DOGMA95, DISPOSITIVOS MÓVEIS E EXPERIÊNCIAS TREMIDAS: … · se efetivam através de vários...
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DOGMA95, DISPOSITIVOS MÓVEIS E EXPERIÊNCIAS TREMIDAS: EM FAVOR DA LEGITIMAÇÃO DO DISCURSO AMADOR
Allex Rodrigo Medrado Araújo -UFG
Resumo O presente texto ensaia sobre as visualidades das experiências tremidas e das imagens amadoras. Para tanto utilizo da experiência estética e visual do show do U2 e das imagens e discursos do movimento Dogma95. O objetivo deste ensaio é incitar o debate acerca da legitimação das imagens amadoras, tão difundidas na contemporaneidade. Além disso, desejo esboçar como tais imagens fazem parte da cultura visual e se proliferam através das nossas experiências e do imbricamento entre as tecnologias móveis e das novas mídias. Palavras-chave: Dogma95, experiências tremidas, imagens amadoras. Abstract This paper talks about the visualities of trembling experiences and amateur images. To show this relationship, I use both visual and aesthetic experience of a U2 concert as well as, speeches and images of the movement Dogma95. The goal of this paper is to encourage people to discuss about the legitimation of amateur images, so widespread nowadays. Furthermore, I outline how such images are part of visual culture that proliferates through our experiences and the integration of mobile technologies and new media. Key-words: Dogme95, trembling experiences, amateur images.
“Imaginar não é lembrar-se. Certamente uma lembrança, à medida que se atualiza, tende a viver numa imagem”
Bérgson
Desde sempre as imagens, acredito, são vedetes das narrativas. O
homem parece, desde os primórdios, legitimar e contar sua história,
experiências ou sua visão de mundo por meio de imagens, mesmo as imagens
mentais das narrativas escritas ou das histórias contadas na tradição oral.
As imagens das pinturas rupestres da Serra da Capivara, na região de
São Raimundo Nonato no Piauí, e em Serranópolis, em Goiás, são exemplos
desta narrativa ontológica do homem pelas imagens, já bem antes da
linguagem escrita. A essas imagens, dos primórdios, já havia um desejo não só
de instrumentalização para a comunicação e o registro, mas para uma magia,
magia esta que podemos perceber entre o aparato e a obra, entre a câmera e a
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foto (ou registro), entre a pedra da caverna e a pintura, entre a escrita e o
papel.
Estas representações visuais que criam narrativas, valores, identidades
se efetivam através de vários sistemas como o das obras plásticas de arte, as
pinturas, a fotografia, o cinema, a televisão e muitos outros. Hoje se observa o
imbricamento desses sistemas na internet. Esses mesmos sistemas mediam a
compreensão e construção de idéias e conhecimento, sentidos e métodos
simbólicos. As imagens e seus discursos movem uma problemática maior: a
construção do ser, do ver e do pensar. Estas mesmas imagens assumem
diversas formas de ser, de serem vistas e o que vai acarretar diferentes e
inusitadas formas de reconhecimento e de construção de significados e
práticas dos indivíduos.
Novas situações que mostram diferentes modos de ser da imagem
podem estar diretamente ligadas aos avanços tecnológicos e seus
entrecruzamentos com as novas mídias, assim haverá formações culturais do
saber e do olhar que nos parecem inusitadas, porém cada vez mais presentes
na cultura visual. A esse avanço tecnológico que configura as necessidades da
sociedade em momentos específicos, Parente (1993) irá chamar a atenção
para essas rupturas e mutações tecnológicas com tendências à
“homogeneização universalizante (territorialização) e a tendência à
heterogeneização singularizante (desterritorialização) da subjetividade”(p.15).
Para tanto convido para este ensaio a brincar com as circunstâncias em
dialogismos (imagens e visualidades) que exercitam a pensar sobre uma
possível legitimação do discurso do amador e das imagens amadoras. O
Dogma951 no cinema traz sua “bula” de imagens amadoras, quase vídeos
caseiros com suas narrativas trágicas e existenciais, trazendo as câmeras
tremidas no ombro (ou mão) do realizador, assim como as produções e
filmagens da contemporaneidade dos dispositivos móveis.
As experiências visuais que se atualizam através dos sistemas visuais e
de seus dispositivos e aparatos estão hoje se multiplicando e desfazendo
fronteiras. Há quase uma impossibilidade de reconhecimento do que são
imagens artísticas ou não, imagens de cinema “profissional”, fotografias,
vídeos, pinturas e outras tantas visualidades que compõem nossa cultura e
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nossos saberes da aura das linguagens de artista, cineastas, fotógrafos,
artesãos consagrados e legitimados...
Na contemporaneidade a produção e construção da imagem e da
subjetividade do sujeito a partir de suas próprias produções de imagem
transformaram-se em mecanismos de poder. Penso que o sistema capital está
mudando ou nos faz acreditar nisto. Uma vez que podemos ver e ser através
do discurso e legitimação das imagens amadoras.
Nas diversas áreas da arte e da comunicação, por exemplo, o
espectador/consumidor/fruidor se faz mais presente como
realizador/produtor/critico. Os conceitos de beleza, qualidade se adaptam para
lógica de produção de quantidade em virtude da eternização do ser pelas suas
próprias mãos e não mais pelas mãos de quem detinha a técnica, o dom, a
habilidade.
Meu intuito neste ensaio é gerar provocações sobre estas novas
relações que as imagens e seus campos de mediação se fazem presentes no
âmbito da cultura visual e das relações dos sujeitos nas suas construções e
subjetividades. É uma forma, também, de deixar indagamentos e aberturas
para se pensar a experiência e os sentimentos (mecanismos perceptivos) em
torno das situações que nos privilegiam as novas mídias e como nós estamos
buscando imortalizar estas experiências.
Para tanto exemplifico e ironizo a partir das minhas experiências
recentes das imagens tremidas entre filmes, shows e coisas caseiras.
Experiência do registro
Hoje mais que nunca devemos as facilidades de registro de experiências
visuais aos acessos dispositivos portáteis e móveis como câmeras digitais e de
celulares que filmam e tira fotos como forma de registrarmos nossas
experiências.
A experiência é uma forma de relação com as várias imagens, imagem
aqui, como na Cultura Visual, são as imagens que podem ser vistas e imagens
que podem ser ouvidas, tateadas, degustadas, ouvidas, são as imagens-
acontecimentos, imagens-agenciamentos que constituem nossa vida e nossa
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formação de mundo. Por fim, através dos sentidos percebemos a experiência,
essa relação de corpo e mente2 com a experiência da imagem.
Há então um reconhecimento, através da percepção. Krishnamurti em
seus ensaios sobre religiosidade, espiritualidade, vida e demais temas
existenciais e metafísicos que perpassam o além da física e ciência ocidental
fala que só podemos experimentar quando reconhecemos a experiência,
“reconhecimento é recordação, memória; e a memória é, obviamente, o centro
do „eu‟ “ (1950). Para Krishnamurti o processo de reconhecimento e de
acumulo da experiência está voltado para o “eu” e ele que diz, verbaliza ou
não: “tive uma experiência”! Dewey (2010) concorda com essa máxima e
aprofunda nas questões sobre as experiências e suas diversas camadas,
desde a experiência intelectual a experiência estética, distinções que são
complementares e não separadas. Para ele, o reconhecimento é a percepção
refreada antes de ter a possibilidades de se desenvolver livremente, “no
reconhecimento, existe o começo de um ato de percepção. Mas esse começo
não é autorizado a servir ao desenvolvimento de uma percepção plena da
coisa reconhecida” (p. 134).
Experiências tremidas do show do U2
No dia 10 de abril deste ano desfrutei de uma experiência única e quase
inenarrável de sentimentos, imagens, sons e outras narrativas subjetivas que
perpassam os mistérios da existência e dos acontecimentos que nos cercam.
Bom, apoteoticamente e existencialista por demais, estas são as minhas
impressões e palavras do tão apoteótico show da banda irlandesa no Brasil,
U2. O show realizou-se no estádio Morumbi em São Paulo, exatamente e
precisamente às 20 horas e 15 minutos. Fez bastante chuva antes do
espetáculo, mas não foi motivo de ausência, o estádio lotou.
Lotou para degustar com os olhos um espetáculo sonoro e imagético,
além de sentir a energia e as vibrações de outras pessoas presentes, esta
energia também faz parte da experiência.
A estrutura do palco com telão de 360º (fig. 1) é realmente grandiosa e
privilegia o formato arena do estádio de futebol, uma vez que o palco é vazado
para toda arquibancada. O telão passa imagens do próprio show além de
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imagens previamente escolhidas para compor a narrativa do show. São
imagens dos próprios integrantes quando jovens, mulheres e homens de todos
locais do mundo, relatos de líderes, imagens editadas, coladas, fundidas e
fazendo com que percebamos através de vários sentidos, não só dos olhos
mas por outros sentidos.
No show as melodias se entrecruzam com imagens e seu olhar também
é provocado pela a energia e o toque dos companheiros que estão em todo
lado, gritando, chorando, vendo, assistindo e gravando. O tema do show, por
vezes bem direcionado pelo discurso e pela personagem que o cantor Bono
Voz traz é sobre a espiritualidade, o social a favor de um mundo melhor.
Estas e outras são as imagens que compõem o espetáculo, além é claro
das imagens mentais que vão construindo nas subjetividades de cada ser,
através das imagens das melodias e letras. Esta é, de forma sucinta, a
experiência provocada pelo show e adquirida por mim.
Figura 1 - Imagem arquivo pessoal Figura 2 – imagem arquivo pessoal
Figura 3 – imagem arquivo pessoal
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Esta breve narração da minha experiência do show é a minha forma de
dizer em palavras a minha percepção. Dewey (2010, p. 136) diz que a
percepção é um ato de saída de energia e que para nos impregnarmos de uma
matéria, primeiro temos que mergulhar nela. “Quando somos apenas passivos
diante de uma cena, ela nos domina e, por falta de atividade de resposta, não
percebemos aquilo que nos pressiona. Temos de reunir energia e colocá-la em
um tom receptivo para absorver” (idem).
Uma coisa que por muitas vezes me chamou a atenção, que
interrompeu meus pensamentos, mas que compunham a experiência eram as
várias câmeras digitais e os celulares. Estes dispositivos3 estavam nas mãos,
na minha também, durante todo o show e gravavam de forma incessante as
imagens e as experiências proporcionadas por esse.
A cada instante do show eu tinha uma necessidade de registrar a
experiência ali cedida, de tirar foto ou gravar determinada música ou imagem
que aparecia no telão, e o mesmo era feito por muitos dos sujeitos naquele
estádio. As luzes do palco se encontravam com as luzes dos dispositivos
móveis complementando toda a experiência. Ao mesmo tempo em que estava
ali no show gravando-o eu já estava pensando em como utilizá-las e mostrá-las
para amigos e familiares que eu havia estado ali.
Porque as pessoas estão ali ora concentradas na experiência do show,
ora na experiência pelo registro? Pergunto isso, pois me percebi e percebi
muitas outras pessoas acompanhando o show através do visor das câmeras.
Fig. 4 – imagem do show, arquivo pessoal
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O que nos leva a transferir a experiência corpo-evento para corpo-
aparato-evento?
Será, talvez, a mesma vontade de se imortalizar através daquela
imagem, – “eu estive lá” –, de relatar sua experiência através da imagem, que
pode também nos conferir status de poder. Geralmente estas imagens
gravadas pelos dispositivos irão para a internet, em canais como o youtube,
e/ou nas páginas de relacionamento social, como o facebook. As imagens na
rede funcionam como uma espécie de certificação e garantia da comprovação
da experiência no show internacional. Então suas experiências estéticas
proporcionaram assim para outros, outras experiências imagéticas através da
rede.
O avanço tecnológico e as convergências dos meios possibilitaram um
impacto da vida cotidiana. Os diversos usos e desusos das novas tecnologias
hibridizam os meios de comunicação e possibilitam uma área bastante fluida de
convergência entre as mídias, as artes e os demais campos que se expandem.
“Ao fazerem uso das novas tecnologias midiáticas, os artistas expandiram o
campo das artes para as interfaces com o desenho industrial, a publicidade, o
cinema, a televisão, a moda, as subculturas jovens, o vídeo, a computação
gráfica etc” (SANTAELLA,2005, p. 14).
Tudo isto imagino, graças a abertura e facilidade dos dispositivos móveis
e do reconhecimento das imagens amadoras na construção de narrativas e
afetividades. Acredito, então que, as imagens amadoras, os tremidos das
imagens amadoras estão se legitimando e construindo saberes e “poderes”
dentro nas narrativas permeadas pela linguagem hegemônica.
Carvalho através de Focault afirma que os dispositivos não são só
constituídos por elementos técnicos, químicos e físicos mas por “regimes de
fazer ver e de fazer falar. É composto por curvas de enunciação e de
visibilidade, e não há como escapar de suas lógicas de saber e poder”
(CARVALHO, 2006, p.79).
Imagens amadoras têm essa paixão, esse estar dentro da imagem. No
caso dos DVD‟s de shows vendidos, as imagens estão prontas e editadas. Há
um modelo de uma narrativa do show, construindo um olhar, um mesmo olhar
da experiência de um show, diferentemente das várias imagens amadoras de
diversos dispositivos, repletas de outras subjetividades “tremidas”.
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As imagens amadoras dão este olhar mais próximo, o balançar da
câmera, as imagens desfocadas, estão buscando sempre algo, o algo
apaixonante da experiência... Os tremidos das imagens amadoras têm
sentimento, o sentimento do estar ali na experiência, no meio da multidão e da
energia criada.
“A multiplicidade das possibilidades destas imagens do dispositivo se apresenta como um sintoma de um modelo de visualidade paradoxal que não se baseia mais em dualismos excludentes, mas que permite a miscigenação de práticas e conceitos. Nestes ambientes virtuais, o real parece aumentado, expandido e passa a ser tudo o que é percebido pelos sentidos e permite interação” (CARVALHO, 2006, p. 86).
Percebo que hoje há uma proliferação dessas imagens na rede, e
algumas delas são imagens viróticas que se alastram com uma agilidade. E ao
mesmo tempo em que se dá autoria aos até então oprimidos pela cultura
audiovisual hegemônica, esta mesma noção de autoria se esvaem. O que
acontece é que cresce de forma processual uma legitimação das imagens
amadoras produzidas por qualquer anônimo com seu dispositivo e cria-se uma
escusa e omissão das criações do individuo nos vídeos e fotos criados,
registrados, intermediados.
Santaella aponta que por volta dos anos 70 e 80 os novos meios de
produção, distribuição e consumo comunicacionais irão apresentar uma lógica
distinta das comunicações de massa. Ao contrário dos meios de massa, os
dispositivo tecnológicos estão disponibilizados como “uma apropriação
produtiva por parte do indivíduo, como, por exemplo, as máquinas
fotocopiadoras, os diapositivos, os filmes super 8 e 16mm, o offset, o
equipamento portátil de vídeo(...)” (SANTAELLA,2005, p. 13).
Estética amadora – imagens tremidas e Dogma95
O discurso do amador está em toda volta, suas imagens sem donos,
sem responsáveis vão adquirindo poder e acesso a outras mídias e
dispositivos. Estas imagens criam certa autonomia e preocupa bastante artistas
e cineastas profissionais pela sua carga “descompromissada”. As imagens
amadoras flagram o cotidiano, a vida íntima, os homicídios das ruas, os
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acidentes de trânsito, os casamentos, os acontecimentos banais e as
(in)visibilidades do cotidiano.
Estas imagens não-profissionais estão se convergindo e integrando
espaços não-formais nas mídias formais e hegemônicas, criando assim outra
perspectiva no olhar, nas produções imagéticas legitimadas e cristalizadas.
Como é o caso do jornalismo, em que até então sua postura formal com
tendência a neutralidade e estrutura quadrada vêm sofrendo alterações com as
imagens amadoras. Podemos notar que as matérias jornalísticas acessam a
imagens amadoras para ilustrarem suas notícias.
Imagens tremidas, caseiras estão sendo legitimadas e o que incomoda
nestas imagens serão cooptadas pela estrutura narrativa clássica do ver e
passaremos a um novo regime estético (sendo utópico): a estética amadora.
Não é nenhuma transgressão, mas aceitação do fazer de qualquer um sujeito,
do fazer do anônimo como também uma postura artística ou talvez não, mas é
algo, é um fazer. Seria estética amadora, a estética da bricolagem, do faça
você mesmo!
Quando o manifesto cinematográfico do Dogma95 foi lido na cerimônia
de comemoração dos 100 anos das primeiras projeções dos irmãos Lumiere,
provocou certo rebuliço. Os redatores do manifesto, os cineastas
dinamarqueses, Lars Von Trier e Thomas Vintemberg, propuserem regras no
fazer cinematográfico que contrapunha toda a indústria cinematográfica,
principalmente a indústria roliudiana4. O intuito é resgatar o cinema, a
verdadeira essência do fazer fílmico buscando uma verdade existencial na
imagem, negando a realidade como ilusão.
Fig.5: Cena do filme Os Idiotas, 1998.
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Ao imprimir suas regras, o caráter totalitário e contraditório se imprime
no manifesto. Uma vez que o principal embate é com a hegemonia totalitária do
cinema de Hollywood. Suas regras, a saber:
1- A rodagem tem que ser em locais naturais. Não se pode recorrer ou criar um set. Se um objeto é necessário para o desenvolvimento da história, se deve buscar na localização onde os objetos estejam. 2- O som não se separará das imagens e vice-versa (não se deve utilizar música, a menos que esta seja gravada no mesmo lugar onde se grava a cena); 3- A câmera deve estar sobre os ombros ou à mão. 4- O filme tem que ser em cores. Não se permite o uso de luz especial ou superficial (se a luz não alcança para rodar um determinada cena, esta deve ser eliminada ou, em rigor, se pode colocar um foco simples de luz a câmera) 5- Está proibido utilizar efeitos especiais ou filtros de qualquer tipo 6- A filme não pode ter uma ação ou desenvolvimento superficial (não pode haver armas, nem ocorrer crimes na história.) 7- As alterações de tempo e de espaço estão proibidas ou, o que é o mesmo, o filme ocorre aqui e agora);8- Os filmes de gênero não são admissíveis; 9- O formato deve ser o normal 35mm (Formato da Academia); 10-O diretor não deve ser creditado.
Ao estabelecer esse protocolo, que por vez, faz-se ilógico e provocativo,
o discurso vanguardista do Dogma 95 assume as divergências da postura
modernista. No manifesto os autores citam a tormenta tecnológica como
resultado da democratização do fazer, em que qualquer um pode vir a ser o
realizador, “porém, quanto mais acessível chega a ser o meio, mais importante
é a vanguarda. Não é acidental que a expressão „vanguarda‟ tenha conotações
militares. Disciplina é a resposta! Devemos vestir nossos filmes em uniforme
(...)” (MANIFESTO, 1995).
De que forma este movimento pode tomar proporções e dialogar com as
novas tecnologias e mídias? O Dogma95 foi um movimento do início dos anos
90 que se torna tão atual quanto ao uso e desuso das tecnologias como as
mídias digitais, seria ele um dos precursores das imagens amadoras no
dispositivo do cinema? Talvez, porém está é só uma provocação, mas
sabemos que pessoas como Godard realizou experimentos com vídeos e antes
dele na década de vinte havia um cinema que brincava com as relações da
imagem e da narrativa cinematográfica.
A meu ver, entendo que há uma ampliação e hibridização dos meios
criando novas oportunidades de saberes, olhares, formação e criação do
pensamento em relação aos meios de comunicação. Desta forma, cria-se uma
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abertura em nossos mecanismos de compreensão de mundo, de como sentir e
perceber as dinâmicas da realidade nas imagens do mundo, ou o contrário, das
imagens da realidade.
Vivemos hoje numa dessas épocas de crise das antigas ordens de representações e dos saberes e, mais profundamente, de uma grande complexidade em relação às formas de produção de subjetividade. Nenhuma reflexão séria sobre o devir da cultura contemporânea pode deixar de constatar que existe uma enorme multitude de sistemas maquinícos, em particular a mídia eletrônica e a informática, que incidem sobre todas as formas de produção de enunciados, imagens, pensamentos e afetos( PARENTE, 1993, p.14).
Há uma convergência, uma (re)apropriação da lógica comercial da
indústria pesada do cinema, para um contexto mais amplo, assim o dogmáticos
do cinema assumem “será a democratização final do cinema”.
Não digo que o Dogma95 cria uma nova linguagem com seus filmes, até
porque a estrutura narrativa do filme é clássica, porém sua composição é
desvirtuada. O uso da câmera na mão e a utilização do vídeo cria uma outra
atmosfera na imagem que desqualifica a plasticidade do cinema roliudiano.
Se nos atentarmos para as regras do Dogma95 poderemos perceber em
uma não preocupação com o não rigor e zelo pela acuidade plástica, mas por
uma mise-em-scene que nos aproxime da realidade existencial dos
acontecimentos. No caso do cinema, em específico dos filmes do Dogma95 o
elemento da câmera imóvel que apenas acompanha o evento e a personagem
é rompido. As imagens tremidas e dentro da narrativa do filme criam uma outra
situação que problematiza não só o sujeito espectador, convidando-o para a
estória, mas também interfere na narrativa em si, tornando-se uma outra
personagem, ora apropriando-se do sentido de câmera subjetiva ou mesmo
ficamos na dúvida se é o ponto de vista de uma personagem.
No caso do Dogma95 estas imagens tomam um lugar estético amador
que levanta as questões da subjetividade do e no filme. Os sujeitos dentro e
fora do filme busca operar de forma política. O que nos leva a pensar no
conceito de estética de Rancière, em que o sujeito age distribuindo funções
sobre o tempo, espaço em ritmos diferentes.
O autor constata que há duas idéias de vanguarda que fazem conexões
entre estético e político.
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“Existe a idéia topográfica e militar da força que marcha à frente, que detém a inteligência do movimento, concentra suas forças, determina o sentido da evolução histórica e escolhe as orientações políticas subjetivas. (...) E há essa outra idéia de vanguarda que se enraíza na antecipação estética do futuro, segundo modelo schilleriano. Se o conceito de vanguarda tem um sentido no regime estético das artes, é desse lado que se deve encontrá-lo: não do lado dos destacamentos avançados da novidade artística, mas do lado da invenção de formas sensíveis e dos limites materiais de uma vida por vir”(RANCIÈRE, 2005, p.43).
Pastiches amadores do Dogma95
O Dogma95 operou de forma vanguardista recusando limitações
plásticas de uma estética hegemônica para uma abertura e espraiamentos do
fazer das imagens. Tanto é que o discurso engajado das imagens dos filmes do
Dogma95 ressoou e pode se ver uma produção pastiche no youtube e vimeo5.
Divido o movimento em três partes que mostram um certo avanço nas
concepções do fazer Dogma95 até os dias de hoje, onde já não podemos
perceber o que são imagens amadoras que podem ser relacionados com o
movimento e o que são as imagens amadoras do mundo.
Na primeira fase (1995 a 1998) - a fase nacional, composto pelos cinco
primeiros, os filmes tinham bastante o caráter político, transgressor e
provocativo no que concerne a indústria cinematográfica de Roliúde. Neste
caso, o vídeo foi utilizado como uma maneira de barateamento da produção.
Todos os filmes foram lançados primeiramente no cinema, sendo mais
específico em Cannes.
Na segunda fase (1999 a 2001) – a fase transnacional, houve uma
flexibilização do movimento e a regra numero nove foi alterada, para que os
filmes fossem realizados padrão academy, porém formato standard, ou seja, o
formato 4:3 da televisão. Alguns filmes, como o francês Lovers foi exibido na
televisão antes de ir para o cinema. Esta é uma primeira característica de
convergência entre as mídias, no caso do Dogma95.
Na terceira fase (2002 até hoje) a noção e a essência do Dogma 95 se
perde, então a meu ver, há uma autodissolução com o desvirtuamento e
hibridismo dos preceitos e normas. Esta terceira fase eu chamo de pastiche da
poética onde já há uma hibridação dos meios, uma convergência. Já não se
tem controle mais dos certificados6 e do cumprimento das regras. Esse
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maneirismo Dogma95 é o reflexo da mercantilização e domesticação do
movimento que se esvai nos dias de hoje pelos vídeos em sites como youtube
e vimeo. A estética amadora é a principal vedete.
O Dogma95 virou um selo, uma marca sem copyright para legitimar um
discurso de um movimento que atesta um status de cinema.
Realizei uma breve pesquisa nos canais de vídeo para perceber o grau
de intimidade que há entre o Dogma95 e imagens caseiras, tremidas.
Ao colocar na busca de cada site o nome Dogma95 ou Dogme95 vários
vídeos se fizeram perceber e intitular-se como um vídeo do manifesto. Porém
comparei a lista de filmes que realmente receberam o certificado do movimento
e verifiquei que há uma quantidade grande de filmes curtos que se intitulam
Dogma95, mas não possuem tal certificado. Eles também rompem com suas
regras de duração, de gênero, de formato, porém a estética suja, câmera
tremida, sem iluminação artificial, som natural e características de filme caseiro
são bastante evidentes. Em sua maioria se trata de filmes curtas e são
realizados por estudantes.
Nesse primeiro (fig. 6) curta com duração de 3 minutos e 36 segundos,
os 3 realizadores se uniram na faculdade para fazer um filme com os princípios
do Dogma 95. A sua busca no youtube se dá pelo nome Impact: a dogme film.
A produção é de setembro de 2009. Nos outro curta é evidente o tom amador ,
além é claro de se referirem ao Dogma95.
Fig.6: Impact: a dogme film <http://www.youtube.com/watch?v=8zi-qmLQE4Q>
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Fig.7: Az de espadas, realizados por estudantes de Curitiba<
http://www.youtube.com/watch?v=2oeJelZpd6U&feature=related>
Considerações amadoras
O controverso Dogma 95 até aqui só gerou contradições e um
maneirismo peculiar, assim como a produção e a grande exibição das imagens
amadoras que invadem não só as novas mídias, como a internet, mas as TV‟s
e o próprio dispositivo cinema. Eu diria que, sobre o discurso do amador , sobre
esta oportunidade de produção em vídeo e a facilidade de janelas de
visibilidades, hoje problematiza-se a figura do realizador fílmico, do realizador
profissional, “quem é o, ou quem pode ser um cineasta”, por exemplo? Então
cabe perguntar quem é o artista em meio a esse turbilhão de dialogismos entre
as mídias comunicacionais, a arte, a produção cultural em si?
A legitimação de um discurso amador e de suas imagens faz com que as
narrativas ficcionais, jornalísticas e outras envolvam os recursos imagéticos
que trazem “efeitos de realidade”, de participação, de imediatismo,
espontaneidade.
As imagens amadoras se convergem em várias narrativas, o intuito
deste ensaio não trouxe a tona, e nem vislumbrava, todas as problemáticas
que envolvem essa produção e exibição exarcebada das imagens amadoras
sem autorias, como os apelos realísticos e espetaculares que escravizam a
imagem apenas ao seu índice. Vale ressaltar que esta cultura das imagens,
das imagens amadoras é um campo que pode ser explorado de forma mais
cuidadosa pela cultura visual.
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1 Um grupo de cineastas dinamarqueses se reuniram em 1994 e criaram um manifesto com 10
leis, ou um voto de castidade, como eles próprios intitularam, mostrando-se avessos ao cinema ilusório. A aversão dogmática, na verdade, estava no fazer cinematográfico, em específico, de roliúde. 2 Pensando corpo e mente, não como um dualismo, binário e cartesiano pensando um em
função do outro sem distinção. 3 Para aprofundar na questão de dispositivo ver DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo? In.:
O mistério de Ariana. Ed. Vega – Passagens . Lisboa, 1996. 4 Parafraseando o termo cunhado por Glauber Rocha. Revolução do Cinema Novo. Rio de
Janeiro:Alhambra/EMBRAFILME, 1981. 5 Canais de vídeos da internet, seus sítios respectivamente são: www.youtube.com e
www.vimeo.com 6 Os certificados é um documento enviado, conforme segmento das regras, para os
realizadores que enviam seus filmes para os redatores do Dogma95 como forma de atestá-los como realizadores de um filme Dogma95, como se fosse um selo.
Referências
CARVALHO, Victa. Dispositivos em evidência: a imagem como experiência em ambientes imersivos. In.: FATORELLI, Antônio e BRUNO, Fernanda. Limiares da Imagem. Rio de Janeiro, Mauad, 2006.
DEWEY, John. Arte como experiência. Martins Fontes, são Paulo, 2010. KRISHNAMURTI, Jiddu. Porque não te satisfaz a vida?, 1950. Trecho extraído e disponível em <http://www.krishnamurti.org.br/?q=node/198>, acessado em 16 abr. 2011. MACHADO, Arlindo. Artemídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. PARENTE, André. Imagem-máquina. A era das tecnologias do virtual. Editora 34, 1993. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005. SANTAELLA, Lúcia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.
Allex Rodrigo Medrado Araújo
é mestrando em Arte e Cultura Visual pela UFG. Possui graduação em tecnologia em Produção Audiovisual pelo UnICESP/ DF. Coordenador audiovisual no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e diretor do programa Panorama Ipea, veiculado pela NBr. Desde 2008 integra o Coletivo de Cinema Caliandra, em que vem realizando estudos e produções de curtas-metragens em vídeo digital.