Dois Irmãos Da Escrita à deriva

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    DOIS IRMÃOS : DA ESCRITA À NARRATIVA POÉTICAEste artigo reflete sobre o entrecruzamento de suportes arquivísticos no romance Dois irmãos , de Milton Hatoum. Desse

    intercâmbio parece resultar uma narrativa poética que provoca uma mudança da escrita operada a partir da própria escrita.

    DOS HERMANOS : DE LA ESCRITURA A LA NARRATIVA POÉTICAEste artículo reflexiona sobre el cruce de soportes archivísticos en la novela Dos hermanos , de Milton Hatoum. De este

    intercambio parece resultar una narrativa poética que provoca un cambio de la escritura operado a partir de la propia escritura.

    شعرية

      روية

      ى

      كتا ة

     من

    ان:  ي

     شا لتو حاطو .فد نتج ع هذ لتبا ية شرية  لى حدث  يتأم هذ لا اط لدع ش ف ية

    .

    نسا

     

    لكتا ة

     

    م

     

    نقا

     

    لكتو ة

     

    لكتا ة

     

    ف

     

    غر

    DEUX FRÈRES : DE L’ÉCRITURE AU RÉCIT POÉTIQUECet article s’interroge sur l’entrecroisement de supports d’archives dans le roman Deux Frères  de Milton Hatoum. De cet échange

    semble résulter une narration poétique donnant naissance à un changement d’écriture issu de la propre écriture.

    THE BROTHERS : FROM PROSE TO POETIC NARRATIVE

    This article reflects on the convergence of imagery in the novel The Brothers , by Milton Hatoum. This exchange seems to result in a

    poetic narrative that leads to a change in the operated prose, from the prose itself.

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    T omemos esta imagem: uma carta ou mesmo um bilhe-te escritos há muitos anos provavelmente repousamno fundo de alguma gaveta, nalgum longínquo arqui-

     vo pessoal. Recordá-los significaria acessar novamen-te seu conteúdo, uma determinada informação. E mais que isso: a

    tristeza ou a alegria que nos causaram, a palpitação ou o alívio, afrustração ou o entusiasmo. E numa perspectiva ainda mais sutil,recordá-los seria lembrar a cor que as palavras tinham ou passarama ter na memória, o cheiro da tinta e do papel, a textura, a luz daque-le dia em que se leram e releram as palavras, talvez algum som. Aescrita, aquele contato com a escrita, rodeada de outros suportes,leva o sentido de contato ao limite. E recordar a escrita já não é mais

    tão-somente recordar a escrita.Em que ponto pode haver uma subversão ou mesmo uma ultra-passagem da escrita operada a partir dela mesma? Ou seja, como,escrevendo, pode-se contrariar a própria escrita? Quando Pierre Nora(1997), por exemplo, propõe-se a pensar os “lugares de memória”nas sociedades contemporâneas, o faz sempre com o olhar positiva-mente voltado para sociedades arcaicas, às quais ele credita o uso deuma autêntica memória, em contraposição à artificialidade dos cha-

    mados lugares de memória atuais, suportes da historiografia. Isto é,para Nora, o suporte pode indicar para que lado tende a “memória”:

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    se para a espontaneidade da “verdadei-ra” memória – através da oralidade, por

    exemplo – ou se para o engessamento deuma memória artificial – marcada peloscódigos historiográficos, pelos museus,etc. Em resumo, Nora busca estabeleceruma distinção completa entre históriae memória. Esta, encontrada em suapura forma nas sociedades arcaicas. Eaquela, típica das sociedades modernas.Em termos conceituais, as diferenças seestabeleceriam especialmente, do ladoda memória, pela fluidez, pela impre-cisão, pela dinâmica e pelo caráter doinacabado em contraposição à fixidez,à rigidez e à objetividade historiográ-fica. E no que se refere aos suportes, a

    memória estaria longe de uma mate-rialidade, se ligaria mais ao inapreen-sível da oralidade, enquanto a históriatrabalharia com suportes de ordemmaterial e institucional, especialmentedocumentais. A oposição que se perce-be aqui é entre subjetividade e objetivi-dade. E um balanço feito por Jacques Le

    Goff (2003) a respeito do valor dado aodocumento como verdadeiro, objetivo,indiscutível e autêntico pode nos fazerperceber como disso deriva uma marcada escrita – pelo menos grande partedela – nas sociedades ditas ocidentais:a escrita seria, a princípio, um desses

    suportes calcados na objetividade.De início, se poderia pensar que aliteratura se salva dessas pretensões,pelo seu caráter eminentemente artís-tico. Mas não nos apressemos, lem-bremos ao menos da vontade de obje-tividade do Naturalismo, jamais ple-namente cumprida, claro. Lembremos

    também da armadilha biográfica, sem-pre a espreitar com uma certa aura de

    autenticidade nos relatos sobre as pes-soas “de verdade”, exatamente como

    elas foram. Permanece a questão: comosubverter a escrita de dentro dela?

    Proponho pensarmos a escrita comoum suporte arquivístico. A princípio,podemos vê-la como um tipo de suportecom tendência a fixar arquivos. Mas acontradição se instalará à medida quelembremos daquela carta a que me referino início deste ensaio. Nela, fica eviden-te como os suportes não existem sozi-nhos, como acessar um significa acionaruma rede de suportes e os significadosque disso possam derivar. Nosso objetoserá o romance Dois irmãos (2000), doescritor amazonense Milton Hatoum,

    pois creio que ali estão tanto a escolhade uma narrativa poética quanto a deum narrador poético – tentarei explicarambos os termos a seguir – que propi-ciam uma escrita da dispersão, da incer-teza, a partir de quando o narrador, paraescrever seu arquivo pessoal, acionadiversos suportes além da escrita. Neste

    romance parece ocorrer um trabalho de(con)fusão de suportes efetuado pelonarrador, o jovem Nael. Minha hipóte-se é que, ao acessar arquivos impreci-sos – arquivos orais, arquivos espaciaiscomo a cidade, a natureza, a casa e ocorpo –, o narrador reconfigura a narra-

    tiva fazendo-a transcender o caráter deexterioridade. Ou, melhor ainda, encon-tra na exterioridade a brecha do sentido,lembrando aqui um ensaio de RobertoCorrêa dos Santos (1999).

     A escrita, em Dois irmãos, está dilu-ída em narrativa. Ou seja, é a narrativaque escreve contra a escrita. Mas uma

    narrativa poética. Poético vai aqui com-preendido no sentido mesmo de poiésis,

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    do fazer, ou do que está se fazendo, sereelaborando, se reconstituindo per-

    manentemente. As principais caracte-rísticas dessa narrativa poética seriama imprecisão e o olhar e o ouvir comoseus sentidos construtores.

    Pensemos inicialmente a impreci-são. O silêncio, que a princípio chegaa ser negativo porque nele está guar-dado o segredo da concepção de Nael– qual dos gêmeos seria seu pai: Omar?

     Yakub? –, passa a ser a principal fontede invenção para o narrador. O silênciogeral da casa, sobre esta e outras ques-tões, chama-o a buscar diversas fontesde arquivo, o que não está dito no ditoe o espaço, que não é dito, mas pode ser

     visto. O silêncio, enfim, lhe dá licençapara a invenção.Nesse inventário – e aqui pode-

    mos brincar com a palavra: listarbens ou inventar – Nael recorre anarrativas indiretas, vindas de nar-radores indiretos. Marcos FredericoKrüger Aleixo (2002) chamou aten-

    ção para isso elencando uma sériede narradores “afluentes” em Doisirmãos, dentre os quais destacam-seHalim, o avô de Nael, e Domingas,a mãe, índia que desde muito jovemprestava serviços na casa da famílialibanesa. Deles vem o contato com a

    narrativa oral. Muito do que constanesse inventário deve-se aos relatosorais de Halim e Domingas. E delespodemos destacar dois pontos fun-damentais: o esquecimento e a dis-persão da autoria, ambos ligadosdiretamente à ideia de imprecisão.

    Sobre o esquecimento, destaca-

    se o seguinte trecho, em que Halimconta a Nael os primeiros dias depois

    de ter-se casado com Zana. Num certomomento Halim para a narrativa.

    Nael escreve:

    Ele abanava o tabaco de nargui-

    lé, a fumaça cobria-lhe o rosto e a

    cabeça e o sumiço momentâneo de

    suas feições era acompanhado de

    um silêncio: o intervalo necessário

    para recuperar a perda de uma voz

    ou uma imagem, essas passagens

    da vida devoradas pelo tempo. Aos

    poucos, a fala voltava: membranas

    do passado rompidas por súbitas

    imagens (Hatoum, 2000: 55).

    Por detrás dessa fumaça da memó-

    ria talvez estivesse um sentido origi-nal, pensaríamos, apressados, mas adispersão da fumaça não traz certe-zas: traz “súbitas imagens”, traz reta-lhos. Entretanto, é desses retalhos queNael constrói a rede de sua narrativa.O incerto transmutando o caráter dainformação. Assim, a narrativa escrita

    de Nael já se funda na incerteza.Domingas também é uma fonte de

    narrativas orais para o narrador deDois irmãos, mas em vez de dar umexemplo de histórias contadas por ela,talvez fosse mais interessante lem-brar os momentos em que ela canta.

    Indo para uma visita no interior do Amazonas, de onde ela provém, aca-lentando Nael ou simplesmente can-tando sozinha, alguma coisa nessecanto toca o narrador. E esse cantoàs vezes é entoado em nheengatu(Hatoum, 2000: 240). Se ouvirmos ocanto junto aos gazais – dísticos que

    Halim utilizara na conquista de Zana eque o velho libanês às vezes repetia em

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    árabe –, notaremos como o conteúdoaparente pouco importa, a informação

    precisa de nada adianta. Ainda queNael não entenda o falar estrangeiroa ele – nheengatu ou árabe –, existea possibilidade de transformar issoem escrita. E a escrita nascendo forado entendimento informacional, masdentro da compreensão do ouvido,dos sentidos é uma escrita alterada,subversivamente alterada. Diz Nael:

    Eu não compreendia os versos

    quando ele falava em árabe, mas

    ainda assim me emocionava: os sons

    eram fortes e as palavras vibravam

    com a entonação da voz. Eu gostava

    de ouvir essas histórias. Hoje, a vozme chega aos ouvidos como sons da

    memória ardente (Hatoum, 2000: 51).

    Indo buscar esses arquivos orais,Nael encontra uma certa solidariedadedos narradores indiretos. Ao falar, eles

     jogam seus relatos no ar, permitem que

    eles viajem. Não assinam com caneta oque falam. Não cercam nem registrampropriedade de suas histórias. Falampara ouvidos que os queiram ouvir.Ressignificam seus traumas assim, e aprincípio é isso que interessa: contar erecontar. Elaborar perdas. Nael, entre-

    tanto, é o ouvido interessado. E cons-trói seu arquivo quase como se esti- vesse roubando histórias, roubando oarquivo alheio, destruindo a fronteiraentre os arquivos do eu e do outro. Aoentrar para os arquivos do narradorprincipal, as narrativas subjacentesganham outro sentido, porque postas

    em nova rede de ressignificação. Aoolhar e ouvir o outro, Nael inventa a

    si mesmo. E é bom salientar: inventa.Das bocas de Halim e Domingas jorram

    as palavras como se viessem do alto deuma, por sua vez muito alta, cachoei-ra, e vêm batendo nas pedras, o jorrodesfazendo-se em fios, gotas e vapord’água. E aqui em baixo, de mãos espal-madas, Nael colhe a evanescência damemória. Memória líquida, sem formafixa, assumindo, sempre transitória, aforma do recipiente em que esteja. Enas mãos, escapa por entre os dedos.Esse é um dos seus materiais. Daí euter chamado esse narrador de poético.Porque, além de a narrativa ir-se cons-tituindo dinamicamente, também ele,o narrador, nos dá a sensação de que

    está inacabado a cada novo instante.O que ele nos mostra de si é tambémo incerto. Mas o vigor narrativo tornaisso convincente. Ao menos até que opróximo passo seja dado.

     A escrita documental, que se pre-tende verdadeira, sustenta-se funda-mentalmente pelas ideias de proce-

    dência – autêntica – e de autoria ouautorização para enunciar, e sabemosque esta última função tem na auto-ria uma forte marca de cerceamentoda circulação do saber – como muitobem já observou Foucault (1987). Noentanto, com a noção de autoria dis-

    persada pelo contato do olhar e doouvir, a possibilidade de trânsito entreos discursos e de mútua apropriaçãoparece efetivar-se.

    Dois irmãos, desta maneira, pro-move o encontro de duas formas denarrar: aquela baseada no narradorbenjaminiano e uma outra percebida

    por Silviano Santiago. O narrador deBenjamin é aquele que conta a expe-

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    riência vivida, sua sabedoria está em“dar conselhos” que resultaram de

    todo um acúmulo dessa experiên-cia (1986). Nael não é esse narrador,mas ainda o encontra em Domingase Halim. O projeto de narrativa deNael se sustenta mais em ouvir e ver– em testemunhar –, o que o aproxi-ma muito do narrador contemporâ-neo, sobre o qual se deteve SilvianoSantiago (1989). Ele se distancia doque narra, distancia-se pelo olhar,para ter perspectiva. Lembremos queNael mora nos limites do quintal dafamília libanesa. Entra na casa, tra-balha na casa, mas à noite, quandoescreve, quando retorna ao pequeno

    quarto nos fundos do terreno, recupe-ra metaforicamente sua distância, suaperspectiva de observador. Assim eleescreve: “muita coisa do que aconte-ceu eu mesmo vi, porque enxergueide fora aquele pequeno mundo. Sim,de fora e às vezes distante. Mas fuio observador desse jogo e presenciei

    muitas cartadas, até o lance final”(Hatoum, 2000: 29). Portanto, o que

    parecia ser aventura de um desvendar-se, de um descobrir sua procedência,passa a ser secundário no romance. Oolhar e o ouvir de Nael estão comple-tamente voltados para o outro. E suaprocedência será o que ecoar disso,mas o que ecoar aos nossos ouvidos,de leitores. Outros observadores quesomos, para lembrar ainda Silviano.

    Mesmo assim, o narrador contem-porâneo Nael encontra os narradorestradicionais, como disse há pouco.Creio que esse encontro abre duaspossibilidades que se interligam. Aprimeira, entre a perspectiva narrati-

     va pós-moderna com a elaboração dacrítica benjaminiana sobre a narrativamoderna – parece-me que aqui MiltonHatoum nos dá uma ideia do quantosua geração pôde elaborar e transmu-tar a educação estética moderna queainda lhe foi prestada. É um narradorassim como Nael, pós-moderno como

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    ele, que busca no suporte oral, advo-gado por Benjamin, elementos para

    sua composição narrativa – apesar detodas as diferenças entre este tipo denarrador e o tradicional, corretamen-te apontadas por Silviano Santiago.E a segunda, com relação ao sabernarrativo, ou seja, a partir de que anarrativa pós-moderna elabora seusaber. E parece fazê-lo com o que ficado cruzamento entre a tradição oral– a imprecisão, a dispersão da auto-ria e, para além da crítica sobre umaincerteza do saber nos tempos atuais,o saber da incerteza – e os suportescaros à pós-modernidade, fundamen-talmente espaciais e também incertos.

    E neste ponto o romance de MiltonHatoum é bastante profícuo.O professor Marcos Frederico

    Krüger Aleixo (op. cit. p. 209-211)relaciona ainda alguns elementosno romance de Hatoum que funcio-nariam como narradores subjacen-tes a Nael. Há pouco destaquei dessa

    lista Domingas e Halim, mas a eles juntam-se, segundo Aleixo, subnar-radores como Yakub – quando contaao pai porque não falara com Omar,passagem retransmitida, certamenteem diferença, a Nael –; Zanuri, que,por encomenda de Zana, espionava

    Omar; o tempo e o espaço. Por ques-tões de recorte, pensemos no espaçocomo arquivo. Até porque poderemos

     ver que, em Dois irmãos, o tempo sefaz notar sobremaneira pelo espaço.

    Marcos Frederico cita a Amazônia ea cidade de Manaus como espaços quefalam na narrativa. Evidentemente, ele

    aqui faz uma distinção entre o interiore a capital. Quanto ao interior, teríamos

    as histórias que vêm descendo o rio, oucomo Marcos transcreve do romance,

    “vinham dos beiradões mais distantese renasciam em Manaus, com força decoisa veraz” (idem, p. 210). Ainda parao professor, no que se refere à cidade,também o boca-a-boca é a fonte nar-rativa. “As vozes das pessoas que con-tavam histórias logo ao amanhecer”,nas palavras de Nael, que aqui citotambém no boca-a-boca, via MarcosFrederico (p. 211). Mas quero chamaratenção para o seguinte: parece que naanálise do professor Marcos o espaçonão se expõe como um espaço, justa-mente porque, nos exemplos que eledestaca, o espaço fala, faz-se ouvir

    por vozes, o que demanda mais tempodo que espaço. Acho, entretanto, queo espaço a gente ouve com os olhos.Nael, pelo menos, percorre o espaçocom os olhos.

    Comecemos pela cidade. Conformea narrativa de Nael acompanha o esfa-celamento das relações entre a família

    de libaneses, somos levados, pelo seuolhar, a observar uma certa cidade a sedesfazer também. A chegada da para-fernália moderna altera uma série dequadros. Sem nenhuma sombra de sau-dosismo, o que está à frente de nossosolhos é o soterramento de formas de

    espacialização tomadas por subalter-nas, tais como a Cidade Flutuante, quepercorremos juntamente com Halim,em seus passeios. Trata-se de umaglomerado de casas erguidas sobretoras que por alguns anos constituí-ram um verdadeiro bairro de Manause que medidas públicas – estéticas,

    sanitárias e de segurança – naufra-gou. Foi naufragado, para ser correto.

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    Um bairro que desapareceu. Desapareceramcom o bairro, para ser correto novamente.

    No romance, a agonia de Halim, já em sua velhice, refugiado no último, roto e peque-no espaço que lhe resta, nos altos da loja dafamília, corresponde ao afugentamento detoda uma história espacial da cidade, postamais e mais em marginalidade.

     Aliás, o discurso espacial ou o arquivoespacial que Nael acessa para compor suanarrativa é fundado nas relações de centroe margem. Somos levados a olhar a partirda perspectiva marginal de Nael, fruto dabastardia. Marginais, diga-se de passa-gem, já são os migrantes. Mas estes têm umpoder de negociação diferente do de Nael– depois retomarei essa questão. Na pers-

    pectiva oposta à de Nael, temos Omar, cujasaventuras se dão diariamente com suas saí-das de casa para uma maior marginalidade,entretanto forçada – se bem que a estéticade vida que Omar escolhe para si, boêmiapor excelência, vai gradativamente tornan-do-se marginal, com o avanço da sociedadetecno-burocrática, muito mais próxima à

    estética de Yakub. Lembremos, em relaçãoa Omar, que uma de suas amantes, Dália,a Mulher Prateada, morava num subúr-bio distante: “uma casa derruída da VilaSaturnino, onde, indo para o Norte, Manausterminava. Era a última casinha da vila,situada num pequeno descampado cheio

    de carcaças de carroça e aros de bicicletaenferrujados” (Hatoum, 2000: 105). E comoutra, a Pau-Mulato, ele escondera-se numlimiar, nem tão longe da cidade como ima-ginara Halim, nem tão à vista como deseja-ra Zana: no porto, local de passagem.

    Somos observadores também do espa-ço da casa, seus móveis, a sala, a princípio

    cheia e depois a esvaziar-se de suas come-morações e de todas as suas presenças:

    Zana passou a chave na porta do quar-

    to, e do balcão ela viu a lona verde que

    cobria os móveis de sua intimidade. Viuo altar e a santa de suas noites devotas,

    e viu todos os objetos de sua vida, antes

    e depois do casamento com Halim. Nada

    restou da cozinha nem da sala. Quando

    ela desceu, a casa parecia um abismo.

    Caminhou pela sala vazia e pendurou a

    fotografia de Galib na parede marcada

    pela forma do altar. Nas paredes nuas,

    manchas claras assinalavam as coisas

    ausentes (Hatoum, 2000: 252).

     Até a transformação completa da casaapós a venda para o comerciante Rochiram:

    Os azulejos portugueses com a ima-gem da santa padroeira foram arranca-

    dos. E o desenho sóbrio da fachada, que

    era razoável, tornou-se uma máscara de

    horror, e a ideia que se faz de uma casa

    desfez-se em pouco tempo (Hatoum,

    2000: 255).

    Chamo ainda atenção, nesse discurso doespaço, para o corpo como um outro arqui-

     vo espacial acionado por Nael. Interessa-lheperceber as marcas que os corpos ganham edisso compreender algum sentido. O enve-lhecimento de Halim, a resistência da belezano rosto de Zana, ao menos até certo ponto.

     A aparência dos gêmeos, ao mesmo tempotão semelhantes e distintos – “na aparên-cia podia ser o outro, sendo ele próprio”(Hatoum, 2000: 135) –, a pequena meia-luana face de Yakub, o magnífico e quase into-cado corpo de Rânia. São marcas em corposque “falam” por si. É claro que há a media-ção da escrita de Nael. Mas há também

    espaços que só o olhar penetra. E chegamosa esse limite entre o olhar e a palavra. E

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    usufruímos tanto do poder de um quanto dooutro. Eis o ponto onde os arquivos se entre-

    cruzam. A escrita torna-se também ela umcorpo, que vai envelhecendo e renovando-sepor necessidade de que a narrativa prossiga. Ea demanda temporal para o caminho do olharsobre a escrita nos dá uma sensação espacialsobre o tempo. Assim, se o tempo narra, con-forme observou Marcos Frederico, se ficamossabendo sobre seus efeitos, é o espaço que nosinforma sobre eles.

    Tendo acessado diversos suportes arqui- vísticos para compor sua narrativa, Naelchega a um ponto em que nós, que o acom-panhamos com os olhos, estamos repletos deimagens cruzadas, arquivos cruzados, masque, no entanto, nos chegam pela escrita. É

    quando percebemos como a escrita transubs-tanciou-se no decorrer da narrativa. Nael tal- vez buscasse sua origem, o último lance dolivro ainda é um encontro mínimo e ao mesmotempo máximo com Omar, um de seus prová-

     veis pais. Mas antes disso, já nos era possívelperceber que, muito além de encontrar umasuposta verdadeira origem, o ato de escrever,

    a invenção da e pela escrita foi o gesto princi-pal da narrativa em Dois irmãos.

    Lembro-me de que num de nossos encon-tros nos seminários de literatura comparadaa respeito dos arquivos literários, na UFMG,o professor Reinaldo Marques comentou umartigo de jornal a respeito de arquivos iné-

    ditos do médico nazista Josef Mengele. Aobservação do professor foi que a manchetedava uma medida do quanto a respeito dosarquivos pode-se ter uma ideia de origempura e verdadeira, como se ali estivesse a

     verdade final sobre um fato ou uma pessoa.Trata-se de uma visão documental do docu-mento, recordando novamente Le Goff (op.

    cit.). O trabalho do narrador Nael, no entan-to, foi de construção aberta da possibilidade

    de proveniências. Nael não escreve para a verdade porque não acessa os arquivos como

    se fossem portadores da verdade. Seu traba-lho narrativo, portanto, é de decomposiçãoe recomposição da escrita. É a escrita que oajuda a matar um pai fantasma.

    Há, no romance, algumas indicaçõesde como a escrita pode ser uma estéticado inacabado ou uma estética da petrifi-cação. Os gazais, poemas apaixonados do

     jovem Halim para Zana, escritos pelo boê-mio Abbas; a escrita marginal e vigorosa dopoeta e professor Antenor Laval, soterradapela violência do regime militar, exemplosda primeira estética. Os cálculos e projetosde Yakub, o relatório que Zanuri fez paraZana, sobre Omar, em detalhes inúteis e

    de intenções delatoras, representantes dasegunda estética. Mas a narrativa de Naelutiliza todas, ressignifica-as.

    No contexto latino-americano, é interes-sante perceber a escrita como subvertedorada ordem de uma sociedade fundamental-mente escrita, do cânone, do documento, dasletras, enfim, como diria Ángel Rama (1985).

    Mas se foi todo um arsenal escrito e intelec-tual que promoveu a imposição de certoscódigos na história da América Latina, tam-bém pela via escrita ou da cultura da escritapôde-se dar uma medida de resistência, con-forme igualmente observa Rama (idem: 126-156). Um dos símbolos dessa resistência no

    romance de Milton Hatoum é o presente queNael, ao fazer dezoito anos, ganha de Halim:uma caneta. A escrita que Nael empreenderáé de uma estética das sobras. Os livros de suaformação virão ora do que desprezara Omar– até seu uniforme de escola –, ora do quelhe enviara Yakub. A própria narrativa vêmdas sobras que o tempo deixou na memó-

    ria de Halim e de Domingas e das sobras noespaço, como já vimos. Na busca pela sua

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    procedência, Nael consegue perceberque, dado seu caráter de marginalida-

    de – filho bastardo da casa – construirsua memória requer negociação entreos suportes tradicionais de arquivos,neste caso a escrita, e sua matéria denegociação, exatamente as formassubalternas de arquivamento. Dissoparece resultar nem mais a oralidadepura – ou as outras formas de arqui-

     vamento – nem mais a escrita rígi-da. Resulta a narrativa poética, comoafirmei anteriormente. Narrativa quenasce de negociação. Os libaneses,como outros imigrantes, negociaramsua inserção na sociedade um bocadopelo comércio. Mas as trocas, intencio-

    nalmente ou não, foram bem maiores.Nael precisa achar sua forma de nego-ciação – “me distanciei do mundo dasmercadorias, que não era o meu, nuncatinha sido” (Hatoum, 2000: 262), afir-ma ele – e da sua marginalidade retiraa possibilidade de troca.

    Perante nossos olhos, vai nascen-

    do aos poucos uma narrativa comoarquivo misto. O silêncio, a incerteza,o espaço – a casa, a cidade, o corpo – atradição oral são seus materiais. Naelcruza formas conservadoras de arqui-

     vo com outras, bem mais heterodoxas.E o faz para escapar da amnésia. Aliás,

    comparando, é para escapar da amné-sia que a cultura museológica inter-cambia-se contemporaneamente coma cultura de massas, conforme obser-

     va Andeas Huyssen (1997). É assimque o museu respira um pouco mais.E é assim que a escrita, num mundoem que poucos escrevem, pode tam-

    bém respirar. E é assim que a literaturapode ainda ter fôlego.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. 2002.“O mito de origem em Dois irmãos”.Intertextos. Manaus: Editora da UniversidadeFederal do Amazonas.

    BENJAMIN, Walter. 1986. “O narrador:considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”.Obras escolhida s. 2. ed. v. 1. Trad. Sérgio

    Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense.

    FOUCAULT, Michel. 1987. A arqueologiado saber . 3. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária..

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