Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

15
DOENÇA DE LEGG-CALVÉ-PERTHES. EVOLUÇÃO NATURAL DE 9 PARÂMETROS RADIOLÓGICOS EM ANCAS ASSINTOMÁTICAS E SINTOMÁTICAS. INTRODUÇÃO É do conhecimento geral que as estruturas osteo-cartilaginosas constituintes da anca na criança apresentam um grande dinamismo, sofrendo, durante o período de crescimento, uma remodelação progressiva que leva a modificações anatómicas sensíveis, estando ainda mal esclarecida a influência das agressões patológicas e iatrogénicas sobre este mecanismo. Por outro lado, vários autores (CATTERALL,1982; SALTER,1884; SEABRA, 1986; SUTHERLAND,1980; WIBERG,1941; WIGSTRAND,1985; VILA VERDE, 1980) referem a existência de uma fase radiológicamente "silenciosa" precedendo o início das fases clássicas da doença de Legg-Calvé-Perthes já por demais conhecidas. Vários métodos auxiliares foram descritos na tentativa de se obter um diagnóstico precoce ou indicações que permitissem uma orientação prognóstica mais correcta do que as fornecidas pelo exame radiológico clássico (CANHA,1975; GERSHUNI,1978; SUTHERLAND,1980; CORTE-REAL,1981; MENDONÇA,1984; SCOLES,1984; UPADHYAY,1986). Como se trata de meios de diagnóstico menos acessíveis ou necessitam duma anestesia geral, tentámos obter os mesmos dados pelo estudo de vários parâmetros radiológicos colhidos numa radiografia simples da anca. Na primeira parte deste trabalho tentámos definir a evolução natural de 14 ancas assintomáticas (AA) em doentes com expressão clínica e radiológica na anca contralateral, para o que seguimos a evolução, por anos de idade, de 9 parâmetros radiológicos, cada um deles expressivo de determinada característica anatómica da anca na criança. Comparámos esta evolução com a dos mesmos parâmetros em ancas de crianças sãs, estabelecidos por nós em trabalho anterior (CRAVEIRO LOPES,1988), tentando assim confirmar que aquelas ancas já apresentam modificações radiológicas mensuráveis. Seguimos também a evolução natural de um grupo de 7 ancas com DLCP sem sinais de cabeça em risco e com menos de 50% de envolvimento do núcleo (SR) e de outro grupo de 9 ancas com sinais de cabeça em risco (CR), com o que esperámos definir as variações normais e patológicas dos referidos parâmetros. MATERIAL E MÉTODO No período de Janeiro de 1979 a Dezembro de 1985, foram tratados no serviço 52 casos de DLCP. Desse total, 35 cumpriam as condições mínimas para serem incluídos neste estudo (Quadro I).

description

Uploaded from Google Docs

Transcript of Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

Page 1: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

DOENÇA DE LEGG-CALVÉ-PERTHES. EVOLUÇÃO NATURAL DE 9 PARÂMETROS RADIOLÓGICOS EM ANCAS ASSINTOMÁTICAS E SINTOMÁTICAS.

INTRODUÇÃO

É do conhecimento geral que as estruturas osteo-cartilaginosas constituintes da anca na criança apresentam um grande dinamismo, sofrendo, durante o período de crescimento, uma remodelação progressiva que leva a modificações anatómicas sensíveis, estando ainda mal esclarecida a influência das agressões patológicas e iatrogénicas sobre este mecanismo.

Por outro lado, vários autores (CATTERALL,1982; SALTER,1884; SEABRA,

1986; SUTHERLAND,1980; WIBERG,1941; WIGSTRAND,1985; VILA VERDE, 1980) referem a existência de uma fase radiológicamente "silenciosa" precedendo o início das fases clássicas da doença de Legg-Calvé-Perthes já por demais conhecidas.

Vários métodos auxiliares foram descritos na tentativa de se obter um diagnóstico

precoce ou indicações que permitissem uma orientação prognóstica mais correcta do que as fornecidas pelo exame radiológico clássico (CANHA,1975; GERSHUNI,1978; SUTHERLAND,1980; CORTE-REAL,1981; MENDONÇA,1984; SCOLES,1984; UPADHYAY,1986).

Como se trata de meios de diagnóstico menos acessíveis ou necessitam duma

anestesia geral, tentámos obter os mesmos dados pelo estudo de vários parâmetros radiológicos colhidos numa radiografia simples da anca.

Na primeira parte deste trabalho tentámos definir a evolução natural de 14 ancas

assintomáticas (AA) em doentes com expressão clínica e radiológica na anca contralateral, para o que seguimos a evolução, por anos de idade, de 9 parâmetros radiológicos, cada um deles expressivo de determinada característica anatómica da anca na criança.

Comparámos esta evolução com a dos mesmos parâmetros em ancas de crianças

sãs, estabelecidos por nós em trabalho anterior (CRAVEIRO LOPES,1988), tentando assim confirmar que aquelas ancas já apresentam modificações radiológicas mensuráveis.

Seguimos também a evolução natural de um grupo de 7 ancas com DLCP sem

sinais de cabeça em risco e com menos de 50% de envolvimento do núcleo (SR) e de outro grupo de 9 ancas com sinais de cabeça em risco (CR), com o que esperámos definir as variações normais e patológicas dos referidos parâmetros.

MATERIAL E MÉTODO

No período de Janeiro de 1979 a Dezembro de 1985, foram tratados no serviço 52 casos de DLCP. Desse total, 35 cumpriam as condições mínimas para serem incluídos neste estudo (Quadro I).

Page 2: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

QUADRO I Doentes tratados no serviço por DLCP no período 1976 a 1985.

Total de Incluidos Período de Seguimento Doentes no Estudo Sexo Ancas Média Limites 52 35 29M 14AS 3A 8M (10A a 12A 11M) 6F 42SU 14SB

M-Masculino F-Feminino A-Anos M-Meses AS-Asintomáticas SU-Sintomáticas unilateralmente SB-Sintomáticas bilateralmente

O tempo médio de controle desde o início da sintomatologia até à última

observação foi de três anos e oito meses (entre10 meses e 12 anos e 11 meses). Foi estabelecido um protocolo para recolher os dados a processar, que incluíam 10

parâmetros clínicos e 18 parâmetros radiológicos. Para manter constantes os critérios de avaliação, todas as medições foram colhidas por um de nós (NCL) e os controles radiológicos foram uniformizados, utilizando-se as duas projecções segundo a técnica preconizada por Rippstein (RIPPSTEIN,1955), com a ampola a 1 metro da placa radiográfica (Fig.1).

Todos os processos clínicos e radiográficos dos doentes foram microfilmados para

tornar mais fácil e rápida a sua consulta. Foram colhidos, no total, cerca de 7000 dados que foram processados num micro-

computador, utilizando programas de base de dados, de folha de cálculo, transcrição gráfica, desenho auxiliado por computador e processamento de texto. Utilizámos também o micro-computador para os cálculos estatísticos que incluíram os valores médios, desvios padrões, regressão linear, análise de covariância e testes de significância pelo método t de Student (GALVÃO DE MELO,1982,1985; SPIEGEL, 1980).

Os parâmetros clínicos basearam-se na idade de início, na sintomatologia

dolorosa, na padrão da marcha e nos arcos de movimento. Os parâmetros radiológicos (Fig.1) incluíram, além do grupo terapêutico do

Serviço (CRAVEIRO LOPES,1985), a idade óssea, o grupo de Catterall (CATTERALL,1971), a fase de evolução (WALDEMSTRÖM,1922), a existência de sinais de cabeça em risco (CATTERALL,1971), o estado da cartilagem fisária, a esfericidade de Mose (MOSE,1964), os ângulos de inclinação (cd) e de anteversão (at) cervico-diafisários, projectados e reais obtidas pela técnica de Rippstein (RIPPSTEIN, 1955), ângulo acetabular (ia) (KLEINBERG,1936), ângulo de Wiberg (ce) (WIBERG, 1941), o ângulo epifisário (ae) (MUJICA,1981), o raio cefálico (rc) calculado com o auxilio dos círculos de Mose (MOSE,1964), o índice epifisário (ie) (SCHMID,1975), o índice cervical (ic) (LANZ,1938) e a ascensão do grande trocânter (agt).

No quadro II apresentamos os grupos de ancas constituintes deste trabalho, que consistiu na apreciação da evolução natural de 9 dos parâmetros radiológicos referidos

Page 3: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

(cd, at, ia, ce, ae, rc, ie, ic, agt).

QUADRO II Grupos de ancas incluídas no estudo da evolução natural de

9 parâmetros radiológicos na DLCP. Observações Total de Idade de Início Grupo p/Parâmetro Ancas Sexo Lado Média Limites AN 50 14 12M 5D 6A 4M ( 3A a 10A) 2F 9E SR 27 7 3M 1D 6A 4M ( 3A a 7A) 2F 2E 2B CR 34 9 7M 6D 7A (4A a 10A) 2F 3E M-Masculino F-Feminino D-Direito E-Esquerdo B-Bilateral A-Anos M-Meses

Fig.1 – Projecções radiográficas padronizadas e marcação dos parâmetros

estudados

Page 4: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes
Page 5: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

RESULTADOS

Tendo par base a evolução dos valores encontrados em 14 ancas clínica e radiolagicamente assintomáticas, que chamaremos ancas assintomáticas (AA), em doentes com a anca contralateral lesada, comparámos estes valores com as ancas consideradas normais, incluindo também os valores dos grupos de ancas sem sinais de cabeça em risco e com menos de 50% do núcleo lesado (SR) e com sinais de risco (CR), para comparação com um grupo de bom e mau prognóstico.

Ângulo de inclinação cérvico-diafisário (cd)

Este ângulo mostra-nos a relação da doença com a deformidade em varo ou valgo. Comparando os valores encontrados para as ancas AA, ancas SR e CR

verificámos que as suas médias são sobreponiveis entre si e embora sejam ligeiramente inferiores aos valores encontrados por nós para as ancas normais, a sua diferença não se mostrou estatisticamente significativa em qualquer dos grupos etários (p>0,1), não parecendo pois, existir a associação da doença com um varismo do colo femoral, tanta como causa ou consequência da DLCP (Fig. 2).

Ângulo de anteversão cervico-diafisário (at)

No caso deste ângulo, observámos a sua influência como factor ou consequência

da doença. De novo, as médias dos valores encontrados nos três grupos de ancas (AA, SR,

CR) são sobreponíveis, com diferenças estatisticamente não significativas em todas os grupos etários (p>0,1) quando se comparam os grupos SR e CR com AA, embora com uma tendência das ancas CR a apresentarem valores de anteversão do colo maiores que as ancas SR, com diferenças estatisticamente significativas a partir dos 11 anos de idade (p< 0,005).

Em comparação com as médias dos valores normais encontrados por nós,

verificámos que os valores médios das AA, SR e CR se encontram em todas as idades, bastante acima da média desses valores, sempre com um nível de significância muito elevado (p <0,005), o que parece indicar a existência, desde o início da doença, de uma anteversão exagerada do colo femoral. (Fig.3)

Ângulo acetabular (ia)

Este ângulo traduz as repercussões da doença sobre o acetábulo. As curvas das médias dos valores deste ângulo por anos de idade para as ancas

AA e SR são sobreponíveis com os valores das ancas normais, sem diferenças significativas (p>0,2).

O mesmo não acontece com as ancas CR, que apresentam nas crianças a partir dos 9 anos de idade um aumento significativo deste ângulo (p<0,05), com tendência ao agravamento progressivo, demonstrando o desenvolvimento de uma insuficiência acetabular (Fig. 4).

Page 6: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

Ângulo de Wiberg (ce)

Utilizámos o ângulo de Wiberg (ce) como indicador do grau de cobertura da cabeça femoral pelo acetábulo.

A média dos valores encontrados nos diversos grupos etários nas ancas AA são

sobreponíveis valores encontrados por nós para as ancas normais. O grupo das ancas SR não mostrou valores estatisticamente diferentes dos das ancas AA em todas as idades (p<0,1), o que já não aconteceu com as ancas CR, cujas médias se tornaram significativamente menores a partir dos 7 anos de idade (p<0,001), indicando a existência de insuficiência de cobertura da cabeça femoral (Fig. 5).

Ângulo epifisário (ae)

Mostra a repercussão da doença sobre a inclinação da placa fisária femoral superior.

Os valores médios das ancas AA, mostram como nas ancas normais, uma

tendência decrescente mas a um nível bastante inferior, atingindo um valor de cerca de 55º por volta dos 15 anos de idade, valor significativamente mais baixo do que o encontrado por nós para essa idade, o que parece mostrar a existência de uma verticalização da placa fisária na DLCP, mesmo nas ancas contralaterais sem expressão clínica da doença.

As diferenças dos valores médios das ancas SR são estatisticamente pouco significativas (P>0,2) quando comparados com os das ancas AA em todos os grupos etários. No entanto, as ancas CR apresentam valores significativamente mais baixos do que as AA (p>0,05), indicando a existência de uma cartilagem fisária mais verticalizada até aos 9 anos de idade, a partir do que os valores perdem a significância e se sobrepõem com os das ancas AA (Fig.6).

Raio cefálico (rc) O raio cefálico que nos é dado pelo raio do círculo de Mose (MOSE,1964) que

contém a cabeça femoral no plano frontal, mostra-nos a tendência evolutiva da cabeça para uma coxa magna.

Não encontrámos, na literatura, valores médios para as ancas de crianças sãs,

sendo os valores da evolução por idades apenas representativos quando os exames radiográficos são feitos nas mesmas condições uniformizadas que utilizámos.

Os valores médios das ancas SR são sobreponíveis aos das ancas AA e ancas

normais (p>0,3), o que já não acontece com as ancas CR que apresentam valores mais elevados e estatisticamente muito significativos (p<0,05) a partir dos 6 anos de idade, Representando o desenvolvimento nítido de coxa magna neste grupo de ancas a partir desta idade (Fig.7).

Índice epifisário (ie)

É expresso em percentagem de esfericidade, mostrando a tendência ao aumento da

Page 7: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

Fig.2 – Evolução do ângulo de inclinação cervico-

diafisário. Fig.3 – Evolução do ângulo de anteversão cervico-dia-

fisário.

Fig.4 – Evolução do Ângulo acetabular. Fig.5 – Evolução do Ângulo epifisário.

Fig.6 – Evolução do Ângulo de Wiberg. Fig.7 – Evolução do Raio cefálico.

Page 8: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes
Page 9: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

largura e diminuição da altura do núcleo, com desenvolvimento de uma coxa plana. Observámos que os valores médios das ancas AA são sempre ligeiramente mais

baixos do que os valores encontrados por nós para as ancas normais, tomando valores significativamente mais baixos a partir dos 12 anos de idade (p<0,05), parecendo indicar uma tendência ao desenvolvimento de um núcleo menos esférico, mesmo nas ancas não atingidas pela DLCP.

Os valores médios deste índice para as ancas SR, tornam-se significativamente

menores que os valores das ancas AA a partir dos 5 anos de idade (P<0,005), o mesmo acontecendo com as ancas CR que, por sua vez, apresentam um índice muito mais baixo do que as ancas SR, significativo a partir dos 6 anos (p<0,05) e cerca de 20% mais baixos do que as ancas AA, demonstrando o desenvolvimento de uma coxa plana progressiva (Fig.8).

Índice cervical (ic) Utilizámos este índice para demonstrar o efeito da doença sobre a zona

metafisária cervical, provocando um encurtamento e alargamento do colo femoral, sendo o seu valor expresso em percentagem do aumento da espessura sobre o comprimento.

Observámos que os valores médios das ancas SR são estatisticamente semelhantes

aos das ancas AA e dos valores encontrados por nós para as ancas normais. Em contrapartida, as ancas CR mostraram logo desde os 7 anos de idade uma

tendência ao desenvolvimento de colos progressivamente mais curtos e largos, com aumento do índice altamente significativos (p<0,005) (Fig.9).

Ascensão do grande trocânter (agt) Este parâmetro acompanha a evolução dos índices epifisário e cervical, indicando o desenvolvimento de uma insuficiência progressiva dos músculos abdutores da anca. Os valores encontrados para as ancas SR não mostraram diferenças significativas quando comparados com os das ancas AA e ancas normais.

As ancas CR mostraram, pelo contrário, uma migração ascendente progressiva do

grande trocânter, com valores significativos a partir dos 7 anos de idade (p<0,025), atingindo o grande trocânter a linha de Hilgenreiner em média por volta dos 12, 13 anos de idade (Fig.10).

DISCUSSÃO

Em 1950, Heyman e Herndon (HEYMAN,1950) apresentaram o seu método de avaliação radiográfica dos resultados finais do tratamento da DLCP, que foi seguido por vários autores. No entanto, aquele método, que se baseava no cálculo de vários quocientes entre a anca lesada e a contralateral, incluindo os quocientes epifisário, acetabular, cervico-cefálico e a média do seu conjunto - quociente compreensivo, tem a

Page 10: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

desvantagem de só poder ser calculado em caso de doença sintomática unilateral e de incluir factores de erro introduzidos pelas alterações existentes na anca suposta sã, que como confirmámos no presente trabalho, apresenta alterações sensíveis quando comparada com as ancas de crianças saudáveis.

Muitos outros métodos de avaliação de resultados se seguiram, geralmente

incluindo parâmetros clínicos e radiológicos (O’GARRA,1959; MOSE,1964; CATTERALL,1971; DICKENS,1974; SALTER,1984), no entanto todos eles se referem a valores limites fixos que podem introduzir factores de erro na avaliação de doentes em fase de crescimento, em que esses parâmetros variam, podendo um valor parecendo menos favorável numa criança de 3 ou 4 anos de idade originar, por maior potencial de remodelação, um resultado final melhor do que o mesmo valor numa criança de 9 ou 10 anos.

Com o desenvolvimento das curvas de evolução natural dos parâmetros estudados, tentámos obter um método de previsão do resultado final e esclarecer alguns pontos menos claros da fisiopatologia da DLCP.

Enquanto que o ângulo de inclinação cervico-diafisário femoral não parece interferir na génese da doença nem ser influenciado por ela, vários autores (SHANDS,1958; CRANE,1959; CRAIG,1963; PAWELLS,1965; FABRY,1973; TOENNIES,1973; UPADHYAY,1986) consideram como factor de isquémia na DLCP, a existência de uma anteversão inicial mais acentuada que leva a uma maior pressão do núcleo cefálico no rebordo ântero-superior do acetábulo, ou por estiramento das estruturas cápsulo-ligamentares e musculares posteriores da anca, que provoca aumento de pressão hidrostática intra-articular, originando maior probabilidade de interrupção da circulação na artéria circunflexa posterior, principal suporte de nutrição do núcleo cefálico nesta faixa de idade (WALDENSTRÖM,1922), nomeadamente quando concomitante com derrames ou sinovites articulares (KALLID,1985; WINGSTRAND, 1985).

No entanto, em estudos comparativos feitos por Shands e Steele (SHANDS,1958),

Fabry (FABRY,1973) e Katz (KATZ,1968), estes autores concluíram não existir aumento significativo do ângulo de anteversão quer nas ancas lesadas quer nas ancas contralaterais assintomáticas no início da doença, tornando-se esta diferença progressivamente mais significativa na criança mais idosa, podendo este facto significar que a doença em si poderia provocar ou um aumento da anteversão ou uma perda da capacidade de remodelação da anteversão femoral fisiológica.

Ao contrário do que sucedeu nos trabalhos dos referidos autores em que aqueles retiraram valores isolados em cada doente, incluindo no estudo ancas sujeitas a vários métodos terapêuticos, introduzindo assim vários factores de erro, no nosso trabalho seguimos a evolução de cada um dos parâmetros ao longo de vários anos nas mesmas crianças, não sujeitas a tratamento, excepção feita para o grupo CR.

No presente estudo, a anteversão do colo femoral aparece significativamente mais elevada desde o início, sendo a percentagem de medições com anteversão acima de 10º do normal, respectivamente de 52,5% nas ancas AA, 25,1% nas ancas SR e 52,9% nas ancas CR, valores que contrastam com os encontrados por aqueles autores, que oscilam

Page 11: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

Fig.8 – Evolução do índice epifisário. Fig.9 – Evolução do índice cervical.

Fig.10 – Evolução da ascensão do grande trocânter. Fig.11 – Exame histológico de biópsia do núcleo

epifisário obtido por tunelização cervico-cefálica com trefina onde se observa trabecula óssea necrosada. Anca

sem sinais radiológicos de DLCP mas episódios anteriores de coxalgia e gamagrafia com hipofixação.

Page 12: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes
Page 13: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

entre os 15 e 22%. Por outro lado, embora a recta de regressão das ancas CR seja mais inclinada do que a das ancas AA e SR, os valores médios da anteversão em qualquer dos grupos de ancas decrescem progressivamente, acompanhando a diminuição fisiológica da anteversão das ancas normais com a idade, o que parece demonstrar não haver influência da doença sobre a remodelação da anteversão femoral, como foi afirmado por Fabry e Kantz.

Upadhyay (UPADHYAY,1986) num estudo recente, utilizando o método

ultrassonográfico para medir a anteversão femoral, retirou conclusões coincidentes com as do nosso trabalho.

Os valores médios das ancas contralaterais assintomáticas AA, não mostram

diferenças significativas em relação aos valores normais encontrados por nós, para o ângulo acetabular e para o ângulo de Wiberg. No entanto, quando acompanhámos a evolução do índice epifisário daquele grupo de ancas, observámos que, a partir dos 12 anos de idade, os núcleos cefálicos mostraram um achatamento progressivo, o que poderá ser condicionado pelas sequelas das múltiplas pequenas zonas de necrose que existem na epifise pré-sintomática destes doentes, facto que podemos comprovar noutro grupo de 9 ancas radiológicamente sem sinais de DLCP mas que apresentavam coxalgias de repetição anteriores e exame gamagráfico com hipofixação e que sofreram uma tunelização cervico-cefálica para biópsia, cujo exame histológico confirmou a existência em todos os casos de zonas de enfarte ósseo em vários estádios de evolução, substituição por tecido fibrocartilagíneo e osso neoformado (Fig. 11).

Estes dados estão de acordo com as observações feitas por Catterall

(CATTERALL,1980,1982) em peças de cadáver de criança com DLCP que faleceram por outras causas. Este autor encontrou nas ancas contralaterais sem sinais clínicos e radiológicos de DLCP, alterações histológicas, nomeadamente espessamento da cartilagem articular, cartilagem fisária mais fina e irregular, epífise e metáfise com zonas de necrose óssea e substituição fibrocartilagínea, que lhe sugeriram a existência de condições de fragilidade que poderiam tornar estas crianças susceptíveis à DLCP, fazendo crer na existência de episódios sucessivos de isquémia antes do desencadear da doença clínica, hipótese também sugerida por Salter (SALTER,1984).

O grupo de ancas SR que tinham menos de metade do núcleo lesado sem sinais de

cabeça em risco e que não foram sujeitas a qualquer tratamento, apresentaram uma evolução benigna em todos os parâmetros, sendo os seus valores médios sobreponíveis, sem diferenças significativas, aos das ancas AA, excepto no caso do índice epifisário, parâmetro extremamente sensível.

Estas ancas apresentaram um achatamento do núcleo cefálico que atingiu em

média os 40% após os 5 anos de idade, valor que se afasta significativamente dos 50% das ancas de crianças sãs.

O grupo de ancas CR mostrou, quando não tratadas convenientemente, uma

evolução natural com agravamento acentuado de todos os parâmetros para fora do limite de 2DP, nomeadamente no que diz respeito ao ângulo de Wiberg, ângulo acetabular, raio cefálico, índice epifisário e cervical e ascensão do grande trocânter, parâmetros que mostraram ser os mais sensíveis na determinação das diversas modificações sofridas pela anca na doença de Legg-Calvé-Perthes.

Page 14: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

BIBLIOGRAFIA CANHA,N.R.: Radioisótopos em Ortopedia. Rev. Ortop. Traum. IB, 1P: 141,

1975. CATTERALL,A.: The Natural History of Perthes Disease. J. Bone Joint Surg.,

53-B:37-53, 1971. CATTERALL,A e Cols.: A Review of the Morphology of Perthes Disease. J.

Bone Joint Surg., 64-B:269-275, 1980. CATTERALL,A. e Cols.: Perthes Disease: Is the Epiphysial lnfarction Complete?

A Study of the Morphology in two Cases. J. Bone Joint Surg., 64-B276-281, 1982. CORTE-REAL,A.P. e Cols.: Artrografia da Anca na Criança. Rev. Ortop. Traum.

IB, 7P:125-138, 1981. CRAIG,W. e Cols.: Etiology and Treatment of Legg-Calvé-Perthes Syndrome. In

Proceedings of the American Academy of Orthopaedic Surgeons. J. Bone Joint Surg., 45-A: 1325-1326, 1963.

CRANE,L.: Femural Torsion and its Relation to Toeing-in and Toing-out. J. Bone Joint Surg., 41-A:423, 1959.

CRAVEIRO LOPES,N. e BETTENCOURT, P.: Doença de Legg-CaIvé-Perthes. Novos Conceitos, Diagnósticos e Terapêuticos. Rev. Ortop. Traum.IB., 11P:31-47, 1985

DlCKENS,D.R.V. e MENELAUS,M.B.: The Assessment of Prognosis in Perthes Disease. J. Bone Joint Surg., 60-B:189-194, 1978.

DUNLAP,K. e Cols.: A new Method for the Determination of Torsion of the Femur. J. Bone Joint Surg., 35-A:289, 1953.

FABRY,G. e Cols.: Torsion of the Femur. A Follow-up Study in Normal and Abnormal Conditions. J. Bone Joint Surg., 55-A:1726-1738, 1973.

GALVÃO DE MELO,F.: Introdução aos Métodos Estatísticos. Volume I e II, 2ª- Ed., Liv. Escolar Editora, Lisboa, 1982.

GALVÃO DE MELO,F.: Métodos Estatísticos em Estudos Comparativos. Comparação de Tratamentos. Ed. Escola Nacional de Saúde Pública, Lisboa, 1985.

GERSHUNI,D.H. e Cols.: Arthrographic Findings in Legg-Calvé-Perthes Diseases and Transient Synovitis of the Hip. J. Bone Joint Surg., 60-A:457-463, 1978.

HENRIKSSON,L.: Measurements of Femural Neck Anteversion and Inclination. A Radiographic Study in Children. Acta Orthop. Scand. (Suppl.), 186:23-31, 1980.

KLEINBERG,S.M. e LIEBERMAN,H.S.: The Acetabular índex in Infants. Arch. Surg., 32:1049, 1936.

HEYMAN,C.H. e HERNDON,C.H.: Legg-Perthes Disease. A Method for Measurement of the Roentgenographic Results. J. Bone Joint Surg., 32-A:767-778, 1950.

KATZ,J.F.: Femoral Torsion in Legg-Calvé-Perthes Disease. J. Bone joint Surg., 50-A:473-475, 1968.

LANZ,T. e WACHSMUTH,W.: Praktiche Anatomie. Ed. Julius Springer, Berlin, 134, 1938.

KALLID,P. e RYOPPY,S.: Hyperpressure in juvenile Hip Disease. Acta Orthop. Scand., 56:211-214, 1985.

MOSE,K.: Legg-Calvé-Perthes Disease. A Comparision Between three Methods of Conservative Treatment. Aarthus, Universitetsforlaget, 1964.

MENDONÇA,J. e Cols.: Detecção Cintigráfica Precoce da Doença de Perthes na Sinovite da Anca. Rev. Ortop. Traum. IB, 1OP:153-161, 1984.

Page 15: Doença de Perthes. Evolução Natural de 9 Parâmetros Radiológicos. Nuno Craveiro Lopes

MOSE,K. e Cols.: Legg-Calvé-Perthes Disease. The Late Ocurrence of Coxartrosis. Acta Orthop. Scand. (Suppl.), 169:, 1977.

MUJICA,B.E.: Desviaciones de los Ejes de Miembros Inferiores en la Infancia. Ponencia Oficial Espanhola no XII Congresso Hispano-Luso de Cirurgia Ortopédica y Traumatológica, Ed. SECOT, 47-49, 1981.

MÜLLER,M.: Die Hoftnahen Femurosteotomien. Thieme, Stuttgart, 1957. O’GARRA,J.A.: The Radiographic Changes in Perthes Disease. J. Bone Joint

Surg., 41-B:465-476, 1959. PAWELLS, F.: Gesammeldt Abhandlungen zur Sunktionellen Anatomie des

Bewegungsapparates. Stringer Ed., 1965. PETRIE,J.G. e BITENC,I.: The Abdution Weight-bearing Treatment in Legg-

Calvé-Perthes Disease. J. Bone Joint Surg., 53-B:54-62, 1971. RIPPSTEIN, J.: Zur Bestiminung der Antetorsion des Schenkelhalses mittels

zweier Röntgenaufnahmen. . Orthop. 86:345-350, 1955. SALTER,R.B. e Cols.: Legg-Calvé-Parthes Disease. The Prognostic Significance

of the Subchondral Fracture and a two-Group CIassification of the Femoral Head Involvement. J. Bone Joint Surg., 66-A479-489, 1984.

SALTER,R.B. e Cols.: The Present Status of Surgical Treatment for Legg-CaIvé-Perthes Disease. J. Bone Joint Surg., 66-A: 961-966, 1984.

SCOLES,P.V. e Cols.: Nuclear Magnetic Resonance Imaging in Legg-Calvé-Perthes Disease. J. Bone Joint Surg., 66-A: 1357-1363,1984.

SCHMID e WEBER: Mentioned by Debrunner,H.V.: Diagnóstico Ortopédico, Ed. Toray, Barcelona, 129, 1975.

SEABRA,R. e SERRA,L.: Estudo Prospectivo do Vector Patogénico da “Sinovite da Anca”. Rev. Ortop. Traum. IB,12P:1-14,1986.

SHANDS,A.R e STEELE,M.K.: Torsion of the Femur. A Follow-up Report on the use of the Dunlap Method for its Determination. J. Bone Joint Surg., 40-A:803-816, 1958.

SPIEGEL,M.R.: Mathematical Handbook of Formulas and Tables. MacGraw-Hill Book Com., N. Y., 258, 1980.

SUTHERLAND,A.D. e Cols.: The Nuclide Bone-Scan in the Diagnosis and Management of Perthes Disease. J. Bone Joint Surg., 62-B:300-306, 1980.

TOENNIES e BRUNKEN: Mentioned by Debrunner,H.U.: Diagnóstico Ortopédico, Ed. Toray, Barcelona, 127, 1973.

TRUETA,J. e HARRISSON,M.M.N.: The Normal Vascular Anatomy of the Femoral Head in Man. J. Bone Joint Surg., 35-B:442, 1953.

WALDENSTRÖM,H.: The Defenition Form of Coxa Plana. Acta Radiol., 1:384-394, 1922.

WIBERG,G.: Studien uber das Normale Arthrographiebild des Huftgelenks bei Klenkindern. Z. Orthop., 72-35, 1941.

WIGSTRAND,H. e Cols.: Transient ischaemia of Femoral Epiphysis. Acta Orthop. Scand., 56:196-203, 1985.

WlGSTRAND,H. e Cols.: Intracapsular Pressure in Transient Synovitis of the Hip. Acta Orthop. Sand., 56:204-210, 1985.

UPADHYAY,S.S. e Cols.: Femoral Anteversion in Perthes Disease with Observation on irritable Hips: Application of a New Method Using Ultrasound. J. Bone Joint Surg., 68-B:496, 1986.

VILA VERDE,V. e Cols.: Doença de Perthes. Rev. Ortop. Traum. IB, 6P:5, 1980.