Dojo Samurai

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33 21 AGOSTO 2011 32 21 AGOSTO 2011 Uma sala de um pavilhão na penumbra e sem viva alma. Meia dúzia de sacos pendurados e abandonados a solicitar pancada. E um silêncio gritante a implorar o ruído seco e estrondoso de pontapés e murros. Este cenário até podia ser uma excepção, mas na realidade é o habitual ambiente do recinto de treino do campeão da Europa de Karaté Shukokai, na categoria +80 kg. Nuno Dias é português e trabalha só, todos os dias, para singrar entre a elite mundial e por mera realização pessoal... NUNO DIAS KARATÉ TEXTO SOFIA RAMOS SILVA FOTOGRAFIA PEDRO APERTA CAMPEÃO SOLITÁRIO Nuno Dias tem uma figura impressio- nante e incapaz de disfarçar as primei- ras impressões que remetem de imedia- to para cliente assíduo de ginásio. Pois bem, as aparências, neste caso, não en- ganam e, de facto, o karateca é obceca- do pela actividade física. Vive e traba- lha para a prática desportiva há vários anos, um dos segredos, na sua opinião, para o sucesso e resultados de monta conquistados em quase duas décadas dedicadas ao karaté. O último grande êxito tem menos de um mês, a vitória no Campeonato da Europa, mas a prepara- ção, essa, e a dedicação à modalidade começou há muitos anos, quando tinha apenas 11 anos e não passava de um mi- údo. “Pode-se dizer que foi amor à pri- meira vista”, recorda o antigo fã dos fil- mes de Jean-Claude Van Damme. Aliás, foi esta atracção por películas conecta- das com as artes marciais que levou o actual campeão europeu a lançar-se à aventura nos Bombeiros Voluntários da Parede onde, na altura, residia. A con- sequência foi nunca mais abandonar a ideologia e ganhar a convicção de se ter tornado numa pessoa melhor, note-se, graças à carreira construída de kimono. “É uma modalidade que, sobretudo, en- sina a respeitar o próximo e a saber es- tar em sociedade. Sou uma pessoa bas- tante tranquila”, explica o agora atleta do Clube Nacional de Ginástica, alu- dindo a uma forma de estar “zen” tan- to na vida privada como em competição.

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Uma sala de um pavilhão na penumbra e sem viva alma. Meia dúzia de sacos

pendurados e abandonados a solicitar pancada. E um silêncio gritante a implorar o

ruído seco e estrondoso de pontapés e murros. Este cenário até podia ser uma excepção, mas

na realidade é o habitual ambiente do recinto de treino do campeão da Europa de Karaté

Shukokai, na categoria +80 kg. Nuno Dias é português e trabalha só, todos os dias, para

singrar entre a elite mundial e por mera realização pessoal...

NUNO DIAS

KARATÉ TEXTO S O F I A R A M O S S I L V A FOTOGRAFIA P E D R O A P E R T A

CAMPEÃO SOLITÁRIO

Nuno Dias tem uma figura impressio-nante e incapaz de disfarçar as primei-ras impressões que remetem de imedia-to para cliente assíduo de ginásio. Pois bem, as aparências, neste caso, não en-ganam e, de facto, o karateca é obceca-do pela actividade física. Vive e traba-lha para a prática desportiva há vários anos, um dos segredos, na sua opinião, para o sucesso e resultados de monta conquistados em quase duas décadas dedicadas ao karaté. O último grande

êxito tem menos de um mês, a vitória no Campeonato da Europa, mas a prepara-ção, essa, e a dedicação à modalidade começou há muitos anos, quando tinha apenas 11 anos e não passava de um mi-údo. “Pode-se dizer que foi amor à pri-meira vista”, recorda o antigo fã dos fil-mes de Jean-Claude Van Damme. Aliás, foi esta atracção por películas conecta-das com as artes marciais que levou o actual campeão europeu a lançar-se à aventura nos Bombeiros Voluntários da

Parede onde, na altura, residia. A con-sequência foi nunca mais abandonar a ideologia e ganhar a convicção de se ter tornado numa pessoa melhor, note-se, graças à carreira construída de kimono. “É uma modalidade que, sobretudo, en-sina a respeitar o próximo e a saber es-tar em sociedade. Sou uma pessoa bas-tante tranquila”, explica o agora atleta do Clube Nacional de Ginástica, alu-dindo a uma forma de estar “zen” tan-to na vida privada como em competição.

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“Já tive algumas lesões violentas. Tenho de substituir um dente e, uma vez numa prova, magoei-me na tíbia - acumulou lí-quido e passei horas a fio com dores -, mas o karaté não é violento. Existe ‘fair-play’ e muito respeito pelo adversário”, garante Dias que, somando tudo ao lon-go destes anos, encontra mais motivos de alegria do que de tristeza.

E não é caso para menos, afinal, são quatro títulos no Campeonato do Mundo e três no Campeonato da Europa, ambos em Shukokai, para exibir e isto só para referir alguns dos troféus mais sonantes já amealhados.

“Se Não TReiNAR SiNTo-me mAl”

Atendendo a tal sucesso, qual é o segre-do? Como explica o domínio avassalador em Portugal, com 14 títulos conquistados? Não tem adversários? E no estrangeiro qual é a sua mais-valia para acrescentar tantas vitórias ao palmarés? Estas foram algumas das várias perguntas “bombar-deadas” em jeito de “ataque” ao karateca, já que a força física não era e nem é o nos-so forte, mas a defesa simples e aplicada suavemente desarmou-nos e, ao mesmo tempo, infligiu-nos um golpe duro de di-gerir e compreender. “Sempre dediquei

muitas horas da minha vida ao desporto. Sempre treinei muito e com gosto. Quan-do estudava, por exemplo, saía das aulas e ia o caminho todo a praticar”, começou por explicar, antes de proceder a mais es-clarecimentos. “O karaté ajuda os prati-cantes a ter um bom nível de concentra-ção, logo, implica uma boa organização. No meu caso, planeio muito bem o meu dia. Acordo às 06h45, faço entre 1h30 a 2h00 de ginásio, à base de trabalho físi-

co e às vezes técnico, vou trabalhar e ao fim do dia, por volta das 18h30, dou au-las de karaté, antes de fazer o segundo treino diário, este já um trabalho mais desportivo e de competição.” Com quem? “Ultimamente tenho tido a companhia do grupo do ‘Dojo Samurai’, um projecto em

que estou envolvido, mas essencialmente treino só!” Só, sozinho? “Num desporto de combate não é muito aconselhável, mas é a realidade. Executo movimentos no ar, em velocidade, procurando a perfeição, e imagino situações de combate. Não é fácil e o ideal é treinar com um parceiro!” E a motivação? “Há pessoas que não conse-guem treinar sozinhas, mas como cresci assim, acabou por se tornar um hábito. E se não treinar, sinto-me mal. Para mim, é um prazer treinar!” sublinha, reconhecendo ser uma pessoa dotada de força-de-vontade, determinada e metódica para poder competir ao mais alto nível e com êxito. “É fun-damental para alcançar re-sultados”, justifica.

A estratégia ou método de trabalho, segundo o próprio confessa, não é o mais indica-do, sobretudo, em alta competi-ção, mas pelos vistos está a dar fru-

NUNo DiAS SAGRoU-Se ReCeNTemeNTe CAmPeão DA eURoPA De KARATÉ SHUKoKAi, NA CATeGoRiA +80 KG. A DeDiCAÇão À moDAliDADe ComeÇoU AoS 11 ANoS e “Foi AmoR À PRimeiRA ViSTA”

PRiNCiPAiS ReSUlTADoS

14 vezes campeão nacional

4 vezes vencedor da Taça de Portugal

4 vezes campeão mundial shukokai

3 vezes vice-campeão mundial shukokai

3 vezes campeão europeu shukokai

Medalha de ouro na Taça do Rei de Marrocos (WKF)

Medalha de ouro do Open de Budapeste 2010 (WKF)

Medalha de prata no Open de Paris 2008 (WKF)

Medalha de prata no Open da Alemanha (WKF)

Medalha de bronze no Open de Paris 2010 (WKF)

Medalha de bronze no Open de Itália 2009 (WKF)

9º lugar no WKF 2008, em Tóquio

NAS PISADAS DE NUNO DELGADOAlém de competir e dar aulas de karaté, Nuno Dias tenta ainda encontrar tempo para ser uma espécie de embaixador da modalidade em Portugal, a exemplo do trabalho efectuado por Nuno Delgado no judo. “Eu e um grupo de amigos temos um evento, o ‘Road Show’, para divulgar o karaté em todas as localidades do nosso país. Depois, ainda estou envolvido num projecto, o ‘Dojo Samurai’, aberto a praticantes de qualquer estilo para promover a interacção entre atletas, de forma a que o treino seja mais rico e diversificado”, explica o antigo nadador-salvador e detentor de curso de pára-quedismo, actividade posta de lado “por receio de contrair alguma lesão”. Como cedo chegou à conclusão de não poder cingir-se exclusivamente à modalidade, tirou uma Licenciat-ura de Ciências da Comunicação, na vertente de jornalismo. Aliás, profissão essa exercida por Nuno Dias quando não está a escapulir-se ou aplicar golpes de karaté. Afinal, é o único a praticar Shukokai de alta-competição em Portugal.

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tos e, aos 33 anos, só falta a Nuno Dias realizar um dos seus sonhos. “O meu ob-jectivo é ganhar o título do WKF, o World Karaté Federation, mas é muito difícil. Os atletas são todos profissionais e treinam o dia todo, é um ritmo competitivo com-pletamente diferente. Já ganhei a alguns destes atletas em outras provas, mas o meu melhor resultado no WKF é um 9º lugar, em 2008, entre pouco mais de 100 atletas. Não foi um mau resultado e só perdi com o campeão mundial, mas não é

COM DEDICAÇÃO MAS “SEM” DINHEIRO

Nuno Dias é casado e tem uma filha, Marta, de quase dois anos, a quem dedica parte dos fins-de-semana quando não está em provas. “Mas praticamente vivo

para o karaté”, admite. “Até nas férias com a família vou sempre para locais onde possa treinar”, acrescenta o dedicado atleta, lamentando apenas não poder assegurar, no início da temporada, a presença nas provas da Golden

League. “São essas provas que preparam os atletas para o WKF, o meu grande objectivo. Mas como os patrocínios não são muitos, tenho de gerir o meu calendário prova a prova”, conta Dias, revelando pagar do próprio

bolso as despesas de várias competições que considera fundamentais. Além de representar com “orgulho”, como refere, algumas marcas

nacionais (ZTC, Gold Nutritrion e Operação Principal) e contar com o suporte da Federação Nacional de Karaté nos Europeus e Mundiais,

Nuno Dias é ainda apoiado pela Budo-Nord, empresa sueca que recon-heceu qualidades no português para divulgar a marca pelo mundo fora.

o meu objectivo”, frisa o karateca, confes-sando faltar-lhe “um pouco mais de sor-te, confiança e apoios, de maneira a ga-rantir outra estabilidade e chegar a essa competição no melhor nível físico e psi-cológico possível” para lutar por um lu-gar entre a nata mundial.

“NUm DeSPoRTo De ComBATe Não É mUiTo ACoNSelHÁVel TReiNAR SoZiNHo, mAS É A ReAliDADe. eXeCUTo moVimeNToS No AR, em VeloCiDADe, e imAGiNo SiTUAÇÕeS De ComBATe. Não É FÁCil e o iDeAl É TReiNAR Com Um PARCeiRo”, CoNTA o ATleTA