a pensar em algo maior que a atuação do homem-cavaleiro Dom

Quixote. Se a isso somamos a opinião de Durandarte, ao encerrar o diálogo com um

estranho “silencio, sin hablar más palabra”,441 mais ainda reforça a suspeita de que a

convocação não é de Dom Quixote cavaleiro, a convocação é outra.

Guadiana, nem se entrega à exposição do sol, nem volta à prisão-encantada

de “la cueva”. Mete-se no fundo da terra tomando a forma de rio e se mostra sob a

forma de lagoas, parecendo querer remeter-nos ao jogo desvelar-velar, em forma de

desejo, já que a experiência de ver o sol, ao contrário de deixá-lo exultante, o deixa

triste e melancólico. A visão do sol não o envaidece a ponto de sentir o poder de

tudo saber e de a tudo dominar. Sua tristeza transparece nos peixes que alimenta:

“burdos y desabridos” – grosseiros e sem sabor. A sugestão desvelar-velar pode

apontar para a necessidade de recuperação do vigor perdido responsável pelos

frutos do Guadiana: peixes grosseiros e sem sabor.

O jogo __ esconder-se na terra e mostrar-se ao sol __ se corporifica,

denunciando limites, na imagem de “ilhas”, das sete ilhas que estão no curso do rio.

A circularidade fechada das ilhas pode sugerir a ressonância do tom que reinava em

“la cueva”. Toda e qualquer verdade presente naquele mundo, para ser assim

reconhecida, como verdade absoluta e inquestionável, precisava fechar-se

rigorosamente dentro de limites, tudo precisava ser “claro e distinto”, evitando que,

para além de seus limites, algum resquício trouxesse a dúvida. Assim, para cada

coisa do mundo da luz, um correspondente no mundo das trevas ou, para cada

realidade-realização, um conceito. Conceitos desvelados, só os bem fechados e

contornados, como ilhas. Se pensarmos o ser se dando no tempo, é fácil

441

Silêncio, sem falar mais palavra (2, XXIII, p.444)

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compreender porque estão intimamente ligados à rigidez dos conceitos fechados,

com a fixação estática no que se refere ao passar do tempo. Dentro de “la cueva”, o

tempo não passa. Ao perguntar a Sancho quanto tempo passara desde que estivera

dentro de “la cueva” e este lhe responder “Poco más de una hora”, surpreendeu-se

Dom Quixote, parecendo-lhe impossível: “Eso no puede ser [...] porque allá me

anocheció y amaneció, y tornó a anochecer y amanecer tres veces.”442 Sem o tempo

não há ser – o ser se dá no tempo. Em “la cueva” o tempo não passa, em “la cueva”

não há lugar para o ser.

Nesse caso, os afundamentos das águas do rio no fundo da terra são o

velamento, o “entre” velado que se desvela. Entretanto, o vigor misterioso do rio não

se mostra nas ilhas fechadas e estáticas. O vigor das profundezas da terra se

manifesta na grande reaparição do rio, quando ele “entra pomposo y grande en

Portugal”. O que há de intrigante é a contradição que envolve a superação da

limitação com que, de ilhas fechadas, o rio se abre grande e pomposo, anunciando

novas terras. A contradição está tanto na tristeza melancólica de suas águas, como

nos peixes que, nem na abertura, entrando em Portugal, ganham delicadeza e sabor

“por dondequiera que va muestra su tristeza y melancolía, y no se precia de criar en

sus aguas peces regalados y de estima, sino burdos y desabridos”.

Quando o rio entra com pompa e grandiosidade em Portugal, era de se

esperar que Guadiana exultasse com essa potência espetacular. Sua manifestação

contrária e contraditória pode significar a previsão da negação do “entre”: a invasão

de outros territórios, indicados e resumidos aqui por Portugal, eliminando os campos

do conhecimento em benefício e para satisfação do capricho daquela que, a cada

dia, mais avançava pelo tempo e pelo espaço, na ânsia de reinar absoluta. Leiamos

442

Isso não pode ser [...] porque lá anoiteceu e amanheceu e tornou a anoitecer e amanhecer três vezes (2, XXIII, p.445)

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a seguinte citação, pois ela nos dirá a personagem que a cada dia mais intrépida

avançava dominando todos os espaços:

As disciplinas não constituiriam mais campos de conhecimento. Não haveria mais a fragmentação da realidade. Esta deixaria de ser loteada e haveria apenas um grande e único latifúndio. Porém, o que seria esse latifúndio do conhecimento não se sabe. Essa sempre foi a tentação totalizante da razão.443

Só isso pode significar mais um alerta quanto às ameaças do poder racional:

perigoso na fragmentação do conhecimento, perigosíssimo em seu desejo

totalizante. Desse modo, sem o “entre” não há águas que operem o milagre do vigor

que nutre com graça e sabor. E os peixes permanecerão “burdos y desabridos”.

É possível ainda, reconhecer em Guadiana uma narração mítica, com a qual

o povo explica o percurso e configuração do rio. Com essa mesma narração, a obra

reconfigura o mito dentro das vicissitudes históricas do século XVII, convocando o

pensamento para mais uma ameaça – a perda da linguagem mítica.

Consideremos também o dado “coração”: este é muitas vezes mencionado, o

que lhe dá certa relevância frente a outros órgãos. Por isso chegamos a pensar ser

esse órgão o centro de referência direcionado ao prazer e ao amor. Entretanto, se

bem observado, embora apareça em contextos positivos, embora a intenção que

levou Durandarte a ter o seu coração arrancado estivesse pautada no amor “que

llevéis mi corazón / adonde Belerma estaba”,444 dedicando-o à sua amada, o ritual

que atualizava todos os dias __ a entrega do coração __ era regado a lágrimas. Sem

contar que era um rito monocórdio, repetitivo e igual de todos os dias; sem novidade,

sem espontaneidade e sem provocar admiração.

443

CASTRO M. A. Interdisciplinaridade, dimensões poéticas. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.164, p.8-9, 2006 444

Que leveis meu coração / aonde Belerma estava” (2, XXIII, p.443).

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A própria Belerma, a quem foi dedicado o coração de seu apaixonado ou era

feia, ou as olheiras e deformidades que apresentava seu rosto eram resultado das

“malas noches y peores días que en aquel encantamento pasaba”.445

Vê-se que, nem as homenagens tão sublimes a seu amado, que têm como

emblema o coração, são capazes de livrar Belerma dos efeitos da insônia446

causada pelo encantamento. Sendo a insônia responsável pela feiúra e

deformidades de seu rosto; esse quadro pode ser lido como um aniquilamento total

da vida: em primeiro lugar, porque o jogo contraditório que, ao mesmo tempo, num

gesto de amor, doa o coração, conseqüentemente, perde o coração. Sendo o

coração, o símbolo da vida, aquele homem, ainda que em carne e osso, estando

sem coração, está sem vida. É assim também, sem vida, que transcorre a cena em

“la cueva”: sem vigor, sem mistério; as coisas daquele mundo são estáticas,

perderam o dinamismo da physis. Pode essa vida ser, no máximo, vida vivida, mas

nunca vida experienciada.

Outro exemplo do aniquilamento da vida é o sono. O sono, fundamental para

repor as energias do cotidiano, além de ser o experienciar, o vazio necessário para

alocar novas experiências, não existe na vida de Belerma. Nada mais existe em sua

vida, além da repetição monocórdia, a repetição daquela experiência única que tem

445

Más noites e piores dias que naquele feitiço passava (2, XXIII, p.444) 446

Não pretendemos descartar outras possibilidades. Esse quadro apresenta contornos medievais. Pode remeter-nos para a vassalagem amorosa e ao amor legado como prisão, componentes todos dos preceitos poéticos e teóricos medievais: o “morrer de amor”, a vivência da coita amorosa, caracterizada, inclusive, pela insônia. Entretanto, a insônia e as olheiras são somente imagem que possivelmente esconde uma questão, único motivo que pode justificar o espaço conquistado na obra. Não é possível que insônias e olheiras que continuam ainda ocupando os espaços pós-modernos como referenciais ainda ligados também ao amor, mas ao amor em sua significação de verdade (basta viajar num trem da Rede Ferroviária Federal às 4.00h da manhã para comprová-lo), não é possível que assim permaneçam: simples imagens. Se as olheiras e a insônia persistem até os nossos dias, significa que não podem estar presentes na obra como uma simples referência a um modo de viver daquela época, pois se persistem em outras épocas [...]. Nesse caso, pressentimos nesse par-referência – olheiras e insônia, um pulsar vigoroso, insistente, insistindo em passar de simples referência-realização à imagem-questão. Como imagem, o par se desdobra em amor, este bem mais imagem que referência, ou melhor, por ter mais vigor que o par anterior, mais nos aproxima da resposta, a ponto de trazer-nos à memória o fragmento 123 de Heráclito “Physis kryptestai philei”: Ainda que consideremos a cena de Belerma, expressão impregnada de um viver medieval, vemos que nele se concentra uma questão que clama ainda por resposta. E é essa resposta que tem estado resguardada na obra (a salvaguarda da obra) para anunciar o que, por trás dessa prosaica imagem olheira-insônia, na obra está em obra da verdade. E é essa verdade que amplia, não só a imagem olheira-insônia aos tempos pós-modernos, mas a imagem-questão do amor, para além de “una cueva”, para além do casal Durandarte e Belerma, para além dos preceitos teóricos e poéticos da Idade Média. Só não está a questão, para além do homem. A natureza ama esconder-se – o desvelante ama o velante – o desvelante apropria-se do velante – o desvelar apropria-se do velar. Essa é uma questão do homem, estar cheio de olheira e insônia, não de amor, mas de tanto “consumir-se”, de tanto “fazer” sem amor, de tanto se esquecer do ser.

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lugar diariamente em sua vida – o rito-lembrança, representado pela revisitação de

Durandarte, entregando-lhe simbolicamente o coração. Na condição de mero

símbolo, o coração não tem sentido em “la cueva”. Apartado do corpo o coração,

perde-se o elo vigoroso do “entre”. E não vai adiantar; ainda que se repita

eternamente o ritual, por mais que esteja o coração estabelecido como o “centro da

vida”, sem a conexão do “entre”, não há espaço para que a dis-puta ganhe seu

espaço, na tensão entre velar-desvelar-velar. Dentro de “la cueva”, o coração é

simbolo; para Dom Quixote hermeneuta, o coração é imagem-questão.

É por isso que, em “la cueva”, só há o que há; só há o que ingressou no

mundo e se repete, naquele mundo infinitamente estabelecido. Lembremos que o

próprio Dom Quixote, acometido ainda por suas crises de cavaleiro-filósofo, exige

que Montesinos não confunda sua amada com mais ninguém, estabelecendo limites

estritos para cada coisa que, como a sua Dulcinea, “sin par”, tem lugar no mundo.

Sem permitir qualquer comparação, sem acatar qualquer possibilidade de igualdade,

os dois – Dom Quixote e Montesinos - declaram a negação de todo e qualquer

processo que possa ter lugar no “inter”: começando pela proximidade maior que

esse espaço possa marcar – a igualdade comum a todo processo comparativo,

deixando, no ar, os demais trânsitos que culminam com a contradição radical. Em

uma palavra; com esse discurso, Dom Quixote anula qualquer possibilidade de

ambigüidade.

E como não há a mínima perspectiva do novo, não há também o mínimo sinal

de renúncia: “cuatro días en la semana” Belerma “con sus doncellas [...] hacían

aquella procesión”.447 E tudo permanece sempre e eternamente o mesmo.

Há índices do estranho, com um tom de realismo mágico na experiência

vivida por Dom Quixote: enquanto fora de “la cueva” tudo se passou em “poco más

447

Quatro dias na semana [Belerma] com suas donzelas [...] faziam aquela procissão (2, XXIII, p.444)

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de una hora”, dentro “anocheció y amaneció, y tornó a anochecer y a amanecer tres

veces”, sem que precisasse comer nem dormir. Esse estranho, mais para o

extraordinário, não é compatível, no entanto, com o máximo de ordinário que

caracteriza um acontecimento no mesmo interior de “la cueva”: uma dama de

Dulcinea vai, em nome de sua ama, pedir “seis reales” emprestados a Dom Quixote,

dando “su palabra de volvérselos con mucha brevedad”.448 O inusitado da situação

foi tal que o próprio Dom Quixote dela duvidou: “¿Es posible, señor Montesinos, que

los encantados principales padecen necesidad?”449 Trata-se do limite máximo da

crítica que precisa extrapolar pelo exagero, não deixando escapar nenhum ente nem

da correspondência platônica nem da conversão cartesiana do pensamento. Nem

um ente tão prosaico escapa; até o dinheiro com suas ingerências tem no

pensamento seu lugar reservado e prova seu poder de ganhar forma como

representação, fora do pensamento. Sem contar com o ambíguo do “padecen

necesidad”, lançando o padecimento dos habitantes de “la cueva” à dimensão do

vazio, de tal modo estão esquecidos do ser.

Na verdade, nada há de extraordinário com o tempo dentro de “la cueva”. O

que ali se configurou está dentro da lógica mais ordinária: perdido o “entre” onde o

jogo desvelar-velar tem lugar, o tempo é irrelevante; pois o ser só se dá no tempo.

Dentro daquela “cueva”, tudo é, mas nada existe.

Todo o capítulo está montado entre a mentira e a verdade, sem que nada se

defina. Novamente caberia a pergunta circular de Dom Quixote: “¿Puede ser eso

mentira?”450

Finalizaremos, portanto, a viagem de Dom Quixote, pois tudo o que mais aqui

couber, só irá corroborar a marca instigante de um jogo mentira-verdade. A tal ponto

448

Sua palavra de devolvê-los com muita brevidade (2, XXIII, p.447) 449

É possível, senhor Montesinos, que os encantados principais padeçam necessidade? (ibidem) 450

Pode isso ser mentira.

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que Cide Hamete se encarregara de, antes mesmo de iniciá-lo, alertar o leitor, não

poder garantir sua veracidade.

Apesar de tudo, é muito estranho que, de todas da obra, Cide Hamete

coloque esta, como a mais inverossímil, introduzindo a confissão do cavaleiro na

hora da morte, o que aumenta ainda mais em importância a mentira daquela história.

Por que a teria inventado?

A resposta é a mesma que justifica todas as suas loucas ações de cavaleiro:

“por parecerle que convenía y cuadraba bien con las aventuras que había leído en

sus historias”451. Entretanto, o verbo “cuadrar” parece ter sido selecionado, tendo em

vista outra finalidade, se examinarmos seu significado: “cuadrar” – “convenir, ser

adecuado”. Além disso, Cide Hamete, mesmo depois da confissão de ser mentirosa

a história inventada por Dom Quixote, lança argumentos para não acreditar em dita

confissão: diz ter sido a história contada, muito detalhada, com todas as

circunstâncias muito bem explicadas; que Dom Quixote não poderia fabricar uma

máquina tão bem montada, em tão breve espaço de tempo.

Se colocarmos atenção ao significado do verbo “cuadrar”, compondo com os

termos “máquina” e “fabricar”, um contexto de ajuste; como se dissesse que essa

história caiu como uma luva para a situação da verdade, podemos interpretá-la como

uma história que trata da verdade como adequação e enunciação de um lado, da

verdade como “fabricação” e “indústria” de outro, uma história da verdade como

“fazer”. Trata-se de uma verdade, acima de tudo, útil, do mesmo modo que os livros

que publicava “el primo”, o homem que conduziu Dom Quixote a “la cueva” e que se

dedicava a escrever livros, investigando rigorosamente em muitos outros: “más de

veinte y cinco autores”. Só quando muitos outros já o tivessem afirmado e depois de

451

Por parecer-lhe que convinha e encaixava bem com as aventuras que havia lido em suas histórias (2, XXIV, p.448)

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ter a certeza de que “ha de ser útil el tal libro a todo el mundo”,452 o primo sentia-se

seguro o suficiente para publicar. Sente-se, também, nessa história, uma intenção

de utilidade.

Por mais que precisemos dar fim a essa investigação mentira-verdade, o

assédio insistente do incontornável é inevitável: “el primo”, escritor e editor, só

publica matéria útil. Isso nos coloca, mais uma vez, diante da verdade-adequação.

Foi assim que Aristóteles deu com a essência das coisas. Dentre todas, “a finalis”

ganha preponderância sobre as demais, e vale o que é útil.

Apesar de Dom Quixote ter inviabilizado a contradição, essa é a marca de

todo o episódio. Tendo a contradição verdade-mentira, como marca, não é possível

que a abandonemos. Quando há contradição, significa que é possível lê-lo sob

vários pontos de vista, e abri-lo ao máximo de questões. A validade aqui está, não

em poder comprovar e superpor ou fazer corresponder rigorosamente, a cada

exemplo uma questão, a validade está em reconhecermos, neste material ricamente

farto e aberto, incidências que remetem a uma única questão. Não há dúvida de que

o que está aqui em jogo é a verdade; tudo para isso encaminha.

O episódio está dentro dos moldes de Platão. Apesar de dizer que descrevia

um mito, na verdade, estava escrevendo uma doutrina sobre a verdade. Só

Heidegger, muito tempo depois, e como resultado de muito esforço de pensamento,

foi capaz de trazer a questão à atualidade. Só desse mesmo modo, poderá ser

arrancada a verdade deste episódio.

Mas, por que estão tão preocupados com a verdade?

É claro que, em se tratando de “cuevas” ou de qualquer espaço intraterrestre,

o que nos vem de imediato é a célebre caverna de Platão; com isso já tínhamos

acenado desde o início, onde se diz: “Voltemos à caverna, onde tudo começou”.

452

Há de ser útil o tal livro a todo mundo (2, XXII, p.432)

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Sem contar com a declaração de Dom Quixote de que “todos los contentos desta

vida pasan como sombra y sueño”.453

É impossível ignorar “sombra y sonho”, ingredientes essenciais de “la cueva”.

Acrescente-se ainda sono e sonho com a função de marcar um trânsito entre

realidades: tanto o ingresso na “cueva” “me salteó un sueño profundísimo”,454 como

a saída: “no respondía palabra don Quijote; y sacándole del todo, vieron que traía

cerrados los ojos, con muestras de estar dormido [...] volvió en si [...] como si de

algún grave y profundo sueño despertara”.455

Além da caverna, referência maior da questão, representada no episódio por

uma “cueva”, muitas outras estão presentes. Em todos os discursos há um cuidado

com a comprovação de todo dito. E com Cide Hamete não é diferente, sua estratégia

de comprovação está em demonstrá-la como preocupação. De tão preocupado em

não se comprometer com nenhuma mentira, se exime do compromisso instalando a

dúvida. Apesar de garantir a veracidade da obra como um todo, interpõe uma

restrição ao episódio de “la cueva” dizendo: “no le hallo entrada alguna para tenerla

como verdadera”, acrescentando assim a justificativa de sua avaliação: “por ir tan

fuera de los términos razonables”.456, para logo a seguir, entretanto, não desfazê-la

por completo, mas acenar com um dado que, segundo ele, faz Dom Quixote

merecedor de toda confiança: “más verdadero hidalgo [...], no es posible”457,

levantando, inclusive, a única situação que poderia dar margem a esse deslize – a

mentira: só se o provocassem seria possível mentir, mas, como não era esse o caso,

Cide Hamete não acredita que Dom Quixote tivesse tanta imaginação para, não

tendo vivido realmente aquelas situações dentro de “la cueva”, pudesse “fabricar en

453

Todas as alegrias desta vida passam como sombra e sonho (2, XXII, p.440) 454

Sobreveio me um sono profundíssimo (2, XXIII, p. 441) 455

Não respondia nada Dom Quixote e puxando-o de todo, viram que trazia os olhos fechados, com mostras de estar adormecido [...] voltou a si [...] como s de algum grave e profundo solo despertasse (2, XXII, p.440). 456

Não acho entrada alguma para tê-la como verdadeira (2, XXIV, p.448) 457

Por ser tão fora dos termos razoáveis (ibidem)

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tan breve espacio tan grande máquina de disparates”458. Consideranto que, sem ter

vivido realmente aquela experiência dentro de “la cueva”, impossível à imaginação

de Dom Quixote tamanha invenção, como se justifica o que ele conta, como

conseguiu, em pouco tempo, reunir tanto conto para contar?

Com esse último comentário, Cide Hamete sinaliza o modo de pensar

moderno, comparando-o a uma máquina de fabricar. Digno de maior importância,

contudo, é o jogo de mentira e verdade com que provoca Cide Hamete o leitor. O

que coloca em discussão é a necessidade ou não de comprovação da realidade dos

fatos, para garantir a realidade da obra de arte. Se Dom Quixote mentiu ou não

mentiu, se a história que inventou está ou não está cheia de disparates, se isso a

torna falsa ou não, se a mudança da versão de Dom Quixote na hora da morte altera

ou não a verdade da obra, nada disso é da alçada de Cide Hamete, e nem a ele

compete dar conta. Sabedor disso, ele confessa: “que yo no debo”.459 Confessa não

só que não deve, como também confessa seu esgotamento nessa empresa

cansativa e desgastante “ni puedo más”.460

Por outro lado, não será a verdade da obra franqueada pelos esquemas

racionais. Ainda que Cide Hamete assim julgue a aventura de “la cueva”: “no me

hallo entrada alguna para tenerla por verdadera, por ir tan fuera de los términos

razonables”, a razão é limitada para tal. Sobra-lhe, portanto, uma só alternativa – o

leitor. É a esse que acaba sucumbindo, entregando-lhe nas mãos aquilo que a ele

compete: “Tu lector, pues eres prudente, juzga lo que te pareciere [...]”.461 Cabe ao

leitor, do mesmo modo que, como louco, tentava Dom Quixote no início da obra,

458

Fabricar em tão breve espaço tão grande máquina de disparates (2, XXIV, p.448) 459

Que eu não devo (Ibidem) 460

Nem posso mais (Ibidem) 461

Tu leitor, visto que és prudente, julga o que te parecer (Ibidem)

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enquanto lia “los requiebros”462 de Feliciano de Silva, tentando “desentrañarles el

sentido”,463 só a ele cabe dar o sentido e a verdade da obra.

Só é válido aquilo que os olhos vêem, todos precisam atestar a veracidade

dos fatos; só é verdade o que é passível de evidência. E quando isso não acontece,

o esforço é ainda maior, no que se refere a garantir a confiança: chega-se até a jurar

com essa intenção, e quando isso não é suficiente, convocam-se autoridades que

dêm garantias. Essa tendência chega a tal ponto que, ao reconhecer, numa taberna,

um personagem da novela plagiada, novela essa que copia literalmente do original

cervantino, Dom Quixote o aborda. É Dom Álvaro de Tarfe. Este, diante da pressão

do cavaleiro e de seu escudeiro, declara jamais ter estado envolvido nas histórias

plagiadas de Avellaneda. Para Dom Quixote, no entanto, uma simples declaração

oral não é suficiente. Dizer simplesmente: “y vuelvo a decir y me afirmo que no he

visto lo que he visto ni ha pasado por mí lo que ha pasado”,464 além de confessar

também que “no era aquel que andaba impreso en una historia intitulada: “Segunda

parte de don Quijote de la Mancha”465 não basta para Dom Quixote. Ele quer

garantias e testemunhas. Para isso chegam “el alcalde del pueblo [...], con un

escribano, ante el cual alcalde pidió don Quijote, por una petición, de que a su

derecho convenía que don Álvaro de Tarfe [...]”466 ali, na presença de todos,

contasse a verdade. Vê-se aqui, também, sinal de ambigüidade.

Parece não se esgotar a questão, nos limites de “la cueva”-caverna platônica.

Há dúvidas, evidências e comprovações em demasia que alcançam outros espaços.

462

Floreios. 463

Desentranhar-lhes o sentido (1, I, p. 37) 464

E volto a dizer e afirmo que não vi o que vi nem passou por mim o que passou (2, LXXII, p.691) 465

Não era aquele que andava impresso em uma história intitulada: ‘Segunda Parte de Dom Quixote de La Mancha’ (Ibidem) 466

O alcaide do povoado [...], com um escrivão, diante do dito alcaide pediu dom Quixote por uma petição de que a seu direito convinha que dom Álvaro de Tarfe (2, LXXII, p.692)

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Chegamos até a verdade, a primeira e grande questão pela qual, mesmo sem

perceber, Dom Quixote foi tomado. Bem se sabe o que o mobilizou a esse

empreendimento do 2º. Périplo - sondar o seu tempo, para dele arrancar a verdade.

O que, afinal, teve de significativo o tempo de Dom Quixote, que justifique

tamanha confusão? Que verdade tão crucial persegue Dom Quixote que, de tanto

inquietá-lo, inquieta a todos também? De que questão se está falando?

Retomemos a primeira fala de Dom Quixote, ao sair de “la cueva”: “ahora

acabo de conocer que todos los contentos desta vida pasan como sombra y sueño,

o se marchitan como la flor del campo”.467 E, prossegue lamentando o destino de

todos os que dentro de “la cueva” ficaram: “¡Oh desdichado Montesinos! ¡Oh mal

ferido Durandarte! ¡Oh sin ventura Belerma! ¡Oh lloroso Guadiana, y vosotras hijas

de Ruidera, que mostráis en vuestras aguas las que lloraron vuestros hermosos

ojos.468

Em sua primeira fala está, tanto o resumo da constatação do que afligia Dom

Quixote desde o início deste Périplo, bem como sua consciência de como isso

afetava não só o viver, como também a todos os homens.

Para viver todos “los contentos” da vida, todas as coisas boas da vida, tudo

aquilo a que tem acesso o homem na relação com o mundo (e não esqueçamos,

para ser é preciso ser-no-mundo), todas essas coisas só podem ser vividas ou

falsamente, considerando que são sombras e que, por serem sombras, não são

verdadeiras. Para viver, também, todos “los contentos de esta vida”, as coisas boas

da vida no mundo, aquilo a que tem acesso o homem na relação com o mundo, só

porque se supôs serem duvidosas, essas coisas boas da vida também não podem

ser vividas porque, enquanto são sonho, não são verdade, passando a ser verdade, 467

Agora acabo de conhecer que todas as alegrias desta vida passam como sombra e sonho, ou se murcham como a flor do campo (2, XXII, p.440). 468

Oh, desditado Montesinos! Oh, mal ferido Durandarte! Oh, desventurada Belerma! Oh, choroso Guadiana, e vós folhas de Ruidera, que mostrais em vossas águas as que choraram vossos formosos olhos (ibidem)

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somente quando lhe extraem todo o sumo irreal, todo o suco falso, toda mentira, até

fazê-la murchar, do mesmo modo como murchou “la flor del campo”. Para viver “los

contentos de esta vida”, não importa se fica murcha a flor do campo, desde que dela

não escorra uma gota sequer de incerteza.

Enquanto o platonismo elimina o sensível, dando à realidade verdadeira um

cunho impalpável; Descartes retira do sensível sua possibilidade de verdade,

quando o esgota em verdade abstrata, reservada e restrita só ao pensamento. A

verdade será, então, aquilo que a mente pode arrancar do sumo do real, que por

autodeterminação, Descartes considerou sonho, considerou falso, considerou irreal,

considerou mentira.

Passarem “los contentos desta vida”, todos “como sombra y sueño” é um

modo de Dom Quixote lamentar, deixando claro a inviabilidade de outra realidade

que não seja a clara e distinta, mesmo que, para isso, ela seja impalpável e abstrata;

mesmo que, para isso, ela arranque todo o vigor das coisas do mundo.

A única coisa que não pode restar é resquício qualquer de dúvida que

desmonte o novo edifício de verdade montado.

Joga também “la cueva” com mundos da lucidez e da loucura. Nesse caso, há

uma inversão:

Bien se estaba vuestra merced acá arriba con su entero juicio, tal Dios se lo había dado, hablando sentencias y dando consejos a cada paso, y no agora, contando los mayores disparates que pueden imaginarse469 [...] que hayan trocado el buen juicio de mi señor en una tan disparatada locura [...] que vuestra merced mire, y vuelva por su honra, y no de crédito a esas vaciedades que le tienen menguado y descabalado el sentido470

469

Bem estava vossa mercê aqui encima com seu inteiro juízo, como Deus o concedeu, falando ditames e dando conselhos a cada passo, e não agora contando os maiores disparates que se possa imaginar (2, XXIII, p.446) 470

Que tenham mudado o bom juízo de meu senhor em um tão disparatada loucura [...] que vossa mercê olhe, e volte por sua honra, e não de crédito a essas vacuidades que lhe têm minguado e descarrilhado o sentido (ibidem)

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Fora de “la cueva”, mundo da lucidez; dentro de “la cueva”, mundo da loucura.

No entanto, Dom Quixote, no momento em que se entregou ao experienciar em “la

cueva”, esteve em contato com o mais profundo do ser que lhe deu acesso à

verdade do que se passava naquele interior. Só de posse dessa verdade, Dom

Quixote pode dar andamento às coisas de sua vida, só assim pode prosseguir para

cumprir sua missão.

Entretanto, o mundo fora de “la cueva” estando atrelado à realidade com

todas as suas comprovações, com todo o fluir da vida na seqüência do ordinário,

esse é para Sancho, o mundo da lucidez. Já o que aconteceu em “la cueva”, fugindo

literalmente do previsível e comprovável da vida ordinária, não é verdadeiro, porque

não é real. Não é lúcido, é louco.

Esse “outro mundo” e “outro céu” podem perfeitamente estender-se do

espaço ao tempo.

Quando Sancho, acima, radicaliza, declarando não acreditar na experiência

de “la cueva”, Dom Quixote não insiste e lhe consola dizendo compreender sua

avaliação de que as coisas que lhe pareçam impossíveis naquele momento, em

outro, possivelmente já não serão impossíveis, porque tudo é possível se o mundo é

possibilidades: “pero andará el tiempo, como otra vez he dicho, y yo te contaré

algunas de las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aqui he

contado”.471

O “outro mundo” pode ser, ainda, tanto o mundo que dá suporte à

representação metafísica como a própria representação.

Não é a primeira vez que Dom Quixote faz menção ao tempo, “como otra vez

he dicho”; disso já falara outras vezes, indicando uma espera necessária que só no

471

Mas andará o tempo, como disse outra vez, e eu te contarei algumas das que lá embaixo eu vi, que te farão crer nas que aqui contei (2, XXIII, p.448)

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futuro esclarecerá pontos difusos, ampliando assim o espectro da verdade: “he

contado, cuya verdad ni admite réplica ni disputa”,472 essa verdade que, ainda em

processo de formação, precisará ainda de tempo. Essa verdade, a que se está

referindo Dom Quixote é, de tal monta, que seu poder é anunciado com a seguinte

frase: “ni admite réplica ni disputa”.

Parece estar referindo-se à metafísica que se instalara no Ocidente e seus

futuros desdobramentos. Com isso, compreendemos as insistentes perplexidades de

Sancho. A reprimenda de Dom Quixote anuncia a sua causa: “todas las cosas que

tienen algo de dificultad te parecen imposibles”.473 A causa está em Sancho

compreender não o que aconteceu dentro de “la cueva”, pois isso é só superfície. A

verdadeira causa está na gravidade da verdade metafísica que o episódio de “la

cueva” anuncia. Poderia estar a dificuldade de Sancho ainda em outra causa?

Vale a pena retomar a desconfiança de Sancho a respeito do episódio da

“Cueva de Montesinos”:

Creo – respondió Sancho – que aquel Merlín, o aquellos encantadores que encantaron a toda la chusma que vuestra merced dice que ha visto y comunicado allá bajo, le encajaron en el magín o la memoria toda esa máquina que nos ha contado, y todo aquello que por contar le queda.474

Vale retomar também a disposição de Dom Quixote de dar esclarecimentos

ao longo do tempo: diante da descrença de Sancho, responde Dom Quixote:

[...] porque lo que he contado lo vi por mis propios ojos y lo toqué con mis mismas manos. Pero ¿qué dirás cuando te diga yo ahora cómo, entre otras

472

Contei, cuja verdade nem admite resposta nem desculpa (2, XXIII, p.448) 473

Todas as coisas que têm alguma dificuldade parecem-te impossíveis (Ibidem) 474

Creio – respondeu Sancho – que aquele Merlin ou aqueles encantadores que encantaram toda chusma que vossa mercê diz que viu e com quem falou lá embaixo, encaixaram-lhe na imaginação ou na memória toda essa máquina que nos contou e tudo aquilo que ficou por contar (2, XXIII, p.446).

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infinitas cosas y maravillas que me mostró Montesinos, las cuales despacio y a sus tiempos te las iré contando en el discurso de nuestro viaje.475

E mais:

[...] pero andará el tiempo, como otra vez he dicho, y yo te contaré algunas de las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aquí he contado”476

Essas duas marcações deixam evidentes não só a assunção consciente do

cavaleiro de sua nova missão – o hermeneuta, mas também sela definitivamente

não se tratar de uma viagem física, pelos caminhos geográficos de Espanha e de la

Mancha. Os dois exemplos deixam marcado o tempo. No tempo diz Dom Quixote

que contará “infinitas cosas y maravillas”,477 ao longo da viagem478.

Essa viagem já fora realizada no 1º. Périplo, é verdade479. Mas, se cura não

se esgota, a viagem ainda não acabou, a travessia continua. Se a mesma ou outra,

não importa. Importa é o que diz Guimarães Rosa, identificando a travessia com o

percurso do “entre”.

Nessa segunda viagem embarcou Dom Quixote numa “cueva” e, em estreito

tempo ôntico, “poco más de una hora”, tempo que se desdobra em múltiplas

ampliações. Essas ampliações vão, desde três dias: “porque allá me anocheció y

amaneció, y tornó a anochecer y a amanecer tres veces”, até chegarem a cobrir

dezenove séculos, os séculos em que o platonismo metafísico habita o Ocidente.

Essa é a verdade do tempo de Dom Quixote: numa só caverna sua viagem

cruzou dezenove séculos. Embarcou como filósofo e, no final da viagem, quase não

475

Porque o que contei eu vi com meus próprios olhos e toquei com minhas próprias mãos. Mas, que dirás quando te diga eu agora como entre outras infinitas coisas e maravilhas, que me mostrou Montesinos, as quais devagar e a seu tempo irei contando no decurso de nossa viagem (2, XXIII, p.446) 476

Mas andará o tempo, como disse outra vez, e eu te contarei algumas das que lá embaixo eu vi, que te farão crer nas que aqui contei (2, XXIII, p.448) 477

Infinitas coisas e maravilhas (2, XXIII, p.446) 478

Não percamos de vista que o ser se dá no tempo. 479

Afinal, não esqueçamos que os Périplos são viagens cíclicas, empreendidas nos círculos hermenêuticos que nunca se esgotam.

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desembarca. Agora compreendemos o aviso que nos tinha dado Manuel Antonio de

Castro:

A modernidade se inicia quando um novo método de conhecimento é proposto para substituir o antigo. Foi o que fez Descartes no seu livro Discours de la méthode. A busca é a mesma de Platão: algo de indubitável, permanente, universal. Porém, há uma diferença: o homem não sai da caverna. O caminho consiste numa caminhada em direção ao seu interior. E encontra a razão.480

Seriam esses dezenove séculos, “los detestables siglos” a que se refere Dom

Quixote em seu discurso da Idade de Ouro?

Dissemos no parágrafo anterior que Dom Quixote “quase” não desembarca

de “la cueva”. Foi só “quase”, se considerarmos as palavras de Sancho que,

temeroso de ter perdido seu amo, “lloraba amargamente”, até o momento de seu

regresso de “la cueva” quando disse: “sea vuestra merced muy bien vuelto, señor

mío; que ya pensábamos que se quedaba allá para casta”.481 Considerando,

entretanto, a tarefa-missão que lhe encarregou Montesinos, o “quase” perde sentido,

o temor de Sancho não encontra sustentação: Como era possível não se libertar de

“la cueva”, com tarefa tão grande para realizar?

Mesmo usando “casta” ironicamente, Sancho está referindo-se a todos os

homens, não só aos do interior de “la cueva”, mas a todos os que também fora se

encontram na mesma condição – são a casta dos homens encantados pelo poder da

razão, a casta que Dom Quixote precisava libertar.

O modo como Dom Quixote regressou de “la cueva” nos obriga a deixar um

espaço para outras interpretações. Chegou desacordado e custou muito trabalho

acordarem-no. Só finalmente, depois de que “tanto le volvieron y revolvieron,

sacudieron y menearon, que al cabo de un buen espacio volvió a sí”,482 Dom Quixote

480

CASTRO Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Fundação Engo Antonio de Almeida. Porto: Veredas, 1999, p.327. 481

Seja vossa mercê muito bem retornado, senhor meu, que já pensávamos que ficava lá para casta (2, XXII, p.440) 482

Tanto o viraram e reviraram, sacudirem e mexeram que ao fim de um bom tempo, voltou a si (Ibidem)

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voltou afinal, conseguiu libertar-se de “la cueva”. Depois de experiência tão radical,

passou Dom Quixote, sem dúvida, por um processo de transformação:

experienciando o episódio de “la cueva”, Dom Quixote contactou o originário e, de

filósofo vira hermeneuta.

Ao desvendar a verdade de seu tempo, Dom Quixote percebe que tudo tinha

começado na Caverna de Platão; que acabou aprisionando o homem. É bem

possível que o filósofo, que ao interior da caverna voltara, para resgatar os que ali

ficaram, não mais conseguisse sair. Não se tratava mais, entretanto, da velha

caverna, a viagem fora mais profunda, Dom Quixote fora ao mais profundo de si

mesmo. Por isso, era necessário sair.

2.3 DOM QUIXOTE SAI DA CAVERNA COMO HERMENEUTA

Dom Quixote sai transformado. Transmutado é o melhor termo: de filósofo a

hermeneuta, essa passagem, uma simples transformação não realiza, porque não

inclui a complexidade do transmutar. Segundo Aurélio Buarque de Holanda,

“transmutação” é “formação de nova espécie por meio de mutações”.483 Embora não

seja aqui, o início do 2º. Périplo, só agora as mutações pelas quais passou Dom

Quixote o habilitam à hermeneuta.

Assim funciona a hermenêutica; a compreensão não se dá numa totalidade,

ela não se manifesta de “chofre”; ela vem aos poucos, por isso só agora a

alcançamos. Junto com a disposição, pré-reflexiva, a compreensão acontece desde

uma pré-compreensão, como um simples “pegar no ar”, até seus níveis mais

483

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1326

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profundos. À medida que se vai investigando, vai-se compreendendo e

aprofundando cada vez mais. O mais importante é saber que ela sempre existe; por

mais raso, há sempre algum nível de compreensão possível.

Com relação à compreensão, como lidaremos com a mesma pergunta

motivadora do 1º. Périplo, retomada neste, e que traz à pauta mentira e verdade?

A resposta é: pela interpretação. Com tudo o que sabe, temeroso da

acusação de Nietzsche de existir socialmente e em rebanho, Dom Quixote precisa

rever o “com” do 1º. Périplo; e verifica que não se trata do mesmo “com”

exatamente. Esse “com” foi percebido por Dom Quixote lá mesmo, dentro de “la

cueva”. Dois exemplos o revelam:

Luengos tiempos ha, valeroso caballero don Quijote de la Mancha, que los que estamos en estas soledades encantados esperamos verte, para que des noticia al mundo de lo que encierra y cubre la profunda cueva por donde has entrado, llamada la cueva de Montesinos: hazaña solo guardada para ser acometida de tu invencible corazón y de tu ánimo estupendo”484

Em longa “solidão encantada”, aguardam aqueles que estão em “la cueva”.

Mas que encantamento é esse que em “la cueva” os mantém? Por que “la cueva” é

um lugar maravilhoso, de claridade absoluta, na qual maravilhados os homens

esperam? A prisão dos que estão em “la cueva” é diferente da prisão da “outra”, uma

célebre, a caverna sobre a qual nos conta Sócrates, no mito485. De que tipo de

aprisionamento encantado se trata este? E por que eles esperavam, presos neste

encantamento, por Dom Quixote? Por que deve Dom Quixote levar a verdade sobre

este encantamento e a revelação da existência da caverna para o mundo?

484

Longo tempo há, valoroso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, que os que estamos nestas solidões encantados esperamos ver-te, para que dês notícia ao mundo do que encerra e encobre a profunda cova por onde entraste, chamada cova de Montesinos: façanha reservada apenas para ser tentada por teu invencível coração e por teu ânimo estupendo. 2, XXIII, p. 442) 485

PLATÃO. A República. Livro VII. São Paulo: Martin Claret, 2001 (Coleção A Obra Prima de cada autor).

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Fica evidente a responsabilidade de Dom Quixote, no tocante a seu papel

frente aos outros homens. Não se trata, como no 1º. Périplo, de dar conta do seu

próprio; já não é o seu ser que está em jogo. O que está exigindo atenção de Dom

Quixote, agora, é o tempo e, fundamentalmente, como o estão vivendo os homens.

É preciso ficar atento ao concurso e dele participar. Para isso, a função de intérprete

é fundamental. Todos são convocados ao mercado onde estará exposta a

concorrência. Se não é o seu ser que está em jogo, nada mais razoável que

interprete “com”.

Seu trabalho de intérprete consta de checar, no que circula pelo mundo, o seu

valor. Isso só pode ser visto nas relações com os homens. Nessas relações

acontece a grande negociação: o que fica e o que cai; o que permanece e o que

está fadado a desaparecer; o que ainda sobrevive e o que é novidade; o que é

antigo e contemporâneo e ou moderno. Isso significa interpretar: negociar o “pretio”.

Não esqueçamos, porém, que “pretio” significa lugar da negociação, o lugar

onde, depois de observação atenta e avaliação criteriosa, são tirados os valores que

poderão traçar o perfil do que para o homem tem, realmente, importância e valor no

tempo. O primeiro lugar de negociação mostrou-se um grande lugar. A descida a “la

cueva” deu sinais surpreendentes a Dom Quixote.

A busca passa a ser da verdade histórica, o acento se desloca da

individualidade para o coletivo. Ter ouvido a voz da consciência fez de Dom Quixote

um homem comprometido não só com os homens de seu tempo, mas com o homem

de todos os tempos, já que Montesinos o encarregara: “que des noticia al mundo”. O

que o teria levado a essa mudança de rumo se, uma vez descoberta a sua essência,

bastava-lhe estendê-la, simplesmente, a todos os demais?

Dom Quixote se dá conta de que a pre-sença não chega a construir-se a

partir do eu singular porque, desse modo, a passagem para explicar o que é história

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acaba não se construindo. Daí a errância assumir também outra dimensão – é

errância histórica do homem, a errância da pre-sença historial. O homem errando,

vagando nos significados do ser, faz o movimento da humanidade no tempo. Isso

representa um ganho, uma imensa ampliação: do homem como pre-sença singular

para o homem como pre-sença histórica. E o existir singular do homem perde para a

existência histórica.

A pre-sença, o Dasein, o entre-ser, é sempre Mit-Dasein, ser-com, como já o

dissera Heidegger em Ser e Tempo486. E se é ser-com, assim é porque é ser-com os

outros no compartilhamento do mundo. A instância mais fundamental do existir do

homem é ser sempre ser-no-mundo (in-der-Weltsein), ser sempre jogado em um

mundo histórico, de significados historicamente construídos que não escolheu, antes

já encontrou da forma que é, e que compartilha com os demais seres humanos. Esta

é a terminologia de Ser e Tempo.487 Esse percurso o fizemos no 1º. Périplo.

Agora, entretanto, a história, a coletividade, o compartilhamento tornar-se-ão,

cada vez mais, o tom que ganha o acento. Agora já não é um só homem particular,

errando no mundo; é “com”, é com toda cultura, com toda uma existência histórica.

Curiosamente, podemos fazer uma estranha correlação. A obra do filósofo

alemão Heidegger é famosa por uma estranha reviravolta (Kehre), ou seja, uma

virada no modo de condução da questão que a move (a questão do ser). Também

em Dom Quixote, em seu percurso no mundo, enxergamos uma “viragem”, voltas

em torno; Périplos que são também estranhamente percorridos. A mudança de

nosso 1º. Périplo ao 2º. Périplo reflete, aqui, de certo modo, as mudanças no

percurso de Dom Quixote, não mais agora apenas em um caminho individual, de

busca por sua própria singularidade, mas Dom Quixote como hermeneuta, como

486

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1995, Partes 1 e 2. 487

Ibidem.

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aquele que quer entender seu mundo e seu momento histórico: Dom Quixote como

hermeneuta da modernidade.

Se em Ser e Tempo488 Heidegger estava preocupado em (re)colocar a

questão do ser a partir do único ente para quem há ser – o homem, entendido como

Dasein (ser-aí, pre-sença, ser-entre, entre muitas traduções possíveis), após a

virada por que passa sua obra em meados da década de 30,489 a questão passa a

ser posta de forma mais ampla, agora em confronto com a tradição e a história, na

busca pela construção do que ele chamará de “história do ser”.

Depois de experienciar e ultrapassar os limites da cura no 1º. Périplo, agora,

no 2º. Périplo, veremos que a disposição com que Dom Quixote compreendeu,

interpretou e predicou o mundo interfere em sua disposição atual. Muda o ponto de

vista, muda a perspectiva, o ciclo reinicia, e o mundo se abre para nova

compreensão, interpretação e predicação nesta segunda “viravolta”, neste 2º.

Périplo do percurso “quixotesco”.

Do que precisa, acima de tudo Dom Quixote, é investir em sua performance

discursiva. Se pretende ser o porta-voz e dizer a seus contemporâneos a verdade de

seu tempo, precisa estar atento a esse falar. Sabe que é importante sua nova

missão: o hermeneuta, aquele que por saber interpretar e predicar, está autorizado a

dar a boa- nova.

E não é essa uma decisão autônoma, independente nem particular de Dom

Quixote. Os exemplos são claros: ainda que partam todos da loucura por oposição,

há o reconhecimento de todos os que o observam.

488

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1995, Partes 1 e 2. 489

Cf. INWOOD, Michael, Dicionário Heidegger. Trad. Luisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

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Do mesmo modo que nos surpreendeu a descoberta do verdadeiro mal de

Dom Quixote __ a privação da habilidade do questionar __, surpreende, agora,

verificar ser essa a chave do equívoco da modernidade.

Desde o 1º. Périplo, identificou-se, em Dom Quixote, a marca característica

da ação dinâmica: as andanças pelos caminhos de la Mancha, ratificadas pelas

patas do cavalo, elemento funcional e eficaz para o êxito do projeto do cavaleiro.

Com esse instrumental, fica definida a obra como o transitar de um louco que, sem

destino espacial, se põe a caminho de outro destino: a glória e a fama; conquistas

que só lhe serão acessíveis, graças à força de seu braço e ao manejo de sua

espada.

Essa é a versão, cavaleiro de Dom Quixote: o louco que precisa ficar louco,

“por no poder menos”;490 o louco que é pura ação - “soy loco en mis acciones”;491 o

louco que precisa alistar-se na cavalaria para “andar por el mundo enderezando

tuertos, desfaciendo agravios”;492 com o firme e seguro propósito de resgatar uma

época onde a pureza e a perfeição o faziam saudoso.

Essa versão guerreira, entretanto, é somente parte da composição platônica

da Paidéia que, não descartando o guerreiro, tinha como meta a formação do

filósofo.

Para sermos mais precisos, o perfil cavaleiro de Dom Quixote se conforma à

versão renascentista do ideal platônico, versão que centraliza, no “gênio”, o ideal de

homem, como base de um desempenho virtuoso em qualquer setor da vida. Desse

modo, com tal formação, poderá o homem desdobrar-se, dedicando-se a qualquer

atividade, com a garantia de êxito absoluto.

490

Por falta de alternativa. (2, XV, p.397) 491

Sou louco em meus atos. 492

Desfazer agravos.

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Nesse caso, Dom Quixote, pelas características mais evidentes na obra, em

sua versão cavaleiro, ocupa o nível mais superficial; atua somente na superfície. E é

nessa superfície que transita, ora movido por seus próprios passos, ora trotando nas

patas de Rocinante. Nesse nível, quem atua é o cavaleiro espanhol que tem, nos

livros de cavalaria, o grande incentivo patriótico de prestar serviço a seu país.

Tendo todos, na república, recebido a mesma formação, desdobramentos de

um mesmo homem são perfeitamente possíveis: sob a superfície se esconde outro

Dom Quixote __ o demiurgo, o homem criador, feito à imagem e semelhança de

Deus. Esse Dom Quixote desdobrado afina-se perfeitamente com o homem

universal, ideal do Renascimento, homem sem pátria; aquele a quem lhe cabe

resgatar a perfeição do mundo. Não terminam aí, no entanto, os desdobramentos.

Resta, ainda, o desdobrar-se desse ideal maior de homem, feito imagem e

semelhança de Deus, o desdobrar-se da síntese perfeita do homem chamado

filósofo.

Algo curioso, entretanto, acontece: o sistema de dobradura emperra. A partir

daí, Dom Quixote não vê saída; não há novos desdobramentos.

Esse processo muito bem reproduz a experiência de Dom Quixote em “la

Cueva de Montesinos”: emperra, ali, também, o sistema que permitia alguma

mobilidade, a começar por aquela que dava acesso ao exterior. É bem verdade que

também o exterior imobiliza, o simples sair de “la cueva” não libera do estático.

Basta lembrar do escudeiro Guadiana, que sai de “la cueva” sem nenhum

entusiasmo, porque seus peixes continuam grosseiros e sem sabor, obrigando-o a

alterar sua trajetória: fazer seu curso afundado na terra, esperando, quem sabe, se,

com o tempo, a terra se encarrega de suavizar a textura e de revitalizar o sabor de

seus peixes.

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O dinamismo de “la cueva” é reduzido ao estático, e o homem é

definitivamente aprisionado – “aprisionado”, termo perfeito e motivador de sua

contrapartida: a liberdade.

Como ter-se-ia efetivado, em última análise, essa situação de prisioneiro,

esse estado de constrangimento a que foi submetido o homem? Quem o submeteu?

Se puxarmos na lembrança e, não há muito, Nietzsche declarou com todas as

letras: quem enfeitiçou o homem foi o próprio homem.493 E disse mais: disse que

esse homem que ao próprio homem submeteu, de nada sabe: afinal ele não saberia

nem mesmo do funcionamento de suas entranhas, não sabe sequer como

funcionam seus intestinos nem seu sistema sangüíneo.494 Mas como se deu esse

processo histórico de submissão?

Dom Quixote, já o tínhamos deixado nesse mesmo lugar, perplexo e

paralisado. Afinal, estava no ponto crucial de sua história; chegara ao ponto zero da

encruzilhada; de uma encruzilhada que não era só sua, a maior encruzilhada

experimentada pelo Ocidente: a encruzilhada de uma nova etapa da modernidade.

Quando Descartes propõe o método científico como um procedimento para bem

dirigir a mente na busca da verdade e como garantia válida para toda possibilidade

de conhecimento, ele fundamenta no eu que pensa, no sujeito, toda possibilidade do

conhecimento. A partir daí, a metafísica moderna acaba por ganhar nova face: a da

subjetividade (e do subjetivismo) crescente.

Agora, mais do que nunca, Dom Quixote precisa compreender, precisa

compreender para bem-dizer. Para alertar o homem que com ele divide espaço no

mundo, elevando-o à categoria de ser histórico, além de saber, precisa saber dizer.

493

C.f. NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral. In: Livro do filósofo. Porto: Rés, 1984. 494

C.f. Ibidem.

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Como foi possível chegar-se a esse ponto crucial? Quem alimentou o Ideal

metafísico que, mesmo de dentro de “la cueva”, reuniu força e poder, para avançar

intrépido e ameaçador pela modernidade afora? A ciência moderna acabaria por se

configurar como a última face da metafísica, a última configuração de uma

interpretação metafísica do ente como ente a partir de conceitos como substância e

causalidade.495

É Dom Quixote quem quer responder. Assume para si essa responsabilidade.

Ainda que não quisesse, assumira em “la cueva” o compromisso: “que las grandes

hazañas para los grandes hombres están guardadas”496. É com essas palavras que

“el alcaide” Montesinos, o prefeito encantado de “la cueva” de mesmo nome, louva o

cavaleiro, incentivando-o a realizar a façanha do desencantamento. Muito mais

nobre e comprometedora é a outra tarefa: “[...] para que des noticia al mundo de lo

que encierra y cubre la profunda cueva por donde has entrado, llamada la cueva de

Montesinos: hazaña sólo guardada para ser acometida de tu invencible corazón y de

tu ánimo estupendo”497. Que mercado! Na primeira parada de Dom Quixote para

negociar o “pretio” ali encontra muito para interpretar.

A “cueva de Montesinos” traz em si a ambigüidade do encantamento, lugar

feérico onde Dom Quixote sonha e, sonhando, parece enxergar mais longe.

Conversa com diferentes seres que dão conta da geografia da Espanha e dão conta

da geografia da região da la Mancha. Mas não é só isto. No diálogo com os seres

fantásticos que lá encontra, é não só a geografia da Espanha, mas a própria

topologia da modernidade que se descortina. A cova nos fala de um estado de

495

C.f. HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002. 496

Que as grandes façanhas para os grandes homens estão guardadas (2, XXIII, p.444) 497

Para que a notícia ao mundo do que encerra e cobre a profunda cova por onde entraste, chamada “cova de Montesinos”: façanha só reservada para ser realizada pelo teu coração invencível e do teu ânimo estupendo (2, XXIII, p.442)

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sonho, do qual a humanidade encantada precisa ser desperta. Como pode Dom

Quixote despertar a humanidade do encantamento da modernidade?

É uma convocação para a qual, só os grandes são chamados. Essa é uma

convocação especial para a qual Dom Quixote é chamado. Era convocado para ler e

interpretar “as relações de convivência”, “os processos de relacionamento e de

criação”, “as várias situações” [...] de uma experiência histórica nova”, e das

“exigências de transformação e de adaptação à novidade”498 dessas várias

situações. Só os grandes podem desempenhar tal tarefa; ler uma realidade cifrada,

captar diferenças sutis que, ao mesmo tempo que mostra, escapa na ponta das asas

do pássaro. A partir do que já viu, a partir do que já foi, Dom Quixote precisa ver e,

com o giz do presente, rascunhar o perfil do futuro.

Surpreendentemente, depois de convocado, Dom Quixote, de quem se

esperava um “arregalar de olhos”, se mantém de olhos fechados, calmo, quase

impassível. Os olhos, outrora tão necessários e confiáveis, dão lugar a um sentido

de alcance mais amplo: a escuta que, por sua vez, também dispensa o ouvido.

A partir de agora, é pura atenção, não só ao que acontece dentro como

também fora de “la cueva”.

Do que já vira, Dom Quixote traz claro na lembrança sua experiência

platônica, experiência facilmente identificável no interior de “la cueva”. Intriga,

entretanto, Dom Quixote, a mudança radical do fim da historia: desconcertado, já

não sabe com que propósito ali entrara. Não pretende retirar ninguém do interior, e

ninguém o solicita. Sair de “la cueva” - caverna, além de não ser solução, não é essa

a expectativa. Ao contrário, sua função é simplesmente ler e interpretar. Carneiro

Leão é muito claro: intérprete é aquele “que é capaz de se identificar com a

498

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Hermenêutica e mito. Caderno de Letras n.11. Rio de Janeiro: Fac. de Letras, Depto de Letras Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995, p.17.

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diferença”, com a diferença do destino; e não ir “atropelando a diferença”499 O

destino histórico não pode ser atropelado nem modificado.

A grande diferença encontra eco na voz de Nietzsche; está intimamente

ligada a um poder humano que sem medida foi tomando conta do mundo: a

subjetividade. Em Platão, a passagem intermediária e obrigatória pela alma arrefecia

esse poder. Preso em “la cueva”-caverna, entretanto, cai o estágio intermediário

abrindo espaço para uma relação mais direta entre homem e mundo.

Ao sair de “la cueva”, “sea vuestra merced muy bien vuelto, señor mío; que ya

pensábamos que se quedaba allá para casta. Pero no respondía palabra don

Quijote; y sacándole del todo, vieron que traía cerrados los ojos, con muestras de

estar dormido”;500 o fechar os olhos de Dom Quixote é sintomático. No fundo de “la

cueva” estivera atento: além da rígida formação da Paidéia que lhe exigia um ajuste

do olhar: que olhasse com os olhos da alma, era a lei. Além disso esteve atento à

Guadiana. Parece que ele também dispensa o ver. Quando chega à superfície de “la

cueva” não quer ver o sol, rejeita a claridade e se mete “en las entrañas de la

tierra”501, se nega a olhar “el sol del otro cielo”502. Mesmo submerso, porque não é

possível deixar de “acudir a su natural corriente”503, quando o rio Guadiana504, “de

499

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Hermenêutica e mito. Caderno de Letras n.11. Rio de Janeiro: Fac. de Letras, Depto de Letras Anglo-Germânicas, UFRJ, 1995, p.17. 500

Seja vossa mercê muito bem retornado, senhor meu, que já pensávamos que ficaria lá para casta. Mas não respondia palavra Dom Quixote, e tirando-o de todo, viram que trazia fechados os olhos, com mostras de estar adormecido (2, XXII, p.440). 501

Nas entranhas da terra (2, XXIII, p.443) 502

O sol do outro sol (ibidem) 503

Voltar a seu estado normal (ibidem) 504

A determinação da nascente do Guadiana é um pouco polêmica (Rio Guadiana. Enciclopédia Virtual WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki /Rio-Guadiana>. Acesso em: 22 jun 2007). Alguns pensam que este grande rio brota depois nos lagos conhecidos como “Los Ojos del Guadiana”, a cerca de 600 m de altitude, na zona de Villarrubia (Ciudad Real), mas não é verdade. Este rio espanhol nasce antes, nas lagoas de Ruidera, a uma altitude de 1700 m, na região de La Mancha onde, de fato, se situam suas cabeceiras mais recuadas – a pouco mais de oitocentos quilômetros da foz, na fronteira com Portugal. Os Olhos do Guadiana são, então, na verdade, um regresso à superfície de águas de sua bacia que, infiltrando-se em terrenos calcários, muito propícios à circulação subterrânea, vinha já correndo desde antes. Não pode ser gratuita, portanto, a denominação “Olhos do Guadiana” integrada a esse contexto mítico.

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cuando en cuando sale y se muestra”505, mais uma vez descarta a visão, não são

seus olhos que vêem, ele é que se deixa ver “donde el sol y las gentes le vean”506.

Intrigante essa transferência: depois de nascer em Ruidera e de ter visto o

sol, Guadiana o rejeita, tanto se afundando na terra, como não mais enfrentando

com o olhar o sol por um longo período. O que teria acontecido?

2.4 A QUESTÃO DOS DOIS MUNDOS

O ingresso em “la cueva” possibilitou que Dom Quixote testemunhasse dupla

experiência. Numa mesma caverna, a resposta à pergunta, “o que é o ente”, dá

claros sinais de limitação. No exterior platônico, o sol que, por mais de um milênio

reinara absoluto, já não deslumbra, dando sinais, inclusive, de desconfiança, no que

se refere à sua ação segura e totalizadora. Parece que a confiança está abalada. Já

não se quer encará-lo, olhá-lo de frente. O sol e o céu que sempre estiveram à

disposição, eram insuficientes, não nutriam seus peixes, lhes faltava um “quê”, um

quê que Guadiana vai buscar nas profundezas.

É a relação céu-terra restabelecendo-se. Ao homem não mais interessa olhar

diretamente para o céu, buscando a luz que esgota e esvazia.

Não se pode encarar diretamente o sol. Não há visibilidade na claridade

absoluta. É preciso sombras e meios tons para definir contornos, é preciso contraste

para que se possa enxergar detalhes. A luz e a clareza absolutas e permanentes

505

De quando em quando sai e se mostra (2, XXIII, p.443) 506

Onde o sol e as pessoas o vejam (ibidem).

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cegam tanto quanto as trevas absolutas. Quando se busca um conhecimento pleno,

universal e absoluto, esta busca acaba por se mostrar estéril.

O que Dom Quixote está insinuando é que, para Sancho, o único mundo

permitido é o mundo comprovável e comprovado, o mundo da evidência, o mundo

ao qual só a metafísica dá acesso. É por isso que Dom Quixote diz: “como no estás

experimentado en las cosas del mundo, todas las cosas que tienen algo de dificultad

te parecen imposibles”.507

Com isso, Dom Quixote quer ampliar os limites do mundo. Sancho não ter

“experimentado las cosas del mundo” significa, na verdade, a necessidade do

“experienciar”. Isso significa que o experienciar é privilégio de poucos, que é preciso

ser especial para tal privilégio, que Sancho não faz parte do grupo de privilegiados,

por isso não experimentou o experienciar do mundo?

É óbvio que não. Isso fica claro na abertura que imediatamente Dom Quixote

dá ao tema, quando diz: “pero andará el tiempo [...] y yo te contaré [...] que te harán

creer”. Com essa abertura, Dom Quixote está dando o passaporte a Sancho para

que ele também embarque nesse mundo e com ele possa também fazer a viagem.

Uma viagem-presente dos deuses a todos os homens. Para terem esses homens

direito a essa viagem, nada mais é preciso do que o “visto-carimbo” do “querer”.

A falência do pensamento metafísico e científico se deve, em grande parte, a

essa busca de uma verdade e uma clareza absolutas. A sabedoria do rio, na medida

em que este percorre seus caminhos, nos ensina a buscar momentos de

obscuridade tanto quanto momentos de luminosidade. É no contraste entre seus

momentos na superfície – na clareira e no desvelamento do ser – e seus momentos

de velamento – onde repousa no fundo abissal da terra, que a verdade originária

507

Como não estás experimentado nas coisas do mundo, todas as coisas que têm alguma dificuldade parecem-te impossíveis (2, XXIII, p.447)

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pode se mostrar. Mas apesar dos contrastes entre esses momentos, o caminho do

Guadiana é um só, perpassando a ambigüidade entre a luz e a terra.

Por isso, se esconde, por isso precisa alternar a exposição à luz com o

esconder-se dela. Não há, nesse proceder, uma imposição, um tentar arrancar nada

da realidade. Há sim, um movimento natural, uma entrega de Guadiana, significando

um entregar-se, um deixar-se. Essa opção de Guadiana preserva de tal modo a

espontaneidade natural que ele não esquece de registrá-la: “pero como no es

posible dejar de acudir a su natural corriente, de cuando en cuando sale y se

muestra donde el sol y las gentes le vean”508.

Este fragmento diz, em sua completude, o processo do mostrar-se a verdade

do ser: o ser se dá na espontaneidade, do mesmo modo que o rio que, seguindo seu

curso natural, só se mostra por pura determinação natural, uma vez que “no es

posible dejar de acudir a su natural corriente”. Deixar-se iluminar pela luz “de cuando

en cuando sale y se muestra”, opção de Guadiana, é o deixar-ser das coisas, deixar

que o mistério se abra e venha à luz ”donde el sol y las gentes le vean”; atitude

literalmente oposta à do cientista, a quem só interessa o dia, porque ele é o único

que vê: “Viajante dos dias e das noites, o cientista só tem olhos para os dias e para

a claridade dos dias nas disciplinas”509. Na ânsia de esclarecer, não percebe que é

exatamente no “entre” que estão todas as possibilidades. E, insensível à retração,

ignora a sombra da noite, acreditando ser a ausência da luz, a inexistência do sol.

Não percebe que essa falsa aparência é o sol, no máximo de seu retraimento,

“embora seja mais presente do que as presenças que parecem ser os dias”510.

508

Porém, como não é possível deixar de atender à sua corrente natural, de vez em quando sai e se mostra onde o sol e as pessoas o vejam (2, XXIII, p.443) 509

CASTRO M. A. Interdisciplinaridade, dimensões poéticas. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.164, p.21, 2006 510

Ibidem.

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Guadiana, entretanto, não fica o tempo todo na luz, porque reconhece, no

retraimento, todo o vigor, existente na aparente ausência. Então, Guadiana

submerge no escuro das “entrañas de la tierra”. Aparece de vez em quando e

confessa ser impossível deixar de fazê-lo; é como se obedecesse a uma ordem

superior que é a lei da natureza: “no es posible dejar de acudir a su natural

corriente”. Por isso, precisa aparecer; mas só de vez em quando. E o mais

surpreendente é que, contrariando a orientação de Platão, já não olha para o sol.

Não é ele quem esforça o olhar, expondo-o à sua intensa luminosidade. Guadiana,

simplesmente, deixa que “el sol y las gentes le vean” e que sua luz ilumine. Talvez,

esperando que ao vê-lo em total naturalidade, percebessem a importância do

“deixar-ser”, pois só assim é franqueado ao mistério do ser.

Um dado ainda segue intrigante: se Guadiana chega a entrar pomposo e

grande em Portugal, é contraditório que não esteja pleno nem feliz.

Guadiana, no final das contas, é quem liga as duas pontas. E o faz pela

negação, negando a luz exterior da caverna, não lhe dirigindo o olhar, rejeita a

condição de filósofo que, de tanto contemplar a claridade, apropriou-se do saber que

toma para si a responsabilidade de retornar à caverna (la cueva) para auxiliar os

demais que ali seguem, dentro da caverna, prisioneiros das trevas. Por outro lado,

em sua segunda versão, “la cueva”, toda iluminada em seu interior, representando a

luz do pensamento do homem e seu alcance ilimitado e desmedido, Guadiana

também não a acolhe; caso contrário, de seu interior nem teria saído. A prova de

que rejeita também a segunda versão de “la cueva”, aquela que, por seu poder de

sedução a todos aprisionou em seu interior, é que Guadiana dela se retira, com

muito pesar. Não por ter conquistado a liberdade, mas porque em seu interior

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permaneciam todos os homens seus semelhantes: “fue tanto el pesar que sintió de

ver que os dejaba”.511

Junto com as lagoas, sendo os únicos que conseguem escapar do

encantamento, Guadiana, no máximo, retoma seu lugar mítico, sem, contudo, além

de muito lamentar, a nada mais se dispor. Não era a Guadiana que lhe cabia

providências; e sim a Dom Quixote.

Resumindo: Ao sair de “la cueva”, Dom Quixote já sabe e compreende que há

dois mundos; mundos que permanecem separados, sem relação um com o outro.

Um é o mundo onde se encontram todas as verdades, e que deve ser acionado para

dali retirá-las, mesmo que desse mundo as verdades saiam murchas, como “la flor

marchita”, não importa, desde que sejam claras e evidentes. O outro mundo é o

mundo real, o mundo das realidades concretas. Há um mundo essencial, onde está

a essência de todas as coisas e da verdade, e outro no qual o homem transita, e

com o qual contacta. A esse mundo das essências e da verdade, o chamavam, os

envolvidos no episódio de “la cueva”, de “outro mundo”.

Assim, o desdobramento mostra que, além de dois mundos, há também dois

“outros mundos”.

A diferença está em que, com a experiência em “la cueva”, Dom Quixote

descobre que um desses “outros mundos”, aquele pelo qual tanto lutara no 1º.

Périplo para preservar, esse mundo está fora do homem; como o comprova

“Guadiana”. O segundo “outro mundo” se localiza dentro do próprio homem. Os

diferencia só um detalhe que é da ordem do esforço que se tem de empreender para

alcançá-lo, num e noutro caso.

Se, do primeiro “outro mundo” – o mundo da idéias, bastava um centramento

do olhar, para que se captasse, com a alma, o que cada coisa trazia e oferecia de

511

Foi tanto o pesar que sentiu de ver que os deixava (2, XXIII, p.448)

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sua essência, embora de forma meio velada, e que nessa essência captada estava

a sua verdade; do segundo “outro mundo” – o pensamento cartesiano”, para dele

arrancar a verdade, era preciso um grande esforço, porque o pensamento precisa

tomar a “coisa” e submetê-la aos esquemas do seu tão poderoso pensamento, para

dela arrancar o que nela há de essencial. Isso acontece porque, só esse “arrancado”

será a sua verdade. E que desse arrancado, pode-se sempre arrancar mais e mais

“arrancados”, mais e mais verdades, ao limite máximo.

A grande diferença entre um “outro mundo” e o outro “outro mundo” é que,

enquanto num, a abstração é declarada como fundamento, descartando-se a coisa;

no outro “outro mundo”, a abstração é escamoteada: apesar de Descartes

reconhecer a realidade sensível partícipe do processo do conhecimento, no fundo,

essa realidade acaba sendo descartada. Até porque, depois de submetida aos

rigores do pensamento, acaba tão violentada, tão despedaçada que é impossível

recompô-la, dela restando nada mais do que pura abstração.

Essa lição que obteve na prática, no interior de “la cueva”, a viveu enquanto

experiência experienciada, haja vista o quanto dialogou com Montesinos. Só assim,

foi possível sair de “la cueva”-caverna com essa grande verdade. Entretanto, faltava-

lhe ainda checar como toda aquela verdade encontrava ressonância fora da

caverna.

É quando dirige o olhar já bastante sensibilizado, a seu entorno, perguntando:

E os outros homens, onde estão?

Dom Quixote precisa reencontrá-los. Como bom hermeneuta, não pretende e

não pode “atropelar a diferença”, mas dela precisa falar aos homens. Parece que

acertamos na opção interpretativa contida no alerta de Dom Quixote: “no soy loco en

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lo que hablo”,512 Pelo menos nesse primeiro estágio, está contemplada nossa

interpretação: embora signifique um simples anunciar, para todos, sua descoberta no

interior de “la cueva”, merece cuidado especial. Afinal, é preciso que todos nele

acreditem.

3 DOM QUIXOTE E SUA TAREFA

Aquele temor somente aventado como hipótese, no 1º. Périplo, que o motivou

a abandonar a leitura e a optar pela cavalaria, só agora pode Dom Quixote

compreender o que na verdade era. Não era temor, mas angústia, esta também

apresentada no 1º. Périplo como a experiência mais radical vivida pelo homem. Para

entendermos o que é angústia, nada melhor do que recorrer a Heidegger e aos

Seminários de Zollikon,513 quando, ao dialogar com psiquiatras e psicanalistas,

Heidegger colocou em evidência nosso vínculo profundo com o não-ser e a angústia

que é constitutiva da existência do homem sobre a terra. Não se trata do medo da

morte, mas sim do horror do nada, aquele nada sobre o qual o ser do homem se

fundamenta. Pode parecer estranho que Dom Quixote tenha experienciado duas

angústias, entretanto, isso é perfeitamente cabível. Considerando que o ciclo da

Cura jamais se esgota, o viver a radicalidade da angústia não pode ser único entre a

vida e a morte. Além disso, a mudança empreendida por Dom Quixote, que lhe deu

origem como ser ficcional, é radical o suficiente que mereça ser classificada como

de-cisão.

512

Não sou louco naquilo que falo. 513

HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Editado por Medar Boss. Trad. Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado. Petrópolis: Vozes, 2001.

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A experiência do “nada” encontra parâmetro no taoísmo que diz estar a

essência da roda, não em seus raios, mas sim no “nada”, de onde se distribuem os

raios, o vazio central que constitui a essência da roda.

Compreendendo sua origem, agora Dom Quixote compreende sua angústia, a

sua e a de todos: estando o mundo fragmentado em paradoxos incompreensíveis,

em oposições irremediavelmente separadas, aquela “falta” mencionada na

introdução, que precisava ser preenchida; preenchimento loucamente buscado e

conquistado, em Cura, permanece. O vazio permanece.

Segundo o Dicionário Aurélio, “paradoxo” significa “contradição, pelo menos

na aparência”.514 Seu significado mais comum abre para uma melhor compreensão:

“pelo menos na aparência” conduz à não-crença na contradição que ele encerra. Se

essa contradição não é compreendida na aparência, isso se deve à “postura

epistemológica de tudo abranger cientificamente”, como aponta o conceito de

“Interdisciplinaridade”, na tentativa de contornar algo cientificamente. Seu sentido

mais pleno, no entanto, é “doxo” – “ensino e conhecimento do [...] ‘para’ – entre, que

está junto”.

Isso acontece porque o homem, depois de sair da proteção de Deus, que o

sustentara por todo o horizonte medieval [teológico-cristão], perdeu-se no caminho e

custou a reencontrar seu lugar. Vemos o homem no Renascimento tentando ocupar

com o humanismo crescente o lugar deixado vazio, encastelando-se no centro do

mundo e achando que poderia dispor dele a seu bel-prazer. Na condição nascente

de sujeito, via em si mesmo a garantia de toda possibilidade de conhecimento e de

verdade.

Acontece que precisou que muito tempo passasse para dar-se conta de que

estivera equivocado: esse não era ainda o seu lugar. E, fora do lugar, não há como

514

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: N. Fronteira, 1999, p.1494

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viver a maior grandeza em sua plenitude. A menos que se queira viver uma mera

“vida vivida”. Desse modo, só se vive a vida, enquanto pura ânsia de preenchimento,

sem que este se torne viável.

E por que não é viável? Em primeiro lugar, não é viável porque o homem está

esquecido do ser. E, esquecido do ser, não se descobre como abertura. Depois,

porque, junto com o mundo, está também cindido em opostos desconcertantes,515 e

sequer lhe sobra espaço livre para ser preenchido. Esse espaço, por sua vez, na

corrida de implantação e definição de significados, de tal modo precisou fechar-se e

contornar-se que virou conceito frio, petrificado. Compreende o homem,516 ainda, o

temor do vazio chegando ao limite máximo da angústia, depois de repetidamente

burlar e burlar-se em tédio.

Compreende que homens vazios, cheios de um “nada” avassalador, se

esforcem em preenchê-lo. E se esforçam efetivamente; tão efetivamente que, na

urgência, se antecipam ao “deixar-ser”, pondo em movimento o pensamento como

uma indústria que produz e fabrica.

Sabedor de que tem o compromisso de dar conta do mundo e explicá-lo,

tornando claras e distintas todas as coisas, o homem se entrega diligentemente a

um fazer.

Mas de onde vem essa entrega, de onde vem esse fazer irrefreado?

Primeiro compreendamos como os paradoxos desestabilizam o homem. O

pensar metafísico engessa o mundo, o mundo engessado, por sua vez, engessa o

homem. Sem o “entre”, as coisas do mundo dispensam o homem de seu lugar de 515

Este jogo de paradoxos será retomado no 3o Périplo, quando abordaremos a questão da obra de arte. 516

Quem tudo isso está compreendendo é o homem do Ocidente que está em crise, homem do qual Dom Quixote é imagem-questão. Dom Quixote um homem que, atendendo ao apelo do ser, está traçando um caminho possível, um modo de responder à pergunta essencial que a ele está sendo lançada, pergunta que só a ele cabe responder, pois se a ele lhe corresponde a abertura, porque só a ele cabe o lugar de “entre-ser”. Como Dom Quixote, outros homens, ao longo da história do Ocidente também se movimentaram nessa direção. Muitos homens, em momentos de crise, movidos pela disposição, ou seja, pelo modo como o mundo se apresentava em determinado momento, encontravam, nessa disposição, a abertura que os impeliria em direção ao ser, a abertura que era o próprio chamado do ser, chamado que atenderam todos, respondendo à questão que os tomou, cada um à sua maneira. Momentos de crise são sempre movidos pela disposição que o homem de cada época, estando desde sempre na abertura, vai abrir mundo, pois a crise já é o próprio apelo do ser.

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“entre-ser”. Dispensado de seu lugar de “entre-ser”, perde sentido sua humanidade,

perde-se o empenho de ser.

Retomando material recolhido em vários textos, tornemos mais esclarecedora

a questão,517 viver é mover-se no “entre”, é o “vi” fazendo-se tensão com o “ver”.

Esse é o viver-experienciar, é viver e conhecer, movido pelo empenho de ser, que é

o empenho maior, o penhor de nossas pro-curas.

O “entre” não é nada a priori, é espaço aberto, vazio entre conceitos e teorias,

é interstício, o incontornável que abre e não fecha, mantendo livre o acesso ao

originário. É isso que nele guarda todo vigor, fazendo possível que realidades do

que já é, no vigor do que ainda não é, sejam mais possibilidades.

Nesse caso, as oposições, no livre acesso ao ser, não se anulam. Fechando-

se em conceitos, entretanto, fecham-se os paradoxos.

O conhecimento não é o claro que foi arrancado do escuro. No “entre” do

pensamento, o conhecimento é o já pensado; mas esse já pensado é o máximo da

retração, é o máximo do velado.

O “desvelado” é só desvelado: isso significa que não é nada do velado, não

tem nada do que ficou velado, por isso é o grau máximo do velado, o grau máximo

do ser; nele está, em todo vigor, o velado.

Há diferença fundamental entre o “entre” do conhecer e o “entre” do pensar: o

“entre do conhecer só tem, como meta, o “sendo”, o que já é conhecido. Ser, acaba

sendo o ser que é conhecido. No “entre” do pensar, entretanto, o ser se deixa atrair

pelo ser que não é, e, então, o originário se dá.

A essência do homem é o “entre”, a verdade do homem é o “entre”.

517

Esses textos são, em sua maioria, os publicados por Manuel Antonio de Castro, como suporte para as aulas. A concentração maior está, no entanto, em: CASTRO, M. A. de. Interdisciplinaridade poética: o “entre”, Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.164, p.7-37, 2006.

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Por sua localização subterrânea e escondida, “la cueva” sugere o máximo de

velamento que, cheio de vigor, esconde a verdade. Muita verdade ali se escondia;

inclusive a identidade do cavaleiro com quem deveria travar batalha final. É por isso

que se reconhece, na experiência de “la cueva”, um verdadeiro “experienciar”, um

grande rito de passagem que há muito aguardava Dom Quixote e, pelo qual sabia

precisar passar, como se fosse um destino, sem a mínima possibilidade de dele

fugir, porque não haverá como “evitar lo que por el cielo está ordenado”518.

O destino histórico do Ocidente é o acabamento da metafísica, através do

poder da técnica. A época atual determina para os homens uma forma própria de

lidar com a vida, exclusivamente objetivista e determinista, bloqueadora de outros

horizontes mais primordiais à condição humana, como a dimensão poética e

criadora. O cientificismo e niilismo, como destino historial inescapável da trajetória

da metafísica, é a batalha anunciada de uma trajetória iniciada com Platão e seu

modo de determinação do ente e da verdade, que passaria por diferentes

configurações na Idade Média e na modernidade até sua face final. Mas como

escapar de todos os encantamentos, seduções e comodidades que a técnica

oferece?

Também a batalha de Dom Quixote é uma batalha anunciada. Seu inimigo

também tem seus encantos. Aquela legião que há muito fazia suas aparições tinha

poderes superiores, semelhantes aos identificados como mágicos pela Idade Média,

já se registravam suas aparições com a intermediação de um sábio “un encantador

que vino sobre una nube una noche [...] apeándose de una sierpe”, saía “volando

por el tejado”, e, quando saía, deixava a casa que era pura fumaça, “llena de humo”.

Num passe de mágica, dera fim à biblioteca e, “cuando acordamos a mirar lo que

518

Evitar o que pelo céu está ordenado (1, VII, p.44)

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dejaba hecho, no vimos libro ni aposento alguno”. A ama de Dom Quixote a esse

sábio encantador se refere como um “mal viejo” 519.

Só cercado por esses seres, o cavaleiro misterioso poderia passar pelo

mundo meio desapercebido. Nunca se sabia exatamente onde estava; agia sempre

através dos outros: sábios, gênios, etc. Quem sabe não eram todos [gênios e

sábios], ele mesmo, com todos os seus disfarces?

Por isso, dentre as experiências experienciadas no diálogo com Montesinos,

em “la cueva”, está a seguinte: Dom Quixote descobre que, em seu interior, há

também um sábio; não ainda com muita precisão, mas já consegue identificá-lo em

linhas gerais. Até então, só tivera contato com o sábio “Frestón”.

Dom Quixote, dele só tinha sabido, no desaparecimento misterioso de sua

biblioteca. Ficara sabendo que teria de lutar com um cavaleiro, “andando los tiempos

[...] en batalla singular” que não poderá ser evitada porque “por el cielo está

ordenado”.520 Se é verdade que em “la cueva” há também um sábio, quem sabe não

é o mesmo Frestón, ou o próprio cavaleiro, ambos devidamente disfarçados, o

cavaleiro misterioso que mais detalhes lhe pudesse dar?

Depois de ter ido às profundezas de “la cueva”, talvez possa especular na

atribuição da identidade do cavaleiro singular com quem deverá lutar: pode ser a

razão, o pensamento metafísico ou a técnica que, mesmo sendo desdobramento do

pensar metafísico, parece ter-se transformado no mais ameaçador adversário dentre

todos os demais. O que fica claro e que, realmente é significativo é o tempo em que

essa batalha já está marcada: aquele inocente “mal viejo”, com que a ama identifica

o sábio encantador, nos coloca na linha do tempo, assinalado pela chancela do

platonismo. 519

Um feiticeiro que veio sobre uma nuvem certa noite [...] desmontando de uma serpente [saía] voando pelo telhado [e (...) pura fumaça,] cheia de fumaça. [Num (...) biblioteca e,] quando lembramos de olhar o que havia feito, não vimos livro nem aposento algum. [A ama (...) como um] velho ruim. (1, VII, p.43) 520

Andando os tempos [...] em singular batalha [que não (...) porque] pelo céu está ordenado (1, VII, p.44)

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Deixemos que o tempo, que antecede a batalha, isso decida. Como não

sabem sequer o motivo pelo qual estão encantados, em “la cueva”, tanto Montesinos

assim também sugere: que só no tempo, isso será dito “y ello dirá andando los

tiempos”, como o próprio Dom Quixote, quando pacientemente assim explica a

Sancho: “andará el tiempo [...] y yo te contaré”. (grifos nossos)

4 TÁ DOMINADO, TÁ TUDO DOMINADO

O título deste item é um misto de um verso “funk”, manifestação, talvez

inconsciente, mas espontânea do povo: o mesmo povo do qual Dom Quixote é

imagem-questão, e um fragmento retirado do artigo A vigência do poético na

regência do virtual, publicado por Emmanuel Carneiro Leão, no livro organizado por

Manuel Antonio de Castro – A construção poética do real.

“Está dominado, está tudo dominado”. Com esse verso, Emmanuel Carneiro

Leão alude à necessidade de ir-se “direto ao fundo da técnica”. Reflete, entretanto,

no quanto esse fundo já alcançou a superfície de todas as coisas, mesmo aquelas

com aparência radicalmente diferente da técnica, por já ter “se apoderado e haver

controlado”, sem nenhuma reserva.521

Nesse artigo, o centro está no virtual com o qual a técnica tem também

dominado o homem “de alto a baixo”, afetando a Linguagem. É claro que esse é

considerado o grau máximo da questão que não se pode ignorar: a questão da

essência da técnica. É também, do mesmo modo que ameaçadora, um “descontrole

521

LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.83-84.

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salvador”, na medida que “nos poderá advertir para a originalidade de todas as

coisas, salvando-se a essência inventiva de nossa humanidade das repetições

monótonas e sem surpresas [...].”522

Embora fosse nossa intenção cobrir todos os setores onde a técnica nos

domina, e a obra é um fértil terreno para isso, por necessidade de contenção,

selecionamos somente dois: a ética e o homem. Por isso não aprofundaremos a

virtualidade da linguagem aqui, retomando-a no 3o Périplo, quando deverá pagar

tributo à linguagem poética.

Entretanto, chamamos a atenção para o que está realmente agora em

questão: a “face oculta da técnica”, a essência da técnica, onde a realidade é

provocada a fazer-se disponível e a tornar operativa toda sua energia de realização”.

4.1 A TÉCNICA DOMINA A ÉTICA

Nas histórias que povoam o universo espanhol com temas recorrentes,

pressente-se a falta de liberdade do homem em seu poder de decisão. A cada

passo, Dom Quixote se depara com uma verdade que o obriga a refletir. Se estamos

falando de liberdade, ao apresentar-nos a Ética de Heidegger, Emmanuel Carneiro

Leão mostra como ela está intimamente ligada ao agir do homem no mundo e de

como agir e liberdade se relacionam reciprocamente.

Repensar a ação em sua raiz é pensá-la em relação ao ser. Numa ação

relacionada ao fazer, entretanto, sente-se o entroncamento da técnica alcançando e

522

LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.84.

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interferindo na concepção ética: “Está dominado, está tudo dominado”;523 em todos

os domínios, todos estão dominados. Até o homem, assumindo a posição de sujeito

dominador de objetos, vira também objeto, em suas próprias mãos de algoz. Com a

realidade velada, encobre-se o ser irremediavelmente.

Não tão irremediável parece a Heidegger, que propõe uma reversão: alerta o

homem para a falácia de uma ação pautada na razão e no fazer técnico; diz que ,

muito antes de o homem perseguir um agir irrefreado que sustentasse uma também

irrefreada vontade de querer afirmar-se com seu fazer sobre o real, muito antes

disso, um acesso à origem primogênita já sempre se dera. Mas o irrefreado

permanece, com a vitória estonteante do “antropos”, “em que o homem não se sente

apenas amo e senhor da natureza, mas se entende, sobretudo, como mestre e dono

de si mesmo e dos outros todos”524.

Todos estavam ansiosos por novidade sem se darem conta de que o evento,

que traz a verdade, acontece no tempo, inesperadamente, na lida do cotidiano. É do

prosaico que saem as grandes revelações. Foi Emmanuel Carneiro Leão quem, na

emergência, socorreu Dom Quixote. Por seu intermédio, contaremos uma história.

Diz Aristóteles que aconteceu com Heráclito, quando num inverno, alguns turistas o

visitaram.

Nessa história, Dom Quixote identificou-se totalmente com todos aqueles

personagens. São os mesmos com quem já tinha se encontrado no 1º. Périplo,

vítimas todos da decadência. É claro que ali, a identidade se dera mais intimamente

no falatório, o que não excluiu o desencadear cíclico da curiosidade e da

ambigüidade. Do mesmo modo que no 1º. Périplo, todos estavam movidos pelo

interesse da novidade: “ver ao vivo” um autêntico pensador em seu habitat era

523

LEÃO, Emmanuel Carneiro. A vigência do poético na regência do virtual. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004, p.73. 524

Idem. Heidegger e a ética. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.157, p. 70, abr-jun, 2004

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demasiadamente interessante para ser barrado pela curiosidade. Assim, correram

todos ávidos de curiosidade, mas decepcionaram-se ao ver tão ilustre figura na

intimidade do seu lar, na instrumentalidade mais radical, cercado de elementos do

cotidiano. Assim se encontrava Heráclito, perto de seu forno à lenha, assando pães.

Mais doméstico, impossível!

Dom Quixote, entretanto, ficara atento a uma parte do relato, aquela que diz:

“Todo questionamento não visa eliminar, mas aprofundar a pergunta”525. Tomamos,

como exemplo, o quadro apresentado por Emanuel Carneiro Leão que traça o perfil

da ética na Idade Moderna: “Ao longo dos últimos cinco séculos, os modernos

elaboraram padrões de comportamento e construíram modelos de ação para

assegurar valores e garantir práticas de relacionamento”526. A partir desse fragmento

textual, podemos pensar que um retorno empreendido por Dom Quixote deveu-se a

uma sinalização quanto aos riscos da nova ética que mostra sua redução quase

exclusiva ao interesse.

A ética se concentra nas seguintes questões: os modos de ser e de agir dos

homens e do ser, e do realizar-se de indivíduos, grupos e instituições. Essas

questões vêm se apresentando ciclicamente, ao longo de cinco séculos, e, a partir

delas, decisões têm sido tomadas e atos praticados. Além disso, a ética também é

usada como condição de possibilidade do conhecimento. Heidegger e Wittgenstein

se opõem a essas formulações. Heidegger, particularmente, apresenta questões

radicais que conduzem a visão ética para outros caminhos.

Surpreendentemente, a ética acabou também cativa da metafísica, perdendo

sua dimensão originária. Ainda que pareça distante, a ética está relacionada com o

ser e a verdade. Em seu posto metafísico, a ética vira a fonte-raiz que se localiza

525

LEÃO, Emmanuel Carneiro – Heidegger e a ética. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.157, p. 73, abr-jun, 2004 526

Ibidem, p.65

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num lugar próprio do qual somos apenas caminho. Desse modo, antes de significar

liberdade e realização, torna-se obstáculo. Emmanuel Carneiro Leão cita Píndaro,

convidando-nos a sermos éticos: “Torna-te o que já és, aprendendo com a

experiência da vida”. Ser ético então, parece simples; basta viver a verdade do ser, e

isso acontece no cotidiano, na realidade viva do relacionamento, onde a fonte-raiz

está disponível para todos e em cada um.

Não precisamos buscar caminhos para chegarmos à fonte, uma vez que,

somos a fonte. Em Cartas sobre o humanismo527, Heidegger aproxima as duas: ética

e ações. Isso porque a ação não foi ainda pensada de modo decisivo. O agir só é

conhecido como produtor de efeito; efeito esse efetivo e utilitário. Heidegger, então,

trata do agir de forma decisiva, apresentando sua essência como “consumar”.

Consumar o quê? Píndaro já o tinha dito: consumar o que já é e está sendo, e isso

se faz com o pensar. O pensamento não faz nem reproduz nada; o pensamento

simplesmente restitui ao ser a referência do ser que lhe foi entregue pelo próprio ser.

Tal restituição se dá na linguagem porque a linguagem é a casa do ser. Só no

pensamento o ser vira linguagem, porque a linguagem é o lugar onde o ser é, a

linguagem é o lugar onde o ser pode acontecer, manifestando-se pelo dizer.

Esse processo conta com dois ilustres sentinelas: o pensador e o poeta. Eles

primam pela vigilância, são os grandes vigias, são pastores; são os que levam a

manifestação do ser para a linguagem.

Não há dúvida de que, do mesmo modo que Dom Quixote, todos na Espanha

estão à pro-cura da Cura, provavelmente, também como Dom Quixote, loucos em

suas ações, equivocados em seu agir.

Dom Quixote, no entanto, já é capaz de reconhecer as duas faces do agir,

sabe que é uma dessas faces que, por tantos “detestables siglos”, obstaculiza os

527

HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

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caminhos da cura. Ele conhece a diferença - “Soy loco en mis acciones, pero no soy

loco en lo que hablo”528 e, por isso, quer avisar que sabe ser vítima do agir

interferido pela ética do fazer.

Foi um olhar ao redor; foi um diálogo com o outro; foi, na verdade, o outro que

tornou possível essa consciência. Dom Quixote saiu por Espanha e pôs-se em

diálogo com o mundo. E encontrou todos empenhados num fazer-fabricante de

artefatos, num industriar e maquinar do pensamento.

Viu e ouviu Anselmo, recém-casado e feliz que, contaminado pelos processos

de pensamento do agir da ciência, maquina uma estratégia perversa envolvendo sua

esposa e seu melhor amigo: só sabia que sua esposa era boa porque esta não

tivera, até então, nenhuma possibilidade de ser má.

Parecendo-lhe não ser isso suficiente, crê precisar dela arrancar529 mais

conhecimento. Propõe então que seu melhor amigo a seduza, para que se possa

dela extrair mais verdade. Submetendo-a a laboratório, seria possível verificar sua

faceta de traidora pérfida, ou não. Isso lhe parecia fundamental. E assim fez,

acreditando ser possível, depois de submetidos todos ao processo esfacelador da

análise, o mesmo que, segundo Dom Quixote, murchou “la flor del campo”, refazer o

processo, recompondo todas as partes até chegar a uma unidade final.

Poderiam todos ter voltado atrás: a Anselmo não foram suficientes os alertas

de seu amigo Lotario, tentando demovê-lo:

Pareceme, !oh Anselmo!, que tienes tú ahora el ingenio como el que siempre tienen los moros, a los cuales no se les puede dar a entender el error de su secta con las acotaciones de la Santa Escritura, ni con razones que consistan em especulación del entendimiento, ni que vayan fundadas en artículos de fe, sino que les han de traer ejemplos palpables, fáciles, inteligibles, demostrativos, indubitables, con demostraciones matemáticas

528

Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo. 529

O verbo arrancar é usado intencionalmente para marcar a necessidade ansiosa com que o homem, equivocadamente, na condição de sujeito, acredita poder lançar-se sobre o objeto. De tal modo que sequer respeita o “outro”, seu semelhante, submetendo-o também à condição de objeto.

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que no se pueden negar, como cuando dicen: “Si de dos partes iguales quitamos partes iguales, las que quedan también son iguales”; y, cuando esto no entiendan de palabra, como, en efecto, no lo entienden, háseles demostrar con las manos y ponérselo delante de los ojos, y, aun con todo esto, no basta nadie con ellos a persuadirles las verdades de mi sacra religión. Y este mesmo término y modo me convendrá usar contigo, porque el deseo que en ti ha nacido van tan descaminado y tan fuera de todo aquello que tenga sombra de razonable, que me parece que ha de ser tiempo gastado el que ocupare en darte a entender tu simplicidad, que por ahora no le quiero dar otro nombre, y aun estoy por dejarte en tu desatino, en pena de tu mal deseo; mas no me deja usar deste rigor la amistad que te tengo, la cual no consiente que te deje puesto en tan manifiesto peligro de perderte530

Estavam equivocados todos. Feita a experiência, Camila e Lotario, “cobaias

de laboratório”, seres a serem experimentados e submetidos a novas experiências

não resistiram e se apaixonaram, sem que Alselmo, o marido soubesse, traição nada

fácil de permanecer escondida. Ao tomar ciência do acontecido, na tentativa de

recompor decomposição tão bem maquinada, só nesse momento, ficou evidente a

falácia do plano, e foram todos tão infelizes que, não sendo possível recompor a

unidade plena de afeto que dava a tonalidade da relação entre o trio amoroso, que

até então, nada tinha de “triângulo”, acabaram todos com suas vidas.

Circulando pelos caminhos de Espanha, pondo-se em diálogo com o mundo,

Dom Quixote vê Grisóstomo, também empenhadíssimo num fazer: precisa, quer

porque quer preencher algo que lhe falta.

Relembremos os desdobramentos do temor, a sensação de horror ao nada,

experimentada pelo homem. Com esse mesmo sentimento, Grisóstomo se empenha

em dele livrar-se, acreditando que lhe basta colocar em movimento o seu agir,

arquitetando um plano, bem formulado, bem engendrado, dando objetividade a esse 530

Parece-me, oh Anselmo! Que tens tu agora o discernimento como o que sempre têm os mouros, aos quais não é possível dar a entender o erro de sua seita com as citações da Santa Escritura, nem com razões que consistam em especulação do entendimento, nem que estejam fundadas em artigos de fé, mas sim que é preciso trazer exemplos palpáveis, fáceis, inteligíveis, demonstrativos, indubitáveis, com demonstrações matemáticas que não se possam negar, como quando dizem: “Se de duas partes iguais tiramos partes iguais, as que ficam também são iguais”; quando isto não atendem de palavra, como,de fato, não o entendem, faz-se necessário demonstrar com as mãos e pô-lo diante dos olhos, e, mesmo com tudo isto, não basta com eles para persuadi-los das verdades de minha sagrada religião. E este mesmo termo e modo me convirá usar contigo, porque o desejo que em ti nasceu vai tão desencaminhado e tão fora de todo aquilo que tenha sombra de razoabilidade, que me parece que há de ser tempo gasto o que ocupe em dar-te a entender tua ingenuidade, que por agora não lhe quero dar outro nome, e mesmo estou por deixar-te em tu desatino, em pena de tu mal desejo; mas não me deixa usar deste rigor a amizade que te tenho, a qual não consente que te deixe posto em tão manifesto perigo de perder-te” (1, XXXIII, p.193)

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plano, pondo-o em ação, dispondo não só das coisas que estiverem ao alcance de

suas mãos, como também das pessoas, tornando-as, de algum modo, objetos

também.

Contraditório esse sentimento de horror ao vazio que se manifesta em

Grisóstomo. Afinal, é homem rico – “y él quedó heredado en mucha cantidad de

hacienda, ansí en muebles como en raíces, [...] y en gran cantidad de dineros”,531 e

de “entendimiento”, “había sido estudiante muchos años en Salamanca [...] muy

sabio y muy leído”.532

Decide que Marcela, a mulher mais bela das redondezas, deverá retribuir o

amor que ele nutre por ela, acreditando ser o bastante para realizar sua vontade, pôr

a indústria de seu plano em ação. E vira pastor. Grisóstomo é homem culto, de

família riquíssima, mas vira pastor. É preciso deixar claro que essa decisão só se

deve a ter feito, também, igual opção, Marcela, a mulher amada. A decisão de

Grisóstomo não é uma de-cisão, ela é intencionalmente arquitetada, só vira pastor

para aproximar-se de Marcela. A opção pela atividade de pastor que podia sugerir

relação íntima consigo mesmo, considerando ser o pastor, aquele que cuida da

Casa da Linguagem, onde habita o Ser. Entretanto, esta também foi movida por um

chamado exterior - o interesse de aproximar-se de Marcela.

Além de Grisóstomo, a obra apresenta e descreve muitos outros homens

igualmente na mesma situação do rico e intelectual pastor: sobre todos eles “libre y

desenfadadamente triunfa la hermosa Marcela”,533 o que acaba lhe valendo,

entretanto, o estigma de “la pastora homicida”, alcunha com que acaba ficando

conhecida na região, só porque não cedera aos amores de Grisóstomo.

531

E herdou grande quantidade de bens, sejam bens móveis ou terras, [...] e grande quantia em dineiro (1, XII, p.63-64). 532

Havia sido estudante muitos anos em Salamanca [...] muito sábio e lido (1, XII, p.64). 533

Livre e despreocupadamente triunfa a formosa Marcela (1, XII, p.66)

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Marcela é também “muchacha y rica [...] con tanta belleza”. Ainda que todos

os melhores partidos da região a disputassem “ricos mancebos, hidalgos y

labradores”,534 sempre respondia que “no quería casarse”.535 Enquanto isso, seu tio

aguarda pacientemente que “entrase algo más en edad”536 para decidir casar-se

afinal. Mas Marcela, sem ter essa intenção, surpreende o tio e a todos, de-cidindo

ser pastora “que remanece un día la melindrosa Marcela hecha pastora”,537

juntando-se às demais pastoras do lugar, chegando a “guardar su mesmo

ganado”.538 Desse modo, fica mais livre para renegar todos os pretendentes e seguir

seu caminho, caminho com claros sinais de travessia à pro-cura da Cura. Aliás de

estar bem próxima ou, quiçá em momento bem avançado nessa pro-cura.

Vê-se, então, que Marcela toma tal de-cisão, com total integridade, a mesma

que não permite que, nem saia procurando um homem para dele apropriar-se, nem

ceda às paixões doentias que todos os rapazes da redondeza alimentam por ela.

Dentre todos, Marcela é a única que está atenta ao caminho da Cura, cuidando para

não perder o contato com o ser.

Por mais bem maquinado o agir de Grisóstomo, tentando fazer de Marcela

seu objeto, o objeto que iria completá-lo, o plano não vingou e, acreditando ter caído

em perdição, ele acaba com a vida: “ha muerto de amores de aquella endiablada

moza de Marcela”539. 540

Não só os ricos e cultos, todos, camponeses, lavradores, pessoas mais

simples, todos estão empenhados em ter e, por isso, seu agir é também da ordem 534

Ricos mancebos, fidalgos e lavradores (1, XII, p.66) 535

Não queria casar-se (ibidem) 536

Entrasse um pouco mais em idade (ibidem) 537

Aparece um dia a melindrosa Marcela feita pastora (Ibidem) 538

Pastorear seu próprio gado (Ibidem) 539

Morreu de amores daquela endiabrada moça de Marcela (1, XII, p.63) 540

Não se menciona suicídio nesse episódio. Entretanto, há sinal de que foi assim que Grisóstomo acabou com a vida. O cuidado em apresentar o lugar onde seria enterrado é sintomático: “que mandó en su testamento que le enterrasen en el campo, como si fuera moro”. Diz-se, no entanto, ser esse procedimento comum aos casos de suicídio __ enterrar no campo __, embora apareça na obra de modo escamoteado: Grisóstomo escolhera aquele lugar para ser enterrado porque “aquel lugar es adonde él la vio la vez primera”*. * Aquele lugar é onde ele a viu pela primeira vez (1, XII, p.64)

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do fazer, do industriar, do direcionar as ações aos interesses próprios. Normalmente

são pessoas mais sagazes, seus planos são mais mirabolantes. Uma grande porta

aberta a uma contrapartida sagaz, cheia de truques, é o casamento por interesse

que os pais sempre cuidam que aconteça para suas filhas. Esse preenchimento

perdura em Espanha, alcançando até o século XX, quando as “mulheres de Lorca”,

todas com destino trágico, também como Marcela, tomam a de-cisão da libertação.

O preenchimento, aqui, não é de amor, mas de terras e dinheiro. E a

contrapartida ficará sempre por conta daquele que, sentindo-se lesado, crê poder

reverter a situação, arquitetando saídas. Não importa que, nesse caso, a causa

possa ser considerada justa, o que importa é que todos estão em igualdade

absoluta: todos experimentam o horror ao vazio do nada e se esforçam todos em

preenchê-lo, contando com sua capacidade e, acima de tudo, obrigação e dever de

lançar mão do que têm de mais valioso – o poder do pensar-fazedor.

Daí que, como Basílio, acreditam terem o direito de usar de qualquer

artimanha, chegando à mentira, aquela mesma mentira de que fala Nietzsche em

Sobre a mentira e a verdade no sentido extra-moral, somente para induzir pessoas a

realizarem o que irá locupletá-los, como fez Basílio que, no dia do casamento de sua

amada com Camacho, reverteu, com uma monumental mentira, a situação,

obrigando a noiva a com ele se casar.

Há ainda os “galeotes”, há “El cautivo” e este, como sugere o título do

capítulo, aparece como o paradigma do prisioneiro, de tal modo que, mesmo

estando permanentemente em situações de aprisionamento, não consegue dar-se

conta de que, de todos os que estão ao seu redor, o único que aparece como

declaradamente livre é aquele que se faz poeta.

Esse pequeníssimo resumo tem por objetivo mostrar a condição de

infelicidade em que vivem todos os que habitam Espanha naquele momento, e,

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fundamentalmente, a falta absoluta de liberdade, da liberdade de ser. Nada se

consuma, todos se consomem nos empenhos. Se consomem a si mesmos,

consomem a natureza sugando “la flor del campo” até murchá-la, consomem o outro

homem, seu semelhante.

4.2 A TÉCNICA DOMINA O HOMEM

Se a essência da técnica é o fazer sair do oculto, o trazer à presença o que

até então estava oculto, se essa marca essencial era para o pensar grego adequada

para a técnica do artesão, o que a teria desfigurado no que tange à técnica

moderna?

O rasgo fundamental da técnica moderna é a “provocação”.

Nesse ponto, a técnica se desvirtua do desvelamento e, conseqüentemente,

da “poiesis”. A técnica moderna, ao relacionar-se com a natureza, obriga-a de todos

os modos a liberar suas forças com vistas a dela tirar toda energia e riqueza.

Ao apresentar tal evidência, Heidegger faz a defesa das tecnologias que

caracterizam o “cultivar”, quando ainda guardava o sentido primordial de “abrigar e

cuidar”. O camponês “en la siembra del grano, entrega la sementera a las fuerzas de

crecimiento y cobija prosperar”.541 Do mesmo modo, no tocante ao moinho de vento:

“sus aspas se mueven al viento, quedan confiadas de un modo inmediato al soplar

de éste”.542 Já as tecnologias modernas controlam e aprisionam. Desse modo uma

541

No plantio do grão, entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu prosperar. (HEIDEGGER, Martin. La pregunta por la técnica In: Conferencias y artículos, Barcelona: Serbal, 1994, p. 17) 542

Suas aspas movem-se ao vento, ficam confiadas de um modo imediato ao sopro deste. (Ibidem)

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usina hidroelétrica jamais revelará o rio, como o moinho o faz com o vento.

Controlada, a natureza só esconde, nada revela.

Heidegger nos lembra que o desvelamento do real não é algo do qual o

homem disponha. O real e efetivo não está à mercê do poder do homem [entenda-

se real e efetivo como a essência do “não-velamento”]. Mesmo assim, o homem, por

equívoco e sem cerimônia o pratica. E, embora reconheça o dramático da situação

vivida, o autor não vê a possibilidade de o homem igualar-se à natureza nessa

submissão, porque sua própria condição humana o provoca do modo mais originário.

Alguns autores são mais dramáticos, quando afirmam que nem mesmo o

homem escapa dessa provocação – a um estar exposto à solicitação para liberação

de energias543. Do mesmo modo que a usina e o avião, o homem também faz parte

do “fundo de reserva” e é também tomado como material e recurso humano.

Entretanto, esse mesmo dado, visto por outro prisma, o promove porque, ao

mesmo tempo, ainda que de um modo menos visível, o real também provoca o

homem, na medida em que dele esconde suas energias, desafiando-o a sempre

procurá-las e encontrá-las. Desse provocar recíproco, dentre todos os seres, só o

homem participa. Essa é de tal forma a sua marca que “[...] el hombre sólo puede

ser hombre en cuanto que interpelado así”.544 Vê-se então que esse provocar é

recíproco, e o homem para ser homem é mobilizado a atender à provocação do real.

Esse dado da reciprocidade é preponderante na avaliação do limite de seu poder – o

poder do homem nesse sentido é limitado.

Mas não é essa a resposta do homem. O quadro, que o tempo em que

vivemos revela, são os efeitos devastadores que “vontade” e “técnica” trouxeram

para o olhar do Ocidente, tirando-lhe qualquer possibilidade de luz. Essa

543

C.f. HEIDEGGER, Martin. La pregunta por la técnica In: Conferencias y artículos, Barcelona: Serbal, 1994, p.20. 544

O homem só pode ser homem quando é assim interpelado. (Ibidem, p.21)

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constatação se deve aos três “monstros” que já vinham represando força titânica

desde o início da modernidade. São eles: devastação da terra, massificação do

homem e a fuga dos deuses. O impedimento do eclodir espontâneo, frente ao

eclodir provocado e imediatamente ocultado como reserva, tira o frescor e a

novidade do mundo, e não podia ser de outra maneira; as existências, mesmo sem

existirem, estão bem guardadas, devidamente armazenadas em objetos. No avião,

por exemplo, tudo está pronto para ser posto à disposição no momento mesmo da

necessidade de liberar as energias reservadas para o decolar, num esquema

intencional de utilidade.

Conseqüentemente, tomada como fundo de reserva, “a terra se torna incapaz

de repor suas energias e em pouco tempo ela se transforma num grande torrão

ressecado e estéril”545. O mundo fica destituído de brilho e profundidade. Cheio de

coisa armazenada, o mundo é abundância sem limites, mas uma abundância

monótona porque monocórdia; é pura repetição. E, no final das contas, o homem

não escapa. Também explorado como fundo de reserva, ele agora é “massa”,

totalmente indiferenciado e desfigurado de seu ser real, “Este homem, [...] é aquele

perfeitamente adaptado ao mundo do trabalho para alimentar as forças de produção.

Ele é, na verdade, animal de carga”546. E os deuses, onde estão? Heidegger

responde: “Fugiram”, “desapareceram”, “afastaram-se” porque, desafortunadamente,

“o mundo perdeu o seu fundamento que dá o sentido às coisas e ao homem”547.

Fugiram os deuses e com eles o mistério, e o homem com sua vontade de

poder quer interferir até mesmo na espontaneidade do desvelamento que, ao

mesmo tempo em que desvela, vela. Supondo poder comandar a espontânea

verdade do “fazer eclodir”.

545

MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. São Paulo: Annablume, 1999, p.164. 546

Ibidem, p.166. 547

Ibidem, p.169.

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5 DO ENCANTAMENTO DA TÉCNICA AO ENCANTAMENTO POÉTICO

Chegamos ao ponto mais dramático para onde a técnica poderia nos

conduzir.

Dom Quixote há muito já o tinha percebido, desde o incidente dos moinhos de

vento. Se, por um lado, não passavam de inocentes moinhos, exemplares daquela

tecnologia mencionada por Heidegger, quando ainda guardavam o sentido

primordial de abrigar e cuidar, ganham na obra outra dimensão.

Quem registra a inocência é o olhar de Sancho, que assim diz a Dom Quixote:

“que aquellos que allí se parecen no son gigantes, sino molinos de viento, y lo que

en ellos parecen brazos son las aspas que, volteadas del viento, hacen andar la

piedra del molino”;548 entretanto, sob o olhar de Dom Quixote, são gigantes, seres

descomunais, “mala simiente”549 que Dom Quixote precisa “quitar [...] de sobre la faz

de la tierra”550. Para Sancho os moinhos não passam de entes do mundo ordinário,

enquanto para Dom Quixote significavam bem mais, tinham outro sentido, e esse

sentido está localizado na cabeça de Dom Quixote. É o que diz Sancho: “¡Válame

Dios! – dijo Sancho. - ¿No le dije yo a vuestra merced que mirase bien lo que hacía,

que no eran sino molinos de viento, y no lo podía ignorar sino quien llevase otros

tales en la cabeza?”551

548

Que aqueles que ali se parecem não são gigantes, mas sim moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as aspas que, giradas pelo vento, fazem andar a mó do moinho (1, VIII, p.46). 549

Semente ruim (ibidem) 550

Arrancar [...] de sobre a face da terra (Ibidem) 551

Valha-me Deus! – disse Sancho – Não disse a vossa mercê que olhasse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e eu não podia ignorar isso, a não ser carregasse outros tantos na cabeça? (1, VIII, p.47)

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Os “treinta o pocos más”552 moinhos-gigantes-desaforados dão sinais de

desdobramentos do cavaleiro com quem deverá lutar Dom Quixote: “que yo pienso,

y es así verdad, que aquel sabio Frestón que me robó el aposento y los libros ha

vuelto estos gigantes en molinos por quitarme la gloria de su vencimiento”.553 Mais

uma vez, Dom Quixote reforça que esse sábio encantador Frestón tem relação com

as artes: “mas al cabo al cabo, han de poder poco sus malas artes contra la bondad

de mi espada”.554 Apesar de serem “artes malas”, que deixa claro tratar-se da

técnica, fica algo intrigante no ar – o estar esse sábio, que protege seus inimigos,

ligado às artes.

Fica patente aqui a demonstração do processo da arte. Dom Quixote penetra

tão bem nesse processo, a ponto de mostrá-lo por dentro, invertido como num

espelho: se, na imagem da arte, o moinho está na superfície cheio de vigor e

carregado de significação, todos muito bem velados por trás de um ingênuo e

inocente moinho, se, entretanto, não é nessa imagem que está o essencial e sim

nas questões que de seu vigor podem emanar, como atesta o exemplo de que

estamos tratando, por trás do moinho se esconde, na verdade, a questão da

essência da técnica. Se é assim, vejamos como Dom Quixote nos apresenta o

processo especular inverso.

Nesse processo, inversamente, parte-se da questão para a imagem, incluindo

ainda seus desdobramentos. A questão da essência da técnica parece a Dom

Quixote algo extremamente digno de pensar, logo é digno também de contra ele

lutar. Se o desdobramento exige luta, é claro que é no mundo ordinário que se vão

buscar os elementos que cumprem tal finalidade, e esse elemento entra na obra

como um cavaleiro, com o qual, desde o início da obra, tanto Dom Quixote como 552

Trinta ou pouco mais (1, VIII, p.46) 553

Que eu penso, e assim é verdade, que aquele sábio Frestón, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para tirar-me gloria de vencê-los (1, VIII, p.47) 554

Mas ao fim e ao cabo, poderão pouco suas artes más contra a bondade de minha espada (Ibidem)

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nós, leitores, ficamos sabendo que ele deverá lutar uma luta singular. Entretanto, na

hora da luta se efetivar, no momento exato em que Dom Quixote poderia usufruir o

êxito e a glória que lhe poderiam conferir a vitória sobre aquele cavaleiro, nesse

momento, no entanto, em processo inverso, o moinho imagem-questão cheio de

vigor acaba sendo des-realizado. Des-realizado, o moinho volta à sua condição de

prosaico e ordinário, volta a ser moinho real, um mero instrumento que Sancho

ordinariamente descreve dizendo que possui “aspas, que, volteadas del viento,

hacen andar la piedra del molino” .555

Lutar com esse mero instrumento cheio de mera instrumentalidade seria

rebaixar-se ao nível da mundanidade e perder a oportunidade de lidar com o “mundo

como mundo”. Desse modo, estaria perdida qualquer possibilidade de grandeza e “a

gloria de su vencimiento”.

O perigo desse “monstro” aparece nos seguintes fragmentos: “los brazos

largos, que los suelen tener algunos de casi dos léguas”,556 mostra o alcance por

onde pode estender-se esse mal: “dándole una lanzada en el aspa, la volvió el

viento con tanta furia, que hizo la lanza pedazos, llevándose tras sí al caballo y al

caballero, que fue rodando muy maltrecho por el campo”.557 Os monstros-moinhos

derrubaram Dom Quixote violentamente e o deixaram imóvel, necessitando da ajuda

de Sancho.

Além disso, Dom Quixote é radical. Afirma que entrará em “fiera y desigual

batalla”, mostrando o poder desigual que vai acumulando-se na técnica, sendo por

esse motivo, necessário “quitarles a todos las vidas”.558

555

Pás, que, giradas ao vento, movimentam as pedras de moinho. (1, VIII, p.46) 556

Os braços longos que costumam ter alguns de quase duas léguas (Ibidem) 557

Dando-lhe um golpe de lança na aspa, girou-a o vento com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando consigo o cavalo e o cavaleiro que foi rodando muito maltratado pelo campo (1, VIII, p.47) 558

Tirar-lhes a todos as vidas (1, VIII, p.46)

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Nossa escolha da técnica para incorporar o cavaleiro com quem Dom Quixote

precisa travar uma batalha singular se deve a uma intensa marcação à técnica na

obra.

No discurso da Idade de Ouro, como vimos, menciona “la martirizada seda”,

fazendo uma crítica voraz ao fabrico da seda que sacrifica os casulos – seres vivos,

em nome da vaidade do homem. No discurso de “las armas y las letras”, Dom

Quixote é muito mais duro e veemente: referindo-se aos instrumentos de guerra diz:

“benditos siglos que carecieron de la espantable fúria de aquestos endemoniados

instrumentos de la artillería”,559 desfechando sobre o inventor da artilharia as mais

duras ofensas: “a cuyo inventor tengo para mí que en el infierno se le está dando el

premio de su diabólica invención”.560

Chama todos esses instrumentos de “máquina maldita”, porque “acaban en

un instante los pensamientos y vida de quien la merecía gozar luengos siglos”.561

Veja-se que Dom Quixote, referindo-se ao homem, iguala pensamento com vida. E

volta a repetir que os tempos em que vive são uma “edad tan detestable”,562

encerrando seu discurso dramaticamente, falando da covardia que significa uma luta

em total desigualdade de condições: “aunque a mi ningún peligro me pone miedo,

todavía me pone recelo pensar si la pólvora y el estaño me han de quitar la ocasión

de hacerme famoso y conocido por el valor de mi brazo y filos de mi espada”.563

Voltemos ao encantamento. Outro indício de que a solução para o problema

que tanto molesta Dom Quixote, em relação ao seu compromisso assumido com

Montesinos em “la cueva”, está no seguinte fragmento:

559

Benditos tempos que careceram da espantosa fúria desses endiabrados instrumentos da artilharia (1, XXXVIII, p.232). 560

A cujo inventor tenho para mim que no inferno se está dando o prêmio de sua diabólica invenção (Ibidem). 561

Acaba em um instante os pensamentos e a vida de quem a merecia gozar longos séculos (1, XXXVIII, p.233) 562

Época tão abominável (ibidem) 563

Mesmo que nenhum perigo me dê medo, ainda assim me dá receio pensar se a pólvora e o estanho me roubarão a oportunidade de tornar-me famoso, pelo valor de meu braço e o fio de minha espada (ibidem)

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Hay muchas maneras de encantamentos, y podría ser que con el tiempo se hubiesen mudado de unos en otros, y que agora se use que los encantados hagan todo lo que yo hago, aunque antes no lo hacían 564

A menção ao tempo pode funcionar em duas direções. Dom Quixote pode

estar referindo-se aos encantamentos e sortilégios comuns da Idade Média,

projetando-os no presente. Pode também, a partir do seu tempo, estar projetando-os

para o futuro; neste caso, é visível o sinal da essência da técnica. Por outro lado, se

cotejarmos a citação acima com a seguinte, mais ainda podemos aprofundar-nos na

questão da essência da técnica. Quando Dom Quixote, compartilhando da

perplexidade de Sancho, assim o tranqüiliza:

Yo sé y tengo para mi que voy encantado, y esto me basta para la seguridad de mi conciencia que la formaría muy grande si yo pensase que no estaba encantado y me dejase estar en esta jaula perezoso y cobarde, defraudando el socorro que podría dar a muchos menesterosos y necesitados que de mi ayuda y amparo deben tener a la hora de ahora precisa y estrema necesidad.565

Se assim responde, significa ter consciência da utilidade do seu serviço em

prol dos “menesterosos y necesitados”566, isso do ponto de vista de Dom Quixote.

Do ponto de vista dos amigos e vizinhos que o levam enjaulado, há também o sinal

de finalidade e utilidade, justificando seu procedimento: a insistência em conduzi-lo à

casa esconde o reconhecimento da inutilidade da prática cavaleiresca de Dom

Quixote, além de que a sua marca de loucura inviabiliza qualquer produzir. Leia-se

produzir, segundo Antonio Jardim: “Produzir é produzir é meios-para [...] Produzir é

564

Há muitos modos de encantamentos, e poderia ser que com o tempo houvesse mudado de uns para outros e que agora se use que os encantados façam tudo o que eu faça, mesmo que antes não o fizessem. (1, XLIX, p.300). 565

Eu sei e tenho para mim que vou encantado, e isto me basta para a segurança de minha consciência que a formaria muito grande se eu pensasse que não estava encantado e me deixasse estar nesta jaula preguiçoso e covarde, sonegando o socorro que poderia dar a muitos necessitados que de minha ajuda e amparo devem ter neste momento de precisa e extrema necessidade (Ibidem). 566

Carentes e necessitados (Ibidem)

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produzir serventia e produtivo é quem produz serviço. Produzir é necessariamente

produzir para uma finalidade pre-estipulada, para uma utilidade”567.

A obra está coalhada de exemplos que denunciam a presença da técnica,

muitas são as referências à técnica em sua dimensão essencial – sempre como

fundo de reserva que não poupa sequer o homem, desde sua atuação no fazer

manual, como no mental. Parece que não satisfeito de utilizá-la nos artefatos, seu

uso alcança até o exercício da mente. Só à guisa de exemplificação, tomaremos o

capítulo El curioso impertinente, onde o poder mental de Anselmo é tal que vai às

últimas conseqüências do fazer. E Anselmo se torna o fabricador de sua desonra

(Anselmo, “el fabricador de su deshonra”).568 “Camila”, sua esposa, “de industria,

hacía mal rostro a Lotario”.569 Uma história de amor que, tendo tudo para dar certo e

encher a todos de felicidade, de tanta maquinação, fabricação e indústria, acabou

em tanta infelicidade que todos os nela envolvidos, não se suicidaram, mas “se le

acabó a vida”, “y acabó en breves días la vida”.570

O mais contundente, de todos os exemplos que denunciam o poder

devastador da técnica, é aquele apresentado pelo próprio Dom Quixote.

Parentes, amigos e vizinhos, em nova tentativa de reconduzirem Dom Quixote

ao lar, armam um plano com atores de uma companhia de teatro, para fingirem uma

cena de encantamento. Todos os envolvidos estavam compungidos, ao mesmo

tempo que davam “las gracias a la buena intención”571, porque tinham consciência

de ser a providência tomada, em benefício de Dom Quixote. Assim, contrataram um

“carretero de bueyes que acertó a pasar por allí, para que lo llevase en esta forma:

hicieron una como jaula de palos enrejados, capaz que pudiese en ella caber

567

JARDIM, A. A dimensão poética no contexto hegemônico da técnica, p.12 (mimeo) 568

O fabricador de sua desonra (1, XXXV, p.214). 569

De propósito, fazia cara feia para Lotario (ibidem). 570

E acabou em poucos dias a vida (1, XXXV, p.217). 571

As graças e a boa intenção (1, XLVI, p.283)

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holgadamente don Quijote”,572 além de todos, por ordem “del cura”, cobrirem o rosto

com capuzes, “de modo que a don Quijote le pareciese ser otra gente de la que en

aquel castillo [que não era castelo, era somente uma venda, um armazém] había

visto”.573 Depois, entraram em seu quarto e, aproveitando-se de que estava

dormindo, violentamente o amarraram __ “asiéndole fuertemente, le ataron muy bien

las manos y los pies”574 __ e levaram-no ao carro-jaula.

Tocado ainda pelo que era valor medieval, além de ser a cena realizada por

bons atores, todos “fingidores”, Dom Quixote inocentemente cai na armadilha

tramada, pensando ser vítima de encantamento. E acaba sendo conduzido

enjaulado num carro de bois, completamente imobilizado, com pernas e braços

amarrados. Consolado, entretanto, com as profecias mentirosas que “le prometían el

verse ayuntados en santo [...] matrimonio con su querida Dulcinea del Toboso”.575

Até que, em dado momento, no capítulo seguinte, vendo-se enjaulado, Dom

Quixote se põe a falar com Sancho, refletindo sobre o acontecido: diz já ter lido

muitas histórias de cavaleiros andantes, mas que jamais soubera que assim

pudessem ser conduzidos em situação de encantamento. Ainda mais, desse modo,

como animal: “desta manera y con el espacio que prometen estos perezosos y

tardíos animales”.576 E faz comparação com os modos de encantamento conhecidos

naquele tempo: “siempre lo suelen llevar por los aires, con estraña ligereza,

encerrados en alguna parda y escura nube, o en algún carro de fuego, o ya sobre

algún hipogrifo o otra bestia semejante”.577

572

Carreteiro de bois que [...] acertou passar por ali, para levá-lo dessa forma: fizeram como se fosse uma jaula de madeira gradeada [...] na qual poderia caber folgadamente Dom Quixote (1, XLVI, p.287). 573

De modo que para Dom Quixote parecesse que era outra gente que não a do castelo que havia visto (ibidem) 574

Agarrando-o firmemente, amarraram muito bem suas mãos e pés (Ibidem). 575

Prometiam-lhe ver-se reunido em santo matrimônio com sua querida Dulcinea del Toboso (Ibidem). 576

Desta maneira e com o vagar que prometem esses preguiçosos e tardos animais (1. XLVI, p.288) 577

Sempre costumam levá-lo pelos ares, com estranha rapidez, metidos em alguma parda e escura nuvem, ou em algum carro de fogo, ou então sobre algum hipogrifo ou outra fera semelhante (Ibidem)

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Começa a ficar, então, confuso (“que me lleven a mi agora sobre un carro de

bueyes, ¡vive Dios que me pone en confusión!”)578 e, intrigado com tanta

contradição, diz a Sancho: “quizá la caballería y los encantos destos nuestros

tiempos deben de seguir otro camino que siguieron los antiguos”579. Segue dizendo

que era possível que “se hayan inventado otros géneros de encantamentos y otros

modos de llevar a los encantados”.580

Sancho, que percebera toda trama, só lhe diz que aquelas coisas que tinha

presenciado não lhe pareciam ser “del todo católicas”, comentário com o qual

concorda Dom Quixote dizendo-lhe “¿Cómo han de ser católicas si son todos

demonios que han tomado cuerpos fantásticos para venir a hacer esto y a ponerme

en este estado?”.581 E acrescenta ser tudo aquilo, que tem parte com o demônio,

pura aparência, e que se Sancho quiser nessas coisas tocar, “verás como no tienen

cuerpo [...]”582 que não são feitas de outra coisa “sino de aire”.583

Não nos esqueçamos inclusive, do “diablo” com quem a ama se equivocara

no episódio do desaparecimento da biblioteca; ele volta a aparecer na forma de um

seu semelhante – “demonio”, com os quais identificamos a técnica, ou melhor, a

essência da técnica.

Ao avaliar a situação em que se encontra, Dom Quixote localiza a “falta de

consistência”, assemelhada ao “ar”, naquelas formas atuais de encantamento; não a

localiza nas formas antigas em que, os cavaleiros encantados eram levados “por los

aires [...] en un carro de fuego [...] sobre algún hipogrifo”.584 Justifica sua

perplexidade supondo que, do mesmo modo que se está ressuscitando “el ya

578

Que me levem agora sobre uma carroça de bois, vive Deus que me pões em confusão! (1. XLVI, p.288) 579

Talvez a cavalaria e os encantos destes nossos tempos devessem seguir outro caminho que seguiram os antigos (Ibidem) 580

Tenham inventado outros gêneros de encantamentos e outros modos de levar os encantados (1, XLVII, 288-289) 581

Como haverão de ser católicas se são todos demônios que tomaram corpos ilusórios para vir fazer isso e deixar-me neste estado (1, XLVII, p.289) 582

Verás como não têm corpo (ibidem) 583

A não ser de ar (ibidem) 584

Pelos ares [...] em um carro de fogo [...] sobre algum hipogrifo (1, XLVII, p.288)

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olvidado ejercicio de la caballería aventurera”,585 é possível que se estejam

inventando, também, “otros géneros de encantamentos y otros modos de llevar a los

encantados”. Acrescenta ainda que “los encantos destos nuestros tiempos deben de

seguir otro camino que siguieron los antiguos”.

Por outro lado, Sancho dá sinais de que percebera o jogo num nível mais

profundo, embora tudo esteja dirigido à superfície do diálogo que mantém com “el

cura”. Primeiro diz: “y adivino adónde se encaminan estos nuevos

encantamentos”.586 Depois desmascara “el cura”: “por más que se encubra el rostro

[...] por más que disimule sus embustes”.587

Por mais que esteja no estabelecido e que esteja referindo-se à verdade

daquele fato da vida ordinária, Sancho, ao fazer essa referência, a está remetendo

para o jogo do “esconde-esconde”, da “mentira-verdade” da obra de arte. Esse é o

encantamento da arte-ficção.

Dom Quixote também joga em dois níveis, ao referir-se a estar conformado

com o encantamento de estar preso numa jaula, por acreditar ser esse

encantamento aquele que se ajustava à sua consciência: “y eso me basta para a

seguridad de mi conciencia”.588 Caso contrário, teria ficado muito aborrecido se ele

descobrisse não estar encantado por um tipo de encantamento que, de tal modo lhe

parecesse digno, a ponto de deixar-se submeter.

O suposto encantamento de Dom Quixote ficara a cargo de atores de “aquella

ilustre compañía”.589 Eram membros de uma companhia de teatro, todos “cubrieron

los rostros y se disfrazaron”.590 Todos participaram da trama do fingir: “de modo que

585

O esquecido exercício da cavalaria andante (1, XLVII, p.288) 586

E adivinho para onde se encaminham esses novos encantamentos (1, XLVII, p.292) 587

Por mais que se cubra o rosto [...] por mais que dissimule seus embustes (ibidem) 588

E isso me basta para a segurança de minha consciência (1, XLIX, p.300) 589

Aquela ilustre companhia (1, XLVI, p.286) 590

Cobriram seus rostos e se disfarçaram (1, XLVI, p.287)

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a don Quijote le pareciese ser otra gente”.591 Se tivermos isso em conta, o

encantamento a que se refere Dom Quixote é também o encantamento da arte.

Compreende-se, então, porque Dom Quixote, sentindo o pesar de Sancho

diante da sua desgraça, ao querer ajudá-lo, colocando-o em fuga da prisão do carro

de bois em que é conduzido, faz com ele o seguinte comentário: “yo te obedeceré en

todo y por todo; pero tú, Sancho, verás como te engañas en el conocimiento de mi

desgracia.”592

Com essas palavras, Dom Quixote demonstra, nas entrelinhas, ser

conhecedor de que o encantamento que o colocara naquela situação não era o

encantamento da técnica e sim o encantamento da arte.

Se considerarmos que o encantamento a que se está referindo Dom Quixote

nada mais é do que o modo como foi ele encantado, violentamente amarrado,

impedido de qualquer movimento e reação, impedido de que sua vontade ou desejo

prevalecesse, resulta de uma bem tramada encenação-encantatória, baseada no

“fingere” e na representação teatral, compreenderemos a sua argumentação. O

convencimento de sua necessidade foi tal que imobilizou o rebelde cavaleiro, como

se tivesse assim agido, por sua própria vontade. É como se Dom Quixote, ao fingir,

se entregasse incondicionalmente ao encantamento da arte.

Talvez encontremos, aqui, o ponto de conexão que liga este fato, com o

episódio de “la cueva”: ali, no fundo de “la cueva de Montesinos”, estão todos

aprisionados, encantados, sem que consigam, de suas profundezas, sair. Como já

foi mencionado, anteriormente, “la cueva” acumula simbolicamente, duas cavernas:

a de Platão e, também, como já fora especialmente detectado, a de Descartes. O

591

De modo que a Dom Quixote lhe parecesse ser outra gente (1, XLVI, p.287) 592

Eu te obedecerei em tudo e por tudo; mas tu, Sancho, verás como te enganas no conhecimento de minha desgraça. (1, XLIX, p.300).

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que as diferencia é que “o homem não sai da caverna”593. Antes de abandonar a

caverna, ao contrário, o homem mais se dirige para seu interior. E então, a

fragmentação se recrudesce, pois “a transcendência é substituída pela imanência, o

divino pelo profano, a exterioridade pela subjetividade, a physis pelo espírito”.

Entretanto, “a dicotomia platônica continua a mesma”.594

É essa dicotomia que separa o mundo interior de “la cueva”, de outro mundo;

a separação que tem lugar nesse episódio, na verdade, é entre dois “outros

mundos”. O jogo dentro-fora de “la cueva” dá conta do jogo interior-exterior

necessário para tornar possível essa leitura.

O que se vê, dentro da caverna cartesiana, é o anúncio de um estagnar-se o

homem em seu interior, e dela não mais se libertar. E não podia ser de outro modo;

a novidade anunciada era por demais desejada de todos: o acreditar estarem, em

seu pensamento, aprisionadas todas as coisas do mundo, todas as verdades

possíveis, dava a esse homem a tranqüilidade da certeza absoluta. Isso é o

resultado da incessante busca pelo conhecimento que tanto influenciou no ir mais

fundo, explorando cada vez mais o poder de seu pensamento, que culminou com a

afirmação de que fora da caverna, fora de seu pensamento, nada existe, pois, se a

condição básica para o existir é a clareza absoluta, essa só existe dentro do homem.

Essa é uma possibilidade dos “géneros de encantamentos y otros modos de

llevar a los encantados”; esse é um possível caminho que está percorrendo o

encantar do tempo de Dom Quixote, até os nossos tempos __ “destos nuestros

tiempos”595.

593

CASTRO Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Fundação Engo Antonio de Almeida. Porto: Veredas, 1999, p.327. 594

CASTRO Manuel Antonio de. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Fundação Engo Antonio de Almeida. Porto: Veredas, 1999, p.327. 595

Desses nossos tempos (1, XLVII, p.288)

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Reaparece a palavra “máquina” para corroborar essas possibilidades

apresentadas. Isso porque, é com esse próprio pensamento, que também a ciência

busca, cada vez mais e mais, clareza no conhecimento. E é com seus novos

conhecimentos que cresce com ela, também, cada vez mais, a performance de criar

as artimanhas técnicas que já povoam, tanto o espaço de Dom Quixote, em forma

de uma ingênua brincadeira sim, uma providência que deixara todos os envolvidos

compungidos sim, mas cheia de propósitos tão “dignos”596 que os fazia agradecer a

Deus, “las gracias a la buena intención”597. Essas artimanhas que aprisionavam não

só a natureza, como também aprisionavam o homem, e pior ainda, que

possibilitavam o aprisionamento do homem pelo próprio homem, também já

avançavam a passos largos pelo Ocidente.

O aprisionamento de Dom Quixote acontece no nível mais baixo; num carro

de animal, Dom Quixote é submetido por outros homens, seus vizinhos e amigos até

a condição também de animal.

Se avaliarmos a cena, no entanto, a partir da ambigüidade que sempre

reserva a obra de arte, é possível encontrarmos, aqui, uma abertura para outro nível

de interpretação.

5.1 5.1 Para contar e desencantar, não basta falar; é preciso

“falar”

596

Desse modo, os que assim agiam com Dom Quixote, de forma tão baixa, justificavam seu procedimento: além de ser uma ação-providência cheia de propósitos, também os deixava compungidos de terem que assim proceder. Por isso consideravam seus propósitos dignos. As aspas talvez sejam para chamar a atenção para uma possível ironia. 597

As graças e a boa intenção (1, XLVI, p.283).

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Se formos juntando agora as peças desse longo e complicado quebra-

cabeças: o experienciar “a cueva de Montesinos” de Dom Quixote; o encantamento

do pensar metafísico, desdobrado-se em técnica, chegando às raias da dominação

do homem pelo próprio homem; o compromisso firmado com Montesinos de libertar

a todos da caverna e, fundamentalmente, o de contar ao mundo tudo o que ali

acontecera; o dilema que permanece sem solução: o não saber como contar ao

mundo que “soy loco en mis acciones, pero no sou loco en lo que hablo”598; e,

principalmente, o de não encontrar a forma certa do “falar”; se a tudo isso

acrescentarmos outros, é possível que transformemos, pelo menos, a situação de

dilemática em intrigante.

Somemos, então, o verso otimista de Hörderlin – “Porém onde está o perigo,

cresce também o que salva” –, com a palavra de Maria José Rago Campos, em

“Arte e verdade”:

Ninguém põe em dúvida que a perda do caráter mito-

poético da arte constitui um momento necessário à eclosão de

uma nova dimensão tecnológica que caracteriza o nosso

mundo. Mas também não há dúvida de que, em um segundo

momento, a criatividade humana preservou o elemento

irracional, dionisíaco e fantástico... O homem encontrará abrigo

naquele espaço onde o real e o irreal ainda coexistem, onde a

natureza não é reduzida a fim de ser dominada.599

598

Sou louco em meus atos, mas não sou louco naquilo que falo. 599

CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Loyola, 1992, p.125. (Coleção Filosofia)

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Acrescentemos, ainda, a imbatível força do daimon que estrutura o modo de

ser do homem, e, a essa juntemos o intrigante episódio citado há pouco. Nele se

conjugam, por um lado, o poder exacerbado da técnica subjugando o homem, a

ponto de fazer-se valer sobre Dom Quixote, a vontade dos demais – o regresso ao

lar. Por outro, está presente na mesma cena, o dado ficção, se considerarmos que

tudo só pôde ser realizado pela providência de uma companhia de teatro que

resolveu participar do projeto-farsa.

Esses dois dados estão tão misturados, que não é possível detectar se o que

moveu Dom Quixote a acreditar na farsa e a ela aceder foi a trama maliciosa e

intencionalmente armada, ou se foi a excelência dos atores que conseguiram fingir

tão bem, a ponto de o levarem a acreditar na farsa como verdade.

Visto assim, parece que vamos nos encaminhando para a solução, ou, pelo

menos para a tentativa de explicação de alguns nós que, insistentes ao longo da

obra, ainda permanecem. Não teria isso, alguma coisa a ver com a mentira que tanto

atormenta Dom Quixote, por tantos capítulos?

Não estaria aí, a chave que desvendaria o enigma perseguido por Dom

Quixote a respeito de seu modo especial de “falar”, para atender da maneira mais

plena ao compromisso firmado com Montesinos?

Não estaria a técnica que, com seus encobrimentos, impede a percepção do

sentido do agir humano, promovendo, ela mesma, a grande “virada” que possibilitará

um retorno à sua essência?

Não estaria tudo isso que somamos, nos conduzindo, a nós e a Dom Quixote,

à chave para abrir as portas do 3o Périplo, onde a pro-cura andará na trilha da obra

de arte?

Não terá Dom Quixote descoberto a grande diferença que há entre falar e

“falar”, e assim encontrado a sua forma própria e apropriada de falar para contar,

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buscando outro modo de encantar, buscando, na arte, o único e libertador

encantamento?

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Capítulo III

3o Périplo

A VERDADE DA OBRA DE ARTE

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1 A OBRA DE ARTE E O TEMPO

“Quién duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la

verdadera historia de mis famosos hechos [...]”600

“[...] pero andará el tiempo, como otra vez he dicho, y yo te contaré algunas

de las que allá abajo he visto, que te harán creer las que aquí he contado, cuya

verdad ni admite réplica ni disputa.”601

“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue buscando a su lector” 602.

Estas citações bastam, para a desconfiança de que Dom Quixote está

apresentando uma obra de arte. Ele mesmo informa ter dado esse aviso mais de

uma vez: “como otra vez he dicho”. Apesar de o personagem introduzi-las com o

verbo “duvidar” e, apesar do verbo no futuro e a subordinada sugerirem

probabilidade, seu significado indicia, pelo menos, a certeza de permanência no

tempo.

Anda rondando a biblioteca de Dom Quixote um “diablo”, melhor dito, “un

encantador” que penetra na casa com todas as peripécias que sempre caracterizam

aparições de seres dessa estirpe: andam sobre “nubes”, montados em “sierpes”,

deixam a casa “llena de humo”, fazendo “daño” ao “dueño de aquellos libros”603. Ao

retirar-se, depois do estrago de dar fim à biblioteca de Dom Quixote, deixa recado:

“dejaba hecho el daño en aquella casa que [...] se vería”.604

600

Quem duvida que nos séculos vindouros, quando venha à luz a história verdadeira de meus célebres feitos (1, II, p.21) 601

Mas andará o tempo, como já disse, e eu te contarei algumas das que lá embaixo vi, que te farão acreditar nas que aqui contei, cuja verdade não admite réplica nem disputa (2, XXIII, p.448) 602

A impossibilidade de localizar a frase, que seguramente está escrita em Espanhol (“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue procurando a su lector”) em algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa adaptação, caso contrário, a perderíamos. 603

diabo – um encantador – nuvens – serpentes – dano – dono daqueles livros 604

Deixava feito o dano naquela casa que se veria (1, VII, p.44)

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Mais uma vez, com “vería”, aparece o tempo jogado para “depois”, como um

referente de peso, referente corroborado pelo próprio Dom Quixote: “Se llama

Frestón”, esse sábio encantador é seu inimigo, porque tem guardado o segredo de

seu destino, um destino que não é só seu, mas também do outro cavaleiro com

quem deverá lutar. É um destino inevitável que Dom Quixote sabe que “mal podrá él

contradecir ni evitar” 605. O destino de Dom Quixote está para acontecer no tempo.

Se compararmos Dom Quixote com Édipo, mesmo que o manchego tivesse a

ilusão de ter cumprido seu destino no 1o Périplo, dando conta talvez do enigma que

o provocava com a missão de cavaleiro, numa primeira instância, ou de filósofo,

numa segunda, diferentemente de Édipo, ele sabe que “nem por isso deixa de ser

humano e de continuar a viver e a sofrer”. Dom Quixote está alerta para isso, sabe

que há ainda outro saber: “o destino confronta o ser humano constantemente com o

saber e o conhecer”606.

Com relação ao que o destino tem-lhe ainda reservado, Dom Quixote só está,

por hora, tentando identificar o par com o qual deverá ter acesso a “um outro saber”.

Embora desconfie ser a razão ou a metafísica ou a essência da técnica, o seu

opositor, um enigma ainda permanece: ser ele protegido por um encantador que

sabe “artes y letras”607 .

Se essa luta prevista para o futuro está mais para dis-puta608 do que para

batalha; se assim considerarmos, é possível que estejamos penetrando no espaço

que lhe seja mais conveniente: a obra de arte. Que melhor espaço há para que se

trave uma memorável dis-puta?

605

Mal poderá ele contradizer ou evitar o que pelo céu está ordenado (1, VII, p.44) 606

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.15. 607

Artes e letras (1, VII, p.44) 608

A presença dos termos “combate” e “dis-puta” se deve ao uso de duas traduções de Heidegger: “combate” __ tradução de Maria da Conceição Costa [A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2000]; e “dis-puta” __ tradução de Manuel Antonio de Castro e Idalina Azevedo da Silva [O originário da obra de arte, 2006 (não publicado)].

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Contudo segue, ainda, o tempo cheio de poder. Em que momento, essa dis-

puta vai acontecer? Não nos esqueçamos de que, nisso, cabe uma aproximação

entre a luta que deverá configurar-se em batalha singular, e o pacto que Dom

Quixote fez com Montesinos dentro de “la cueva”. Dom Quixote assumiu, ali, dois

compromissos: desencantar, não só os prisioneiros de “la cueva”, como todos os

prisioneiros encantados pelo pensar metafísico do Ocidente.

Depois de desvendar o enigma e de descobrir que a novidade cartesiana

recrudescera no homem a crença no poder da razão, elevando-o à condição de

sujeito cheio de certezas, depois de descobrir que “com o surgimento da ciência, a

partir dos conceitos filosóficos, estes sofrem uma transformação: “além dos limites

definidos, passa a ser exigido deles exatidão”609, depois de tudo isso, precisa

empenhar-se e trabalhar.

À guisa de recordação, foi a partir de seu olhar observador, enquanto reunia

elementos para captar, na prática cotidiana, como se estavam processando as

interferências desse novo pensar, que Dom Quixote se assegurou, do que até então

estivera só na consciência. Estamos nos referindo a todos aqueles infelizes que, no

2o Périplo, sem poderem experimentar a liberdade de ser, prisioneiros que estavam

de um agir estranho ao agir do homem, acabavam sem ver mais sentido na vida: “se

le acabó la vida”610. Ou àqueles para quem, mesmo não extinguindo-se a vida

literalmente, não a viviam em plenitude, porque, mesmo vivos, já estavam mortos.

Estamos nos referindo às vítimas da ética do “fazer”, àqueles que não

chegaram a descobrir que, para ser ético, basta estar à pro-cura, basta perguntar,

basta acatar a convocação para a escuta das grandes questões, pois a fonte-raiz já

desde sempre e para sempre está lá. Falamos daqueles seres que vagam pelos

609

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.15 610

Acabou sua vida (1, XXXV, p.217)

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caminhos de Espanha, falamos do homem empenhado no “ter” o que não tem,

lançando-se sobre a realidade, na ânsia de tudo usurpar-lhe, desde coisas até

sentimentos e pessoas.

Estamos falando dos galeotes, cheios de velhacaria; daquele galeote que,

revelando a causa de sua desgraça, diz ter sido preso “por enamorado”611, que se

tinha enamorado de tal modo de um cesto cheio de roupas que o abraçou, com tanto

amor, dele apoderando-se, a ponto de a polícia ter de arrancar-lhe o cesto à força e

metê-lo na cadeia.

Falamos de Grisóstomo que, em seu querer “ter”, converte pessoa em objeto.

Marcela desperta em Grisóstomo tal desejo, que o mobiliza a um querer dela

apropriar-se. E também de Anselmo. Este difere um pouco em seu querer. Quer “ter”

mais conhecimento, sua vontade é de mais saber. Na falta de objeto de

investigação, joga sua esposa num tubo de ensaio, submetendo-a aos rigores de um

laboratório, até dela extrair toda a vitalidade, até extrair a vitalidade de todos aqueles

que, juntos, participaram da experiência: “[...] de tristezas y melancolías. Este fué el

fin que tuvieron todos, nacido de un tan desatinado principio”612, o mesmo princípio

que sustentava a ciência e garantia exatidão.

Falamos, enfim, de todos aqueles cujo querer, a essência mais original que

move o homem, está assentado no “ter”, daqueles esquecidos de que do ethos,

como linguagem e sentido do ser [...] se originou a ética”.613

Dom Quixote observa de que modo a nova crença está afetando o homem,

fazendo-o de tal modo voluntarioso, a ponto de o hermeneuta pressentir os ingênuos

germes da “vontade de poder”, mais um dentre os mencionados como prováveis

611

Por estar tão apaixonado (1, XXII, p.118) 612

De tristezas e melancolias, Este foi o fim que tiveram todos, nacido de um tão desatinado princípio (1, XXXV, p.217) 613

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.19.

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candidatos ao lugar do “cavaleiro misterioso”, com quem Dom Quixote deveria travar

batalha singular.

Se estamos investigando sinais que caracterizem o ser obra de arte o alvo de

Dom Quixote, selecionemos os momentos em que o termo “obra” é mencionado.

Mais de uma vez isso acontece: “pero [...]; basta que en la narración del no se salga

un punto de la verdad”614. Aqui, embora não haja menção ao termo “obra”, os

indícios são de que algo deverá ser narrado com verdade, deixando implícitos, além

da obra, seu compromisso com a verdade. Com isso também se explicita um critério

no que tange a essa verdade da obra. Ao dizer que “esto importa poco a nuestro

cuento”615, Dom Quixote está dando as diretrizes de que da obra é preciso descartar

todo o supérfluo, selecionando somente aquilo que na obra está em obra da

verdade. Outro exemplo ainda “-¿Quién duda [...] cuando salga a la luz la verdadera

historia de mis famosos hechos”616, confirma, não só que há uma história para ser

contada, mas também que há relação quase de dependência entre obra e verdade.

Logo a seguir, a questão da verdade aparece de forma não direta: ama e

sobrinha, diante da alternativa do ser pastor, substituindo o cavaleiro que em seu

regresso final à casa já não era cavaleiro, tentam dissuadi-lo dizendo que, ficando

ao relento como pastor, correrá o risco de adoecer, e Dom Quixote assim reage:

“Callad hijas – les respondió don Quijote; - que yo sé bien lo que me cumple”617. E

acrescenta, deixando claro, a todos, que tem uma missão a cumprir, que seja o que

for que na obra ele decida fazer, necessitando ou não enfrentar as oposições, que

sua missão se cumprirá. E essa missão aparece com todas as letras: “[...] Y tened

por cierto que, ahora sea caballero andante o pastor por andar, [...] lo veréis por la

614

Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração dele não de saia nada da verdade (1, I, p.18) 615

Isto importa pouco à nossa história (Ibidem) 616

Quem duvida [...] quando for exibida a verdadeira história de meus famosos feitos (1, II, p.21) 617

Calai, filhas – respondeu-lhes Dom Quixote: – que bem sei o que me cabe (2, LXXIII, p.696)

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obra”.618 Reaparece a obra, agora bem aproximada do sentido, não só da

consciência da responsabilidade, mas também do inevitável dessa responsabilidade:

“sé bien lo que me cumple” e “no dejaré siempre de acudir a lo que hubiéredes

menester”.619

A cada momento essa missão mais se aproxima do “ser obra”. Nesse

momento final tudo isso se conjuga com o ser pastor - o guardião da casa do Ser, da

casa da linguagem. Na casa da linguagem habita o homem. Logo, aquele que

guarda o que mais essencial é ao homem pode assumir o lugar de excelência de

conduzir os homens, do mesmo modo que Cristo veio, como linguagem, conduzir

seu rebanho.

Nesse caso, com o exemplo acima, Dom Quixote se despoja até da atribuição

de qualquer denominação – “ahora sea caballero andante, o pastor por andar”,

cavaleiro ou pastor, para dar relevo à outra missão: a missão de ser obra. Com isso,

não torna insignificante sua tarefa de pastor, só chama a atenção para outro

significado maior dessa missão. Por isso acrescenta: “por andar”, quer, na realidade,

des-realizar o pastor, para que possa preenchê-lo de algo que lhe dê outro sentido.

O modo tradicionalmente estabelecido de ser pastor deverá ser diferente. Não é

possível que seja simplesmente “por andar” pelos campos. Sua orientação ao

rebanho se efetivará por outro caminho – provavelmente, pelo caminho da leitura.

Quem sabe, na longa seqüência de “passos” questionantes?

Há ainda outro exemplo em que não faz menção ao termo obra, mas deixa

nas entrelinhas: quando Dom Quixote desafia à luta, os leões que em carro fechado

são conduzidos à corte, como presente do general de Orán, e um fidalgo que a tudo

assistia o aconselha a desistir, tal é o risco da façanha, o cavaleiro irritado, lhe

618

E tende por certo que, agora seja cavaleiro andante ou adiante pastor, [...] o vereis pela obra. (2, LXXIII, p.696) 619

Sei muito bem o meu compromisso, e não deixarei de atender ao que for necessário (Ibidem)

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responde: “Váyase vuesa merced, señor hidalgo [...] a entender con su perdigón

manso [...] y deje a cada uno hacer su oficio. Este es el mío [...]”.620 Quer alertar para

o irrelevante de tal façanha, convocando-o, talvez, a algo mais significativo, esse

sim, é digno de atenção: a obra que, já é quase certo, Dom Quixote terá de escrever.

Todos esses sinais indiciam o destino. Dom Quixote tem ainda coisa por

realizar. Dom Quixote é ainda o mesmo, aquele mesmo que fora fidalgo, que fora

cavaleiro, que fora filósofo e que agora está a ponto de conjugar seu agir de

hermeneuta com o de poeta.

Na terceira citação que abre este capítulo, “Desde el siglo XVII, Cervantes

sigue buscando a su lector”,621 com sua sensibilidade, confirma a palavra de Dom

Quixote, deixando, em aberto, quatro séculos para que o leitor da obra de Cervantes

dela se aproxime.

Na obra, em muitas passagens, Dom Quixote dá esse alerta. Algumas vezes

o faz por livre e espontânea vontade, como no primeiro exemplo que abre este

capítulo, outras, se sente obrigado a fazê-lo, quando algum acontecimento, por não

ser compreendido, provoca resistência do interlocutor: dentre os apresentados, no

segundo exemplo, Sancho é seu interlocutor e confessa não acreditar nos contos de

Dom Quixote sobre “la cueva de Montesinos”. E este, assim lhe responde:

Como me quieres bien, Sancho, hablas desa manera – dijo don Quijote __; y, como no estás experimentado en las cosas del mundo, todas las cosas que tienen algo de dificultad te parecen imposibles [...].622

Não falaria desse modo, Dom Quixote, caso não estivesse vendo-se como

obra. Reconhece a abertura infinita de possibilidades que só o vigor da obra pode 620

Vá-se, vossa mercê, senhor fidalgo, a entender-se com seu perdigão manso [...] e deixe a cada qual fazer o seu ofício (2, XVII, p.406) 621

A impossibilidade de localizar a frase, que seguramente está escrita em Espanhol (“Desde el siglo XVII, Cervantes sigue procurando a su lector”) em algum dos muitos livros lidos, nos obrigou a fazer essa adaptação, caso contrário, a perderíamos. 622

Como me queres bem, Sancho, falas dessa maneira – disse Dom Quixote; – e, como não estás experimentado nas coisas do mundo, todas as coisas que têm alguma dificuldade te parecem impossíveis. (2, XXIII, p.447-448)

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guardar, por isso não tem pressa. Com toda paciência, aguarda que Sancho mais

tarde, sabedor de mais algumas verdades do mundo, esteja em estado de

“prontidão” para novas compreensões. É contraditório que, exatamente Sancho, o

personagem mais mundano, o que está mais afinado com o cotidiano ordinário, com

o mundo da verdade comprovável e comprovada, com o mundo de significações

estabelecidas, é contraditório, repetimos, que seja ele, aquele que é visto por Dom

Quixote, como o que menos coisas do mundo sabe. Ao referir-se a mundo, Dom

Quixote está tratando mundo na sua relação de tensão com terra, não mundo na sua

mundaneidade, esse sim, o de Sancho, mas mundo como manifestação de

realidades, mundo como mundo.

O cuidado de Dom Quixote mostra a consciência de que o tempo é

fundamental para o ser. Por isso, acrescenta: “pero andará el tiempo, como otra vez

he dicho, y yo te contaré algunas de las que allá abajo he visto, que te harán

creer”623. Sancho precisa ter ainda outras experiências, ou melhor, precisa viver e

experienciar muitas situações, para que ele e mundo se ampliem, o necessário para

novas compreensões. Tal necessidade ganha maior dimensão, quando se trata da

obra de arte. É claro que, com essa fala, Dom Quixote quer dizer também que esse

experienciar pode dar-se, também ao longo do tempo, tanto na vida, como na leitura

da própria obra, fazendo, com isso, desdobrar-se esse tema, em outros a ele afins: a

salvaguarda da obra é um tema importante e um exemplo.

Dom Quixote insinua estar consciente do drama de todos os que ficaram cativos do saber do primeiro Édipo, os mesmos que estão cativos do encantamento da caverna. Esses, os que ficaram na ilusão desse saber, são os que insistem em “dar conta cientificamente do ser que ele é e determinar, pelo saber, o seu destino”624. Dom Quixote segue sendo o mesmo, o mesmo onde saber e ser são, a cada vez e ao mesmo tempo, o mesmo também.

623

Mas andará o tempo, como disse outra vez, e eu te contarei algumas das que lá embaixo eu vi, que te farão crer nas que aqui contei. (2, XXIII, p.448) 624

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.51

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Os avisos de Dom Quixote remetem a um tempo futuro; tempo em que,

possivelmente, haverá, não só grande abertura, como também, grande expectativa

de encontrar, na obra, respostas. Vale dizer, a título de alerta, que não se deve

considerar, aqui, as respostas da obra como definitivas. Se lembrarmos da citação

do 1o Périplo, para isso estaremos sensíveis: “A resposta à pergunta é, como cada

autêntica resposta, a saída derradeira do último passo de uma longa seqüência de

passos questionantes”625. Isso significa que à cada questão, a obra não dá

propriamente resposta, o que faz é recolocar novas questões sempre, num ciclo

ininterrupto, cumprindo seu papel de espaço aberto, de espaço vazio de não-ser.

É claro que aqui também vai embutida a metodologia hermenêutica, a mais

adequada, no que tange a interpretações no tempo. Bem sabia Dom Quixote que

muito de hermeneuta ainda restava a realizar.

A estética da recepção tem registrado dados significativos com respeito aos

processos de abordagem da obra e sua interpretação no tempo. Isso seria o

bastante para preencher os quatro séculos, ao longo dos quais se declara estar

Cervantes aguardando seu leitor. Agora, no entanto, estamos num tempo; um tempo

que sugere ter Cervantes encontrado, mais do que nunca, seu leitor, pacientemente

esperado. Esse tempo é o nosso tempo.

Pierre Vilar também aproximou Dom Quixote dos dilemas pós-modernos e

registra, dentro dos quatro séculos abertos à expectativa de Cervantes, personagem

que, em sua essência, anuncia que, no Ocidente, as questões permanecem:

He dicho 1605-1615, Cervantes, don Quijote, la armadura y el almete. Igual hubiera podido decir 1929-1939, Charlie Chaplin, Charlot, la chaqueta negra, el bombín y el bastón. Nunca dos obras han estado tan

625

HEIDEGGER, M. O originário da Obra de Arte. Trad. Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva, 2006, parágrafo 158 (mimeo)

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emparentadas. Las dos grandes etapas de la historia moderna están en ellas captadas del mismo modo.626

Embora a referência registre os “tempos modernos”, o que em Chaplin se

exibia já era anúncio dos tempos pós-modernos.

Esse tempo há muito vem anunciando-se. Octavio Paz vem acrescentar mais

um paradoxo, dentre os tantos que no 2o Périplo deixaram perplexo o homem.

Quando nos apresenta os grandes poetas da modernidade, lhes dá o perfil de

homens de classe média, com educação universitária e profissão liberal. Banqueiros,

negociantes, burocratas ou membros da burguesia provinciana, todos foram

“produtos da grande criação histórica da modernidade” e, ao mesmo tempo, “todos

foram, sem exceção, inimigos violentos da modernidade”.627

O paradoxo está em que, se viviam no exterior, dentro dos liames que

caracterizam a modernidade, “todos ouviram, não lá fora e sim dentro deles próprios

(trovão, burburinho, jorro d’água) a outra voz”. Além dos já apresentados, há na

manifestação que expressa essa “outra voz”, uma clara transgressão: “a maneira

própria da poesia da Idade Moderna” é ser transgressão, mas da forma mais

espontânea. Isso porque, o poeta não prevê, não fabrica nem submete seu poetar, a

um fazer “industrioso” do pensar; não há acréscimos, nem elementos postiços. No

poetar a modernidade, há “uma transgressão quase involuntária e que aparece sem

que o poeta a isso se proponha”. A razão dessa singularidade é histórica.628

Entretanto, eis que é chegado o tempo mais extremo, em que as expectativas compõem um quadro acolhedor para a obra Dom Quixote de la Mancha. O tempo mais extremo é aquele em que a carência dá sinais de desmedida, sinais de que vivemos a crise mais radical, um tempo que descreve uma constante demonstração da negação mais radical. Esse é o tempo – o tempo 626

Eu disse 1605-1615, Cervantes, Dom Quixote, a armadura e o elmo. Igualmente poderia haver dito 1929-1939, Charlie Chaplin, Carlitos, o paletó preto, o chapéu coco e a bengala. Nunca duas obras foram tão aparentadas. As duas grandes etapas da história moderna estão nelas captadas do mesmo modo.” (VILAR, P. Crecimiento y desarrollo: Economía e historia. 5.ed. Barcelona: Ariel,1993, p.342) 627

PAZ, Octávio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993, p.141. 628

Ibidem, p.142.

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pós-moderno, o mesmo tempo, talvez, de finalização da “ilusão frente a tudo o que está acontecendo”, o tempo do “último humanismo”, o humanismo daqueles que “só conhecem o primeiro Édipo, o que ainda não furou os olhos”629.

Dentre as respostas de Dom Quixote que remetem ao futuro, como

possibilidade, há uma muito significativa. Em seu tempo, Dom Quixote não sabia

ainda o tempo exato em que a batalha-dis-puta aconteceria. Entretanto, já é possível

aproximá-lo desse momento.

O que naquela época seria somente fonte de especulação, ao cair no

contexto da modernidade, encontra razão de ser: Dom Quixote, quando lhe

emparedam a biblioteca, sua ama lhe informa ter sido, o desaparecimento, obra de

um gênio “Frestón”, identificado imediatamente pelo cavaleiro como um “sabio

encantador”630. Quando penetra em “la cueva”, embora quem o receba seja

Montesinos, apresentando-se como “Yo soy el alcaide”,631 seu modo de vestir lembra

também algum sábio encantador:

Un venerable anciano, vestido con un capuz de bayeta morada, que por el suelo le arrastraba: ceñíale los hombros y los pechos una beca de colegial, de raso verde; cubríale la cabeza una gorra milanesa negra, y la barba, canísima, le pasaba de la cintura; no tenía a arma ninguna, sino un rosario de cuentas en la mano, mayores que medianas nueces, y los dieces asimismo como huevos medianos de avestruz; el continente, el paso, la gravedad y la anchísima presencia, cada cosa de por sí y todas juntas, me suspendieron y admiraron.632

De tal modo parecia um sábio que chegou a paralisar Dom Quixote.

De todos os referentes, o que mais nos chama a atenção é o ovo. Ele

aparece como imagem significativa. Além da descida às profundezas de “la cueva”,

há o sono que fechou as duas pontas de seu estar ali. Tanto sua entrada como a

629

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.51 630

Sábio encantador (1, VII, p.44) 631

Eu sou prefeito (2, XXIII, p.442) 632

Um venerável ancião, vestido com um capuz de baeta roxa, que pelo chão se arrastava: cingia-lhe nos ombros e no tronco uma beca de colegial, de tecido sedoso verde; cobria-lhe a cabeça um gorro negro à moda italiana, e a barba, muito grisalha, passava da sua cintura; não levava arma alguma, mas sim um rosário de contas na mão, maiores que nozes comuns, e cada décima conta tal como ovos medianos de avestruz; a conduta, o andar, a imponência e imensa presença, cada coisa de por si e todas juntas, deixaram-se suspenso e admirado. (2, XXIII, p. 441)

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saída são marcadas por um dormir e despertar. O sentido dessas experiências está

relacionado com o contactar o originário e dali receber orientação. O ovo é símbolo

do nascimento do mundo para muitos povos, é o que contém o germe [...] a partir do

qual se desenvolverá a manifestação. No ovo, realidade primordial, está preservada

a multiplicidade dos seres. Na Índia, o ovo nasceu do Não-Ser e engendrou todos os

elementos. Em cada cultura, em cada civilização, os processos de manifestação que

têm como germe o ovo são variados, mas estão intimamente relacionados à

manifestação pelo verbo.

O sábio de “la cueva” também tem um rosário com “huevos”, o que desfaz

qualquer dúvida quanto a ter tido Dom Quixote, uma experiência originária, tendo

entrado em contato com o mais íntimo do ser.

O que há de significativo nas duas experiências em que Dom Quixote foi

alertado para uma intervenção no tempo, assimilando-as, tanto a da biblioteca como

a de “la cueva”, aceitando como destino uma e como compromisso outra, é a

coincidência de serem, as duas, orquestradas por seres especiais, seres que, além

de sábios, são encantados.

Isso sinaliza poder tratar-se do mesmo. Os dois têm poderes mágicos e, a

segunda aparição configura experiência indiscutivelmente originária. Experiência

que, por sua vez e, ao mesmo tempo, traça os contornos da modernidade, alertando

para projeções e irradiações na época pós-moderna.

O que queremos é encontrar pontos de ancoragem que nos permitam avaliar

as previsões dos sábios da obra, perfeitamente ajustadas ao tempo em que estamos

vivendo, além de podermos nelas sentir sinais que apontem na direção da

obra de arte.

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2 A PÓS-MODERNIDADE, É CHEGADO O TEMPO

É chegado o tempo de o homem moderno perder a grande ilusão, o tempo do

“último humanismo”. A pós-modernidade parece apontar para a época atual, como

algum tipo de encerramento, acabamento ou mesmo superação da modernidade.

Apesar de cercado de inúmeras controvérsias, o termo aponta para um fenômeno que se mostra aparentemente constante, a perda de definição e da certeza, não só do “lugar e papel” do homem, mas de sua relação com o mundo, com a História e com a natureza. Ao lado da aceleração avassaladora das tecnologias da informação, de diversos materiais tecnológicos e mesmo da genética, ocorreram mudanças paradigmáticas no modo desse pensar a sociedade e suas instituições, que parecem radicalizar o paradigma contemporâneo.

A pós-modernidade surge da assunção da necessidade de superação deste

paradigma absolutista, cuja falência é evidente, dadas as complexidades que

naturalmente se fazem sentir numa sociedade do conhecimento. É a assunção de

uma crise. Corresponde à percepção de que a radicalidade das certezas da

modernidade, de uma razão absoluta, estreitando-se cada dia mais dentro dos

limites do racional, com o acervo conceitual à espreita, vigiando o mínimo sinal do

novo, para aprisioná-lo dentro dos arquivos já existentes, radicalidade calcada no

rigor do método e nas certezas matemáticas, que pouco a pouco expurga do homem

seu caráter instintivo, irracional e bárbaro; nada disso é mais sustentável. Antes, se

trata de um discurso que se esgotou, que se fragmentou paulatinamente, não sendo

mais capaz, hoje, de dar conta do jogo que compõe a relação do homem com o

mundo em todo seu âmbito.

Por outro lado, um contexto de rigores absolutos tem sempre uma contrapartida; vai acumulando um quantum que, à espreita, aguarda o momento para irromper também em radicalidades.

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É chegada a hora, talvez, em que um daqueles momentos, que perpassam

todas as culturas em todos os tempos, se esteja mostrando; um momento de crise

em que são cobrados “a emergência do homem e o âmbito de sua atuação e de seu

lugar dentro do real – e o enigma do seu destino”,633 questões que encontram

acolhidas na obra de arte.

Nessa transição, poderá Dom Quixote travar a grande batalha prometida para

o futuro e tão esperada com o cavaleiro, até então desconhecido?

Quando nos referimos ao futuro, estamos simplesmente sendo fiéis ao

prognóstico feito na biblioteca no início da história. Assim o registra Dom Quixote:

“que tengo de venir, andando los tiempos, a pelear en singular batalla”.634

Esse futuro que usamos não se refere a um tempo determinado, fixo que

possa esgotar-se. Tempo aqui significa qualquer tempo, qualquer tempo em que

Cervantes espontaneamente ache seu leitor. Nesse caso, considerando que nós

somos agora seus últimos e mais recentes leitores, supomos que essa batalha

estaria prevista para agora, para este momento que, casualmente é o tempo pós-

moderno onde, talvez, haja leitores tocados e sensíveis pela predisposição que abre

essa compreensão no tempo de crise.

Talvez esse tempo previsto por Dom Quixote, com o qual estamos, nós,

atuais leitores, afinados, seja esse o que viria ao encontro do tempo do verso de

Holderlin: “Pero donde está el peligro, crece también lo que salva”,635 verso que

incitou Heidegger a pensar a técnica e a acreditar na possibilidade de um retorno à

origem; a poiesis dentro da técnica.

É possível; muitos aguardam esse retorno à origem poiética, porque também a arte foi alcançada pela essência técnica que sobre ela repercutiu,

633

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.13 634

Tenho de vir, andando os tempos, a pelejar em singular batalha com um cavaleiro (1, VII, p.44) 635

Onde mora o maior perigo, está a maior possibilidade de salvação (HEIDEGGER, M. La pregunta por la técnica. Conferencias y Artículos. Barcelona: Serbal, 1994, p.30).

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fazendo-a perder o caráter mito-poético. Chegamos ao ponto mais dramático para onde a essência da técnica poderia nos conduzir. Desde que o pensar humano saiu de seu elemento e se esgotou, esse vazio foi compensado como techné, e os mesmos processos utilizados em relação à natureza foram estendidos à linguagem.

O homem é o único ser capaz de palavra. É enquanto ser falante que o homem é homem. Entretanto, é fundamental que se estabeleça aqui o sentido radical de falar e dizer. Língua não é um simples instrumento de troca e de comunicação. Entretanto, é exatamente essa concepção corrente da língua que se vê avivada pela dominação da técnica moderna.

Entretanto, uma outra língua experienciada pelos pensadores originais abre-se à totalidade porque deixa livre o ser de todas as coisas, ao mostrar-se. Tudo isso nos leva a desconfiar tratar-se de um alerta no que se refere ao esvaziamento da linguagem que prolifera rápido por toda parte, ameaçando a essência do homem.

É a metafísica avançando a passos largos. A intervenção técnica atinge até o nível lingüístico, com a virtuosidade do virtual que na globalização da Internet se estende numa escala planetária, reduzindo a comunicação à informatização.

Enquanto o virtual fala de muitas coisas, quer e pode falar de tudo, e mesmo que o virtual tenha tudo armazenado, o dizer não pode tudo dizer. Mas o não poder dizer tudo não significa não dizer nada; significa que todo dizer, para dizer, resguarda sempre em si o que não pode ser dito. Essa é a vigência do poético, onde a linguagem protege, cultiva o mistério, o mesmo mistério que, segundo Emmanuel Carneiro Leão, pulsa escondido no coração do virtual. O mistério da linguagem que se retrai naturalmente para ser sempre doação e força de ser do dizer.

3 A POESIA E A “OUTRA VOZ”

Ao percorrermos os liames do virtual na linguagem, mais a responsabilidade

de cuidar da linguagem, aproximando-nos do poético.

Octavio Paz identifica a poesia com mercadoria barata, “forma verbal de

pouca utilidade e preço”. Sua riqueza, no entanto, é imensurável, daí a dificuldade

de submetê-la a um preço; o próprio mercado com ela não pode, porque, rebelde, ao

contrário de outras manifestações que precisam ser “formas e coisas”, a poesia,

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independente, não precisa necessariamente ocupar lugar no espaço. Poesia é

espírito, “uma lufada de ar”, o sopro vital. Na verdade, seu lugar é, com toda

rebeldia, estar correndo daqui pra ali, rolando de boca em boca, flutuando como ar,

escorrendo como água, em total “gastança”. E não se pode estranhar; quase

imaterial, é ela a “fazedora”, só ela pode, do fluido, produzir imagem na mente

daquele que, dentro do seu raio de ação, não escapa do conjuro verbal que ela é. É

verdade irrefutável: “poesia é pra quem diz”. Enquanto escrita e guardada, nada é;

esse é seu grande mistério: “o poema contém poesia sob a condição de não guardá-

la”. É o próprio paradoxo manifestando-se; é conceito e é imagem; é idéia e é forma;

é som e é silêncio. Octavio Paz assim a resume: “suas imagens são criaturas

anfíbias”; essa é a marca da poesia.636

O mais intrigante está nesse mais um paradoxo: por mais que a modernidade

tenha produzido material expresso em guerras, revoluções, regimes, teorias e

aspirações, todas as suas perguntas “continuam sem resposta”637.

Do mesmo modo que em “la cueva”, Octavio Paz também nos fala de um

“outro mundo”, de onde é possível ouvir uma “outra voz”. Explica não se tratar de

mera faculdade, e resume dizendo ser uma voz que soa no mais íntimo do ser sem,

contudo, ser sua somente. Quem ouve a outra voz, sendo ele mesmo, é outro. A

outra voz é do outro mundo e deste mundo, é antiga e é de hoje, é plenitude e é

vazio.638

Teria ouvido, Dom Quixote, essa voz? Para um louco, nada mais adequado. É

bem verdade que, sua formação de filósofo o preparara mais para ver do que para

escutar. Entretanto, é impossível que não ouvisse vozes, sintoma tão característico

de seu estado de louco. É bem possível que sim. Com a energia com que se deixa

636

PAZ, Octávio. A outra voz São Paulo: Siciliano, 1993, p.143. 637

Ibidem, p.136. 638

Ibidem, p.140.

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tomar sempre em suas atuações, só pode ser movido por algo que lhe venha de

dentro, algo que lhe sussurre coisas tão empolgantes que o encham de entusiasmo.

E isso tem sentido, porque entusiasmo significa “Deus dentro”. Todos os do tempo de Dom Quixote, de uma forma ou de outra, tentavam

preencher o vazio. Compreender a estrutura e os níveis do diálogo pode nos

encaminhar para o modo diferenciado de Dom Quixote colocar-se no mundo.

Reinterpretando a dialética: o prefixo “dia” significa a presença de dois, e

logos é linguagem. Dialética significa dois que procuram a verdade. Essa verdade,

entretanto, não está nos dois, ela está no logos; a verdade está na linguagem.

A compreensão da dialética melhor se esclarece quando sabemos que o

significado de “dia” é: “através de” e “entre”. “Diá-logos” não é, pois, nem um nem

outro; é mistério. O “dia” como “entre” se dá no silêncio, a partir do qual, cada um

dialogante profere o seu dizer, a partir da escuta do logos. Em “la cueva”, Dom

Quixote é escuta de um nada que se atualiza ininterruptamente. Esse ininterrupto é

propiciado pela ambigüidade do “entre”; o mesmo que falava Heráclito sobre a

physis: ambos tendem ao encobrimento e descobrimento que se faz ambigüidade no

“entre”.

Para o quadro do mundo captado por Dom Quixote, foram partícipes os sofistas e o processo por eles imposto. Eram os portadores da “Sofia”, que funcionavam segundo os ditames do aprendizado. Eram mestres na manipulação de técnicas de argumentação e ordenação do pensamento, o que possibilitou a fundação da retórica, da gramática e de qualquer sistema técnico que vise o bem falar e o bem conhecer.

Sentem-se, aí, os primeiros sinais do vazio da linguagem como comunicação

que se apresentarão nos tempos pós-modernos de forma avassaladora. Nessa

esfera da linguagem fica definitivamente descartado o que há de mais complexo na

linguagem que é a ambigüidade do real.

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Os sofistas se alimentaram das grandes obras poéticas como fonte de

nutrição de sua retórica e de sua gramática. Entretanto, tais obras restringiam-se ao

que hoje está fixado como estilos; tudo voltado para a estética do Belo. Lança-se

mão do estilo como muleta que permite percorrer a obra pinçando, aqui e ali, aquele

modelar que o método demarca como correto. Dos caminhos de Parmênides, perde-

se a linguagem, linguagem em que o “polemos”, aquela disputa que caracteriza a

physis e o logos, se transforma em controvérsia.

Do “polemos”, colhia-se a verdade como lógica, claramente marcada pelas

orações do discurso. O objetivo desse ensino/aprendizado era treinar a

argumentação para o destaque dos mais inteligentes, a partir dos seus pontos de

vista e de seu poder de convencimento. Ao retomar esse caminho, o Ocidente

silencia o não-caminho e inviabiliza a ambigüidade.

E a poiesis? Pelas metodologias platônica e sofística, impossível alcançar a

poiesis. Esse procedimento metodológico, além da physis e da aletheia, esquece

também o mito e há dois mil e quinhentos anos, em todo o Ocidente há o predomínio

da fala sobre o silêncio e, conseqüentemente, da verdade sobre a não-verdade, da

linguagem sobre o discurso, do Thanatos sobre o Eros. Privilegiam-se os rígidos nós

da trama da rede, os vazios e seus abismos assustam, de modo a impotencializar o

contato do ser com o ser.

Bendita seja a fragilidade da rede do estabelecido mundo espanhol. Cheia de

puídos, a trama não se impunha, inevitável era o abismo. Sendo assim, nada mais

restava a Dom Quixote, senão lançar-se no abismo, viver a cavalaria e dar-se a

chance do experienciar.

Não só na Espanha, mas em todo o Ocidente, estavam todos em busca da

verdade. Acreditando estar a verdade no apossar-se da realidade, confundiam,

todos, realidade com verdade. E o diálogo que mantêm, para dar conta dessa

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realidade, se dá no nível do código, da representação. Lidam com o mundo de

significados estabelecidos e compartilhados; o vazio é sentido, mas tenta-se

preenchê-lo com equívocos. Como dito no 2o Périplo, estão todos empenhados em

um viver, pautados no ter e na vontade de poder ter. Por isso estão todos voltados

para o exterior, empenhados em acionar e pôr em uso o pensamento, em fazer valer

seu poder. E, mesmo que não conquistem a felicidade, conquistam todo o resto;

tudo conquistam, tudo sabem, de tudo se apossam, em nome do conhecimento.

No diálogo, invertem as posições: um diálogo apressado onde o “tu” parece

estar fora, parece ser o “outro”.

No diálogo, o vazio, preenchem-no com o “outro”, não deixando espaço livre

para ressonâncias. No auto-diálogo – “Eu-Tu”, a ressonância se dá no vazio do

“entre”; este sim, o outro, o verdadeiro “Tu”. Para isso, entretanto, é preciso silêncio,

é preciso um “Tu”-silêncio, um “Tu”-vazio, um “tu”-não-ser. É preciso escutar porque

o diálogo se processa dentro: dentro o convite à escuta da ressonância do “outro”

que é o logos, no “outro” de dentro, ganha espaço o silêncio. O diálogo é, na

verdade, “entre” o “Eu” que somos e o “Tu” que não somos, a partir da escuta do

logos. Um diálogo entre o que somos e o que não somos é abertura ao ser; é

“entre”, é logos. O mesmo logos de sempre.

Com esses sinais, pode-se entender porque as perguntas da modernidade

continuam sem resposta,não há outra possibilidade. Não há resposta que seja

suficiente já que, feita a pergunta-resposta, essa mesma resposta, assediada pela

“outra voz”, se torna novamente pergunta e reinicia o movimento cíclico.

Compreende-se também porque Dom Quixote é aquele que só vive

escutando vozes. Ser homem é ser Cura, ser Cura é ser questão. Por isso, quem

mais escuta vozes, mais é questão, mais é Cura, mais é homem. Para Dom Quixote,

que está à pro-cura da Cura, de todos os cantos vozes ecoam e ressoam,

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principalmente das brechas, dos “buraquinhos”, como os “gritos e sussurros [...]

vozes e murmúrios (que) saem de todos os cantos, das rachaduras das paredes,

dos cômodos trancados, dos sulcos da terra”.639 Desse mesmo modo, Dom Quixote

escuta a outra voz em “la cueva”, do mesmo modo, que é o modo da obra de arte

ser definitivamente questão.

Descrito desse modo, parece que Dom Quixote não está em sintonia com o

esquema da época, pois suas decisões eram por demais atípicas; funcionava

sempre na contramão: enquanto todos permanecem lendo, Dom Quixote inventa

mundo, vai viver a cavalaria; enquanto estão todos lúcidos, Dom Quixote

enlouquece e ouve vozes. Quer ente mais impróprio, quer ente mais “outro”

que esse?

4 DE IMITAR A SER “O OUTRO”, HÁ MUITA DIFERENÇA

Só no liame aprendizado-aprendizagem foi possível que Dom Quixote se

configurasse como obra de arte.

A leitura das novelas cumpriu plenamente seu propósito de formação do

filósofo; haja vista o critério com que Dom Quixote formatou o mundo da cavalaria,

segundo os ditames da Paidéia platônica.

Embora sua decisão de viver a realidade da cavalaria tenha a chancela do

aprendizado platônico metafísico, seu ingresso real nesse mundo, com ele não está

em sintonia.

639

MATTOS, Celia Regina de Barros. Pedro Páramo, vida e morte em remontagem. Revista Matraga, Rio de Janeiro: UERJ: IFL, v.1, n.2/3, p.58-62, mai-dez 1987.

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No 1º Périplo, confirmou-se a previsão metafísica da tendência humana à

imitação; tendência que acabou vitimando Dom Quixote com a perda de sua

identidade, substituída pela “persona” do cavaleiro, assunção que aproveitou ao

limite máximo. No 3º Périplo, entretanto, a perda da identidade assume novos

contornos.

O que para a república cristã foi drástico e ameaçador - a perda da

identidade, no 3o Périplo ganha em importância: só com a leitura desses livros Dom

Quixote pôde ser tocado pelo “querer-ser” o que não era. Foram esses livros, lidos

na solidão da leitura silenciosa, que sinalizaram a Dom Quixote ser ele possibilidade.

Sem o suporte dos livros de cavalaria, sem a decisão de assumir-se cavaleiro, Dom

Quixote jamais teria tido a chance de abrir-se ao diálogo promotor da aprendizagem.

Isso é de tal modo significativo, que o corrobora o primeiro regresso do

cavaleiro à sua aldeia, depois da primeira saída,

[...] sin que nadie le viese, una mañana, antes del día, que era uno de los calurosos del mes de julio, se armó de todas sus armas, subió sobre Rocinante, puesta su mal compuesta celada, embrazó su adarga, tomó su lanza, y por la puerta falsa de un corral salió al campo640

Depois da primeira saída, Dom Quixote regressa e convence seu vizinho,

homem rústico __ “un labrador vecino suyo, hombre de bien __ si es que este título se

puede dar al que es pobre __, pero de muy poca sal en la mollera”641 __ a acompanhá-

lo em suas aventuras, na função de escudeiro.

Essa providência de Dom Quixote assegura sua constatação de faltar-lhe,

ainda, no aparato com o qual configurou o mundo da cavalaria andante, uma peça

fundamental: Sancho, o escudeiro. Afinal, entre dulcinéias e rocinantes, entre lanças 640

Sem que ninguém o visse, uma manhã, antes do dia, que era um dos calorosos do mês de julho, armou-se de todas suas armas, subiu em Rocinante, posta sua mal composta celada, segurou sua espada, tomou sua lança, e pela porta falsa de um curral saiu ao campo (1, II, p.21) 641

Um lavrador seu vizinho, homem de bem (se é que este título se pode dar a quem é pobre), mas de pouquíssimo entendimento. (1, VII, p.44)

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e armaduras, quem acionaria o diálogo? Alguns teóricos reconhecem que a obra só

tem início com o ingresso de Sancho:

[...] después de los seis primeros capítulos, la cual abarca la Primera Salida que Don Quijote emprende solo: es decir, durante el resto de la Primera parte (la Segunda Salida), cuando la llegada de Sancho le da a su amo alguien con quien hablar. A partir de entonces, cada “acontecimiento” o aventura por separado se vuelve, progresivamente, más conciente de sí misma. Como permanecen juntos, los dos hombres se sienten “existir” en lo que acontece.642

Sem o bronco escudeiro não seria possível que Dom Quixote pusesse o

mundo da cavalaria em xeque, não haveria diálogo, nem confronto de verdades. É

recomendável, portanto, aproximação do dilema configurado: a imitação e o outro.

Recebera perfeita acolhida, no 1º Périplo, a impropriedade de um cavaleiro

andante medieval no liame do século XVII, condição que lhe valeu o diagnóstico de

louco por perda de identidade. Foi assim que entrou na vida: como um louco à pro-

cura da Cura. Tanto leu, tanto imitou, e só assim pôde por-se a pro-curar Cura. É

claro que essa é a loucura tratada dentro dos limites necessários à compreensão do

1º Périplo. Outra loucura, entretanto, ainda está por vir.

Uma vez passada a experiência de Cura, ainda ciente do transitório dessa

conquista, Dom Quixote alça outro patamar que permite, tanto a ele como aos que,

com olhos curiosos, o avaliam, ampla visão. Pontos sombrios de sua história se

insinuam então: um desses pontos, cuja peculiaridade exige atenção, é o “outro”.

Sem muito esforço, um breve olhar no 2º Périplo é suficiente para traçar o

perfil de infelicidade e aprisionamento do homem. Algo os aproxima de modo

642

Depois dos seis primeiros capítulos, que compreende a primeira saída que Dom Quixote empreende sozinho: quer dizer, durante o resto da primeira parte (a segunda saída), quando a chegada de Sancho dá ao seu amo alguém com quem falar. A partir de então, a cada acontecimento ou aventura, se torna, progressivamente, mais consciente de si mesmo. Como permanecem juntos, os dois homens se sentem existir no que acontece. (GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.30)

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contundente: dotados de alguma falta, anseiam todos por preenchê-la;

preenchimento não muito simples, dado o radicalismo que pontua suas histórias.

Quanto a afirmar-se o exterior como direcionamento comum de todas as

expectativas, não se tem dúvida: se era para dominar e apropriar-se pelo

conhecimento ou pela posse física, isso são nuances sem pertinência. O que se

quer identificar é a necessidade de um completar-se a partir do outro, ou melhor,

com o outro; procedimento comum a todos os infelizes que, mesmo fora de “la

cueva” eram prisioneiros contemplados pelo olhar avaliador de Dom Quixote.

Dom Quixote, no entanto, não se enquadra nesse esquema. Por mais louco

que pareça, seu agir parece estar no limite do saudável. Porque estava no liame da

pro-cura, sem que soubesse exatamente o “outro” que lhe correspondia, Dom

Quixote, encantado com o viver da cavalaria, o absorve como possibilidade, sem,

contudo, tornar-se integralmente impróprio.

Isso fica visível em dois procedimentos:

Primeiramente, não encarna a personalidade de nenhum cavaleiro específico

__ seu cuidado está em ser um cavaleiro simplesmente. Visto desse modo, pode

parecer que Dom Quixote se reduz ao denominador comum: cavaleiro andante __

mais um dentre os tantos inventados por aquela ficção. Entretanto, ao dizer o herói

que os livros de cavalaria não podem ser mentira, porque contam tudo, está

pontuando exatamente o contrário. Inicialmente, porque a pergunta é expressa em

tom de dúvida: “¿habían de ser mentira?; y más llevando tanta apariencia de verdad,

pues nos cuentan el padre, la madre, la patria, los parientes, la edad, el lugar, las

hazañas, punto por punto y día por día, que el caballero hizo, o caballeros

hicieron”643, posteriormente, porque declara ser tudo apenas aparência de verdade;

643

Havia de ser mentira e ainda mais tendo tanta aparência de verdade, pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas, detalhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304)

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além da maliciosa correção de “el caballero hizo” para “caballeros hicieron”, tornando

indiferente a marca individualizadora do cavaleiro.

Com isso, Dom Quixote deixa claro sua realização diferenciada. Os cavaleiros

das novelas são resultado de esquemas onde cabia e se encaixava qualquer herói,

bastava querer entrar na fôrma. Dom Quixote, entretanto, não é um herói enformado,

construído, a priori. Ao contrário, ele engendra a si próprio, a partir de um gesto de

loucura, sem necessitar de “padre”, “madre”, “patria”, nem “parientes”. No que se

refere à idade, sem nascimento biológico, Dom Quixote só começa a ganhar corpo

aos cinqüenta anos, quando cruza o liame da ficção. Quanto ao lugar, apesar de

localizar-se “En un lugar de la Mancha”, a oração seguinte “de cuyo nombre no

quiero acordarme”,644 imediatamente desconstrói a localização.

Ser cavaleiro simplesmente não é, portanto, reduzir-se ao denominador

comum de cavaleiro. Isso coincide com o segundo procedimento aqui retomado: o

nomear-se. Seu cavaleiro, além de ter nome próprio, mantém vínculo com a

realidade; cuidado criterioso do fidalgo ao nomear todos os demais elementos que

iam compor o mundo da cavalaria. Fica comprovado, com isso, que Dom Quixote,

apesar de usar o expediente da imitação, não cai na armadilha de assumir a

personalidade do outro. Não se constrói entrando numa forma com limites e

contornos definidos definitivamente. Seu procedimento poderia ser comparado ao da

ciência, caso não tivesse a malícia de não admitir que o contorno se fechasse

definitivamente. No ser cavaleiro de Dom Quixote fica disponível o “entre”, ser

cavaleiro é só uma possibilidade. Esse “entre” acontece nas pro-curas, onde se dá

um aprendizado da aprendizagem.

Na mudança de fidalgo em cavaleiro, ao contrário de perder, Dom Quixote só

pode ganhar, na medida em que, alguma mínima abertura o fez intuir o “entre”.

644

Em um lugar de la Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me (1, I, p.17)

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1.1.1.1.1 5 DESDE QUANDO, DOM QUIXOTE OUVE A VOZ?

Dom Quixote enfrenta o dilema de ser conhecedor dos limites em que todos

lidam com o viver, e precisa encontrar a melhor forma de dizer isso a todos. Sabe

não ser possível usar qualquer linguagem. Ainda que criasse um sistema sofisticado

de informação e comunicação, sua mensagem alcançaria o mundo, sem chegar, no

entanto, a tocá-los como possibilidade de verdade. No nível da comunicação, a

linguagem sequer aproximar-se-ia do mundo: só a obra de arte abre mundo, “A obra

de arte é obra na medida que abre e institui mundo, mas esse só é mundo no operar

da obra”645

Em Dom Quixote permanece a preocupação em chamar a atenção para o seu

“falar”. Revela, com isso, estar inquieto, buscando, ele mesmo, a forma que deve dar

a seu falar. Tem que ser um “falar” de tal modo que possibilite que todos o escutem,

do mesmo modo como ele também um dia, também já escutara. Desse modo,

estamos evoluindo: já sabemos que Dom Quixote já escutara um dia.

É preciso saber como teve, Dom Quixote, a experiência da outra voz.

Dom Quixote, ele mesmo sinaliza não se ter sujeitado ao fechamento do mero

conceito do cavaleiro andante, vigente no modelo das novelas de cavalaria.

Dizíamos que, se houve imitação, essa só funcionou enquanto nos limites do 1o

Périplo, o necessário para que ele fizesse a travessia à pro-cura da Cura.

645

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p. 41

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No 3o Périplo, sua função parece ser outra. Quer-nos dizer que, apesar da

aparência de abertura nos limites do mero conceito, ele não chegou a aprisionar-se

nos limites mais limitados de uma personalidade específica, o que significaria

impropriedade mais radical. Desse modo, parece que Dom Quixote, ao contrário de

expandir-se em impropriedade, se expandiu em possibilidade.

Se quisermos compreender melhor os motivos que levaram Dom Quixote a

assumir tão radicalmente o papel de cavaleiro no 1o Périplo, caindo no impróprio,

também radicalmente, radicalidade que foi-se desvanecendo até chegar ao 3o

Périplo, quando é possível dar-lhe nova cara; se quisermos melhor compreender,

pensemos no seguinte: é tempo de saber de tudo; até do homem: há passagens na

obra que deixam claro uma necessidade de traçar perfis de personalidade: “que no

todos son corteses ni bien mirados: algunos hay follones y descomedidos”.646

Circula pela obra uma dinâmica que tem, no ver e no pensar, a função de

observar, avaliar, definir, descrever, saber. É claro que esse sentimento também se

apoderou de Dom Quixote que queria também ser e saber-se alguma coisa que não

sabia, mas que, contraditoriamente, bradava dizendo saber: “Yo sé quien soy”.

Só assim é possível compreender que, do que precisava, naquele momento,

era de saber a sua verdade; tudo abria à possibilidade de acercá-lo à Cura, tudo

indicava que o que procurava Dom Quixote era Cura. Sem nenhum remorso, por

essa decisão no 1o Périplo, a reafirmamos na voz do próprio Quixote, quando

declara no final da história não ser mais cavaleiro, reencontrando-se consigo

mesmo, recuperando sua personalidade, etc, etc: “yo fui loco, y ya soy cuerdo; fui

don Quijote de la Mancha, y soy agora, como he dicho, Alonso Quijano el Bueno”.647

646

Que nem todos são corteses nem bem vistos: há alguns fanfarrões e descomedidos. (2, VI, p.353) 647

Já fui louco e já sou sensato; fui Dom Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano, o Bom. (2, LXXIV, p.699)

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Convém lembrar que as novelas de cavalaria têm diferentes funções na obra:

no 1o Périplo, desvirtuando-se do que lhe é próprio, Dom Quixote passa a ser a

perfeita representação do impróprio. Poder-se-ia chamar, nesse caso, o impróprio de

Dom Quixote __ “impróprio emblemático”.

Caberia investigar o grau de alienação de si mesmo de Dom Quixote, se é

verdade ter sido, ele mesmo, a primeira vítima da ficção poética do século XVI. Se

assim for, que leitura podemos fazer dessa mensagem? Seria um alerta para não

ler? Ou, o que queriam, era que se lesse?

Deve haver algo que individualize Dom Quixote no quadro geral dos leitores

do seu tempo. Dizer que só por ser louco ouvia vozes, tem sentido, mas, sem

provas, pode parecer irresponsável. Principalmente depois de concluirmos, acima,

ter sido a voz que ouvia, a responsável por ele, mesmo sem consciência, ter-se

protegido do fechamento radical e definitivo do cerco, pelo menos no tocante a ter

assumido a personalidade do “outro”: outro cavaleiro qualquer, herói das muitas

novelas que lia. É bem verdade que Dom Quixote demonstra ter lá suas preferências

e que toma como referência Amadis de Gaula, para ele o melhor de todos; mas

chegar a virar Amadis, isso, ele não deixou acontecer.

No que tange ao cavaleiro modelar, tipificado em todas as novelas de

cavalaria, ter-lhe sido, esse sim, o modelo de imitação do qual se apropriou, ainda

assim, se ele demonstrou ter caído nessa armadilha, há um ligeiríssimo equívoco de

fração de segundos.

Suponhamos que, enquanto Dom Quixote lia as perigosas novelas de

cavalaria, dois motivos evidenciavam-se e poderiam, ou não, excluir-se mutuamente:

ou não estava de posse de uma leitura satisfatória que o estivesse plenificando, nem

o fazendo feliz, nem produzindo nele os efeitos que uma verdadeira leitura, os

efeitos que uma verdadeira obra de arte deve produzir e, assim se sentindo, o “pobre

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fidalgo”, dela quis escapar, saltando para fora e indo viver aquela mesma vida para

experimentá-la na realidade e verificar até que ponto tudo aquilo que lera era

mentira ou verdade. E, nesse caso, muito bem se adapta o estranho gestual: “sus

labios aún se movían mientras sus manos se contraían”,648 mais afinado com a

ansiedade da insatisfação, do que com a euforia da plenitude.

Ou ainda, outro motivo: talvez, ao contrário do primeiro, aquela leitura estava

sendo produtiva, tornando-o de tal modo pleno e feliz, a ponto de não resistir e

precisar torná-la vida e experimentá-la. Nesse caso, de tão excitado, o já nem tão

“pobre fidalgo” entra na vida cavaleiresca para adotá-la em sua vida, para

experienciá-la.

Se feliz ou infeliz, se pleno ou não, o que importa é que as novelas de

cavalaria produziram, em Dom Quixote, um agir inédito: de todos os leitores

aficcionados por novelas de cavalaria que, do mesmo modo que o fidalgo, como

“ratones de biblioteca”649 liam desesperadamente e sem nenhum controle “de claro

en claro [...] de turbio en turbio”;650 de todos, Dom Quixote foi o único que saiu para

pôr a cavalaria em prática. E foi assim que, submetendo-a à realidade de seu tempo,

a expôs ao diálogo e virou obra.

É preciso, no entanto, estar-se atento: não foi assim, como num passe de

mágica, não foi querer simplesmente ser obra e virar obra. Há muito ainda a

acrescentar. O que se pode adiantar é o diálogo, visto anteriormente, como a

dinâmica fundamental para esse acontecer da obra.

Em se tratando de possibilidades, entretanto, acrescentemos outra, talvez só

a titulo de esclarecimento: Dom Quixote relutou um pouco em optar por ser obra de

arte. Se bem pensado, é justo seu preocupar-se. Já se ouvia na época, “por todos 648

Seus lábios ainda se moviam, enquanto suas mãos se contraíam. (GILMAN, S. La novela según Cervantes. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p.18) 649

Ratos de biblioteca. 650

Dia após dia, noite após noite (1, I, p.18)

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los rincones”,651 murmúrios sobre serem as novelas de cavalaria mentiras. Ora, caso

optasse por ser um ser de ficção, o simples fato de fazer ele parte daquele estilo

literário tão perseguido, poderia tirar-lhe a paz. E nada pior do que ser uma mentira,

sua formação o instrumentalizara para estar sempre do lado da verdade essencial.

Caso não estivesse apto a alcançar a essência da verdade pela luz da razão, estaria

à mercê do engano, cairia no território do “falso”. Quem, afinal, quer ser mentira,

quem se contenta em ser falso? Estaria Dom Quixote, ele mesmo, uma imagem-

questão, apto a decifrar um enigma entre ser falso e ser “fingere”?

Foi por isso que Dom Quixote acabou fazendo essa escolha apressada sim,

mas só aparentemente fechada e entificada nos limites do cavaleiro. Atenção, só

aparentemente: Dom Quixote não se fecha, nem se deixa estigmatizar, assumindo

todas as correspondências ao mundo da cavalaria, por mera adequação. Saberia

poder ser a amplitude dessa escolha, bem mais generosa? Só para adiantar, no que

se refere à sua preocupação em ser ou não falso, só mais adiante, Dom Quixote vai

ter a chance de surpreender-se com o que é ser verdadeiramente “falso”.

Voltemos à “outra voz”; é preciso descobrir desde quando Dom Quixote ouve

vozes. Sobre o modo como as escutava, a obra oferece três grandes momentos em

que o recôndito da intimidade sussurra em suas linhas. É o auto-diálogo

evidenciando-se enquanto escuta do logos. São momentos em que a própria

referência ao local indicia movimento em direção ao interior. Trata-se de “La cueva

de Montesinos”, muito bem explorada em suas profundezas; se trata do retiro que

faz Quixote na Floresta de “Sierra Morena”: “Preguntónos que cuál parte desta sierra

era la más áspera y escondida; dijímosle que era esta donde ahora estamos; y es

ansí la verdad, porque si entráis media legua más adentro, quizá no acertaréis a

651

Por todos os cantos (2, XVI, p.402)

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salir”,652 local para onde se retiravam os cavaleiros, na busca de compreensão dos

males enfrentados, via de regra, os males de amor vividos na lida cavaleiresca.

Não deixemos que se perca de vista a floresta, não por acaso presente na

obra, para tentarmos aproximá-la daquela que também Heidegger utiliza como

imagem. É na floresta que tem lugar a dis-puta. É onde o não-ser, enquanto

somente mistério, por bem atender ao chamado provocador do ser, se sente

mobilizado a ser. O espaço mais importante, no entanto, não é a floresta, e sim o

seu encolhimento; encolhimento que é, por sua vez, o entregar-se à renúncia do ser.

O espaço realmente importante é a clareira, o espaço liberado para que se dê a dis-

puta ferrenha entre ser e não-ser; o espaço do “entre”; o espaço do logos, onde se

colhe e recolhe o que é para o ser; espaço onde o ser, no colher e recolher, trata de,

ao mesmo tempo, dissimular-se em não-ser.

Há semelhanças entre as florestas. Do muito que ela encerra, selecionamos o

que as aproxima. Ali, no escuro e no silêncio, Dom Quixote vai, como os demais

cavaleiros famosos, com o propósito de liberar-se de algum mal, buscando conforto

para alguma injúria ou lenitivo causado por mal de amor. Normalmente na floresta se

refugiavam, com o propósito da reflexão sobre situação desconfortante ou de

sofrimento.

Comecemos dizendo que não fora bem esse o motivo que tinha levado Dom

Quixote a “la Sierra Morena”. Na verdade, para ali nem iria, não fosse a insistência

de Sancho. Este, precavido, depois da aventura dos galeotes, da qual participaram

facilitando a fuga daqueles priosioneiros, alerta Dom Quixote para o risco que

estavam correndo, caso chegasse ao conhecimento de “La Santa Hermandade” a

desastrosa atuação naquele evento.

652

Perguntou-nos qual parte desta serra era a mais áspera e escondida; dissemos-lhe que era esta, onde agora estamos; e assim é de verdade, porque, se entrardes meia légua mais adentro, talvez não consigais sair. (1, XXIII, p.128)

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Entretanto, mesmo não fora esse o propósito, ali acabou colocando-se Dom

Quixote, novamente em diálogo, e ouvindo a voz do logos. É verdade que, na trilha

da Cura, já estava em processo de apropriação do próprio. A partir do diálogo, a

cada vez, era provocado a renunciar àquelas verdades que lhe eram de todo

impróprias. Ali, também se deu um diálogo em que uma outra voz lhe sussurrou não

ter nenhum sentido o que ali estava a ponto de realizar. Também, o cavaleiro

manchego radicalizou, foi escolher o cavaleiro mais polêmico e controvertido como

parâmetro para a aventura na floresta.

No final, Dom Quixote considera ser toda a mise-en-scène praticada por

aquele cavaleiro tão ridícula, que decide não realizá-la. Não vê sentido porque,

como aquele cavaleiro que tentava imitar, não passara por nenhuma traição de

amor; logo, não havia porque repetir suas ações, só pela necessidade de copiá-las.

Depois de “la cueva de Montesinos” e de “Sierra Morena”, o terceiro momento

em que ouve a “outra voz” joga, ao mesmo tempo, com dois elementos: a casa e o

sono. Será preciso falar, tanto dos regressos ao habitar de Dom Quixote, como do

insistente e recorrente sono com o qual se restabelece e que, a seguir, nutrido de

forças e de lucidez, sente-se novamente preparado para nova jornada.

Embora este terceiro seja o mais difícil no definir, não só o grau de escuta,

como também, suas nuances, se bem observado, ele reserva desdobramentos e

surpresas. Saber exatamente em que medida o regresso e o sono de per si, a cada

vez, permitiram a escuta da voz é impossível; definir e identificá-la, também. Do que

não é possível duvidar, é do reconfortante e renovador que é o sono, realizado no

cenário feito para ele sob medida __ a noite, a hora do escuro, a hora do silêncio, a

hora grande para escutar a verdade.

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Entretanto, esse contato interior e sugestivo, da primeira parte da obra,

parece querer dizer que a voz é só um chamado, uma leve convocação, um apelo,

talvez em tom sussurrado.

Chamamos a atenção, mais uma vez, para o valor simbólico dos referentes:

“casa”, “aldeia”, “cidade”, “pátria”, pois eles, nada mais são que aberturas de acesso

à questão do ser e do logos. São lugar, são linguagem, são a casa do ser, onde o

homem habita.

No início da história, tudo o que se sabe fazer parte da realidade de uma

casa, pouco é apresentado; muito mal se fala das relações afetivas que preenchem

o cotidiano familiar. No que se refere, por exemplo, à dupla ama e sobrinha e a

relação que estabelecem com Dom Quixote, observa-se que sua presença é sentida

como preocupação sim, mas uma preocupação que mais se restringe ao escrutínio,

objetivando dar fim a todos os livros de cavalaria, responsáveis pela loucura do

fidalgo. Diz a ama: “estos libros [...] les queremos dar echándolos del mundo [...];

abrid la ventana y echadle al corral”653; diz a sobrinha: “no hay para que perdonar a

ninguno [...], todos han sido los dañadores”654. As duas: “tal era la gana que las dos

tenían de la muerte de aquellos inocentes”;655 desse modo, sempre se referiam aos

livros. O clima familiar só volta a aparecer, no final, quando regressa Dom Quixote

de suas loucas aventuras disposto a morrer.

De sua casa, de seu lar ôntico, a obra dá conta, no pequeno espaço das duas

primeiras páginas que registram o seguinte: situada em “la Mancha”, tinha animais:

um “rocín flaco” e um “galgo corredor”.656 Sua alimentação era simples; sem

criatividade alguma, comia: “más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos

653

Estes livros [...] queremos dar arrojando-os do mundo [...] abri a janela e atirai-o ao curral (1, VI, p.37) 654

Não há por que perdoar nenhum [...]; todos têm sido danosos (Ibidem) 655

Tal era a vontade que as duas tinham de matar aqueles inocentes (Ibidem) 656

Rocim magro e galgo corredor (1, I, p.17)

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y quebrantos los sábados, lantejas los viernes”.657 Nisso consumia quase todos os

seus ganhos mensais. E, assim, arremata, logo na segunda página: “El resto”; e o

resto é todo o seu pouco vestuário: “un sayo de velarte, calzas de velludo para las

fiestas [...] pantuflos”.658 Com ele moravam “una ama que pasaba de los cuarenta, y

una sobrina que no llegaba a los veinte, y un mozo de campo y plaza”.659

Da casa, nada transpira, além do mínimo indispensável para apresentar e

identificar um personagem. O que mais significativo tem a casa com o viver de Dom

Quixote é, exatamente, um dado que só toma a casa como imagem-questão de

recolhimento. Esse recolhimento se dá, efetivamente, no interior de Dom Quixote.

Trata-se das saídas e regressos que Dom Quixote faz nos seus primeiros

arroubos de cavaleiro: a cada regresso do herói à sua aldeia, cai ele em sono

profundo com duração de dias, o que, de certa forma, restabelece seu juízo. Até em

“la cueva”, a experiência está amarrada pelo sono nas duas pontas – na entrada e

na saída. O sono lhe resulta balsâmico até a hora da morte. Dom Quixote, antes de

morrer, deita-se para dormir e parece ser, esse, o seu último sono; é nesse sono que

decide morrer. Podemos aproveitar essas passagens, para aproximá-las do mito de

Orfeu: nesse mito, Eros, Arte e Sabedoria nascem de um ovo posto pela Noite. O

sono pode estar a isso relacionado, à necessidade de o cavaleiro passar pela

experiência revivendo, no recolhimento dentro do ovo, o originário. Essa experiência

se reduplica na morte, quando, à noite, volta ao ovo, entregando-se ao

recolhimento originário.

Na primeira saída, deparamo-nos com Dom Quixote retornando

completamente moído de sua última aventura; dormira pouco, e despertou

sobressaltado, querendo dar punhaladas em todos. Sendo o primeiro sono de uma

657

Mais vaca que carneiro, guisado a maioria das noites, ovos com torresmo aos sábados, lentilhas às sextas (Ibidem) 658

Uma capa de gala, calças de veludo para as festas [...] pantufos (Ibidem) 659

Uma ama que passava dos quarenta, e uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço de campo e praça (Ibidem)

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seqüência, sinaliza superficialidade: o sono não fora duradouro nem profundo o

suficiente. Foi preciso duração bem maior, para assinalar profundidade também

maior: só quando dormiu um longo sono recuperador – dois dias: “Hiciéronlo así:

diéronle de comer, y quedóse otra vez dormido, y ellos, admirados de su locura [...]

De allí a dos días se levantó don Quijote, y lo primero que hizo fue ir a ver sus

libros”.660 Levantou-se agindo de forma normal.

Na segunda saída, Dom Quixote, acreditando estar encantado, leva uma

surra de uma comitiva e, mais uma vez é levado de volta à sua aldeia. Em casa, sua

ama e sua sobrinha o esticam na cama e ele dorme profundamente, recobrando, ao

acordar, sua verdadeira identidade: “el ama y sobrina de don Quijote le recibieron, y

le desnudaron, y le tendieron en su antiguo lecho. Mirábalas él con ojos

atravesados, y no acababa de entender en qué parte estaba”.661

Entretanto, nem esse longo sono resistiu: “el Cura”, em conversa, voltou ao

tema e, um simples tocar no assunto, ligado à imaginária cavalaria, foi o bastante

para que a loucura se pronunciasse de forma avassaladora. Este sono anuncia um

grau maior de profundidade que lhe fez até recobrar a identidade. Foi, no entanto,

momentânea sua eficácia.

Na última saída, depois de vencido pelo “Caballero de la Blanca Luna”, Dom

Quixote é obrigado a voltar para sua aldeia, com o compromisso de, durante um

ano, não voltar a ser cavaleiro:

[...] si tú peleares y yo te venciere, no quiero otra satisfación sino que, dejando las armas y absteniéndote de buscar aventuras, te recojas y retires

660

Fizeram isso assim: deram-lhe de comer, e ficou outra vez adormecido, e eles admirados de sua loucura [...] Daí a dois dias levantou-se Dom Quixote, e a primeira coisa que fez foi ir ver seus livros(1, VII, p.43) 661

A ama e a sobrinha de Dom Quixote o receberam, despiram, e estenderam em seu antigo leito. Olhava para elas com os olhos atravessados, e não conseguia entender em que lugar estava. (1, LII, p.317)

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a tu lugar por tiempo de un año, donde has de vivir sin echar mano a la espada, en paz tranquila y en provechoso sosiego662

É quando se dá o encontro com Dom Álvaro de Tarfe, personagem “del otro

Quijote”, o plágio publicado por Avellaneda. Entre a primeira e a segunda parte, esse

personagem transita livremente numa “taberna”, saindo fora dos limites da ficção,

para cruzar a realidade do cavaleiro. Quixote e Sancho se entreolham e perguntam,

um ao outro, o destino para onde os levavam aqueles caminhos: “A una aldea que

está aquí cerca, de donde soy natural”, respondeu um; e “Voy a Granada, que es mi

buena pátria” 663, respondeu o outro.

Esses últimos exemplos, os encontramos no 1o Périplo. Ali, indicam

proximidade do lar, quando a travessia de Dom Quixote está a ponto de terminar;

caracterizando um apropriar-se. Ambos os personagens estão de regresso ao lar,

indicando um retorno ao próprio. O mesmo exemplo que ali o aproximava de Cura,

aqui está remetendo Dom Quixote à escuta do logos.

1.1.1.2 O segundo estágio se processa em dois planos: o primeiro é intraterreno: a experiência de “la cueva de Montesinos” e o segundo acontece nas alturas de “Sierra Morena”.

Qualquer um desses movimentos sugere, em diferentes graus, um movimento

de interiorização profunda. Tanto o sono duradouro e reconfortante, as profundezas

de “la cueva”, como o fechamento da floresta em “Sierra Morena”, não passam de

imagem-questão desse mergulho profundo. Todos são um só, são o próprio logos,

no qual Dom Quixote mergulha, ao mesmo tempo que nos convida à escuta daquela

voz. É o profundo mergulhar no logos do auto-diálogo.

Agora já não resta dúvida; o falar, a que se referia Dom Quixote, não era tão

louco, esse falar: o falar do logos do qual há muito estava na escuta. O mesmo falar

662

Se tu pelejares e eu te vencer, não quero outra satisfação senão que, deixando as armas e abstendo-te de buscar aventuras, te recolhas e retires a teu lugar pelo tempo de um ano, onde deves viver sem lançar mão da espada, em paz tranqüila e em proveitoso sossego. (2, LXIV, p.659) 663

A uma aldeia que está aqui perto, de onde sou natural [...] Vou a Granada, que é minha boa pátria (2, LXXII, p.690)

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característico do terceiro nível do diálogo;664 o mesmo falar que faz, da obra, um

experienciar, uma aprendizagem.

1.1.1.3 6 CRÔNICA DE UMA BATALHA ANUNCIADA

Foi paciente, Cervantes; estava certo Dom Quixote: haveria um tempo em

que o mistério, na salvaguarda da obra, com todo vigor, abriria novas clareiras para

novos combates. O rigor da verdade metafísica, reinante por muitos séculos, alcança

o esgotamento; nega-se tudo o que a modernidade recrudesceu de forma

avassaladora; reivindica-se que se libere uma zona que não era nem conhecida nem

benquista. Convocam-se muitos combatentes à clareira tensional do ser; são muitas

as questões a responder.

Compreende-se agora o porquê desse impasse. Sua raiz está no testemunho

que é Dom Quixote: essa foi a zona considerada doente; e não podia ser de outro

modo: acatá-la, seria abrir a guarda para incertezas num tempo em que só se

precisava de certezas . Basta a avaliação de Descartes, para quem, na imaginação,

nada havia de claro nem distinto. É por isso que Cervantes, desde o século XVII,

continua buscando seu leitor; uma longa espera que precisou cruzar toda

modernidade, para mostrar novas facetas, já que não há leitura que dê conta da

arte, caso não se desdobre em questões.

Reconhecida a loucura como imaginação e imaginação como “ex”, que tudo

excede, que está fora e além de todo e qualquer limite, vê-se que só o transitar no

imaginário que é o logos, num tempo em que essa zona ainda não estava

664

CASTRO, Manuel Antonio de. A configuração da obra como diálogo e escuta. Art. Fac. Letras – UFRJ: 2007, p.2.

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franqueada, tornou possível que Dom Quixote fizesse a travessia da vida vivida para

a vida experienciada. Só assim, o cavaleiro Dom Quixote se torna Dom Quixote de la

Mancha, só assim, vira obra.

Dom Quixote, contudo, do século XVII, continua cumprindo sua missão de

porta-voz da modernidade e de arauto da pós; e formula de novo a pergunta que

não admite calar-se:

Los libros que están impresos con licencia de los reyes y con aprobación de aquellos a quien se remitieron, y que con gusto general son leídos y celebrados de los grandes y de los chicos, de los pobres y de los ricos, de los letrados e ignorantes, de los plebeyos y caballeros, finalmente, de todo género de personas, de cualquier estado y condición que sean, ¿habían de ser mentira?; y más llevando tanta apariencia de verdad.665

Agora Dom Quixote já não se esconde, formulando a pergunta de forma

enviesada; encontrou seu real lugar, está frente a frente com a obra, e quer saber

qual é a sua verdade.

Dos muitos descaminhos metafísicos da modernidade, à arte lhe coube

também seu quinhão, o quinhão chamado estética.

Inicialmente, não cabendo a arte nos limites ideais do Belo, esta fica à mercê

do gosto traduzido como sentimento, impossível de determinar, até que a idéia

estética captura a arte também para os domínios do inteligível; mascarado de

intuição supra-sensível. Apesar de diferente, era a arte também uma forma de

conhecimento das coisas.

Mas essa providência parece não ser suficiente para dar à arte a liberação

total do sensível; permanecia incômoda a sua relação com a realidade; incômodo

equacionado pelo gênio, figura na qual investiu maciçamente o Renascimento. Este,

665

Os livros que estão impressos com licença dos reis e com aprovação daqueles a quem se dirigem, e que com gosto geral são lidos e celebrados pelos grandes e pelos pequenos, pelos pobres e pelos ricos, pelos letrados e pelos ignorantes, pelos plebeus e cavaleiros, finalmente, por todo o gênero de pessoas, de qualquer estado e condição que sejam, haviam de ser mentira? E mais, levando tanta aparência de verdade (1, L, p.304)

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de tão bem treinado no exercício das coisas do mundo, para só captar o essencial,

ganha o poder de dispensar a realidade como partícipe do processo, garantindo, por

essa capacidade especial, sua total autonomia no ato da criação. Sua genialidade

está em ter conseguido eliminar a eterna desconfiança de que a arte não passava

de cópia da realidade. É claro que Dom Quixote, formado pela Paidéia

renascentista, é o próprio gênio; seu poder alcança também a arte. Gênio é o

“demiurgo”, aquele que, por seu poder criador, com Deus se identifica. Para esse

homem, a formação que lhe dá acesso ao conhecimento da verdade continua sendo

necessária e fundamental: “las letras humanas, las cuales tan bien parecen en un

caballero de capa y espada, y así le adornan, honran y agradecen como las mitras a

los obispos, o como las garnachas a los peritos jurisconsultos”.666

O gênio pode aperfeiçoar a natureza e essa perfeição é deslocada e

estendida ao próprio homem. Este deve também se aperfeiçoar na arte do

conhecimento. Aquele bem formado nas letras terá desempenho brilhante em

qualquer área do conhecimento, porque estará pronto para reconhecer a verdade

que se esconde por trás de todas as coisas. Nesse caso, tanto “cavaleiros de capa e

espada”, bispos e jurisconsultos, todos, em qualquer profissão, serão beneficiados

pela bela formação que arranca das coisas do mundo a verdade essencial.

Estando nesse caminho, não tem porque se preocupar, o pai, com o destino

de seu filho: “señor hidalgo, que vuesa merced deje caminar a su hijo por donde su

estrella le llama”.667 Isso porque, a formação do homem ideal do Renascimento

cuidaria do resto: “que el natural poeta (aquele que nasceu com essa “estrella”, com

essa aptidão) que se ayudare del arte será mucho mejor y se aventajará al poeta

666

As letras humanas, as quais tão bem parecem em um cavaleiro de capa e espada, e assim o adornam, honram e agradecem como as mitras aos bispos, ou como as togas aos jurisconsultos (2, XVI, p.404) 667

Senhor fidalgo, que o senhor deixe caminhar seu filho por onde sua estrela o chama (2, XVI, p.403)

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que solo por saber el arte quisiere serlo”.668 Vê-se a importância da aptidão, mas que

só dará bons frutos, caso a ela seja associada a formação “que se ayudare del arte”.

É um modo figurado de colocar a educação cumprindo no homem, o mesmo papel

que a arte cumpre sobre a natureza. Se a arte aperfeiçoa a natureza, aperfeiçoa

também o homem em seu estado natural.

Um Eu expressando-se é capaz de desmontar a ordem causal da natureza

que, nessa eterna repetição, nada de novo traz ao mundo, ficando a produção

artística completa e definitivamente nas mãos do sujeito. Não um sujeito qualquer,

mas um sujeito sensível, um sujeito-gênio; tanto o que produz, como o que

contempla. A origem da obra de arte fica à mercê de seu criador. A arte em si, já não

conta; desloca-se a arte para aquilo que o sujeito pode dela arrancar, a partir de

uma experiência artística vivida. A obra de arte é reduzida a objeto de um sujeito

metafísico pensante que garante a ascendência da sensibilidade como produtora de

“certezas”. A arte cai nas malhas da metafísica, fica submetida ao controle do

homem – o único que tem acesso à totalidade do real, e que passa a dela dispor

com sua capacidade de cálculo e de previsão, até como bem de consumo.

Com essa capacidade de cálculo e previsão, o seu poder é tal que domina

todo o universo da arte: julga, classifica, avalia, caracteriza, define os espaços que a

acolherão, abre um imenso leque de ocupações que vão cuidar e proteger a obra.

Ainda que essas ocupações estejam completamente fora do âmbito do

originário da arte, nesse contexto de ocupação e preocupação alheio à essência da

arte, é possível que nos deparemos com as obras em si mesmas. Esse foi, também,

o encontro de Heidegger com a obra de arte.

Mas, e a arte, o que é afinal?

668

Que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que só por saber a arte quiser sê-lo. (Ibidem)

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A comemoração dos 400 anos de Dom Quixote de la Mancha, obra de Miguel

de Cervantes, é a prova mais cabal de que o histórico da obra não está em ela já ter

passado no tempo. Nesse caso, a obra Dom Quixote não seria considerada

histórica, já que continua resistindo há 400 anos.

Do mesmo modo que o ser só é, enquanto “sendo”, também a obra, mesmo

que tenha sido criada no passado, tendo já passado o “sendo”, pode cair na

condição de mero instrumento e ser, ilusoriamente, protegida pelos cuidados ônticos

tecnológicos que a preservem. Entretanto, isso não significa que ela não esteja

impregnada do mesmo vigor que a criou, não significa que nela algo não esteja

ainda preservado.

Não é preciso esclarecer que o que nela se preserva não é da ordem da

conservação ôntico-tecnológica. Tendo o mundo que a constituiu já desaparecido no

tempo, parece que a obra fica também sem mundo. Esse parecer é o que explica a

ânsia de perpetuá-la de alguma forma no tempo, fixando-a num estilo vigente em

dado momento, aprisionando-a numa temporalidade já perdida. Tudo isso depois de

que o ser, que lhe deu origem, já se foi.

Porém, se o que se perde é o mundo que em obra se entificou, o que, então

nela permanece, o que a preserva, afinal?

O que permanece é a obra. Nos diz Heidegger: “Perdemos o mundo, mas não

perdemos as obras”.669 Permanece na obra, portanto, uma historicidade efetiva que

ali ficara latente; só ela pode recuperar a experiência histórica que a obra assinala.

Quando falamos “permanecer a obra”, estamos falando daquilo que na obra

permanece, estamos junto com Heidegger, dizendo: o que permanece na obra é o

que na obra está em obra da verdade. Como a obra é sempre dis-puta terra-mundo,

pode parecer incoerente essa afirmação. Entretanto, quando o autor se refere a

669

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.113.

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mundo, ele é bem claro: “o que passou foi o mundo que os utensílios constituíram

para o Dasein”.670 E acrescenta: “Se deparamos com obras nas exposições,

conforme diz Heidegger, não encontramos mais o mundo a que pertenciam”.

Entretanto, a obra de arte “detém uma historicidade efetiva [...] na medida em que

podemos recuperar a experiência histórica que elas assinalam”.671

Não é por magia que essa recuperação pode acontecer. Para isso é preciso,

a princípio, que, tanto o tempo faça o jogo retrospectivo, indo, do presente, buscar

no passado, aquilo que ali ficou registrado como verdade, interpretando-o e

lançando-o para o futuro. Dom Quixote, a todo momento sinaliza isso: “–¿Quién

duda sino que en los venideros tiempos, cuando salga a luz la verdadera historia de

mis famosos hechos”.672 É preciso também dar lugar ao jogo das interioridades,

abandonado por influência avassaladora da estética que abstraiu os elementos

fundamentais do processo. Sem a relação participativo comunal artista-destinatário,

impossível recuperar a experiência histórica, impossível deixar-se atravessar pelo

inaugural que na obra opera, impossível deixar-se tomar pelo vibrar da arte, pelo

vigor do poético: esse é o introspectivo que, junto com o retrospectivo, abre a

possibilidade da interpretação hermenêutica. Crivar de perguntas a obra, esse é o

processo. Nos dizem Heidegger e Gadamer.

Sem que se dê importância excessiva ao homem, por não ser ele maior que

sua tarefa, “o fato de o ser-criado provir da obra não significa que se deva

reconhecer que a obra foi feita por um grande artista”.673 Tira-se do centro o autor,

670

Ibidem. 671

Ibidem. 672

Quem duvida que nos séculos vindouros, quando venha a luz a história verdadeira de meus célebres feitos. (1, II, p.21) 673

HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. 3ªp. Kriterium. Revista de Filosofia, n.86, p.125. Apud. NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.114.

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redimensiona-se a obra que “possui mais perfeição do que aqueles que a(s)

produzem”. 674

Fica, assim, a obra de arte, resgatada do quadro estático da estética. Nesse

quadro foi colocada, partícipe dos mesmos processos de todas as demais coisas

conhecidas.

Se não é o homem o senhor da verdade da obra de arte, onde, então,

podemos procurá-la?

O que é a arte? E sua proveniência, onde fica? Qual a relação entre obra de

arte e verdade? São perguntas que, caso não as respondamos agora, inútil será

todo esforço empreendido. Apesar da origem grega da arte ser techné, Heidegger

esclarece essa relação. Antes de significar realização prática ou atividade de um

fazer, techné é um modo do saber essencial que suporta e dirige toda a relação com

o ente; e o aproxima da aletheia, pela semelhança do seu significado: modo

essencial do saber que não se restringe à obra de arte, mas que se estende a todo e

qualquer ente.

1.1.1.3.1.1.1.1 O conhecimento da obra de arte se assemelha ao conhecimento

de qualquer outro ente. Esse conhecimento não se reduz ao concreto

instrumental. Conhecer uma obra significa muito mais do que seus

limites físicos; conhecer uma obra é um saber. É uma experiência em

que, no ente, se dá um acontecer. No ente “obra”, como nos demais

entes, também se dá um saber. É por isso que Heidegger, ao explicar,

aproxima techné de aletheia. Aletheia significa verdade, não uma

verdade fixa, válida e definitiva que se impõe no mundo, mas verdade

como acontecer.

674

VERNANT. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Paris: La Dècouverte, 1989. p.73-74. Apud. NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: UFMG, 1999, p.114.

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Para os gregos, o poeta provocado pelas musas era o porta-voz dos deuses,

graças à sua realização de ente que fala. Por ser sua essência, a poiesis, e por ser

possibilidade de escuta da fala, é ao homem que cabe essa tarefa: trazer, ao

mundo, a voz dos deuses. Isto é manifestar mundo. Assim procedendo, está o

homem cumprindo um mandato divino que proíbe esquecê-los.

“É proibido esquecer” é, em última análise, o significado de aletheia: “a” –

significa “não”, privativo, é o des-velar-se; “lethe” – significa o velar-se, o esquecer.

Aletheia significava, então, não esquecer a palavra dos deuses, porque essa palavra

era a verdade. Aletheia implica necessariamente o jogo não-ser e ser.

Sendo o que fala, tendo como essência a poiesis, o homem é aquele que é

possuído pela linguagem, como algo originário, o logos. Isso significa que será

sempre o homem que poderá, pela linguagem, originar, dar origem a novas coisas

manifestando mundo. A linguagem é, em si mesma, o originário. O mundo,

entretanto, é linguagem, mas uma linguagem que se distanciou da origem, pelo

mesmo fenômeno acima descrito, a linguagem da gramática e dos lingüistas. No

momento mesmo quando, como originária, seu ser se tornou o mundo, virou ente,

esvaziando-se, perdendo grande parte do vigor. Na verdade, nada está perdido. A

idéia de perda é, na verdade, um equívoco. Tudo se resume no intrigante processo

de doação do ser, no cumprimento do mandato divino, traduzido como aletheia. Mas

é um ser que se dá e se guarda. Daí desvelar-e-velar, daí verdade-e-não-verdade.

Mandato é mandato; desse modo, é preciso cumpri-lo: o “é proibido esquecer

os deuses” é substituído por Heidegger por: “é proibido esconder”; o que significa

que a condição básica da aletheia é o velado, caso contrário, não haveria

necessidade da determinação que proíbe esconder.

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Isso significa que o velamento é a forma em que se encontram todos os

entes, cabendo ao homem, por cumprir o mandato divino, não permitir que se

esconda, não deixar velado, não permitir que se cale a palavra do deus.

O que promove e possibilita que se cumpra o mandato é o assédio do ser.

Sob todo o ente desvelado pulsa sempre um vigor originário. É esse vigor que está,

a todo o momento, assediando o ser, o vigor do mistério, convocando o homem a

posicionar-se na abertura do “entre-ser”, para mais e novas aberturas, para mais e

novos “mostrar-se”.

O segundo velamento é assim considerado porque outro já o antecede

primordialmente. Este velamento acaba sendo um impedimento para o acolhimento

do chamado do ser. Nesse caso, o que faz o homem é não se abrir, optando pelo

acervo da linguagem velha, estabelecida, já conhecida. É a ambigüidade, não a

ambigüidade poética, a ambigüidade retórica, a que tem lugar no falatório e no

escritório, exemplificados no 1o Périplo. O homem é decaído sempre que a

linguagem é decaída, alijada do originário.

No âmbito da obra de arte, acontece o mesmo: primeiro que sua essência não

é o instrumental concreto que a torna visível e palpável; por que guardar, então,

livros que não foram aprovados pelo escrutínio, se deles, o que sobra é somente

papel com sinais tipográficos encadernados? Depois, do mesmo modo que aos

demais entes, à obra de arte também é vedado o velamento. Isso significa que ela

também guarda o mistério, vigoroso o suficiente para cobrar que lhe dêem espaço

sob a forma de novas verdades. Na obra também acontece o acontecer da verdade,

sua essência aí está: ser obra da obra. Ser obra da obra exige que se dê lugar à dis-

puta.

Caracteriza-se assim, como dis-puta, a atuação de duas forças na clareira do

desvelamento: uma é a desocultação que, para abrir-se e mostrar-se, já trava o

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combate da primeira ocultação para também abrir e mostrar-se; a outra fica por

conta da imposição do segundo velamento. O retraimento se impõe também, pois só

assim é possível a configuração do ente e o mostrar-se da verdade. Nesta mesma

pesquisa temos uma tímida mostra da lei: “é proibido esconder”. A providência de

dividir em três Périplos foi a solução mínima encontrada para o pulsar de tanto vigor

no assédio ao ser. Os três temas apresentados são desdobramentos de um só: a

verdade e a não-verdade em dis-puta.

A obra, como ente, foi produzida e está à disposição.

Mas o que ali está à disposição?

A obra; mas o que nela está à disposição é somente o “estar-aí”; o estar-aí,

nada mais é do que o habitual, e não há verdade no simples e mero habitual. É

preciso mais; é preciso despertar e fazer acontecer o ser da obra. Onde está

o mais?

Ainda que contraditório, o mais localiza-se exatamente no nada. Nada do que

já é visível, nada do que estiver disponível é suficiente para instaurar a verdade. Só

na abertura o nada pode vir-a-ser verdade.

A proveniência da verdade é a não-verdade, o ainda-não-(des)-ocultado. No

primeiro velamento, quando ha o desocultar a verdade oculta, simultaneamente se

configura o segundo velamento. Não podemos esquecer que há um duplo negar-se

da verdade.

Transferindo esse processo para a obra, sabe-se que ela reserva uma dis-

puta. O responsável pelo desafio à batalha, Dom Quixote já sabia, mas não contou

nem quando nem como essa batalha foi planejada, para que ele a tivesse anunciado

com tamanha antecedência.

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Agora sabemos: que essa “batalla singular” está marcada, desde que

Heidegger675 interpretou o Mito da Caverna, como A doutrina de Platão sobre a

verdade, e que Dom Quixote deve fazê-lo em grande estilo. Deve realizá-lo

poeticamente; só poeticamente pareceria a Dom Quixote uma batalha digna. E

manteve segredo sobre a arena onde ela travar-se-ia.

Se inicialmente foi só suspeita, agora não há dúvida: essa batalha singular

será um verdadeiro e digno combate, uma dis-puta. E Dom Quixote, sabedor do

calibre de sua missão, segue buscando, ainda, a melhor performance para o

embate. Talvez possamos ajudá-lo, descrevendo-lhe, em linhas gerais, como se

processa uma bela dis-puta, uma simulação, quem sabe.

Ao receber o chamado do ser, o não-ser só pode querer-ser, a partir do que já

é; a partir do ente que é. Só o ente que é, nutrido de vigor, tem o poder de provocar

o não-ser a ser. O processo é ininterrupto: “Eu sou”, o ser constitui o ser do “eu”.

Mas eu só posso ser, porque Eu não-sou. Logo, o ser que o eu é, só, é pelo impulso

do não-ser.

O ser devidamente provocador, e o não-ser devidamente provocado, os dois

se dispõem à luta, e empreendem um grande dis-puta: nessa quase instantânea

luta, em que concorrem “o reunir/colher/ recolher” e o “encolher” o que no máximo se

mostra é um “sendo” que apaga não-ser e ser, deixando-os invisíveis, até que, ao

final do dis-puta, novo ente se configure.

Convoquemos, então, para o combate, os contendores.

7 DA FORMA À FULGURAÇÃO, NESSE “FINGIR” SE MOVE DOM QUIXOTE 675

HEIDEGGER, Martin. A doutrina de Platão sobre a verdade. Tradução de Antonio Jardim, 2002 (mimeo)

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A obra já nos oferece de cara um enigma instigante: o trânsito ficção-

realidade-ficção. Isso falando grosso modo, sem considerarmos seus

desdobramentos.

Percebe-se que, onde está o humano, está o fingir. Alonso Quijano/Dom

Quixote, o verdadeiro fidalgo, ao afirmar-se cavaleiro, imitava ou fingia? Ao declarar

aos quatro ventos: “Yo sé quien soy”, Dom Quixote dava a todos o sinal de que,

sendo fidalgo e também cavaleiro, não tinha sentido sua declaração. Ao agir assim,

Dom Quixote imitava ou fingia? E ainda, resoluto e cheio de certeza, dizia poder ser

todos os demais cavaleiros; quando assim procedia, Dom Quixote imitava ou fingia?

Buscando a essência do humano, foi assim que Dom Quixote pôde ser

processo que se dá na vida enquanto travessia, e Curar-se. Se pretendíamos porém,

resposta definitiva, dentro dos moldes metafísicos, que definisse e classificasse o

homem, dentro do esquema piramidal dos conceitos; o homem como ser fixo,

acabado e definitivo, responderíamos que Dom Quixote estava imitando. Entretanto,

é claro que fingia. Afortunadamente, o “fingere” intrigante fez morrer no nascedouro

tal pretensão.

Por isso, foi descartada a tradução “forma”, para a modelagem realizada por

Cura, exatamente para não permitir a contaminação que esse conceito poderia

exercer sobre a obra modelada. Preferiu-se então a tradução latina “figuração”.

Estamos perfeitamente de acordo com esse sentido de Cura. E não podia ser

diferente, depois de termos realizado com Dom Quixote a grande travessia, que teve

na morte seu pleno fechamento, depois de arrancadas todas as renitentes capas do

impessoal que, de tão pesadas, tanto fizeram decair o cavaleiro da Triste Figura,

isso significa acatamento.

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Constata-se o dado figuração nas andanças de Dom Quixote pela realidade

da vida, quando, por sua conta e risco, opta claramente por abandonar uma ficção,

para transportá-la e, com ela, se lançar na realidade da vida. Mas a reduplicação

não é tão simples, nem pára por aí. Quando decide abandonar a leitura, abandona

só a leitura dos livros que entupiam sua biblioteca, mas não abandona aquele

universo ficcional; tanto que o traz consigo para a vida. Vemos aí uma ficção em

primeiro grau __ a ficção da cavalaria ingressa na realidade da vida do pacato fidalgo

que está no liame do século XVI. Dom Quixote não é o cavaleiro enformado, que se

deixou aprisionar é uma outra possibilidade de ser. Isso é fulguração.

Mas a sede de fingir é tal que aquela realidade da vida é também uma ficção

__ a história de um louco cavaleiro que tinha seus registros nos anais de La Mancha,

história que se pretendia história comprometida com o verdadeiro, uma história toda

cuidadosa para não fugir um triz dos fatos, “Pero esto importa poco a nuestro

cuento; basta que en la narración del no se salga un punto de la verdad”.676 Está

dizendo que o que importa para a história é não sair um ponto sequer da verdade,

mas que, de tanto cuidado e critério, acabou contada por muitas vozes.

Com todo cuidado de preservar fidedignidade com a realidade, escapou ao

controle e virou ficção. Virou ficção por causa do jogo verdade X não-verdade. Mas o

que a caracteriza como ficção não é o controle no tocante à realidade e, sim, o jogo.

Uma solução eficaz foi o acolhimento de muitas vozes: o ser contado por

muitas vozes é a estratégia mais eficaz para que se deixem sempre espaços abertos

– os “entres” onde a obra pode movimentar-se fazendo o jogo das ambigüidades.

Tudo em Dom Quixote transita pela ficção: ficção da ficção, ficção dentro da ficção; não pode ser gratuita essa relação reincidente e insidiosa homem/ficção. O que poderia ter criado esse vínculo que chega quase às raias da dependência?

Ao cair a máscara da razão, cabe aqui um parêntesis: com a máscara, há dis-puta, há paradoxo. Sem máscara, a razão é aquela em que o projeto civilizatório da modernidade apostara como única possível salvação dos impasses da dúvida que instalou o ceticismo, na época de Dom Quixote. Ela mesma se revela muito mais que impotente para essa empresa, é a sua própria perdição. Vimos que essa grande e poderosa aquisição da modernidade __ a razão __ obstaculizou o livre pensar, submetendo-o às amarras dos esquemas mentais, respeitadíssimos pelo que têm de eterno e universal, respeitadíssimos pelo lugar conquistado de poder assegurar, garantir as certezas de que

676

Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração dele não de saia nada da verdade. (1, I, p.18)

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precisa o homem moderno para viver sem o risco de ser tragado pelo desconhecido. Nesse capítulo, não só Dom Quixote, como todos nós experimentamos um mundo que transpira fragmentos de aparência esquálida, sem vigor; fragmentos que foram submetidos a amputações do que neles havia de diferente, em nome de uma uniformidade sem precedentes. Loucura de um lado, razão de outro, impossíveis submetendo-se ao possível, mentira/verdade, realidade/ficção, fantasia e imaginação, opondo-se à razão.

Tomemos essa oposição que já nos tinha sido apresentada desde que ficara

louco Dom Quixote. Foi exatamente na imaginação que fora localizado seu mal.

Com seu oposto __ a razão, entretanto, não se preocuparam médicos nem

autoridades. E naquele momento, também nós acatamos o rigoroso e detalhado

diagnóstico: do mesmo modo que Demócrito, os belos discursos que proferia Dom

Quixote eram de entendimento, não de imaginação. Concluiu-se assim que a lesão

estava localizada num único setor de sua mente __ na imaginação.

Em primeiro lugar, temos que é preciso descaracterizar a fragmentação

sofrida pela mente de Quixote em zona de entendimento e zona de imaginação. A

tendência do momento à geometrização espacial, que já alcançava até a poesia, é

tomada por Bachelard, como estratégia de alerta para os riscos de redução do

espaço da criação poética.

Dessa maneira, fica também descartada definitivamente a possibilidade do

diagnóstico feito por algumas autoridades, de que é exatamente essa – a zona do

imaginário, a que está afetada, dando sinais de doença. Achavam que, se a zona do

entendimento estava saudável, é porque, provavelmente, a verdade ali estava; e,

por oposição, na zona do imaginário, por estar doente, nela não residia a verdade.

Isso se deve a “normalmente, termos um conceito de verdade muito limitado e

imediatista em relação à realidade, e passarmos a ler o mundo da arte como sendo

ficcional e não real, porque nele opera o imaginário. Acontece que o imaginário é o

lugar da arte, mas também do ser humano e de toda realidade”.677

Temos então que Dom Quixote, deixando que operasse o imaginário, estava

no mais pleno exercício de sua humanidade, permitindo que nele fluísse a mais real

677

CASTRO, Manuel Antonio de. A leitura e a interpretação. 2005, p.51 (mimeo).

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realidade. Estando no imaginário, Dom Quixote - “só por ser homem é que também

é arte”.678

Parece que o círculo nos colocou outra vez diante da questão inicial: a

estreitíssima relação entre o humano e a arte. Se ainda não temos respostas,

voltemos a Quixote.

Considerando a porta “entre aberta” que é o homem; considerando a

necessidade do exagero do fenomenológico, protegendo o ser das perdas;

considerando a exposição máxima ao extremo de uma experiência, de tal modo que

enfrente todos os perigos de tal exposição, porque essa é a única forma de um

apossar-se pleno e verdadeiro da vida; considerando o extremismo do impulso

poético, único capaz de um abrir-se fenomenológico tão radical, a ponto de incitar o

uso da imagem poética para além do liame da loucura, propondo-a, assim, como

“loucura “experiencial”, assim considerando, parece estar Dom Quixote em seu

“metiê”.

De todos os heróis que, na época, com ele conviviam, Dom Quixote foi o

único a superar suas circunstâncias. O que teria permitido tal façanha? Constata-se

que: “É só por ser homem é que também é arte. Mas é por força da ficção poética

que o sonho e a utopia eclodem. É por força da arte que o homem ultrapassa as

meras circunstâncias e penetra na dinâmica de suas realizações”679.

A resposta é a arte. O que se tornou possível foi Dom Quixote de la Mancha,

a ficção poética. Só movido pela força da arte, pôde Dom Quixote ultrapassar as

meras circunstâncias e colocar os pés naquele espaço dinâmico que vai além da

razão. Só assim, pôde Dom Quixote liberar o vigor que, por si só, é capaz de

deslocar causas e efeitos, de inibir ambigüidades retóricas, de desmontar, enfim, o

678

Ibidem. 679

CASTRO, Manuel Antonio de. A leitura e a interpretação. 2005, p.51 (mimeo).

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edifício sólido e estabelecido das meras circunstâncias, desimpedindo assim o fluido

trânsito realidade-ficção.

Porque não pretendemos nos distanciar dessa constatação, deixemos, aqui

registrado, uma pequena mostra do poder da arte-ficção: Dom Quixote cruza a

portada dos livros de cavalaria e não se sabe bem se entrando ou saindo. Não é

possível delimitar o momento exato da loucura de Dom Quixote. Por isso, também,

não é possível determinar qual foi o primeiro trânsito: se da ficção para a realidade;

se da realidade para a ficção __ por testemunho de sua sobrinha, de vez em quando,

atirava longe o livro, tomava da espada e lutava até o suor pingar como as gotas de

sangue que ele mesmo descrevia. Não estaria, nesse momento, saindo por curtos

momentos da realidade e entrando já na ficção? Sejamos, portanto, mais modestos

e comecemos pelo tradicional: Dom Quixote abandona a leitura dos livros de

cavalaria e instala esse mundo na realidade. É a ficção virando realidade.

Desse primeiro trânsito, os desdobramentos são infinitos: uma ficção que

entra na realidade, de forma tal que essa realidade, contraditoriamente, é ficção.

Dom Quixote sai da realidade e entra na ficção; Dom Quixote sai da ficção e entra

na realidade; a realidade convive com a ficção; a realidade é espaço de passagem

entre ficções; a ficção se comunica com a ficção; a ficção esclarece a realidade; a

realidade confirma a ficção; da ficção-ficção à ficção-representação etc.

8 PENETRANDO NO TERRITÓRIO DA ARTE

Eis que cruzamos, então, a tênue linha divisória; adentramo-nos, cada vez

mais, no território da arte, já anunciado anteriormente.

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Aqui, a luta alcança seu ponto mais nobre. Portanto, será injusto não

conceder espaço à figura mais digna de tanta nobreza. Todas as experiências do ser

e do real necessitam de muito espaço; pois só se plenificam na arena da arte.

9 DOM QUIXOTE, ANJO E DEMÔNIO DAS ARTES

Diante da cena que ama e sobrinha de Dom Quixote armaram, assim que se

deram conta da desgraça que sobre aquela casa caíra: “[...] malditos libros de

caballería [...]. Encomendados sean a Satanás y a Barrabás tales libros [...]680 le

aconteció a mi señor tío estarse leyendo en estos desalmados libros de

desventuras”681; outra coisa não se poderia esperar, senão o veredito final: “[...] que

no se pase el día de mañana sin que dellos no se haga acto público, y sean

condenados al fuego [...].”682

Em se tratando do teor da obra que estamos interpretando, é impossível

ignorar o capítulo do escrutínio como a entrada principal. Associados à loucura, os

livros de cavalaria são os grandes vilões do romance e, por isso, merecem

tratamento rigoroso, atendendo a uma necessidade profilática, para que não “den

ocasión a quien los leyere de hacer lo que mi buen amigo debe de haber hecho”683 __

assim falou “el cura”, tentando evitar que outros casos pudessem se repetir: ficar

louco em conseqüência da perda da identidade.

680

Malditos livros de cavalaria [...] encomendados sejam a Satanás e a Barrabás tais livros. (1, V, p.35) 681

Aconteceu a meu senhor tio estar lendo nestes desalmados livros de desventura (1, V, p.36) 682

Que não passe o dia de amanhã sem que deles não se faça ato público, e sejam condenados ao fogo (Ibidem) 683

Dêem oportunidade a quem os ler de fazer o que meu bom amigo deve ter feito (Ibidem)

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O capítulo do escrutínio, anunciado no início, aponta para algumas reflexões

preliminares, a respeito do que se julga arte. Nesse capítulo, só nos são

disponibilizados os livros que na época faziam parte do rol dos que contribuíram

efetivamente para enlouquecer o fidalgo manchego. Dentre “los libros autores del

daño”,684 era possível que alguns não “mereciesen castigo de fuego”.685

Fica evidente o radicalismo das duas mulheres responsáveis pelo bem-estar

de Dom Quixote; “tal era la gana que las dos tenían de la muerte de aquellos

inocentes”.686 Para elas todos os livros devem ir para a fogueira. Não é, no entanto,

essa a opinião nem “del barbero” nem “del cura” .

Assim, com justificativas plausíveis, escapa do fogo o livro pioneiro da

cavalaria – Los cuatro de Amadís de Gaula. Apesar de, na opinião “del barbero”,

sendo o livro, por sua condição de pioneiro, o “dogmatizador de una secta tan

mala”,687 deveria ser, irremediavelmente, condenado ao fogo. Entretanto, esse é o

motivo exato e justo para que fosse poupado; tanto por ser o primeiro “de todos los

libros que de este género se han compuesto”,688 como por ser avaliado o “único en

su arte”689.

Ao mesmo tempo em que temos expressa a declaração de que os livros de

cavalaria eram todos cópias de um único modelo, declaração confirmada pelo

“canónigo”: “jamás me he podido acomodar a leer ninguno del principio al cabo,

porque me parece que, cuál más, cuál menos, todos ellos son una mesma cosa, y

no tiene más éste que aquél, ni estotro que el otro”;690 temos também uma

contradição. É contraditório que, apesar do reconhecimento de ser o pior dos livros,

684

Os livros autores do dano (1, VI, p 37) 685

[Não] merecessem o castigo do fogo (Ibidem) 686

Tal era a vontade que as duas tinham da morte daqueles inocentes (1, VI, p.37) 687

Como dogmatizador de uma seita tão má (Ibidem) 688

De todos os livros que deste gênero foram compostos (Ibidem) 689

(Ibidem) 690

Jamais pude acomodar-me a ler nenhum do princípio ao fim, porque me parece que, uns mais, outros menos, todos eles são a mesma coisa, e não tem mais este que aquele, nem é outro senão o outro (1, XLVII, p.293)

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Amadis seja preservado como único em sua arte. Contradição maior está no

equívoco de arte ser tomada como representação formal de um gênero ou estilo,

segundo seus conteúdos. Nesse caso, Amadis de Gaula era o protótipo do romance

de cavalaria, e sua conservação parece estar ligada à necessidade de preservá-la

como modelo ou cânon.

Parece, ainda, a crença na materialidade: acreditar-se que a obra se restringe

à concretude que está nos limites do livro. Fica ainda algo no ar, na decisão de

perdoar o livro pioneiro de Amadis de Gaula - “por esa razón se le otorga la vida por

ahora”.691 Acrescenta “el cura” ser tal decisão temporária; o que nada acrescenta, a

não ser, um mero disfarçar do propósito real, aliviado pelo “por ahora”.

Todos os demais livros, filhos e pertencentes à mesma linhagem de Amadis,

saciam a gana dos guardiões da sanidade de Dom Quixote; vão para a fogueira

todos. Dentre eles, aparecem tipos variados: dois que disputam o lugar dos menos

mentirosos; outros por não passarem de disparates; outros por seu estilo seco;

alguns por não apresentarem nada de fabuloso que mereça louvor; e até aqueles

que também não escapam porque nem o nome santo lhes dá garantias: “tras la cruz

está el diablo; vaya al fuego”.692 A brincadeira comparativa soa como alerta,

sugerindo haver “por trás” alguma marca sutil significativa, nessas obras

consideradas perigosas e, às quais se deve dedicar atenção.

Ao fogo, os que, tendo vindo de outro lugar, entram no país traduzidos. Os

juízes do escrutínio crêem que, por mais habilidade que tenham os tradutores,

jamais chegarão à perfeição da língua de seu primeiro nascimento. O que vemos

aqui discutido é a própria arte. Essa questão se torna concreta, ao querer Dom

Quixote “realizar” esse mundo inaugural. Dessa realização é que surge o próprio

691

Por essa razão se lhe concede a vida por agora (1, VI, p 37) 692

Atrás da cruz está o diabo; vai para o fogo (1, VI, p.39)

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Dom Quixote de la Mancha, como obra. Quando se trata de cópia, no copiar, é

impossível inaugurar “mundo”.

Além de Amadis, pouquíssimos são poupados; todos com justificativas

variadas: um por ser considerado autoridade, não só por ter sido composto por um

discreto rei de Portugal, como também “porque él por sí es muy bueno”.693 Vemos

que a obra é avaliada como boa, porque escrita por um rei e, principalmente, porque

“las razones [...] guardan y miran el decoro del que habla con mucha propiedad y

entendimiento”.694 Ser bom, por si mesmo, não é critério para avaliar-se uma obra.

Entretanto, é bom, o que escrito com clareza tal que facilite igualmente “el

entendimiento” de todos. Esses livros primam pela clareza – “las razones” que não

permitem que se instale a dúvida nem a incerteza.

Outra obra sobrevive ao escrutínio: Historia Del famoso Caballero Tirante el

Blanco é considerado o melhor livro do mundo. O motivo fundamental é conter, esse

livro, um elemento que falta a todos os demais de cavalaria: nele “comen los

caballeros, y duermen y mueren en sus camas, y hacen testamento antes de su

muerte”.695 Ou mesmo tomando outro caminho: “pues nos cuentan el padre, la

madre, la patria, los parientes, la edad, el lugar y las hazañas, punto por punto y día

por día, que el tal caballero hizo, o caballeros hicieron”.696

Não é sem motivo que essa frase fique martelando na cabeça de Dom

Quixote que, volta e meia, a ela retorna. “Y más llevando tanta apariencia de

verdad”.697 Esse compromisso com a realidade, já o vimos desde o ingresso de Dom

Quixote na vida cavaleiresca, haja vista o critério escrupuloso com que insere todos

os ingredientes necessários à composição desse mundo.

693

Porque ele, por si mesmo, é muito bom (1, VI, p.39) 694

As razões [...] guardam e olham o decoro de quem fala com muita propriedade e entendimento (Ibidem) 695

Comem os cavaleiros, e dormem e morrem em suas camas, e fazem testamento antes de sua morte (1, VII, p.40) 696

Pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas detalhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304) 697

E mais levando tanta aparência de verdade (Ibidem)

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Além disso, embora comesse e dormisse pouco, mesmo já estando no final

de sua travessia, Dom Quixote não deixa faltar os mesmos ingredientes para

comporem o cenário de sua morte: “tráiganme un confesor que me confiese y un

escribano que haga mi testamento”698 e, preparando-se para morrer, “se tendió de

largo a largo en la cama”,699 tal é a necessidade de vínculo com a realidade. Mesmo

tendo ouvido do “escribano” “que nunca había leído en ningún libro de caballerías

que algún Caballero andante hubiese muerto en su lecho tan sosegadamente y tan

cristiano como don Quijote”,700 Dom Quixote não dispensa esses dados da realidade

necessários para que se cumprisse, do compêndio de novelas de cavalaria, o item

“apariencia de verdad”701.

Essa contradição expressa pelo “escribano”, entretanto, só reforça que o

perseguido nesse item é, nada mais que a questão do rigoroso comprometimento

com a realidade ordinária. Para falar da vida ordinária, seguindo rigorosamente seus

rituais estabelecidos, não é preciso ser arte, ou melhor, não é arte.

Acrescenta-se, ainda, que neste livro não há “necedades de industria”;702 o

que traduzimos como não havendo bobagens mirabolantes, cheias de artifício,

comuns a esses livros. Em nota de rodapé, esclarece-se que o autor dessa obra, só

por esse feito, não merecia nunca ter ido parar na prisão. A crítica aqui fica por conta

do processo de composição dentro dos rigores do modelo estabelecido. As novelas

condenadas eram aquelas que no intento de deixar evidente a realidade, eram

obras-primas de modelagem, atingindo de tal modo os extremos, a ponto de serem

caracterizadas “indústria”. Do que se fala é de obras fabricadas que não nasceram

do movimento espontâneo da Linguagem.

698

Tragam-me confessor que me confesse e um escrivão que faça meu testamento (2, LXXIV, p.698) 699

Estendeu-se de ponta a ponta na cama (2, LXXIV, p.700) 700

Que nunca havia lido em nenhum livro de cavalaria que algum cavaleiro andante houvesse morrido em seu leito tão sossegadamente e tão cristão como Dom Quixote (Ibidem) 701

(1, L, p.304) 702

(1, VI, p.40)

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Aparecem também outros livros de pequeno porte que não “deben de ser de

caballería, sino de poesía”.703 Um gênero, assim caracterizado e conhecido na

época, que já convivia com os livros de cavalaria, gênero, segundo se comenta,

muito admirado por Cervantes. Esses livros não recebem a atenção dos homens do

escrutínio: La Diana, de Montemayor, gênero pastoril, não causará a seus leitores o

dano que os de cavalaria estavam causando: “son libros de entendimiento”,704 sem

prejuízo de terceiros, porque não contêm más ações a serem imitadas. A menção a

esses livros [que não são perigosos, que não produzem danos], entretanto, ressalta

mais ainda o alvo visado: os de cavalaria.

Por outro lado, é interessante que, neste ponto, nos primeiros capítulos,

vemos antecipada a menção a pastor e a poeta que só retornarão, com clareza, no

final da obra. É a sobrinha de Dom Quixote, temerosa e precavida, quem aconselha

queimar também aqueles livros de histórias pastoris; quem sabe poderia seu tio,

“habiendo sanado [...] de la enfermedad caballeresca, leyendo éstos se le antojase

de hacerse pastor y andarse por los bosques y prados cantando y tañendo”;705 e, o

que seria ainda pior: “hacerse poeta; que, según dicen, es enfermedad incurable y

pegadiza”.706

Essa caracterização __ poesia pastoril __ pode remeter também para uma

reflexão: serem ficção e poesia meramente retóricas, uma doença que “pega”,

doença contagiosa e incurável, considerando que, nesse nível, não sobra espaço

para a cura. A poesia e ficção retóricas trabalham com os esquemas prontos, com

os modelos fixos que definem e determinam estilos e gêneros no tempo. Nesses não

703

Não devem ser de cavalaria e sim de poesia (Ibidem) 704

(1, VI, p.40) 705

Havendo curado [...] da doença cavaleiresca, lendo estes lhe ocorresse tornar-se pastor e andar pelos bosques e prados cantando e tangendo (Ibidem) 706

Tornar-se poeta, que, segundo dizem, é doença incurável e contagiosa (Ibidem)

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há espaço para o jogo verdade e não-verdade. Isso basta para justificar o incurável

da enfermidade, já que, sem abertura ao ser, Cura é definitivamente impossível.

Por outro lado, o ser poeta pode também ter o real sentido de poiesis. Nesse

caso, a doença (“enfermedad”) está aqui aplicada em seu sentido figurado: ser poeta

é uma “enfermedad incurable y pegadiza”, considerando que ser poeta não é uma

de-cisão. Aquele que produz arte não o faz porque quer, não há nem consciência

nem intencionalidade nesse agir. É um agir especial, extraordinário. É diferente do

ordinário porque há sempre um poder outro, sempre algo que move o poeta, algo

sempre arrebatador que o toma irremediavelmente. Ser, pela poesia, tomado é “mal”

(enfermedad) que pega (pegadiza) e não larga (incurable). O poeta é movido pelos

deuses, por isso é sempre puro entusiasmo. Cheio de deus dentro, o poeta é puro

vigor. Ser tomado pelos deuses é a loucura mais divina. Talvez seja esse o destino

de Dom Quixote.

De qualquer modo, a preocupação da sobrinha volta a tocar no ponto

vulnerável da imitação. Todos os presentes, concordando perfeitamente com o alerta

da sobrinha, tomam providências para que Dom Quixote não corra nenhum risco. Do

livro em questão, decidem tirar quase todos os versos, deixando somente a prosa,

esta menos perigosa no que se refere às ações da realidade que não

comprometessem o sistema de valores da “república cristiana”, sem aquelas

perigosas más ações que, na época de Platão, representavam os versos de

Homero. E decidem poupá-lo, orientados pelo mesmo motivo que os levara a poupar

o pioneiro de Amadis: “la honra de ser primero”707 no estilo. Todos os demais do

estilo não conseguem escapar. De novo se insinua a intenção de perpetuar a obra,

dentro dos estreitos limites que dimensionam o livro, além do cuidado com a

manutenção do cânon.

707

(1, VI, p.41)

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É por isso que Dom Quixote perde a paciência com o canónigo, falando-lhe

em tom imperativo: “Léalos”,708 sugerindo-lhe, com isso, que, a partir do diálogo,

experiencie com o “outro” que é a obra de arte; sugerindo-lhe a escuta do que a obra

diz. Não a escuta da obra, mas a escuta do que em nós ressoa, porque só a escuta

torna possível a compreensão. Só se compreende o que na obra está em obra,

quando o “outro” que é a obra, o ouvimos ressoar em nós. A voz que escutamos na

leitura não é a voz da obra é a voz do logos.

Não há cânon, não há modelo, não há base possível para se tomar como guia

da obra de arte. Quando Dom Quixote diz: “léalos”, está dizendo que o que identifica

a obra de arte é o que na obra está em obra da verdade e isso se apresenta através

das questões.

Muito do que foi poupado no escrutínio se deve a motivos que extrapolam os

parâmetros da obra de arte: ou porque “su autor es amigo mío”709 ou porque seus

versos soam bem “tal es la suavidad de la voz con que los canta, que encanta”; ou

porque, por serem consideradas raridades, mereciam ser preservadas: “guárdese

como joya preciosa”710 “guárdense como las más ricas prendas de poesía que tiene

España”;711 mesmo que a recomendação fosse de tê-los fechados a sete chaves “en

vuestra casa, mas no los dejéis leer a ninguno”.712 Essa contradição, entretanto, por

mais inocente, deixa claro nenhum grau de consciência do acima apresentado: que

uma obra só é obra se lida, porque só na leitura é possível verificar o que a

essencializa como obra: as questões que permitem que se desvele o que nelas está

em obra da verdade. Dom Quixote assim sinaliza, em vários momentos:

708

Lê-los (os livros de cavalaria) (1, L, p.304) 709

(1, VI, p.41) 710

(Ibidem) 711

Que sejam guardadas como as mais ricas prendas de poesia que tem na Espanha (1, VI, p.42) 712

Em vossa casa; mas não deixai que ninguém os leia (1, VI, p.40)

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Callad, hijas __ les respondió don Quijote __, que yo sé bien lo que me cumple. Llevadme al lecho, que me parece que no estoy muy bueno, y tened por cierto que, ahora sea caballero andante o pastor por andar, no dejaré siempre de acudir a lo que hubiéredes menester, como lo veréis por la obra.713

Nem Cervantes escapa do escrutínio. O fragmento apresenta, além de um

lamento que expressa a dureza biográfica do autor, mas que indicia muito mais seu

drama de escrever principalmente no que se refere a dar conta do que significa

realmente o fenômeno chamado arte: “tiene algo de buena invención; propone algo,

y no concluye nada”714. Assim, o deixam na expectativa de que possa mais adiante,

encontrar a chave, o ponto certo que lhe permita alcançar “la misericordia que ahora

se le niega”.715 Essa menção nos serve para confirmar que o seu próprio fazer

poético, Cervantes o põe em questão. O ponto nevrálgico está exatamente em que

só propõe, mas “no concluye nada”.

Esse “no concluye nada”, ponto nevrálgico aos olhos de escrutínio é, ele

mesmo, no entanto, ponto fundamental no que tange ao específico da obra de arte.

Refere-se à abertura infinita que é a obra. Uma grande obra só “propone”, sem

nunca fechar “y no concluye nada”. Para dar conta desse item, basta remetê-lo à

“obra aberta” de Umberto Eco e ao “labirinto”, com o qual Borges caracteriza a obra

de arte. E, a isso, acrescentar, o círculo hermenêutico, onde a obra nada mais é do

que perguntas que, respondidas, geram novas perguntas em movimento sem fim.

Perfeitamente hermenêutico é o fazer de Cervantes, um fazer que nada mais tem a

fazer do que “proponer”, do que perguntar.

No 3o Périplo está em questão a obra de arte em seus vários aspectos. Um

deles ressalta-se nos limites do fragmento: “Los libros que están impresos con

713

Calem-se, filhas __ respondeu-lhes Dom Quixote __, que eu sei bem o que me cabe. Levem-me ao leito, pois me parece que não estou muito bem, e tenham, por certo, que agora, sendo cavaleiro andante ou pastor só por andar, não deixarei de atender sempre ao que for necessário, como vocês verão pela obra. (2, LXXIII, p.696) 714

Tem boa invenção, propõe alguma coisa e não conclui nada (1, VI, p.42) 715

A misericórdia que agora lhe é negada (Ibidem)

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licencia de los reyes y con aprobación de aquellos a quien se remitieron”.716 Trata-se

do poder instituído e da obra de arte, tendo de submeter-se a esse poder, a ponto de

ser possível jogar com os elementos rei e mecenas, seus representantes __ aqueles

que dão o aval, porque têm o poder de avaliar e julgar; aqueles que detêm o

conhecimento do que é arte dentro dos moldes estabelecidos.

Por outro lado vemos estabelecer-se uma grande contradição: aquelas obras

que passavam pelo rigor de autoridades políticas e da arte, não esqueçamos, foram

as responsáveis pelo enlouquecimento de Dom Quixote, e seus efeitos considerados

tão drásticos, não só por pessoas do senso comum __ a sobrinha e a ama do fidalgo

__ que as classificaram no rol das artimanhas do demônio, como também por

homens, leitores que detinham o poder do conhecimento __ “el cura” e “el barbero”__,

dando-lhes, por isso, o devido destino __ a fogueira. Ao ressaltarmos esse tema, a

intenção foi a de alimentar a questão, acrescentando-lhe ingrediente polêmico.

Entretanto, o que estará aqui em destaque não são as opiniões parciais já

publicadas a respeito da obra e, sim, as questões com as quais ela pode nos

provocar.

Dom Quixote, muito mais que vítima do expurgo dos livros de sua biblioteca,

ficara impedido de sequer transitar por ela. Por medida de precaução, a melhor

solução, tanto para “el barbero” como para “el cura”, foi “que le murasen y tapiasen

el aposento de los libros, porque cuando se levantase no los hallase”.717 Achavam

que, eliminando a causa, estaria eliminada a conseqüência. Só depois veio a

explicação: “un encantador se los había llevado, y el aposento y todo”.718

Deu resultado a estratégia maliciosa dos protetores de Dom Quixote. Deu

certo, é verdade; mas sem ter sido assimilada pelo cavaleiro. Tanto que, além de

716

Os livros que estão impressos com licença e com aprovação daqueles a quem foram dedicados [os mecenas] (1, L, p.304) 717

Que se emparedassem e encobrissem o aposento dos livros, para que quando se levanta não os achasse. (1, VII, p.43) 718

Um encantador havia levado, o aposento e tudo (Ibidem)

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Dom Quixote ter ficado como louco procurando o dito aposento, e de terem ama e

sobrinha atribuído a responsabilidade a um encantador, Dom Quixote o identificou

imediatamente como inimigo que tinha em sua história o firme propósito de impedir o

cumprimento de sua travessia.

Fica patente que Dom Quixote não se conforma com o encantamento da

biblioteca, porque não acata as interferências desse encantador, avisando-lhe que

não será possível “él contradecir ni evitar lo que por el cielo está ordenado”.719 É

graças a esse estar molesto de Dom Quixote que o texto se enriquece, porque

permite e justifica que, a cada oportunidade, seja trazida novamente a questão

relacionada aos livros de cavalaria. No 3o Périplo a questão ganha nova dimensão e

pode ser tratada mais amplamente. Trata-se da mentira e da verdade da obra de

arte. Dom Quixote sustenta sua questão, a partir da aparência de verdade que ele

reconhece nos livros de cavalaria, e essa aparência está bem definida: os livros de

cavalaria parecem conter a verdade “pues nos cuentan el padre, la madre, la patria,

los parientes, la edad, el lugar y las hazañas punto por punto y día por día, que el tal

caballero hizo, o caballeros hicieron”720

Se o referencial retomado constantemente pelas autoridades do escrutínio é a

república – “yo hallo por mi cuenta que son perjudiciales en la república estos que

llaman libros de caballerías”,721 diante dessas evidências, só podemos pensar que a

fala de Quixote é ambígua e que não se atém somente às obras mencionadas. Do

mesmo modo que se restringe a questão da arte, aos limites da Paidéia,

representada na obra pela “república cristiana”, na realidade, o espaço que se abre

é o da discussão num âmbito mais amplo. Seu alcance é muito maior, atinge, acima

de tudo, a obra de arte. É impossível que o querer de Dom Quixote seja um mero 719

Ele contradizer nem evitar o que pelos céus está ordenado (1, VII, p.44) 720

Pois nos contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas detalhe, ponto por ponto e dia a dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (1, L, p.304) 721

E acho por minha conta que são prejudiciais na república estes que chamam livros de cavalaria (1, XLVII, p.293)

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capricho. Ainda que pareça capricho, no avançado desta pesquisa, não há como

acreditar naquilo que parece. Com tanto parecer, Dom Quixote só pode querer

conduzir-nos à reflexão do significado da obra de arte. Nada mais justo; era

Renascimento; ao homem, lhe cabia dar conta do mundo e explicá-lo. Temos em resumo que arte andava, por aqueles tempos, misturada com tudo

o que dissesse respeito ao fazer. Estava na hora de o homem, assumindo seu lugar

no cosmo, dar à arte a devida atenção.

10 APROXIMA-SE A DIS-PUTA FINAL; É TEMPO DE AGIR

Se estamos próximos da dis-puta, é hora de delegar. Dom Quixote escolhe tanto o espaço onde terá lugar a batalha-dis-puta com o cavaleiro desconhecido, como, ao mesmo tempo define quem são os contendores.

Tem sentido nossa hipótese inicial, a partir do fragmento: “porque sabe por sus artes y letras”722

. Estavam corretas as suspeitas. Essa batalha era, sem dúvida, aquela travada entre terra e mundo, entre não-ser e ser, no espaço “entre”, onde tudo pode ser.

Dom Quixote delega, porque, se o sábio protetor do cavaleiro com quem irá lutar pertence ao universo das letras e das artes, também ele precisará contar com protetores do mesmo nível. Para dis-puta desse porte, Dom Quixote quer contar com quem tem familiaridade com a arte.

10.1 A HERMES O QUE É DE HERMES, A PAZ O QUE É DE PAZ

Se desde os primeiros capítulos, até com a própria sombra lutava Dom Quixote, como desperdiçar manadas de ovelhas que poderiam ser exércitos, como evitar moinhos que bem pareciam gigantes? Era preciso exercitar-se. Não o exercício do braço nem da espada. O exercício que precisava exercitar era o do “fingir”. Essa foi a única arma escolhida por unanimidade pelos contendores para a batalha final.

Agora compreendemos; desde seu agir até o seu falar. Sabia a missão que o aguardava no futuro; por isso, desde os primeiros capítulos lutava até com a sombra, esmerando-se, insistindo em seguir com manadas de ovelhas e moinhos, precisava exercitar-se para essa batalha-dis-puta final. Quanta responsabilidade, quanto compromisso!

O tempo é pouco, muito há ainda a fazer. Dom Quixote começa, então, a lançar mão do que já dispõe: por reivindicação de Hermes, a ele entrega a tarefa do “despistar”; em melhores mãos não poderia cair. Pois se até a nós mesmos conseguiu enganar. Nós, que há tanto tempo estamos nessa lida “quixotesca”.

Tanto nos enganou o astuto Hermes que, para driblá-lo, foi preciso inventar a estratégia dos Périplos. Se íamos por um caminho, quando seguros de que nos conduzia para onde as pistas indicavam; onde estavam as pistas? Sumiam, desapareciam sem explicação. Dele, tudo se pode esperar, considerando que é capaz até de amarrar galhos de árvore no rabo de animais para, apagando os rastros, desorientar os viajantes. E não nos enganemos, porque os viajantes somos nós mesmos, leitores que, como loucos, de Périplo em Périplo, pro-curamos o caminho que leva à verdade.

Isso custou muito trabalho, exigindo um “ir e vir” exaustivo e molesto, mas necessário e inevitável. A solução encontrada no “ir e vir” são os três Périplos em que está dividida esta pesquisa.

Na urgência, Dom Quixote também entrega a Hermes o “fingir”, atribuição a qual se dedica o deus, com desvelo, tal era sua maestria. Embora Dom Quixote não tenha delegado a Hermes o quinhão da loucura, pois desse era cioso, o estarem tão juntas loucura e ficção, no final, ele também dela participou. O resultado que se vê é perfeito, conseguem os dois – Hermes e Dom Quixote –, promover a maior festa do fingir na ficção de que já teve notícia o Ocidente.

Com respeito à autoria, ainda que encontrasse em Hermes competência para perfeito desempenho, Dom Quixote não pode deixar de pagar tributo a Octavio Paz. Foi o escritor mexicano que lhe deu o sinal essencial: “a outra voz”.

722

Porque sabe por suas artes e letras (1, VII, p.44)

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Deixemos, aqui registrada, a parte que a Paz cabe. Deixamos este item nas mãos de Octavio Paz, por se tratar das vozes que contam a história de Dom Quixote. A ele, que introduziu a “outra voz”, delegaremos essa mesma atribuição.

O ouvir a “outra voz” que não é nem do “eu” nem do “outro”, é aqui contemplado porque na obra, a outra voz não é só outra, é outras. É claro que, também aqui, foi impossível a Octavio Paz livrar-se da influência de Hermes.

Além da riqueza já conhecida em relação aos que dividem a autoria da obra,

anotamos alguns dados que mais ainda enriquecem o tema: muitas são as

anotações encontradas nas margens __ “Está, [...], aquí en el margen escrito esto:

‘Esta Dulcinea del Toboso [...] que tuvo la mejor mano para salar puercos [...]’”.723

Essas anotações vão do exemplo acima, a outras mais comprometedoras, como no

episódio em “la cueva” de Montesinos, em que a anotação marginal põe em

movimento o jogo verdade e não-verdade, levando-o às últimas conseqüências.

Muitas são as histórias, contos, cartas e biografias que aparecem interpoladas

ao longo da obra, todos contados por diferentes vozes, vozes que não se restringem

a contar como também penetram na psicologia dos contados.

O contar e o escrever aparecem em várias modalidades: há sempre a

necessidade de um tradutor que seja capaz de tirar uma dúvida, de desfazer mal-

entendidos: “y puesto que aunque los conocía no los sabía leer, anduve mirando si

parecía por allí algún morisco aljamiado que los leyese.”724

Some-se a isso o universo de conjecturas que também interfere na

linearidade da narração: “aunque por conjecturas verosímiles, se deja entender que

se llamaba Quejana”.725 Sem contar com a peculiaridade que caracteriza os árabes,

em grande parte, responsáveis pela veiculação da história. Sendo eles, por origem,

mentirosos [é o que diz a obra], novas aberturas põem em jogo novas verdades: “su

autor arábigo, siendo muy propio de los de aquella nación ser mentirosos”726.

723

Está, [...], aqui na margem, escrito isto: “Esta Dulcinea del Toboso [...] que teve a melhor mão para salgar porcos [...]” (1, IX, p.53) 724

Visto que ainda que os conhecesse não os sabia ler, andou olhando se aparecia por ali algum mourisco intérprete que os lesse (1, IX, p.53) 725

Ainda que por conjecturas verossímeis, se deixa entender que se chamava Quejana (1, I, p.18) 726

Seu autor arábico, sendo muito próprio dos daquela nação serem mentirosos (1, IX, p.54)

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Esse dado da autoria é de fundamental importância. É ele que enriquece a

obra com o ingrediente “mentira”, essencial para acionar o jogo de dobraduras. Esse

jogo de mentiras e verdades que se dobram e desdobram é o espaço maior onde a

questão do fingir da ficção se amplia ao limite máximo, num dobrar-se-questão,

desdobrar-se-resposta, infinito. Esse movimento é acionado por Cide Hamete, o

próprio autor que, sendo de nacionalidade árabe, é mentiroso.

Cide Hamete, entretanto, não é mentiroso porque nós, leitores, assim o

julgamos. Ele é mentiroso porque é assim que a obra o avalia. Avalia-o

indiretamente, é verdade, por sua origem e casta, o que nos leva a repetir o

exemplo: “su autor arábigo, siendo muy propio de los de aquella nación ser

mentirosos”. Entretanto, o que está em jogo não é a comprovação de serem ou não

mentirosos os “arábigos”, e sim a questão da arte, questão que a coloca no pedestal

do poder-ser possibilidades.

Essa marca da obra está comprometida com duas questões. Como passa por

muitos autores e tradutores, há grande preocupação com o garantir a verdade. Isso

o fazem da seguinte maneira: mesmo que a história passe de mão em mão, de boca

em boca, incluindo até a tradução, há sempre um alerta: “sin quitarles ni añadirles

nada”727; e, ainda: “Pero esto importa poco a nuestro cuento; basta que en la

narración del no se salga un punto de la verdad”728. Trata-se de um alerta ambíguo

que afirma algo inviável. Como se fosse possível tal restrição.

Com isso, só se acentua a abertura que é a obra de arte. Nela, nada é nem seguro, nem certo; a sombra da dúvida estará sempre presente, permitindo que permaneça o jogo. E, onde há jogo, Hermes não resiste. Portanto, Hermes “verbo”, Hermes “sentido”, Hermes “mensageiro”, “caminho”, “portador da palavra”, “deus das encruzilhadas responsável pelas ambigüidades”, Hermes “responsável pelos

encontros e desencontros, pelas confluências e difluências dos caminhos”,729

acabou não resistindo, e, nesse jogo, acabou também entrando.

727

Sem lhes tirar nem acrescentar nada (1, IX, p.53) 728

Mas isto pouco importa a nosso conto; basta que na narração dele não de saia nada da verdade. (1, I, p.18) 729

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005, p.58

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11 DOM QUIXOTE VIDA, DOM QUIXOTE FICÇÃO: A LOUCURA COMO

CONTRAPONTO

O que tanto aproxima, afinal, vida de ficção?

Desde o 1o Périplo nos instigam situações que teimam em confundir vida com

ficção. A tal ponto que o texto denota essa marca intrigante e ambígua em relação a

Dom Quixote: personagem da realidade da vida ou da ficção? Essa marca

preocupante percorre toda obra e, embora não pareça, é orquestrada por uma

marcação radical de comprovação.

Assim, a verdade é perseguida. Usa-se de todo recurso disponível para deixar

registrado sua comprovação na realidade. Muitos são os exemplos em que essa

necessidade de comprovação se faz sentir de diversos modos. Dentre eles, o mais

freqüente aparece, ou com o próprio substantivo “verdade” ou com o termo “razão” e

seus derivados: “Por ser todo lo que he contado tan averiguada verdad”.730 Vão, no

entanto, até os esquemas mais sofisticados, quando chegam a exigir testemunhas e

registros:

[...] una petición, de que a su derecho convenía de que don Álvaro Tarfe, aquel caballero que allí estaba presente, declarase ante su merced como no conocía a don Quijote de la Mancha, que asimismo estaba allí presente, y que no era aquél que andaba impreso en una historia intitulada: Segunda parte de don Quijote de la Mancha, compuesta por un tal de Avellaneda.731

Nesse intenso questionar a realidade em sua verdade, chega-se ao ponto de

fotografar para garantir os detalhes necessários à sua comprovação. Uma luta que é

interrompida faz cessar também a narrativa, para ser retomada no capítulo seguinte:

730

Por ser tudo o que contei tão averiguada verdade (1, XII, p.66) 731

Uma petição, de que a seu direito convinha que Dom Álvaro Tarfe, aquele cavaleiro que ali estava presente, declara-se diante de sua mercê como não conhecia Dom Quixote de La Mancha, que também estava presente, e que não era aquele que andava impresso na história intitulada: Segunda parte de Dom Quixote de La Mancha, composta por um tal de Avellaneda. (2, LXXII, p.692)

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“que en este punto y término deja pendiente el autor desta historia esta batalla,

disculpándose que no halló más escrito destas hazañas de don Quijote de las que

deja referidas”.732

O narrador, para não fugir ”un punto de la verdad”, como recomendara Dom

Quixote, desde o início da história, para que não se perdesse um ponto sequer do

como a luta acontecera, põe-se a procurar um documento que lhe desse a garantia

da seqüência. Acaba encontrando uma pintura da cena onde a luta tinha cessado:

“Estaba en el primero cartapacio, pintada muy al natural la batalla de don Quijote

con el vizcaíno, puestos en la mesma postura que la historia cuenta”.733

Essa necessidade de comprovar mostra como a verdade está comprometida

com a realidade. A obra acaba assumindo ares de texto histórico, tal é a

necessidade de expressá-la como realidade, e esta, como certeza inquestionável:

[...] debiendo ser [...] puntuales, verdaderos y no nada apasionados, y que ni el interés ni el miedo, el rancor, ni la afición, no les hagan torcer del camino de la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones, testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir”.734

Em outra passagem, o narrador levanta a possibilidade das mentiras do

escritor “arábigo” aparecerem na obra, não por excesso, mas por falta. Tal é sua

performance de mentiroso, que o simples omitir, por faltar com a verdade, pode

constituir uma mentira irreparável. Alega-se que essa falta, esse deixar de dizer, se

deve a que, sendo inimigos dos espanhóis, os árabes preferem esconder: “antes se

puede entender haber quedado falto en ella que demasiado”.735

732

Que neste ponto e termo deixa pendente o autor desta história esta batalha, desculpando-se que não achou mais escrito destas façanhas de Dom Quixote do que as que deixa referidas. (1, VIII, p.51) 733

Estava, no primeiro calhamaço, pintada muito ao natural, a batalha de Dom Quixote com o biscainho, postos na mesma postura que a história conta (1, IX, p.53) 734

Devendo ser [...] pontuais, verdadeiros e nada apaixonados, e que nem o interesse, nem o medo, o rancor e a simpatia, não os façam torcer o caminho da verdade, cuja mãe é a história, rival do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e advertência do porvir (1, IX, p.54) 735

Antes se pode entender haver ficado nela lacuna que excesso (Ibidem)

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Nesse parecer, há índices de significativa comparação entre o modo de ser

do povo árabe e o do povo espanhol, no que se refere ao contar. Os árabes, ao

contrário de fabricarem verdades, com a indústria sofisticada do pensamento,

preferem a omissão, preferem esconder, preferem o vazio do silêncio: “parece que

de industria las pasa en silencio”.736

Isso dá ao jogo mentira-verdade, iniciado em páginas anteriores, por aqueles que têm sangue árabe, dimensão bem mais ampla, no que se refere à caracterização da obra de arte. O estarem comprometidas verdade-realidade, esse é um conflito instalado na obra desde seu início, conflito que só pôde ser minimizado no nível do suportável e do tornar possível uma obra desse calibre pela loucura.

De qualquer modo, vê-se que loucura está intimamente ligada à verdade e à mentira. Parece que na realidade do mundo civil, louco é aquele que não se ajusta à verdade e, assim considerando verdade aquilo que é real, louco é aquele que não se enquadra dentro do que se considera realidade. Louco é assim, aquele que não é nem realidade nem verdade. Conseqüentemente, por dedução lógica, louco será, então, mentira.

Esse é o estigma mais contundente e assustador que carrega a condição de louco. O que diz o louco não é digno de confiança, isso porque, o que diz não se restringe aos limites do certo, do seguro e do comprovável. Parece haver aí uma contradição: quem diz mais, quem diz fora do limite, diz o “ex”; por isso deveria ser, o tradicionalmente classificado louco, aquele que mais poderia aproximar-se da verdade; e parece ser exatamente aí que sua voz representa ameaça: porque mais se aproxima da verdade, o louco se torna ameaçador; sua verdade constrange porque escapa ao controle do limite do real comprovável.

Entretanto, só ultrapassando o já estabelecido, só indo além do “ex-perado”, é possível abrir-se ao ser, permitindo que o sentido redimensione o ser entificado. Se para isso é preciso ultrapassar a linha da loucura, se para isso é preciso pisar o terreno movediço do “entre-mentira-verdade”, Dom Quixote paga o preço. Risco por risco, Dom Quixote opta por correr risco e abre mão do único tranqüilizante que poderia permitir-lhe o sono sem riscos, sem o risco das surpresas espontâneas do ser.

Poucas vezes a dupla mentira-verdade foi substituída por verdade e não-verdade. A partir de agora, deixaremos definido que, apesar de ser essa a marca registrada que percorre toda obra: o jogo mentira-verdade é um desencadeador da questão da verdade da obra de arte. Segundo Heidegger, a verdade da obra não cabe dentro do estreito limite excludente da metafísica, limites onde só há espaço para oposições radicais. Nesse caso, o jogo mentira-verdade, longe de poder ser substituído por verdade e não-verdade, teria de contentar-se com verdadeiro X falso.

Nesse dilema se encontra o mundo de Dom Quixote, nesse dilema se

encontra Dom Quixote. Mesmo sabendo dos riscos, mesmo sabendo que o

manicômio pode reservar-lhe um triste fim, porque ele também sabe aquilo que, por

medo, ninguém quer enfrentar, mesmo assim, Dom Quixote de-cide e enfrenta o

desconforto constrangedor do “ex”, enfrenta a instabilidade do passageiro e mutante

que não se deixa jamais imobilizar e o imobiliza.

Sofreriam esse mesmo dilema todos os demais loucos que preenchiam o

território espanhol do século XVI? Talvez não, porque, de todos, era Dom Quixote o

único a ter consciência de sua condição. Nesse caso, aumenta-se a contradição:

como é possível um louco consciente de que é louco?

Muitos não sabem: nem todos nascem hermeneutas. Muitos sabem e, pelo

medo do risco, não querem saber, mas Dom Quixote sabe. É possível que tema o 736

Parece que, de propósito, as passa em silêncio (1, IX, p.54)

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visco, mas ao risco se sobrepõe; não há outra saída: se quer ser, só sendo “entre-

ser”, não há verdade mais humana.

Quem pode desejar ser mentira? Não é gratuita, portanto, a “martelação” de

Dom Quixote nessa palavra temida e amaldiçoada por todo aquele que do molde

perfilado pela loucura se aproxime: a “mentira”. É por isso que Dom Quixote precisa

estar, a todo o momento, com ela lidando, mostrando, com isso, que o ameaça o

“triz”; parecendo equilibrar-se na “corda-bamba”, a ponto de cair irremediavelmente

no poço escuro do falso.

Por que procurar caminhos tão tortuosos? Para ingressar no mundo da ficção

é preciso ficar louco?

Ao justificar-se “loco por no poder menos”, Dom Quixote parece reafirmar

nossa suspeita. O que pretende, na verdade, é aproximar vida vivida e vida ficcional,

torná-las muito próximas, tão próximas que os liames se confundam. Esta parece ser

a missão primordial de Dom Quixote, uma missão que ele garante só ser possível

pela via da loucura.

1.1.1.3.1.1.1.1.1 12 DOM QUIXOTE, UMA LOUCURA “EXPERIENCIAL”

Tomou-se a liberdade deste título, aparentemente estranho, com a licença de

Bachelard que introduziu expressão semelhante em sua pesquisa sobre a

Imaginação.

Sem a loucura, Dom Quixote não poderia ter aberto o espaço necessário para

a eclosão do ser. Como conseguiu essa façanha? “Fingindo” é a resposta. Só no

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fingir, a verdade pode manifestar-se. Isso porque o fingir funciona no mesmo

esquema da aletheia: esconde-mostra-esconde, só assim é poder-ser, só assim é

possibilidade. É no esconder que se preserva o vigor necessário ao ser; necessário

a novas manifestações, necessário às epifanias. É o mistério que só se desvela,

mas jamais se revela.

Vejamos a loucura. Como esteve ela a serviço da abertura ao ser na vida de

Dom Quixote? É ela que dá entrada ao “loco por no poder menos”. Foi ela que737

tornou possível a um maduro fidalgo-cavaleiro criar um mundo totalmente atípico,

deslocado no tempo, convivendo paralelamente com o seu mundo real. Foi a loucura

que permitiu que Dom Quixote àquela realidade se apegasse, defendendo com

sangue e suor as verdades do edifício medieval, com a intenção de perpetuá-las.

Verdades já ameaçadas, mas de fundamental importância para que o fidalgo-

cavaleiro pudesse delas dispor, no caso de essas verdades o surpreenderem e

mostrarem por si mesmas que não eram tão verdade como pareciam.

737

Aproveitamos o espaço que nos está sendo concedido, para um comentário interessante: o pronome “quem” dá à loucura atribuições humanas. Isso se deve ao gosto de deixar registrada a contrapartida erasmista ou erasmiana ao ritual __ prova contundente da soberania da razão, ou melhor, com todo o respeito da deusa Razão, título que Sergio Paulo Rouanet dá ao artigo em que narra o ritual substitutivo, consagrando a vitória da razão sobre o cristianismo. Aconteceu em 10 de novembro de 1793, na Catedral de Notre-Dame: “Onde ficava o altar-mor, fora construída uma montanha de madeira pintada. Sobre o rochedo havia um templo da Razão, iluminado pelo archote da Liberdade. Em torno do templo, os bustos de Voltaire, Rousseau e Franklin. Os membros da Comuna, escoltados por um coro de meninas vestidas de branco e coroadas com folhas de carvalho, tinham se instalado na base da montanha. A porta do templo se abriu, dando passagem a uma figura feminina, com um vestido branco e um manto azul. Era a deusa Razão, representada por uma atriz, Thérèse-Angélique Aubry. Ela se sentou num banco de verdura, enquanto o coro cantava o ‘Hino à Liberdade’, com música de Gossec e letra de Joseph-Marie Chénier: ‘Desce, ó Liberdade, filha da Natureza; / O povo reconquistou seu poder imortal; / Sobre os pomposos destroços da antiga impostura / Suas mãos reergueram teu altar’”. (ROUANET, Sergio Paulo. Crise da razão. Tradução de Adauto de Novaes. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p.287). Muitos anos antes, entretanto, Erasmo já concedera igual lugar de destaque à Senhora Loucura que ascende em sua obra à categoria de personagem. Em Elogio da loucura, ela se reconhece a mais apropriada para falar de si mesma: “Não tens quem te elogie? Elogia-te a ti mesmo: [...] de fato, que mais poderia convir à loucura do que ser arauto do próprio mérito e fazer ecoar por toda parte os seus próprios louvores?” (ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. São Paulo: Martin Claret, 2002, p.16.). Se pensamos que quis essa Senhora receber alguma vez as mesmas honrarias que recebera a deusa Razão, estamos enganados. Ela já o dispensara dizendo: “Até agora, é voz geral, ninguém pensou em prestar à Loucura honras divinas; ninguém lhe consagrou um templo; ninguém a nutriu com vapores das vítimas. Para falar-vos com franqueza, e creio que já o disse, tamanha ingratidão me causa grande surpresa; mas pouco me importa isso e, de acordo com a minha natural facilidade, não levo a coisa a mal. Eu cheiraria à sabedoria e seria indigna de ser Loucura se reclamasse essas honras divinas. Que é que se me ofereceria sobre os altares? Um pouco de incenso, um pouco de farinha, um bode, um porco. Poderia eu permitir que se degolassem esses inocentes animais para deleitar-me o olfato? Oh! que ridículas bagatelas! Tenho um culto, sim, um culto que abrange o mundo inteiro e que todos os mortais me prestam, e os próprios teólogos o consolidam pelo exemplo. Não tenho a bárbara e cruel ambição de Diana, que vê com prazer as vítimas humanas, mas creio, ao contrário, ser religiosamente servida e venerada quando me vejo esculpida em cada coração e representada em cada coração e representada pelos costumes e conduta”. Além de revelar o alcance na linha do tempo do poder da razão, além de ser este um espaço propício para fazer justiça e reverenciar aquela que, até então, não recebera nenhuma homenagem, vemos que há um confronto entre as dimensões de razão e loucura.

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Sancho, por mi vida, porque te desengañes y veas ser verdad lo que te digo: sube en tu asno y síguelos bonitamente, y verás cómo, en alejándose de aquí algún poco, se vuelven en su ser primero, y, dejando de ser carneros, son hombres hechos y derechos, como yo te los pinté primero...738

Não pode ser gratuito que Dom Quixote, designado arauto da verdade, tão

insistentemente repita a pergunta-dúvida que percorre toda obra: “¿habían de ser

mentira?”739

Loucura-mentira-verdade e o dilema de sua comprovação, isso só vai

acontecer porque tudo depende de como uma experiência da vida vivida é mais que

experiência, quando ela é experienciação. Mas o experienciar só acontece quando o

homem, em primeira instância, se conscientiza de seu lugar de “entre-ser”

cumprindo sua parte no acordo: consciente de ser poder-ser, “deixar-ser” o mistério

de todas as coisas. Só na dinâmica desse acordo, uma simples experiência da vida

vivida, uma mera experiência do cotidiano, como aquela em que Heráclito está em

seu prosaico forno à lenha assando pães ganha sentido e ganha a dimensão de

experienciação.

Nesse imenso ginásio de Hermes, seria possível dar mais folga à loucura.

Dom Quixote reconhece isso, quando distribui tarefas e delega responsabilidades.

Estaria em boas mãos, se Hermes a conduzisse. Entretanto, Dom Quixote

reconhece na loucura a chancela que é sua. Isso parece que lhe dá, sobre ela,

alguma ascensão. Por isso, acredita ser possível cumprir todos os compromissos

que à loucura digam respeito. Sabe não se tratar de qualquer loucura: só ele a

experimentara, só ele conhecia seus muitos perfis, só ele, atendendo ao chamado

do ser, não economizou em investimentos para vivê-la como obra, ou melhor, para,

por ser louco, ser obra. Tudo isso, a ponto de um só “loco por no poder menos”,

738

Sancho, por minha vida, para que te desiludas e vejas ser verdade o que te digo: monta no teu asno e siga-os bonitamente, e verás como se afastando daqui, um pouquinho, volta a ser primeiro e, deixando de ser carneiros, são homens e direitos, como eu os pintei para ti antes [...] (1, XVIII, p.96) 739

Haviam de ser mentira? (1, L, p.304)

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desdobrar-se em três. Desdobrou-se louco para tornar real o mundo da cavalaria

andante. Desdobrou-se louco para fazer frente à razão que avançava a passos

largos, formatando, nessa trajetória, a Essência da Técnica. Foi quando tudo ao

redor era só paradoxo desconcertante, fazendo da linguagem, também, um mero

ente aprisionado em conceitos. Agora, mais uma vez, Dom Quixote é, mais do que

nunca, sem nenhuma possibilidade de alternativa, obrigado a desdobrar-se

novamente louco. Na verdade, nada disso experimentou Dom Quixote, pois tudo o

que de louco viveu, tudo o que de louco foi, é o próprio “experienciar”.

O “mais do que nunca” se deve a ser aqui, no 3o Périplo, que a loucura se

redimensiona. Aqui, ela mostra ser de outra natureza. Não é a loucura estabelecida

e compartilhada pelos muitos loucos de que está a Espanha entupida. Não é a

loucura do louco de Sevilha que é “Júpiter”, nem a de seu companheiro de

manicômio, “Netuno”: “No tenga vuestra merced pena, señor mío, ni haga caso de lo

que este loco ha dicho; que si él es Júpiter y no quisiere llover, yo, que soy Neptuno,

el padre y el dios de las aguas, lloveré todas las veces que se me antojare y fuere

menester”.740 Não é a loucura de Grisóstomo, nem de Anselmo, nem a de Basílio

que querem usar até o amor como álibi aparente para o exercício do poder

apoderar-se do outro, seja pela ingênua malícia de ser simplesmente pastor, seja

pelo estratagema técnico, tanto de artefatos como da própria linguagem, seja pelo

querer mais conhecer para mais dominar, usando o poder do pensamento que

submete o objeto ao esgotamento até murchá-lo como murcharam não só Camila,

também Lotario e até Anselmo murcharam até a morte. Todos “sin poder acabar la

740

Não tenha Vossa Mercê, pena, senhor meu, nem faça caso do que este louco disse, pois se ele é Júpiter e não quiser fazer chover, eu que sou Netuno, o pai e o deus das águas e choverei todas as vezes que me der na telha e que for necessário (2, I, p.331)

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razón, se le[s] acabó la vida [...] y acabó en breves días la vida”741. A vida “se le[s]

acabó” porque tinham total confiança no poder da razão:

Así que, es razón concluyente que el intentar las cosas de las cuales antes nos pueda suceder daño que provecho es de juicios sin discurso y temerarios, y más cuando quieren intentar aquellas a que no son forzados ni compelidos, y que de muy lejos traen descubierto que el intentarlas es manifiesta locura.742

Porque tinham total confiança na razão foram acometidos por “manifiesta

locura”.

Dom Quixote não é nenhum dos loucos “galeotes” que não resistem ao objeto

externo, querendo com eles locupletar-se, nem é a loucura de “el cautivo” eterno

prisioneiro que, mesmo que, no espaço por onde transitava, lhe tivesse passado

diante dos olhos, o único dentre todos os igualmente prisioneiros, um somente livre –

um poeta:

Pedro de Aguilar [...] tenía particular gracia en lo que llaman poesía [...] al cabo de dos años que estuvo en Constantinopla se huyó [...] Pues lo fue – respondió el caballero -, porque ese don Pedro es mi hermano, y está ahora en nuestro lugar, bueno y rico, casado y con tres hijos.743

Mesmo assim, o cativo não foi capaz de fazer a devida leitura. Sequer sabia

dizer bem os poemas: “Dígalos, pues, vuestra merced -dijo el cautivo-, que los sabrá

decir mejor que yo”.744 Esses eram os versos que Pedro Aguilar compôs, cantando o

heroísmo dos soldados que jamais conseguiam a glória pelo vigor de seus braços,

741

Sem poder acabar sua razão, acabou-se sua vida [...] e acabou em breves dias (1, XXXVI, p.217) 742

Assim que, é razão geral que, tentar as coisas das quais é mais provável perdas que ganhos, é mais ajuizado não fazer discursos temerários, quanto mais quando se quer tentar coisas a que não se é forçado ou compelido, que de longe se perceba que o simples tentá-las é oura loucura. (1, XXXIII, p.193) 743

Pedro de Aguilar [...] tinha particular graça no que chamam poesia [...] ao fim de dois anos que esteve em Constantinopla fugiu [...] Por foi isso – respondeu o cavaleiro –, porque esse Dom Pedro é meu irmão, e está agora em nosso lugar, bom e rico, casado e com três filhos (1, XXXIX, p.238) 744

Diga-os, pois, vossa mercê – disse o cativo, – que saberá dizê-los melhor que eu (Ibidem)

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porque eram todos consumidos pela guerra, todos morriam sem que chegassem a

ser homens criadores:

[...] primero que el valor faltó la vida, / en los cansados brazos, que, muriendo / [...] por el suelo echados, / las almas santas de tres mil soldados / subieron vivas a mejor morada / siendo primero, en vano, ejercitada / la fuerza de sus brazos esforzados, / hasta que, al fin, de pocos y cansados, / dieron la vida al filo de la espada745

Todos, nesse capítulo, são prisioneiros, cada um a seu modo. Somente o

corpo morre, porque as almas sobem vivas, indicando que todos foram consumidos

sem que experimentassem o seu próprio vigor de “poder-ser”. Todos, mesmo os que

não morriam na guerra (“la armada volvió a Constantinopla triunfante y vencedora, y:

de allí a pocos meses murió mi amo”)746, acabam dando a vida, sinal de que não

viveram vida experienciada e sim vida vivida por uma determinada causa

“imprópria”, sinal de que não tiveram uma “boa morte”.

Embora a aparição do poeta se limite ao espaço “del cautivo”, ele é imagem-

questão que se estende a todos os demais prisioneiros. Mas não o viu “el cautivo”,

não o viu ninguém. Ninguém enxergou o poeta que ali estava à disposição, livre para

ser visto, livre para ser escutado. Ninguém nada lhe perguntou. Recitaram e ouviram

seus versos sem que os tenha mobilizado nenhuma questão. Imagem de mesma

sintonia já aparecera. O pastor já aparecera a Cardenio e a Grisóstomo. Eles, no

entanto, também não fizeram a leitura devida. Tiveram, os dois, o pastor ao seu

alcance: Cardenio quis dele arrancar aos bocados, não aceitando a forma sutil e

delicada como fazia sua doação, o pastor. Grisóstomo, sem compreender que o ser

pastor era uma prerrogativa da sua espécie, um privilégio de sua condição humana,

sem compreender sobre o ser pastor tão disponível, disponível a um passo de si 745

Antes que a coragem faltou a vida, / nos cansados braços, que, morrendo / [...] pelo chão jogados, / as almas santas de três mil soldados / subiram vivas a melhor morada / sendo primeiro, em vão, exercitada / a força de seus braços diligentes, / até, enfim, por ser poucos e cansados, / deram a vida ao fio da espada (1, XL, p.239) 746

A frota voltou a Constantinopla triunfante e vencedora, e daí a poucos meses morreu meu amo (1, XL, p.240)

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para si, ali mesmo no “entre”, Grisóstomo sobre ele se lança com a intenção de se

apossar, com vistas a subjugá-lo nessa apropriação. Resumindo: Grisóstomo vai

buscar, fora, o que dentro sempre fora seu, forja uma situação falsa, fabrica um

pastor-falso, um pastor-mentira, quando um pastor-verdade ali sempre esteve como

pura possibilidade de doação.

Também não era Dom Quixote a confusa personalidade racional de Cardenio,

nem a de todos aqueles que dele mesmo (Dom Quixote) se apropriam. Tanto os

que, na terceira parte, leitores, conhecedores da sua história, decidem imitá-lo em

sua loucura acreditando o estarem auxiliando uns; outros, pela necessidade

maliciosa de submetê-lo ao ridículo. Outros ainda, pela simples gana de se

apropriarem do “outro”, como é o caso do personagem “falso” que se apoderou de

seu lugar na ficção, por estratégia de seu plagiador, como o próprio Avellaneda que

também se apropria da obra de Cervantes.

Dom Quixote, depois de atento olhar ao redor, percebe que sua loucura é

diferente. Percebe o quanto ela lhe franqueou os caminhos do experienciar. Só a

loucura permite que Dom Quixote desça a “la cueva”, coisa que os demais, divididos

em dois grupos __ um representado por Sancho, outro representado por “el primo” __,

não realizam. Graças à loucura, pôde Dom Quixote experienciar tudo o que

ultrapassa os limites do ordinário já conhecido, que está visível e disponível aos

olhos de todos sobre a terra. Só a loucura permite que Dom Quixote penetre em

“Sierra Morena” e descubra o sem-sentido de ali estar. Se a escolha daquela floresta

fora por semelhança com a floresta emblemática por onde se embrenhavam os

cavaleiros para se desafogarem de seus males, principalmente dos males de amor,

isso seria o suficiente para desmontar o projeto de Dom Quixote. Ele não se dirigira

para Sierra Morena por nenhum desses motivos.

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Entretanto, porque era louco, não deixou de aproveitar aquela oportunidade

“que le venía de molde”, estratégia que sempre adotara para reviver as aventuras da

cavalaria. Aproveita para eliminar aquele item constante do manual das novelas de

cavalaria – o isolamento para reflexão e cura dos males, e se hiberna em “Sierra

Morena”. Ali estando, quer repetir os ritos realizados por “Roldán el furioso”747 e/ou

“Amadís de Gaula” que foram ou traídos ou desdenhados de suas amadas, tirando a

roupa e mantendo-se nus como penitência ou dando açoites nas árvores para livrar-

se do mal. Entretanto, logo se dá conta do impróprio daquela situação e assim se

coloca:

¿para qué quiero yo tomar trabajo agora de desnudarme del todo, ni dar pesadumbre a estos árboles, que no me han hecho mal alguno? Ni tengo para qué enturbiar el agua clara destos arroyos, los cuales me han de dar de beber cuando tenga gana.748

Do mesmo modo, reconhece sequer restar-lhe a possibilidade de seguir

imitando Amadis de Gaula naquilo que soubera ser um de seus hábitos finais, rezar,

“lo más que el hizo fue rezar y encomendarse a Dios.” Dom Quixote lamenta, mas

pergunta a si mesmo: “¿qué haré de rosario, que no le tengo?”749. Sua conclusão

final é simples e irônica: não pode imitar Amadis porque não tem rosário.

Este exemplo é muito contundente das benesses da loucura. É a loucura

como abertura para a própria recuperação, a recuperação do próprio de quem era

somente impróprio.

Só a loucura faz Dom Quixote sair dos parcos limites do viver para alcançar o

patamar mais alto, digno e nobre. Tudo isso só foi possível porque sua loucura lhe

permitiu andar solto e livre pelos caminhos de Hermes, para livre poder encontrar 747

Roldão, o furioso (1, XXVI, p.145) 748

Para que quero eu tomar trabalho agora de despir-me de todo, nem dar desgosto a estas árvores, que não me fizeram nenhum mal? Nem tenho que sujar a água clara destes arroios, que me dão de beber quando tenho vontade (Ibidem) 749

O que mais fez foi rezar e encomendar-se a Deus [Dom Quixote (...) mesmo] mesmo o que farei de rosário, que não tenho (Ibidem)

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todos os que estão pelos caminhos perdidos e desorientados, mas que, sem a

coragem de abrirem mão da segura e certeira razão, não se submetem às

estratégias lúdicas de Hermes. Imaginem, amarrar galhos no rabo dos animais, para

desfazer as trilhas e colocar os viajantes tontos à pro-cura. Esse, sim, sabe brincar

de “esconde-esconde”, de “entrou por uma porta saiu pela outra”, sabe jogar o jogo

irônico da vida, jogo que só amplia e plenifica. Ao contrário da razão que desorienta,

desestabiliza, mas não move. Hermes é puro dinamismo.

Dom Quixote percebe que a loucura disseminada no mundo tem uma

peculiaridade, todas revelam a necessidade de preenchimento do próprio, mas um

preenchimento com o “outro”, com as realizações do “outro”. Lembra-se de que, por

um triz, não chegara a cair na esparrela do “outro”. Foi quase, o cavaleiro foi só uma

escolha dentre muitas, com a qual foi-lhe possível, no diálogo com o mundo, entrar

em diálogo consigo mesmo, “só a linguagem é a própria manifestação do Da-sein

como Entre-ser”.750

Dom Quixote jogou-se na vida ocupando seu lugar de direito, o lugar de

“entre-ser”. E se deixou experienciar, abandonando gradualmente a rigidez dos

conceitos e teorias, pelos quais tanto lutara para fixar e eternizar no mundo as suas

verdades. Bem que tentaram apagar-lhe o daimon, mas não conseguiram. Dom

Quixote consegue reverter o quadro, liberando o demônio, depositório do que em

cada um é original e originário. Liberou o demônio, libertou-se do estigma cristão

Não conseguiram apagar-lhe o daimon e a prova está em sua brilhante façanha

heróica.

Foi assim que, mesmo aos cinqüenta anos, Dom Quixote resistiu. Entrou no

processo de diálogo, onde o esvaziamento da renúncia acabou sendo inevitável,

deixando espaço vazio para que o nada virasse assédio, virasse apelo do ser. Só à

750

CASTRO, Manuel Antonio de. A arte em questão: as questões da arte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.

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medida que ia sendo Dom Quixote ia adquirindo corpo porque o oco ia consumando-

se pelo agir favorecido pela dis-puta céu-terra, atendendo sempre a um chamado do

ser. E, nesse atendimento, Dom Quixote descobre que tem daimon, percebe que

tem impulso para a vida, percebe ser o daimon impulso tal para a vida, capaz de

driblar até a morte.

Mas do que estamos falando, de deuses ou de demônios? Esse que participa

da morte como tensão é Eros. É aí onde está o problema que Sócrates tenta

explicar. Em nota de rodapé de nossa edição está explicitada a não definição de

daimon. Se se trata de “consciência moral”, algum “gênio familiar”, nesse caso

podem ser “pressentimentos interiores inspirados pela divindade e os demônios da

mitologia grega”; se são “gêneros intermediários entre o homem e a divindade” ou

sugestões do subconsciente presente nos místicos, uma presença nos estados

profundos de sua alma, também um “misterioso sopro” que só aparece como

manifestação, aparecendo também na poesia, se deus ou demônio, não se sabe, só

se sabe ser voz que vem das entranhas, um alerta, talvez, “manifestou-se o sinal

costumeiro [...] pareceu-me ouvir uma voz que vinha cá de dentro”751, o que obriga o

personagem a ficar atento para não se deixar levar pelas profecias que não sejam

divinas. Parece realmente um estágio intermediário. Ter daimon significaria ter a

porta aberta para os deuses, uma porta que só pode ser franqueada aos deuses.

Voltemos a Eros: Eros é também um deus. Se é assim, tem franquia total do

daimon, foi dessa mesma maneira que Sócrates o percebeu. Embora o amor-paixão

tenha o estigma de louco e perigoso, também essa loucura é santa, porque, como

diz Sócrates, “obtemos bens de uma loucura inspirada pelos deuses”.752 São os

“delírios” que inspiram os homens nas profecias, profecias que protegem o homem

751

PLATÃO. Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 75-76 752

PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p. 79-80

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das expiações, que o induzem aos ritos misteriosos de purificação para livrá-lo de

todos os males.

Dentre esses delírios-inspiração está o inspirado pelas Musas. Aquele que se

aproxima “dos umbrais da arte poética” é, inevitavelmente, provocado pelas Musas.

Embora o exemplo do discurso de Dom Quixote dirigido a um pai sobre os talentos

de seu filho seja ambíguo, parece que o fragmento seguinte, no que se refere a não

bastar somente o conhecimento sobre arte, corrobora o que diremos sobre a

intervenção das Musas: “También digo que el natural poeta que se ayudare del arte

será mucho mejor y se aventajará al poeta que sólo por saber el arte quisiere

serlo”.753 Comparado com o que nos diz Sócrates sobre o ser fundamental a

provocação das Musas, que aquele que se aproximar da arte poética, “julgando que

apenas pelo intelecto será bom poeta, sê-lo-á imperfeito, pois que a obra poética

inteligente empalidece perante aquela nascida do delírio”,754 vê-se o ineficaz do

poético orientado, conduzido por normas e teorias apriorísticas e pelo intelecto, sem

o delírio, sem a possessão das Musas.

Precisar exatamente o momento em que isso se dá em Dom Quixote é tarefa

dificílima. Entretanto, pelos caminhos da leitura, alguns momentos nos pareceram

significativamente fortes. Um deles é o “¡léalos!, resposta brusca que dá Dom

Quixote a “el canónigo”. Tão brusca que marca definitivamente a mudança de rumo

que tinha na pergunta - “¿habían de ser mentira?”,755 seu ponto crucial.

Ao mesmo tempo que parece sair das entranhas de Dom Quixote uma voz

que exorciza um demônio, parece também que a voz é o próprio demônio alertando-

o, não permitindo que se cometa nenhuma impiedade contra os deuses, “uma voz

que vinha cá de dentro e que não me permitia ir embora antes de oferecer aos 753

Também digo que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que somente por saber a arte quiser ser poeta (1, XVI, p.403) 754

PLATÃO, op.cit., p.81 755

Haviam de ser mentira? (1, L, p.304)

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deuses uma expiação, como se houvesse cometido uma impiedade”.756 Nesse caso,

estaria Dom Quixote sendo o emissário desse alerta, através de seu daimon? É bem

possível, já que o rompante é dirigido exata e diretamente a “el canónigo”. Este,

além de fazer o papel do duplo de Dom Quixote-filósofo __ aquele a quem coube

especificamente tratar das questões da obra de arte, tomando como referência as

novelas de cavalaria, é, também, o “cânon” que está embutido em seu próprio nome.

A cena parece que reúne, ao limite máximo um esgotamento, uma saturação de

tantos equívocos que se estão cometendo contra a arte, um mar de golpes que se

desferem sobre a arte que, de tão visíveis, já ultrapassam todos os limites, exigindo

uma expiação, “uma voz que vinha cá de dentro e que não me permitia ir embora

antes de oferecer aos deuses uma expiação, como se eu houvesse cometido

alguma impiedade”.757

É bem possível que o “léalos” ganhe sentido como uma grande intervenção

daimoníaca, reivindicando a prevalência dos deuses no fazer poético. Isso é

possível.

Mas voltemos à loucura “experiencial”. Se há ou não deuses e demônios, só o

saberemos num próximo item, quando, provocado por alguma força, Dom Quixote

fecha os olhos e se lança no lago escuro e misterioso. Por enquanto, fiquemos na

loucura “experiencial”. Ela também esteve, partícipe ferrenha, presente na tarefa de

reservar a Dom Quixote grandes possibilidades e a nós, grandes revelações.

Com a loucura experimental, foi possível a Dom Quixote driblar até a morte.

Basta que se conheça o “buen morir”, basta que se descubra, da morte, sua

acepção de “buena muerte”. Com a loucura, até a morte ganha mais espaço, sai do

estreito limite de morte-finalização, se desdobra em perecer até a “boa morte”.

756

PLATÃO, Fedro. Trad. Alex Marins. São Paulo, Martin Claret, 2005, p.76 757

Ibidem.

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Aquela bem-vinda e até desejada, pois revela a gratuidade do ser. E Dom Quixote

pôde ter acesso a todas as mortes. Basta que se descubra que, mesmo ausente, fria

e sombria, é a terra quem guarda todo o vigor no velamento, enquanto aguarda que

o céu venha com ela dialogar, aquecendo o frio, iluminando o sombrio, promovendo

a unidade recolhida no desvelar. Desse diálogo, no entanto, a razão não participa.

Isso parece instigante. Se não participa a razão do diálogo céu-terra, onde fica a

luz? Se substituirmos os níveis terra – céu por divindades, teremos “Lúcifer” como a

luz do céu e “Satanás”, a escuridão da terra.

Por mais estranho o caminho percorrido por Dom Quixote, intui-se quem o

guiou em sua travessia, quem possibilitou que se constituísse, à medida que, em

direção a si mesmo, avançava: foi o logos, a sua voz e luz interior. Todo o estranho

em Dom Quixote, tudo o que ultrapassasse os limites da racionalidade, apesar de ter

sido assim interpretado, na verdade não cabia no espaço da loucura, mas em

espaço maior, espaço que parece estarmos agora identificando com o espaço da

lucidez e da sabedoria. Assim, Dom Quixote, no parecer o mais louco, foi o mais

lúcido cavaleiro que o Ocidente já produziu. Por ter-se entregue a um modo de viver

especial, um modo em que a vida não é simplesmente vivida e sim experienciada.

É por isso que ele entra na vida e essa vida é, ao mesmo tempo, ficção, para

mostrar que o verdadeiro viver é o viver sendo arte, o viver a arte.

13 DOM QUIXOTE FALA, CONTA E SE CONTA POETICAMENTE

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“¿Habían de ser mentira?”.758 Persegue, Dom Quixote, a mesma pergunta. Se

a obra é mentira ou verdade, não há nada, nenhum modelo, nenhuma “escola” que

possa responder. Essa resposta só a leitura pode dar. Só entregando-se à aventura

do lugar de entre-ser, pode-se ficar à escuta da “outra voz”. É preciso entregar-se,

manter-se no “entre”, único espaço onde, por uma bela e digna dis-puta, o poético

pode acontecer, só o vigor do vazio do não-ser pode irromper. Por isso, por mais

que Dom Quixote insista em perguntar, não receberá resposta. A resposta só virá do

vazio, uma resposta que já não será resposta.

É preciso, entretanto, estar disposto. É preciso fechar os olhos e lançar-se. É

preciso a disposição da renúncia porque tanto para dar o salto, como para fazer a

travessia, é preciso leveza. A obra só pode dizer aquilo que puder ser escutado. Se

muito cheia de ruído, se muito interferida de sons, não haverá voz que possa ser

escutada. É preciso a coragem do esvaziar-se para que se instale o novo, permitindo

que o que já é, pela provocação e necessidade de ser no espaço do não-ser, seja.

Vislumbra-se Dom Quixote, fingindo estar nos caminhos de la Mancha,

estando, na verdade, no de Hermes. Tanto se exercitou nesse caminho, que acabou

aprendendo. Foi com Hermes que aprendeu a fingir tão bem, tão bem que ninguém

desconfiava. Não desconfiava até certo ponto. Até que chega a um ponto que não

dá mais para esconder.

Diante do impasse “ser” ou “não-ser” louco, que já alcançava o olhar de todos

os que o observavam, o próprio Dom Quixote, ainda que não fosse essa sua

intenção, sob o olhar inquiridor de todos, responde: “Soy loco en mis acciones, pero

no soy loco en lo que hablo”,759 o que reforça a perplexidade de todos que não

podem imaginar ser possível tamanha contradição. Só então, Dom Quixote vai

758

Haviam de ser mentira? (1, L, 304) 759

Sou louco em minhas ações, mas não sou louco no que falo.

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acrescentar o “tan”: “no soy tan loco ni tan menguado como debo de haberle

parecido”.760 O “tan” é a prova mais cabal do incontornável-paradoxo, desconstruindo

o edifício dos conceitos, evoluindo de contradição para questão.

Dom Quixote consegue perceber perplexidade no olhar de todos. Todos

estão intrigados com as contradições paradoxais que vêem desfilar em Quixote,

diante de seus olhos.

Primeiro, foi Tomé Cecial, “Don Quijote loco, nosotros cuerdos: él se va sano

y riendo; vuesa merced queda molido y triste. Sepamos pues, ahora: cuál es más

loco: ¿el que lo es por no poder menos, o el que lo es por su voluntad?”.761 Trata-se

de contexto onde o que se quer urgentemente é desfazer os paradoxos.

Depois é a vez de Dom Diego de Miranda a quem, de tão intrigado, não basta

observar, registra, anotando tudo:

todo atento a mirar y a notar los hechos y palabras de don Quijote, pareciéndole que era un cuerdo loco y un loco que tiraba a cuerdo, [Don Diego de Miranda] [...] ya le tenía por cuerdo, y ya por loco, porque lo que hablaba era concertado, elegante y bien dicho, y lo que hacía , disparatado, temerario y tonto.762

Logo a seguir, é Dom Quixote quem começa a dar esclarecimentos.

Primeiro responde:

–¿Quién duda, señor don Diego de Miranda, que vuestra merced no me tenga en su opinión por un hombre disparatado y loco? Y no sería mucho que así fuese, porque mis obras no pueden dar testimonio de otra cosa. Pues, con todo esto, quiero que vuestra merced advierta que no soy tan loco ni tan menguado como debo de haberle parecido.763

760

Não sou tão louco nem tão mentecapto quanto devo haver-lhe parecido (2, XVII, p.410) 761

Dom Quixote louco, nós sensatos, ele vai sadio e risonho; vossa mercê fica moída e triste. Saibamos, pois, agora, qual é o mais louco: o que é por falta de alternativa ou o que é por sua própria vontade? (2, XV, 397) 762

Todo atento, observando e anotando atos e palavras de Dom Quixote, parecendo-lhe que era um sensato louco ou um louco que parecia sensato [...] [Dom Diego de Miranda] ora o tomava por sensato, e ora por louco, porque o que falava era concertado, elegante e bem dito, e o que fazia, disparatado, temerário e tolo. (2, XVII, p.410) 763

Quem duvida, senhor Dom Diego de Miranda, que vossa mercê não me tenha em sua opinião como homem disparatado e louco? E não seria muito que assim fosse, porque minhas obras não podem dar testemunho de outra coisa. Pois, com tudo isto, quero que vossa mercê advirta que não sou tão louco nem tão mentecapto como devo haver-lhe parecido. (2, XVII, p.410)

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Depois faz um resumo de sua situação no seguinte discurso, “Soy loco en mis

acciones pero no soy loco en lo que hablo”.

Concentremos, entretanto, a atenção no seguinte fragmento: “no soy tan loco

ni tan menguado”. Restrinjamos um pouco mais: “tan [...] tan”.

A resposta de Dom Quixote a Dom Diego é intencional. Parece ter captado

seu dilema – o dilema da contradição estampado em seu rosto, dilema já instalado e

por todos vivido. Preocupado, é verdade, mas com uma pontinha de alegria pelo que

via acontecer, Dom Quixote resolve oferecer-lhe um refrigério para amenizar o seu

conflito, com o cuidado de avisar que sua resposta é uma advertência, “quiero que

vuestra merced advierta”; advertência que esclarece definitivamente seu propósito.

Com o “tan”, Dom Quixote instala a zona do “entre”. Com essa afirmação,

suaviza a primeira resposta: “Soy [...] no soy”, esta também perfeitamente ajustada

ao “entre”, sou e não-sou. Entretanto, como parece que ainda não ficara claro,

reforça a advertência acrescentando o “tan” que deixa claro que há, “entre” os

aparentes opostos, uma região amplíssima onde mil possibilidades podem-ser.

Com isso, quer nos dizer Dom Quixote que opostos radicais não se

sustentam, fundamentalmente, loucura e razão. É por isso que não descarta a

loucura, é claro que tampouco não deve descartar a razão. Não se trata de ler a

obra como um tratado contra a ciência, o que ele quer chamar a atenção para a

verdade cientificamente imposta ao mundo que pode, em sua arrogância, tornar-se a

arrogância da razão.

Embora seja a partir do falar que Dom Quixote anuncia e abre este Périplo, é

ao pensar que ele irá dedicar-se. Até então, só o conhecíamos como falar-falatório.

Outro falar também se mostrou, o falar-enunciação, rigoroso e elaborado, segundo

as leis da lógica discursiva, primoroso, segundo as normas gramaticais. Entretanto,

não é a esses falares que nos referíamos e sim ao falar-pensar, aquele falar do que

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é digno de ser pensado. Custou ao cavaleiro descobrir o melhor falar para a tarefa

do contar e desencantar.

Falta ainda outro cuidado. Se há fala é porque há escuta. Nesse caso, para a

escuta, o sentido correto seria a audição. Ledo engano, porque o sentido que inclui

os termos com ela afins não depende do aparelho auditivo, em seu sentido ôntico,

seu alcance é muito mais amplo. Quando é a escuta que se quer convocar,

acompanha-a sempre o silêncio: “Y así, estén vuestras mercedes atentos, y oirán un

discurso verdadero a quien podría ser que no llegasen los mentirosos”.764 Para isso,

prossegue com a seguinte solicitação: “dijo [...] que todos se acomodasen y le

prestasen un grande silencio”765 Silêncio. Quando se trata da verdade, é preciso

haver silêncio.

Ainda que pareça contraditório, Heráclito nos convoca ao mistério, nos

convoca a ouvir o mistério: “ouvir não a mim, mas o logos”.

Dom Quixote vai falar, contar e desencantar escutando a voz do logos __

logos, o único que, assediado pelo ser e para atender a esse assédio, percebe o

mistério velado para torná-lo linguagem. No preparar-se para falar a fala poética,

Dom Quixote se lembra, quase no último minuto, de que a batalha com o cavaleiro

desconhecido ainda não acontecera. Lembrava ter deixado, lá atrás, a batalha

somente anunciada, sem a inscrição dos combatentes nem a definição da arena. A

busca na memória agora é nossa. Em que ponto da obra acontece o combate tão

esperado e quem são os contendores? E a memória nos lança novamente para o

capítulo onde o título anuncia que vão acontecer “[...] discretas altercaciones que

764

E assim, estejam vossas mercês atentas, e ouvirão um discurso verdadeiro ao qual poderia ser que não chegassem os mentirosos (1, XXXVIII, p.233) 765

Disse que todos se acomodassem e lhe prestassem um grande silêncio (Ibidem)

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don Quijote y el Canónigo tuvieron, con otros sucesos”.766 E lá está ele, novamente

intrigado, insistindo com a velha questão, “¿habían de ser mentira?”.

Surpreendentemente, diferente de todas as demais, dessa vez sua resposta é

brusca, sem tempo sequer de pensar, “Calle vuestra merced, no diga tal blasfemia,

(y créame que le aconsejo en esto lo que debe de hacer como discreto), sino

léalos”.767 É surpreendente como a resposta sai de chofre, como se estivesse

respondendo a si próprio, como se já conhecesse desde sempre a resposta. Ao

responder Dom Quixote a “el canónigo”, a resposta é para o leitor, a resposta é para

si mesmo, ler é a resposta. A resposta era para todos.Todos liam na Espanha, todos

escreviam, todos publicavam. O escrever embutido no ler. Em muitos casos, o

escrever era, na verdade, uma forma de contar-se, de saber de si enquanto se

escreve. Digno de registro, repetimos, é uma cena do episódio “Aventura de los

Galeotes”: Ginés de Pasamonte, o bandido mais perigoso da época, porque percebe

haver um equívoco no modo como o chamam, equívoco que o molesta, quer

resolver o impasse registrando sua vida em um livro. Um livro que já está começado,

não deixando dúvidas sobre “sua pessoa”, porque é onde ele “dice verdad”.768

Quando Dom Quixote lhe pergunta se já está terminado, ele assim lhe responde:

“¿Como puede estar acabado [...] si aun no está acabada mi vida?”.769 O autor do

livro revela ter clareza do percurso de Cura. Primeiro, porque, estando vivo, há vida

para contar. Depois, porque assim o explica: “lo que está escrito es desde mi

nacimiento hasta el punto que esta última vez me han echado en galeras”.770

Vê-se que, no que se refere a esse percurso, Ginés, o galeote-escritor, o

delineia perfeitamente, imprimindo-lhe a marca de Cura. Por outro lado, entretanto,

766

Atinadas altercações que Dom Quixote e o Canónigo tiveram, com outros acontecimentos (1, L, p.304) 767

Cale vossa mercê, não diga tal blasfêmia, e creia-me que lhe aconselho no que deve fazer como atinado, senão leia-os. (Ibidem) 768

Diz verdade. (1, XXII, p.120) 769

Como pode estar acabado [...] se ainda não está acabada a vida? (1, XXII, p.121) 770

O que está escrito é desde o meu nascimento até o ponto que esta última vez me atiraram nas galés (1, XXII, p.121)

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vemos, nesse movimento do contar o “galeote” a sua história, um pulsar de

ambigüidades que exigem, talvez, vê-lo como imagem-questão. É claro que Ginés

de Pasamonte não precisa contar sua história seguindo rigorosamente os

acontecimentos de cada dia, dia por dia, “lo que está escrito es desde mi nacimiento

hasta el punto que esta última vez”. O termo “punto” nos remete à descrição de

como eram narradas as novelas de cavalaria: “punto por punto y día por día”.771

Assim, por mais que lhe pareça ser essa forma o que vai garantir a verdade de sua

obra, essa será sua marca diametralmente oposta.

Considerando seu desejo de contar a verdade para delinear-se e inscrever-se

no mundo, eliminando qualquer dúvida a seu respeito, nos preocupa que sua

intenção seja a de contar rigorosamente toda a sua vida com todos os detalhes,

cometendo, com isso, o mesmo deslize das novelas de cavalaria: confundir

realidade com verdade.

Outro dado importante é sua resignação de estar na cadeia, acreditando que

ali, pelo menos, ele pode contar com a tranqüilidade necessária para escrever bem o

que precisa escrever, “Y no me pesa mucho de ir a ellas, porque allí tendré lugar de

acabar mi libro, que me quedan muchas cosas que decir”.772 Entretanto, algumas

questões já nos provocam. Primeiro, porque Ginés de Pasamonte faz parte daqueles

prisioneiros, não só no sentido ôntico, como também no sentido de não saber-se

possibilidade. Desse modo, impossível será fazer-se obra, o “fingir” estará fora de

seu alcance. Depois, porque, sem abrir-se a possibilidades, jamais poderá

experimentar o experienciar fundamental à experiência da arte. Acrescentemos,

ainda, não lhe passar pela cabeça contar aquilo que seguramente é digno de ser

771

Ponto a ponto e dia a dia (1, L, p.304) 772

E não me pesa muito ir a elas, porque ali terei lugar de acabar meu livro, que me restam muitas coisas que dizer (1, XXII, p.121)

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contado. Ao dizer que sabe tudo o que vai contar de cor __ “me lo sé de coro”773 __,

não parece sinalizar com outro elemento importantíssimo para o contar, a

espontaneidade, o deixar acontecer espontâneo da vida. Ao dizer, “aunque no es

menester mucho más para lo que yo tengo de escribir, porque me lo sé de coro”,774

pode Ginés de Pasamonte estar assegurando saber de tudo de sua vida,

exatamente aquilo que é digno de ser contado. Tudo é possível.

Dom Quixote estava convocando todos à leitura quando o interrompemos. Ler

o quê? Ler os livros de cavalaria? Não importa. O que importa é que nessa resposta

está a intenção de tomar a palavra para revelar o grande segredo. E seu grande

segredo era saber-se ele mesmo obra.

Têm sentido os sinais com os quais já tentara alertar a todos. No início da

história nos deparamos com eles “cuando el famoso caballero don Quijote de la

Mancha, dejando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante y

comenzó a caminar por el antiguo y conocido campo de Montiel”.775 Antes ainda,

dera outro sinal: referindo-se à falta de sentido que os “requiebros lingüísticos”

encerravam. O incômodo era tal que “muchas veces le vino deseo de tomar la pluma

y dalle fin al pie de la letra”.776

Por duas vezes, Dom Quixote teve contato com “la pluma”. Numa delas

manifesta expressamente seu desejo que não chegou a concretizar-se. Na segunda,

entretanto, sua relação com um objeto, que lhe parecera tão significativo, é menos

tensa, indiciando desistência total e definitiva da intenção de escrever. Fica bem

claro que a intenção é, ao contrário, de não escrever. O que à sua frente estava

eram “plumas” ociosas, “plumas” que não escrevem e que jamais escreverão.

773

O sei de cor (1, XXII, p.121) 774

Mesmo que não seja preciso muito mais para o que tenho de escrever, por que o sei de cor (Ibidem) 775

Quando o famoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, deixando as ociosas plumas, subiu sobre seu famoso cavalo Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel (1, II, p.21) 776

Muitas vezes lhe veio desejo de tomar a pluma e dar-lhe fim ao pé da letra. (1, I, p.18)

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Com relação ainda ao escrever e contar-se, é interessante mencionar outro

momento em que esse movimento do contar-se insinuou-se, tentando ganhar

espaço. No entanto, se estamos nos limites da obra de arte, tudo é possível. Visto

de outro ângulo, não pode significar o abandono da “pluma”, exatamente o ponto em

que ela deixaria de ficar ociosa? Não significaria que, daquele momento em diante

ela deixaria de ser ociosa, ou, mais ainda, que não seria sequer necessária porque a

partir daquele momento era ele quem começaria a escrever-se? E, nesse caso, a

pluma não era uma necessidade vital.

“Léalos” e “plumas ociosas”. Parece que chegamos ao ponto mais importante

da Tese. Ler-se, escrever-se, contar-se. Unem-se as pontas entre vida vivida e vida

experienciada, entre Dom Quixote fidalgo e Dom Quixote cavaleiro, entre Dom

Quixote realidade e Dom Quixote ficção.

14 A CORAGEM DO SALTO MORTAL

Na intrigante resposta ao “canónigo”, “Tú, caballero, quienquiera que seas,

que el temeroso lago estás mirando, si quieres alcanzar el bien que debajo destas

negras aguas se encubre, muestra el valor de tu fuerte pecho y arrójate en mitad de

su negro y encendido licor”777, Dom Quixote, ao mesmo tempo em que o convoca a

entrar no lago se dirige a um cavaleiro que parece ser ele mesmo. Isso só reforça

nossa desconfiança de que está, na verdade, dirigindo a sua fala a si próprio. Nesse

caso, a resposta é para o canónigo, mas a convocação e o desafio da aventura são

777

Tu, cavaleiro, quem quer que sejas, que o temeroso lago estás olhando, se queres alcançar o bem que debaixo dessas negras águas se encobre, mostra o valor do teu forte peito e lança-te na metade do seu negro e aceso licor (1, L, p.304-305)

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para si mesmo. Dom Quixote exulta ao descrever o fascínio que exerce o lago,

mesmo com a superfície tão assustadora:

¿hay mayor contento que ver, como si dijésemos: aquí ahora se muestra delante de nosotros un gran lago de pez hirviendo a borbollones, y que andan nadando y cruzando por él muchas serpientes, culebras y lagartos, y otros muchos géneros de animales feroces y espantables.778

Enquanto a superfície do lago ferve, borbulha e está povoada de animais

ferozes, as novelas de cavalaria expõem uma aparência de ordem absoluta, onde

tudo está previsto, com todos os referentes passíveis de comprovação, todo o

necessário para garantir a verossimilhança, “cuentan el padre, la madre, la patria, los

parientes, la edad, el lugar y las hazañas, punto por punto y día por día que el tal

caballero hizo, o caballeros hicieron”.779

Embora seja a partir das novelas de cavalaria que, em resposta ao

“canónigo”, o cavaleiro irrompe com “léalos”, apresentando um conto exemplar, o

conto do lago não é uma novela de cavalaria. Ao apresentá-lo de forma brusca e

repentina, Dom Quixote dá uma guinada significativa, finalizando definitivamente o

ciclo da dúvida: “¿habían de ser mentira?”, tudo concentrado em um só verbo.

Sobre a arte, muitas verdades estão concorrendo no tempo de Dom Quixote.

O escrutínio é a representação do próprio Dom Quixote querendo descobrir a

verdade da obra de arte. É ele quem rege e administra todo processo, com sua

dúvida questionadora que, ao mesmo tempo que duvida, na entonação de seu

discurso, parece querer defender. Essa atitude seria previsível a um aficcionado que,

além de aficcionado simplesmente, traz em si, na performance do cavaleiro Dom

778

Há maior contentamento que ver, como se disséssemos, aqui agora se mostra diante de nós um grande lago de peixe fervente em ebulição, e que andam nadando e cruzando por ele muitas serpentes, cobras e lagartos, e outros muitos gêneros de animais ferozes e espantosos. (1, L, p.304) 779

Contam o pai, a mãe, a pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas, detalhe ponto por ponto e dia a dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram (Ibidem)

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Quixote, o referencial medieval que será posto à prova, naquele ambiente em que

nada mais é confiável nem seguro.

Dom Quixote está, na verdade, pondo em confronto a turbulência e o

aparente caos de uma obra de arte com a ordem extrema das novelas modelo que

são o grande referencial para a multiplicação num sem número de cópias. Nesse

caso, ao apresentar o conto do lago, parece estar Dom Quixote lançando mão de

um procedimento didático, no qual, as novelas de cavalaria são somente os

detonadores do processo comparativo radical que define, definitivamente, a verdade

da obra de arte.

Nesse procedimento, o cavaleiro é só a manutenção do personagem-

referência para preservar a idéia de ser, o personagem que vai mergulhar no lago, o

próprio cavaleiro Dom Quixote de la Mancha, indicando que será sua a história que

será contada.

É aqui que talvez se encontre a encruzilhada que obriga Dom Quixote a

mudar o rumo do insistente perguntar pela mentira e verdade das novelas de

cavalaria. É nesse rompante brusco que imaginamos ter sido Dom Quixote tomado

pelo daimon com a missão de descartar-se tudo o que até então participara do

horizonte da arte sem, contudo, à arte pertencer, tudo o que fosse alheio e que só

contribuísse para empalidecer a obra, tudo o que pertencesse ao puramente

intelectual. Nessa imposição-convocação, ao mesmo tempo que o daimon preserva

o espaço dos deuses, o delírio é também imediato, e Dom Quixote é possuído pelas

Musas. Ao dizer “léalos”, é como se dissesse ao canónigo, “entregue-se à leitura,

antes de ficar tentando falar, avaliar, julgar”; é como se dissesse a si mesmo, “Leia-

se! Seja você mesmo, obra!” Nesse momento, já estava, sem dúvida, possuído.

A comparação feita no conto é com um lago. É somente a arte ganhando aqui

a forma de um lago. Esse lago, na superfície, está borbulhando, está fervendo,

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muitos são os animais “feroces y espantables”780 que nadam e cruzam a superfície:

“serpientes, culebras y lagartos.”781 Embora diga que muitos outros animais

igualmente ferozes também ameaçam, só nomeia esses animais que, por acaso,

transitam entre a terra e a água. Parece que, ainda que pareçam perigosos, sua

dupla vida indica serem, eles as várias possibilidades contidas na ambigüidade. Se

freqüentam água e terra são seres ambíguos. Relação semelhante faz Octavio Paz,

em relação ao poético: “A poesia se ouve com os ouvidos, mas se vê com o

entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são idéias e são formas, são

sons e são silêncio”.782

Das entranhas desse lago sai uma voz triste que convida o cavaleiro, o

próprio Dom Quixote, a entrar no lago: “si quieres alcanzar el bien que debajo destas

negras aguas se encubre”.783

O convite feito apela ao cavaleiro seus dotes mais característicos: “muestra el

valor de tu fuerte pecho y arrójate en mitad de su negro y encendido licor”.784 Esse

“mitad” sugere a recomendação de alerta a um espaço que provavelmente está no

“meio”, “en mitad”, na metade do lago.

O verdadeiro poder de sedução está, entretanto, no meio lago. É de lá, do

meio, que vem a voz. Mais uma vez, aparece a “voz”: a outra voz, o daimon, o

logos? Uma voz-convite com a promessa do “bem”: “Si quieres alcanzar el bien”, que

anima e encoraja a dar o salto, enfrentando o perigo.

O perigo da superfície do lago está em suas “negras aguas”.

Poderíamos imaginar tratar-se, mais uma vez, de uma armadilha metafísica

onde o escuro das águas está em oposição contrária e radical ao sol que “luce con

780

Ferozes e assustadores (1, L, p.304) 781

Serpentes, cobras e lagartos (Ibidem) 782

PAZ, Octávio. A outra voz São Paulo: Siciliano, 1993, p.143. 783

Se queres alcançar o bem que debaixo destas negras águas se encobre (1, L, P.305) 784

Mostra o valor de teu forte peito e arroja-te no meio de seu negro e aceso licor (Ibidem)

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claridad”.785 Entretanto, a inversão com que eles são dispostos [escuro na superfície,

claridade nas profundezas] é o suficiente para desfazer qualquer suspeita nesse

sentido. Sem contar com o aparente da superfície. Além de quente, ela borbulha,

indicando haver ali muito vigor, indicando haver uma relação de troca, a superfície

no meio, o meio na superfície.

A metade do lago __ “mitad del lago” __ se refere a licor com o adjetivo “negro”

que pode significar a ausência, o vazio do não-ser, a não-verdade e com “encendido

licor”786 o que, pelo significado de licor, pelos processos por que passam as

substâncias naturais para delas tirar-se o máximo da essência, pode remeter para

“vigor”, além do adjetivo “encendido” que também indica força, poder, logo vigor. Só

quem tem a coragem de mergulhar poderá encontrar, na metade, no meio, no “entre”

do lago, maravilhas. Essas maravilhas que jazem debaixo da negrura são

apresentadas em número de “7”, “los siete castillos de las siete fadas”787, talvez

significando a abertura infinita, considerando o cabalístico inerente ao numeral “7”.

O cavaleiro se enche de coragem, sem “entrar más en cuentas consigo, sin

ponerse a considerar el peligro a que se pone”,788 nem pensa nos perigos que

poderá enfrentar; mas, ainda assim, não largando o peso da arma que carrega, nem

deixando de encomendar-se a Deus e à sua amada, mergulha, se entrega à

aventura, a de uma nova experiência que poderá abrir-lhe novos mundos. Quando

menos se dá conta, já está no meio do lago e tem a primeira visão, a de campos

com os quais os “los Elíseos no tienen que ver en ninguna cosa”789, indicando,

talvez, a superioridade da obra de arte, em perfeição.

785

Brilha com claridade (1, L, p.305) 786

Aceso licor (Ibidem) 787

Os sete castelos das sete fadas (Ibidem) 788

Entrar mais em considerações consigo mesmo, sem se por a considerar o perigo ao qual se expõe (Ibidem) 789

Os Elíseos não têm a ver com coisa nenhuma (1, L, p.305)

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Dos elementos apresentados, um merece atenção: os símbolos de força e de

poder que caracterizam o cavaleiro-protótipo das novelas de cavalaria – o braço e a

espada são deslocados para o peito, “fuerte pecho”, a parte do corpo requisitada

para acionar no homem o movimento que o impulsionará em direção a si mesmo.

Vale comentar o instrumental com que o cavaleiro mergulha no lago, o

mesmo que esteve acompanhando Dom Quixote em sua jornada no 1o Périplo. O

acompanham a arma, sua amada e Deus. Essa referência parece ser também uma

forma de marcar o liame entre “novelas de cavalaria” e o “conto do lago”, feito nos

moldes de um rito de passagem. Mesmo parecendo levar para o lago aquele

instrumental, estava, para eles, acenando em sinal de renúncia.

Trata-se de mais uma renúncia no vasto elenco de Dom Quixote feita de

forma sutil, talvez pela necessidade de deixar marcado que a verdade não está nem

numa nem noutra, mas sim, no meio, no trânsito. A passagem ritualística tanto se

refere ao trânsito cavaleiro-fidalgo, como ao cavaleiro-pastor, como ao cavaleiro-

poeta, como, ainda, à obra de arte que dispensa qualquer aparato, a obra de arte

livre na frescura do seu vigor, sem definições, sem teorias, sem conceitos, tudo

representado pelos três ícones: arma, amada, Deus. A passagem ritualística se

refere à obra de arte simplesmente, na simplicidade de contar um conto.

É possível, nesse caso, que o ingressar no lago, carregando dito aparato,

signifique a resistência do homem que insiste no ente entificado, na realização

realizada, desatento de sua condição de “entre-ser”.

No meio do lago, esperar-se-ia encontrar a escuridão, entretanto, o convite ao

mergulho cumpre o prometido. A sedução provocadora tem a intenção de garantir as

maravilhas que se pode encontrar na obra-de-arte sob o brilho de outro sol, um sol

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diferente porque “el cielo es más transparente, y [...] el sol luce con claridad más

nueva”.790

A cada momento, uma coisa nova vai sendo descoberta: “se le descubre un

fuerte castillo o vistoso alcázar”.791 O interessante é que, embora sejam as coisas

feitas de material de valor deslumbrante __ ouro maciço, pérolas, esmeraldas,

diamantes, rubis, etc __ nelas, o que há de mais precioso não é a superfície de

aparência e, sim, o modo como são feitas, sua “feitura” (“es de más estimación su

hechura” ).792

Isso nos lembra:

Bien – dijo el cura – me parece esta novela; pero no me puedo persuadir que esto [referindo-se à história de Anselmo e Camila, em que o marido, para experimentar mais profundamente, até esgotar, a fidelidade da esposa, arquiteta um plano em que seu melhor amigo deve seduzi-la] [...] sea verdade; y si es fingido, fingió mal el autor; porque no se puede imaginar que haya marido tan necio que quiera hacer tan costosa experiência como Anselmo. Si este caso se pusiera entre un galán y una dama, pudiérase llevar; pero entre marido y mujer, algo tiene del imposible; y, en lo que toca al modo de contarle, no me descontenta.793

Pelos fragmentos: “es de más estimación su hechura” e “en lo que toca al

modo de contarle”, percebe-se que ambos os personagens citados dão relevo, não à

forma modelar e esquemática que sabemos caracterizar as novelas de cavalaria,

mas ao modo de contar que dá a cada uma das novelas sua marca própria.

Logo a seguir, a pergunta formulada: “Y ¿hay más que ver [...]?”,794 anuncia

que o que vai ser descrito é tão maravilhoso que não deixará nenhuma dúvida sobre

a maravilha do seu contar.

790

O céu é mais transparente, e [...] o sol brilha com claridade mais nova (1, L, p.305) 791

Ele descobre um forte castelo ou vistoso palácio (Ibidem) 792

É mais preciosa a sua feitura (Ibidem) 793

Essa novela me parece ser boa, mas não posso convencer-me, disse o padre, [...] de que isto seja verdade; e, se tiver fingido, fingiu mal o autor, porque não é possível imaginar que haja marido tão idiota que queira fazer experiência tão complicada como Anselmo. Se este caso acontecesse entre um galã e uma dama, se podia tolerar, mas entre marido e mulher, tem algo de impossível; e, no tocante ao modo de contar-lhe, não me desagrada. (1, XXXV, p.217) 794

E há mais para ver? (1, L, p.305)

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A partir daí, insinuam-se “aberturas” que se sucedem: 1) Primeiro vê sair, pela

porta de um castelo, um bom número de donzelas __ “ver salir por la puerta del

castillo un buen número de doncellas”795, 2) as donzelas desnudam o cavaleiro,

colocando-o como sua mãe o pariu. Dão-lhe banho, passam óleos perfumados em

seu corpo e o vestem com camisa de um tecido finíssimo, 3) outra donzela coloca

sobre os ombros do cavaleiro um manto que dizem valer uma cidade ou até mais,

4) Abre-se outra sala, onde há uma mesa posta, com água perfumada, ele senta-se

em cadeira de marfim, as donzelas o servem, trazem muitos manjares tão saborosos

que seu apetite não sabe qual escolher, ouve música sem saber quem canta nem de

onde vem, e ainda mais, no final se recosta na cadeira palitando os dentes, em sinal

de plenitude e satisfação, 5) Em seguida, entra na sala outra donzela muito mais

bonita que as anteriores, senta-se ao lado do cavaleiro e começa a dar-lhe contas,

começa a contar-lhe que castelo é aquele em que está e de como ela está ali

encantada.

À proporção que vai narrando, a donzela vai dando a ele ciência de muitas

coisas como se estivesse explicando. Essas coisas “suspenden al caballero y

admiran a los leyentes que van leyendo su historia”796. Aqui parece que se chama a

atenção para o que é contado, para a história em si, para a obra, afinal. Tira-se o

foco tanto do autor, como do narrador eventual __ a donzela, como do personagem __

o cavaleiro. Deposita-se atenção maior no leitor quando o narrador se refere a “otras

cosas”, ou seja, não ao que está escrito, mas àquilo que está além do que está

escrito, àquilo que está sob o título de “otras cosas”.

795

(Ibidem) 796

Suspendem o cavaleiro e admiram os leitores que vão lendo sua história (1, L, p.305-306)

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“Otras cosas” é abertura máxima ao máximo de possibilidades. Essa abertura

onde o homem-leitor ocupa o lugar de entre-ser, é o lugar do poder-ser da obra de

arte, o lugar onde todas as possibilidades têm lugar.

Esse é o “entre”, esse é o “entre-ser”, esse é o “meio”. Esse entre-meio é o

lugar, o lugar do acontecer poético.

O meio do lago está marcado pelo silêncio: “sin hablarle palabra”;797

“guardando un maravilloso silencio”.798 A atuação das donzelas se dá no mais

absoluto silêncio, o que parece coincidir com essas “otras cosas” que no texto,

apesar de aparecerem, aparentemente verbalizadas pela donzela, resumem-se a

muito pouco. As expressões “qué castillo es aquel” e “como está encantada” são

imediatamente substituídas por “otras cosas”, o que, por sua vez, parecem remeter à

verdade.

É como se dissesse que a verdade se dá no silêncio, se dá na não-verdade, e

que, depois, ao definir melhor esse silêncio, esclarece que tal silêncio não chega a

ser ausência total de palavras e sim a verdade dita com poucas palavras até chegar

à não-palavra, ao silêncio como plenitude do falar. E muito mais que isso, quer dizer

que se deve sempre procurar “outras coisas”, coisas que não estão ditas, mas que

estão silenciadas no que está dito. O cuidado de passar a questão da importância

que tem o silêncio é tal que, quando o narrador percebe que está cada vez mais se

aproximando de revelar definitivamente a verdade da obra de arte, ele, além de

suspender o cavaleiro que até então estava em primeiro plano (“suspende el

Caballero”) para dar relevo à voz das ninfas e não à voz do narrador, talvez insira a

de Minemósine, voz que ecoa tanto na obra, como no leitor, acionada pelo logos. É

possível o desdobramento. Ao mesmo tempo em que a voz da donzela é uma voz-

797

Sem dizer palavra (1, L, p.305) 798

Guardando um maravilhoso silêncio (Ibidem)

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narrador, deve-se suspeitar que uma voz encarnada no feminino seja Minemósine.

Essa voz pode ser também a voz do logos.

Quem está contando o conto do cavaleiro e do lago, aterrorizado com o risco

do desvelamento permanente e total, trata de tomar a seguinte providência, dizendo:

“no quiero alargarme más en esto”.799 Essa estratégia faz-nos lembrar de Jorge Luis

Borges que, ao tentar falar de sua experiência com “el aleph”, recorre ao expediente

do esquecimento. Diz ter esquecido da experiência por ser impossível registrá-la em

sua totalidade.

O narrador, que ilustra com o conto do lago o que é uma novela de cavalaria,

sabe também que essa totalidade é impossível, inalcançável e utiliza como saída

desse perigoso limite o álibi, “no quiero alargarme más en esto”.

Qualquer novela de cavaleiro andante pode causar prazer e maravilhar, “ha

de causar gusto y maravilla a cualquiera que la leyere”.800 Aqui parece que não está

referindo-se às novelas de cavalaria que circulam como gênero específico, mas à

ficção literária. Mais ainda, à poiesis. Quer dizer que o problema não está em ser

uma ficção de cavaleiros ou não de cavaleiros. O que está em questão são outras

coisas. Não será a obra, a qual esteja se referindo, a própria obra Dom Quixote de la

Mancha? Que também não deixa de ser a história de um cavaleiro, mas

radicalmente diferente daquelas que estavam em voga no momento.

A leitura da obra de arte pode trazer benefícios ao homem, “destierran la

melancolía que tuviere, y le mejoran la condición, si acaso la tiene mala”.801 Há

dúvida se aqui a obra está sendo vista como detonador de prazer, aquela tal fruição

de que se fala ao criticarem-se os caminhos por onde a estética conduziu a arte.

799

Não quero estender-me nisso (1, L, p.306) 800

Deve causar gosto e maravilha a quem quer que a leia (Ibidem) 801

Desterram a melancolia que tiver e melhoram sua condição, se por acaso estiver ruim. (Ibidem)

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A relação arte-bem-estar pode ser também resultante das reais benesses da

literatura. Se considerarmos a questão do ponto de vista do diálogo, este, sendo

abertura, sendo o próprio “entre”, vai possibilitar ao homem, além de estar no pleno

exercício de sua humanidade com a abertura de mundos que a obra de arte

possibilita, estar em contato com o ser, não esquecer do ser, não esquecer de ouvir

a palavra dos deuses que se renova sempre, desde que respeitada a lei da aletheia:

“é proibido esconder”; “é proibido deixar de mostrar”. Para respeitar a lei e não

deixar de mostrar é preciso que o mostrado se vele.

Nesse caso, a benesse ofertada pela arte-ficção é o ser possibilidade, e quem dela se beneficia não experimenta cura no sentido ôntico, experiencia Cura propriamente, aquela da qual estão todos os homens à pro-cura.

É possível beneficiar-se da obra de arte desterrando a melancolia e melhorando a condição de homem sem, no entanto, dela desfrutar?

O que complementa a idéia de ganho promovido pela literatura é a fala de Dom Quixote corroborando os benefícios da leitura. Nesse caso específico, volta a fazer menção às novelas de cavalaria, retomando o procedimento do início do capítulo.

Feita a aproximação, comparando as novelas de cavalaria ao seu viver de cavaleiro, Dom Quixote diz sentir-se muito beneficiado. Dentre o muito que teve de proveito com a cavalaria, o que mais o tocou foi o fato de, não há muito tempo, encontrar-se louco trancafiado numa jaula [trata-se do episódio em que Dom Quixote é capturado pelos amigos e vizinhos e reconduzido à casa num carro de bois fechado com grades] e a possibilidade de, logo a seguir, ver-se rei, graças ao poder de seus braços.

Dom Quixote encerra com o louvor à poesia naquilo de mais digno que ela oferece ao homem: a liberdade. Essa liberdade é liberdade de ser, a liberdade de poder-ser a gratuidade do ser. Os exemplos: estar preso no carro de bois como animal e logo a seguir ser rei são extremos por onde pode transitar o homem – da maior pequenez à maior grandeza. Compreende-se agora a relação entre a “falta” apresentada por Nóbrega, desde o primeiro capítulo, e a maior grandeza do homem.

Os braços __ “el valor de mi brazo” como símbolo do poder que franqueia ao homem a liberdade __ assumem a posição horizontal,

articulando-se com a verticalidade do céu (“pienso, por el valor de mi brazo, favoreciéndome el cielo”)802

e darão a Dom Quixote grande

poder (“en pocos días verme rey de algún reino”).803

Compõem a quaternidade céu-terra-divinos-mortais como imagem-questão sugerindo, talvez, um resgate do sagrado. De igual modo, é possível estender essa imagem à dupla Dom Quixote-Sancho. Dom Quixote, alongadíssimo, representa o movimento ascendente do homem na terra em busca do infinito. Sancho, baixo e gordo, aficcionado pelas coisas da terra, seduzido pelos sentidos, é seu complemento horizontal de extensão e expansão. Inseparáveis, os dois realizam a travessia com os pés fincados na terra, na busca do autoconhecimento, em movimento de ascendência e expansão, até o retorno ao Lar. Ou melhor, ao Habitar.

Cuidar e erigir. Essas duas ações são a tarefa do homem. Dom Quixote e Sancho, essa dupla de mortais, ao mesmo tempo que constrói habita, o habitar que alberga a Quaternidade.

Nesse trânsito quando entra Sancho dizendo que, mesmo que não consiga ganhar a ilha, soubera haver, naqueles tempos, uma nova modalidade de propriedade:

hay hombres en el mundo que toman en arrendamiento los estados de los señores, y les dan un tanto cada año, y ellos se tienen cuidado del gobierno, y el señor se está a pierna tendida, gozando de la renta que le dan, sin curarse de otra cosa.804

Como esta conversa está implícita na discussão sobre a obra de arte/novelas de cavalaria, pensamos também poder ler o arrendamento, no mesmo tema. É o que Borges faz, eliminando o conceito de autoria (propriedade) da obra de arte. Feita a obra, a salvaguarda é a própria obra que guarda o vigor da “historicidade efetiva” e o leitor, por sua vez, aquele que arrenda a terra __ “estado” __ e dela cuida com o seu governo (a ética do cuidado). O autor, este desaparece. De “pierna tendida, gozando la renta que le dan, sin curarse de

802

Penso, pelo valor de meu braço, favorecendo-me o céu (1, L, p.306) 803

Em poucos dias ver-me rei de algum reino (Ibidem) 804

Há homens no mundo que tomam em arrendamento os estados dos senhores, e lhes dão um tanto cada ano, e eles tomam cuidado do governo, e o senhor está com a perna esticada, gozando da renda que lhe dão, sem cuidar de outra coisa. (1, L, p.306)

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otra cosa”.805

O autor sai de cena, fica com as pernas esticadas, refestelado, só “recebendo a renda”, sem meter-se em mais nada. Feita a obra, ela não mais pertence ao autor, é propriedade do leitor.

Finalizaremos avaliando o seguinte fragmento: “es muerta la fe sin obras”.806 O

fragmento, ao mesmo tempo que delineia o perfil do homem do Renascimento, a

quem cabe o produzir obras, o coloca em oposição ao homem medieval, para quem,

só restava ter fé, pois sequer havia o conceito de autoria. Ao mesmo tempo, ainda,

requisita e convoca o homem ao agir que consuma, a um produzir-se a si mesmo,

fazendo-o ser cada vez mais próprio, fazendo-se obra.

Dom Quixote, só ele pôde fazer a travessia porque não se deixou manipular,

entregando-se ao exército espanhol como massa de manobra, do mesmo modo

como foi vítima Cervantes. Dom Quixote entra na vida e, ao viver a vida

experienciada, acumula viver com arte. É por isso que o seu viver cavaleiro é vida e

ficção. Dom Quixote é vida e é obra.

Conclui-se que “fingir” não é realizar, “fingere” não é o já realizado, mas o

“entre”, o não-ser, a não-verdade. Por isso o “entre” é fulguração, o lugar do “clarão

rápido”.807 Entretanto, isso só é possível caso se viva como poiesis.

E o que é viver como poiesis?

Viver como poiesis não é viver tomando para si a verdade do outro,

permitindo que no diálogo o “tu” do outro seja preponderante e pleno. Viver como

poiesis é não permitir que o “entre” – aquele espaço que está reservado para que o

homem exerça a sua maior “grandeza”, a grandeza de ser entre-ser, o que o faz

possibilidade – seja preenchido pelo “tu” do outro; preenchimento que interrompe o

diálogo, já que, preenchido assim o “entre”, não é mais diálogo. Viver. Viver como

poiesis é viver a vida experienciada, é viver tendo chegado a travar o auto-diálogo, é

ter chegado a escutar a voz do logos, é ter permitido que o dizer do outro se faça

805

Perna estendida, gozando a renda que lhe dão, sem cuidar de outra coisa (Ibidem) 806

É morta a fé sem obras (Ibidem) 807

HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio do século XXI. 3.ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1999, p.949

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“clarão rápido”, se faça fulguração. Viver como poiesis é viver sendo abertura plena

e eterna para ser “linguagem”, tornando possível que aquele “verbo” que era lá “no

início”, seja.

Tem todo o sentido que Dom Quixote, depois do tormento que querer saber-

se ser da realidade e ser da ficção __ posição por ele mesmo acumulada __ tenha

sido no último momento, iluminado e recebido o “clarão rápido” da resposta. Foi tudo

muito rápido, instantâneo. Tão instantâneo que sequer houve tempo de resposta.

CONCLUSÃO

Provocados pela voz de Dom Quixote que inicia seu caminhar cavaleiresco

dizendo: “Yo sé quien soy”,808 decidimos investigar tão sugestiva afirmação, e a

questão do ser tornou-se inevitável.

Diante dessa empresa, Heidegger, inevitável, também, revelou-se o norte por

excelência, para nos liberar do peso sempre presente nas grandes obras: o estigma

do caos.

Confiantes na orientação, cientes da falácia do aparente caos, ou por este

mesmo caos instigados, foi-nos possível optar pelo método hermenêutico que tem,

na leitura, a grande estratégia suavizadora do caos com seus procedimentos de

aproximação lenta, amorosa, definitivamente desarmada.

Se, como diz Heráclito, no parágrafo 123, a “physis ama esconder-se”,

decidimos respeitar a obra, enquanto natureza também, permitindo que faça ela

mesma o jogo.

808

Eu sei quem sou.

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Bastou ficarmos atentos e teve início a abordagem: lenta, despojada de

qualquer instrumento impositivo e inibidor, impedindo, assim, o troco da resistência.

Se com tanta delicadeza, ainda assim, traquejada que está em dissimular, a obra

não se entrega facilmente, com ela é preciso todo cuidado. O próprio Cervantes dera

o alerta, chamando-a “mesa de trucos”.809

Acatamos, assim, a sugestão de Heidegger, decidimos abordar a obra

circularmente, em círculos que permitissem o máximo possível de abrangência e os

chamamos “Périplos”, identificando-os com viagens marítimas de circunavegação.

Bem sabíamos ser necessário muita calma e muita espera. A cada volta, muita dis-

puta; a cada dis-puta, muito recolhimento e encolhimento. Como dissemos na

introdução: para libertar Aletheia dos séculos de cativeiro, só com muito jeito.

À medida que nos aproximamos da obra, o caos vai dando lugar a

complexidades. E daí tiramos a primeira: bastou insinuar-se o complexo, “yo sé

quien soy” __ ser fidalgo, ser cavaleiro, poder-ser todos os demais cavaleiros, poder-

ser e ser superior a todos “los doce Pares de Francia”,810 __ e, imediatamente, o

identificamos com Cura, percebemos o inevitável da questão do Ser.

Identificado Cura, demos início à primeira viagem. Ao afirmar saber de si,

quando menos sabe, o que anuncia Dom Quixote é seu “querer-saber”, seu “querer-

ser”, é “querer fazer-se travessia”. E faz. A pé ou a cavalo, faz a travessia

brilhantemente, permitindo que, em segurança, ancorássemos em todos os portos.

Desde seu nascimento poético, momento em que passou a ganhar corpo

realmente, até o sub complexo __ angústia-morte __, Dom Quixote colocou-se

disponível no mundo, atento que estava ao “ser-em” de Heidegger. Tão atento, fiel e

diligente que acabou ultrapassando a medida. Não satisfeito com seu mundo, criou

809

Mesa de truques. 810

Os doze Pares da França.

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dois mundos para “ser”. Superpôs, ao seu, o mundo da cavalaria para nele poder

transitar na obliqüidade exigida pelo “zigue-zague” que precisaria fazer de um a

outro mundo.

Ao mesmo tempo em que era cavaleiro e, com a força do seu braço e o fio de

sua espada punha em prática seu conhecimento da cavalaria, “enderezando tuertos

y desfaciendo agravios”,811 em uma palavra: fazendo justiça, tentando consertar um

mundo que se desfazia em desordem e injustiças, ele era também filósofo,

realizando, como camaleão, magnificamente a troca de armas. Quando queria ser

filósofo, abandonava a espada e bastava falar, fazer belos discursos, propagar a

verdade, por exigência absoluta da missão que lhe fora confiada, de perpetuar os

valores e verdades da república cristã.

Enquanto assim agia, Dom Quixote não se dava conta de que seu mundo e

todos os que ali viviam estavam mergulhados num petrificado de significações

velhas e gastas, de tão repetidas. Tudo era conhecido, tudo já publicado, tudo

tornado público, exposto na galeria morta dos significados estabelecidos e por todos

compartilhado. Naquele mundo, nada ganhava sentido. Ele mesmo que

enlouquecera, vítima do sem-sentido linguajar das novelas de cavalaria, esforçando-

se para “entenderlas y desentrañarles sentido”,812 não percebia que no mundo da

cavalaria, por ele criado, a estagnação era a mesma, estagnação representada

pelas novelas de cavalaria em constante repetição. E não podia ser diferente pois se

tudo o que havia sobre todas “las ordenanzas y leyes de la caballería andante”813 só

poderiam ser encontradas “en el pecho”814 de Dom Quixote, único “depósito y

811

Consertando injustiças e desfazendo desacertos. 812

Entendê-las e arrancar-lhes sentido. 813

As regras e leis da cavalaria andante. 814

No peito.

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archivo”815 das verdades da cavalaria, único depósito das verdades da república

cristã.

A segurança depositada na missão e a certeza nas verdades que o formaram

o faziam reagir à qualquer dissonância. Nesse percurso, a decadência é uma

constante: decaía como fidalgo, retornando, como todos, insistentemente aos livros

de cavalaria. Feito cavaleiro, decaía reatando com a prática cavaleiresca, tão logo se

recuperasse de cada derrota, decepção ou dor. Decaía também como filósofo,

ancorando-se no conhecimento do acervo medieval nele cristalizado que lhe dava

segurança e estabilidade.

Nesse zigue-zague oblíquo, havia espaço para todos os existenciais de Cura.

Fundamentais e não fundamentais, todos foram contemplados. Decaía Dom

Quixote, decaíam todos, o tédio os obrigava a voltar ao mesmo, ao velho,

estabelecido e petrificado. Decaíam levados pela força do comum e compartilhado,

do “com” da co-pre-sença, decaíam pelo “junto-à(s)” coisas da cotidianidade,

decaíam em ocupações e pre-ocupações, movidos pela curiosidade fortíssima no

momento, decaíam na ambigüidade, no falatório e no escritório que, em cadeia se

apresentavam. Decaía Sancho no senso comum, decaía Dom Quixote no discurso

ordenado, cheio de “entendimiento”.

Todos o experimentam, mas só Dom Quixote sai do circuito doentio do tédio,

usa a liberdade, e faz a escolha: sai da leitura e vai viver a cavalaria na vida

experienciada. Por isso tem a oportunidade de ser acometido pela angústia. Ao

colocar em confronto os dois mundos superpostos, pôde viver o que provavelmente

não lhe estava permitindo a leitura. Ou foi pela leitura que desejou viver a

cavaleiresca vida experienciada.

815

Depósito e arquivo.

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Enquanto Dom Quixote somente lia as novelas de cavalaria como fuga do

tédio, repetindo o mesmo modelo, sem que nenhum espaço de provocação exigisse

e impusesse mudança e transformação, enquanto isso acontecia, estavam todos no

nível da vida simplesmente vivida. O momento, entretanto, já anunciava mudança. A

dúvida abria espaço para que Descartes a ela se lançasse. Há anseio de segurança

e certeza no ar. E Dom Quixote também respira e transpira esse ar cheio de

novidades, novidades que, com a sua verdade estabelecida, concorrem ao lugar de

verdade.

Esse contexto é o que, no entanto, impõe o confronto. Na cotidianidade, a

cada momento Dom Quixote esbarra com outras realidades que o obrigam, ainda

que resistente, a ouvir o outro, a escutar-se.

Na vida experienciada, Dom Quixote, no exercício cotidiano do diálogo,

experimenta o auto-diálogo, ouve a voz do logos, entra em contato consigo mesmo

e, à medida que cede à aprendizagem e o novo ganha sentido, renuncia ao

aprendizado velho e sem sentido.

No experienciar, esse processo se dá paulatinamente, até o momento em que

tudo o que conhecia e em que acreditava se fragiliza de tal modo que cai o último

sustentáculo, fazendo desmoronar o poderoso edifício medieval-cristão. Dom

Quixote vive a angústia mais radical, marcada ficcionalmente por uma febre

altíssima e inexplicável que define a linha divisória – antes e depois. Dom Quixote,

que antes era Alonso Quijano, toma consciência da impropriedade do cavaleiro e

recupera sua identidade. Dom Quixote que antes era louco toma consciência do

impróprio de sua loucura e recupera a lucidez. Mas, não é só a linha divisória antes

e depois que a angústia estabelece. Além dessa, a de-cisão de ser pastor revela a

radicalidade da angústia. Além de recuperar a propriedade, na escolha de ser

pastor, Dom Quixote deixa aberto um leque de possibilidade.

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Com essa de-cisão, antes de morrer, manda sua última mensagem para todo

o Ocidente: só na travessia, torna-se possível, ao homem, encontrar a sua essência

que é poder-ser todas as possibilidades. E que esse encontro só será franqueado,

graças à escuta da voz do logos.

No entanto, “la muerte no triunfó”,816 diz o epitáfio.

Completado o primeiro círculo, cumprido o primeiro Périplo da viagem, Dom

Quixote aproveitando a brecha da morte/não-morte, esgueirando-se, escorre pelo

vão e segue conosco viagem no 2o Périplo.

Como Cura não tem fim, Dom Quixote sabe do risco de novas decadências,

do mesmo modo que sabe do fluxo de novas questões. A posição em patamar mais

elevado, o abrir da consciência tem seu preço: quanto mais amplo o horizonte, mais

se vê, quanto mais se vê, mais questões, quanto mais questões, mais escuta, e

quanto mais se escuta, mais o logos responde. É preciso, portanto, silenciar para

escutar o logos. É preciso estar atento à “agitação inquieta que é característica do

ser-aí”, estar atento ao “vaivém do homem no qual ele se afasta do mistério e se

dirige para a realidade corrente (...)”.817

Dom Quixote, depois de descobrir que uma voz há muito já lhe falava, mesmo

quando ele, ainda louco cavaleiro, sequer a percebia e, a cada regresso à casa, caía

em sono profundo, foi assim que, reconhecendo a voz, dela tornou-se familiar.

Mais sensível, mesmo de longe, Dom Quixote pressente a voz e é tomado

por um “querer” incontido que o faz desejar conhecer uma cova – “La cueva de

Montesinos, um manancial de referentes que fazem dessa “cueva”, ao mesmo

tempo que a caverna de Platão, a mesma caverna de Descartes.

816

A morte não triunfou. 817

Sobre a essência da Verdade. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Duas Cidades,1970, p.42.

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Aproveitando, concorrerem, nessa “cueva”, os dois responsáveis pela

fragmentação que separa mente-corpo, essência-aparência, espírito-corpo,

verdadeiro-falso, reconhece Dom Quixote, reconhecemos nós que a presença da

razão radicalmente em oposição à loucura tem a finalidade de recrudescer essa

cisão, de apresentar um quadro de desconcertantes paradoxos, onde ser parece

não-ser, onde verdade parece não-verdade.

Nessa experiência originária, o Ocidente é mostrado a Dom Quixote, em

retrospectiva, recompondo o perfil que tomou o pensar no Ocidente. E uma “cueva”

pode ser uma mesma caverna: uma “cueva-caverna” metafísica.

Percebe então que fora, ele mesmo, partícipe daquele estado de coisas, que

na hora de acatar a “justiça” socrática, tomando-a como referência da justiça que

precisava implantar no mundo decadente, não se lembrara da “justiça” pregada por

Anaximandro, numa bela sentença: a justiça natural e espontânea da physis.

Percebe que o agir verdadeiro não está na ação desmedida e irrefreada. Quando

assim agia, estava louco em “sus acciones”. Mas agora Dom Quixote, consciente de

sua verdade, consciente da essência do homem, está habilitado a refletir, a

questionar as questões que, no 1o Périplo, mesmo sem que ele quisesse, já se

impunham ao mundo. Agora, mais maduro, já está apto à reflexão. E é o que vai

fazer no 2o Périplo.

O 2o Périplo funciona como uma transição, um período em que Dom Quixote

está em processo de “escuta” para sentir-se habilitado a poder “falar”.

O interior de “la cueva” é imagem-questão da escuta do logos, porque foi o

seu interior que lhe desvendou alguns mistérios, mas, ao mesmo tempo, é também

essa revelação, é o conhecimento do que escutou em seu interior. A escuta dentro

de “la cueva-caverna” lhe mostra que, além do Platão de todos os platonismos que

trouxeram uma verdade, havia outra verdade __ era Descartes inaugurando um novo

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modo de pensar, igualmente fragmentado e portanto metafísico, mas que lhe dava a

sensação de ser mais ameaçador.

Esse pensar traz consigo uma figura chamada “sujeito” que, por conhecer as

estratégias mentais de um modo de extrair das coisas tudo o que de verdade elas

contêm, esse sujeito aprisiona todo o real, colocando-o sob o poder de seu

pensamento, fazendo-o objeto. É quando dissemos, no 1o Périplo, que o simples

“estar-lançado”, o homem o converte em “lançar-se” ele mesmo sobre as coisas para

dominá-las. Esse processo cresce até a “vontade de poder”.

Neste Périplo não há ação, não há o agir do fazer. É como se Dom Quixote

estivesse em repouso, deixando agir o agir do pensar, um agir meditativo,

extremamente dinâmico, de um dinamismo calmo, silencioso. Precisa refletir e esse

refletir é o interpretar. Agora é o hermeneuta e, como tal, precisa de silêncio para a

escuta do sagrado.

Dom Quixote percebe as pessoas que interpretaram mal a frase de Sileno.

Eram todas dedicadas, empenhadas num viver calcado no fazer, no fabricar, num

fazer que já tomava conta até do pensamento. Era um tal de “elaborar”, “industriar”,

“arquitetar”, “fabricar”, verbos assim usados literalmente na obra, verbos com uma

única marca semântica, a de referir-se a essa forma de pensar.

Dom Quixote percebe que isso já está tão arraigado no homem e na

realidade, que ele o exercita de forma tão natural, sem dar-se conta de que está

alimentando um monstro - o grande responsável pelo modo do viver que tomara

conta do viver no Ocidente. De tal modo isso se dá, que é identificado como uma

ética aceita e compartilhada por todos. Dom Quixote sensível já consegue identificar

o cavaleiro com quem precisa travar a luta singular. Se antes tinha algumas dúvidas

entre ser esse cavaleiro a razão, o pensamento cartesiano, ou a metafísica, agora é

capaz de enxergar a fisionomia desse perigoso cavaleiro. A Essência da Técnica é o

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cavaleiro com quem deverá lutar no futuro, um desdobramento do pensar metafísico.

Essa batalha é anunciada no início da obra quando, ao mesmo tempo que Dom

Quixote descobre terem dado fim à sua biblioteca, o mesmo sábio encantado

responsável por tal ato lhe anuncia, agendando para o futuro a luta inevitável.

Quando apresentamos os personagens observados por Quixote como

material de interpretação (os mesmos personagens que interpretaram

equivocadamente as palavras de Sileno), os apresentamos todos interferidos já por

algum dos males da essência da técnica: ou são infelizes, ou trazem a infelicidade

ou morrem. Isso corrobora o aviso de Sileno: “É na vida que o homem tem que

buscar a felicidade, o único lugar onde ela não está”. Nenhum deles, entretanto,

encontra na vida um alento que os anime a viver porque, com o modo de pensar

interferido pela essência da técnica, o viver já se tornara um viver somente vivido,

sem que houvesse nenhuma possibilidade do novo. Esgotada toda a natureza pelo

conhecimento do homem que só se sentia seguro, caso estivesse munido das

certezas, nada mais havia, caía-se num abismo sem fim. E, como seguir vivendo

num mundo que nada mais tem a oferecer?

Da experiência de “la cueva”, Dom Quixote sai acreditando estar de posse da

verdade do seu tempo, verdade que precisa contar a todos os homens. Com isso

atenderá ao compromisso assumido com Montesinos: contar a todos o que vira em

seu interior e libertá-los do encantamento do pensar metafísico. “Todos” são aqueles

homens que, em frenesi, usavam o pensamento como máquina.

É quando Dom Quixote descobre o “entre” daqueles paradoxos. É quando se

dá conta de que o paradoxo é o próprio “entre”, é quando percebe que o paradoxo

posto no mundo como mera oposição é, nele mesmo que se encontra toda a

possibilidade de abertura, toda a possibilidade de ser possível. É nele que está a

possibilidade de felicidade. Desde o 1o Périplo, Dom Quixote ficara sabendo do

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sentido da grandeza que assume a “falta” para o homem. A “falta” é o “não-ser, o

máximo da liberdade para ser. Estar no não-ser é estar no grau máximo de

possibilidade de ser, é estar no mais íntimo da essência humana.

Essa possibilidade não está fora do homem que, desde o 1o Périplo, muito

corre, muito fala, muito escreve, num fazer descontrolado, agindo um agir sobre o já

existente, sobre o já dito, sobre o já publicado. A possibilidade de felicidade, como

diz Heráclito no fragmento 123, “o desvelado ama velar-se”, está no amor.

Sabe o que dizer, mas o estigma da loucura o inibe, teme não acreditarem.

Por isso sua atenção se volta para o como contar. Afinal, “para contar e

desencantar, não basta falar, é preciso “falar”.

Só então, Dom Quixote elabora tudo em seu coração. Por amor precisa falar,

contar a boa nova. Ainda mais que se lembra do compromisso assumido com

“Montesinos”, o prefeito de “la cueva”, de contar ao mundo, tudo o que experienciara

dentro de “la cueva”. E não é só esse, o compromisso. Resta ainda, o de libertar

todos os que estão encantados dentro de “la cueva” e que dali não podem sair,

libertá-los do encantamento.

A viagem não acabou. Outro Périplo, outra volta no círculo. O que falta ainda

recolher, do que ficou encolhido?

É nesse momento que Dom Quixote resolve prosseguir viagem e, junto

conosco, entra no 3o Périplo.

Percebemos que estamos ingressando no terreno da obra de arte,

considerando alguns referenciais apresentados na própria obra. Um deles é o

tempo: Dom Quixote a todo o momento lança essa questão do tempo como algo que

está sempre em aberto como possibilidade futura.

Com tanta responsabilidade: a de desencantar e libertar, a de contar ao

mundo a sua própria necessidade de compreender toda “pendência” que percorre ta

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obra, a “pendência” da obra de arte que deixa ainda no ar o dilema “mentira-

verdade”, Dom Quixote decide resolver tudo de uma só vez. Com uma só cajadada,

quer matar todos os incômodos “coelhos” da modernidade. “Coelhos” não, o que vai

enfrentar de verdade, Dom Quixote, são outros animais simbólicos que trazem à

tona a questão da obra de arte. Aqueles animais assustadores que estão na

superfície do lago, os mesmos “anfíbios” de que nos falou Octavio Paz.

Assustadores, talvez, só na aparência do desconforto paradoxal de não serem uma

só coisa, de viverem na água e na terra, de transitarem na ambigüidade.

Só quando Dom Quixote resolve aceitar a ordem, ordem essa que, embora

pareça vinda “del canónigo”, com quem estava dialogando sobre serem as novelas

de cavalaria, mentira ou verdade, só nesse momento, espontânea ela acontece. É

Dom Quixote, ele mesmo quem responde. Responde a si, a sua própria pergunta.

Descobre e põe fim ao dilema que, atormentando a si e a todos, cruzou toda obra:

“¿habían de ser mentira?” Descobre que, o que essa pergunta estivera todo tempo

perseguindo, era a verdade metafísica, a mesma que formatou o personagem-plágio

de Avellaneda – “Don Quijote el Malo”, Dom Quixote o “Falso”.

A essa pergunta recorrente, “¿habían de ser mentira?”, tem Dom Quixote a

resposta nas mãos. É Dom Quixote quem vai responder definitivamente: “léalos”.

“Léalos” é a resposta para o dilema que atormenta Dom Quixote desde o

início da obra.

É como se dissesse a si mesmo: se quer saber de si e da realidade, se quer

contar algo que viveu, leia-se a si mesmo, no processo de estar lendo o mundo;

conte-se a si mesmo, contando o mundo.

Dom Quixote percebe, então, que a batalha que precisa travar está mais para

dis-puta do que para batalha. A batalha a ser travada no futuro, é chegada, enfim, a

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sua hora. E a dis-puta será travada na clareira que se abre em nosso tempo, no

tempo desta leitura-pesquisa, no tempo da pós-modernidade.

Com isso fica posta a questão da essência da obra de arte. Só então Dom

Quixote se dá conta de que esse é o “falar” ideal que há muito o preocupava. Para

que todos o compreendessem, era preciso falar como obra, era preciso ser obra, era

preciso ser, ele mesmo, um experienciar. Era preciso ser auto-diálogo e consigo

mesmo dialogar __ deixar falar, dentro de si, a voz do logos, atento, todo escuta, para

só assim, como obra, abrir-se ao poder-ser.

A verdade da obra é poder-ser, é ser abertura para ser-no-tempo o desvelo

da verdade.

Conclui-se, então: tanto a essência do homem é poiesis, como a essência da

obra é poiesis. A essência do homem e da obra-de-arte é ser poder-ser, é ser

possibilidade, é poder-ser possibilidade.

Ao se contar, Dom Quixote conta, não só a sua verdade. Ao se contar, Dom

Quixote convoca todos os homens a com ele saírem à pro-cura de si mesmos, à pro-

cura de sua verdade, à pro-cura de sua essência que é ser Cura também.

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