DOENÇA E ESCRAVIDÃO NO SÉCULO XVIII: CONSTRUINDO UM …
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Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT
Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9
DOENÇA E ESCRAVIDÃO NO SÉCULO XVIII: CONSTRUINDO UM
QUADRO NOSOLÓGICO
Maria Cristina Rosa1
Júlia Carvalho Oliveira2
INTRODUÇÃO
A produção acadêmica sobre saúde abrangendo o século XVIII no Brasil ainda é
pouco expressiva, mas em plena ascensão. Simpósios temáticos que tratam sobre o tema
história da saúde e da doença, em eventos nacionais e internacionais, são oportunidades
impares para aprofundamento e discussões de trabalhos que privilegiam o assunto.
Estudos abrangendo doenças dos escravos no século XVIII na América
Portuguesa têm especialmente manuais e tratados médicos como fonte, como os
trabalhos de Nogueira (2011), Abreu (2011) e Eugênio (2000). Esses são essenciais,
todavia pesquisas que podem ser complementares estão sendo desenvolvidas a partir de
outras fontes, como óbitos, inventários e testamentos, devassas, trazendo à tona
situações e processos vivenciados pelos indivíduos na vida cotidiana. Esses podem
ajudar a compreender práticas de cura, manifestações de doenças, ações de conservação
e restabelecimento da saúde, cuidados com o corpo etc. como partes constituintes da
vida, bem como suas relações com outras esferas, como a social, a política e a
econômica.
Em Minas Gerais, há um vasto corpus documental composto por fontes
arquivísticas manuscritas disponibilizado em registros eclesiásticos e cartoriais,
configurando-se como fontes potenciais para estudos que podem contribuir com a
história das ciências da saúde. Exemplos: assento de óbito, devassa eclesiástica,
inventário post-mortem, justificação, notificação, testamento e devassa civil que trazem
1 Universidade Federal de Minas Gerais. Doutorado em Educação.
2 Universidade Federal de Ouro Preto. Graduanda em Medicina, Bolsista de Iniciação Científica
(FAPEMIG).
Financiamento: FAPEMIG
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descrições de corpos; apontamentos sobre doenças, sinais e sintomas; práticas de
cura, entre outros elementos.
Este trabalho tem por objetivo apresentar um perfil nosológico de doenças
encontradas no século XVIII no Termo de Mariana, tendo como referência a população
escrava. As principais fontes foram os inventários e inventários com testamentos.
Buscou-se também contemplar possibilidades, dificuldades e limites para a construção
do mesmo.
A dificuldade inicial revela-se sobre a possibilidade ou não de se construir um
perfil nosológico para o século XVIII, diante da qualidade das informações encontradas
nas fontes escolhidas. Karasch (2000) e Magalhães (2005, 2004), por exemplo, ao
organizar e classificar doenças dos escravos no Rio de Janeiro e Goiânia,
respectivamente, para o século XIX, tiveram como fonte registros de óbito. Todavia
esse tipo de documentação referente ao século XVIII traz limitações, pois, como mostra
Valadas (2008), não era uma exigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia constar a descrição da causa da morte no assento de óbito. Em Porto Alegre, e em
outros locais, é a partir de 1799 que começa a aparecer com freqüência a causa da
morte. Até então era comum aparecer, especialmente, “afogamento”, “morreu
repentinamente”.
Além disso, Nogueira chama atenção para tentativas de classificação das
doenças a partir de padrões atuais. Como afirma:
como qualquer outro objeto de investigação histórica, as doenças devem ser
igualmente historicizadas. Ou seja, devemos estar atentos para as diferentes
formas de explicação e concepção dos males que acometiam os corpos de
indivíduos que, vivendo em épocas diferentes da nossa, certamente possuíam
outro tipo de arsenal mental para dar conta e remediar esse momento de
fragilidade da existência humana, a produzir, consequentemente, intervenções
e explicações diferentes das vigentes hoje (2011: 42).
Considerando esses e outros riscos, alguns exercícios estão sendo feitos e são
descritos abaixo. A tentativa é de melhor conhecer as doenças e seus acometimentos no
século XVIII a partir de fontes que dizem sobre a vida dos escravos.
Alguns cuidados estão sendo tomados, como: manter a descrição da referência à
doença, sinal ou sintoma encontrados na fonte consultada; trabalhar com dicionários de
época para compreensão dos termos; e tentar dialogar com classificações de
periodicidades mais próximas à estudada, como, por exemplo, as organizadas para o
século XIX, que são mais comuns. Todavia, esclarecemos que este é um trabalho em
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andamento, sendo oportuna a possibilidade de discussão do que está sendo construído,
que sofrerá alterações no decurso do trabalho.
INVENTÁRIOS POST MORTEM COMO FONTE
Inventários e testamentos, “quando bem analisados, mostram, ou deixam
transparecer, informações de ordem social, econômica, cultural, educacional, religiosa,
política e administrativa” (FLEXOR, 2005: 1). Os inventários, especificamente, são
tratados por Schnoor como “documentos príncipes”, termo do vocabulário de
colecionadores que designa “aqueles que por sua importância modificam de alguma
forma um ou outro ponto da historiografia” (2007: 3), assim considerados por trazerem
informações substanciais sobre a conjuntura histórica a que estão vinculados.
Foram pesquisados inventários post mortem no Arquivo da Casa Setecentista de
Mariana, especialmente o item bens materiais, em que escravos são listados e na sua
descrição são encontrados sintomas e sinais de doenças, uma vez que o valor do escravo
tem relação direta com a sua saúde.
No entanto, por serem redigidos por louvados, que são peritos avaliadores, e não
agentes das artes de curar, os inventários são uma fonte com limite de informações
sobre o estado de saúde e/ou doença dos cativos, negligenciado informações do
processo de adoecimento ou da doença já instalada. Há, pois, falta de especificação das
doenças nas descrições e avaliações dos escravos nos arrolamentos de bens. Em alguns
inventários as informações sobre as doenças são insuficientes, além do fato de que
muitas descrições têm sintomas mal definidos, como “com moléstia no peito e no
pescoço” ou “enfermidade no estômago”, sendo que a amplitude do termo empregado
na descrição pouco diz sobre o estado de saúde do indivíduo. Isso reflete a subjetividade
com que as descrições dos bens são feitas, negligenciado informações melhor
pormenorizadas, o que deixa os inventários numa condição de porta de entrada para os
dados, que precisam ser complementados com auxílio de outras tipologias de fontes,
dentre elas, as impressas, como os manuais e tratados de medicina.
Outro ponto a se considerar é a imprecisão da descrição das doenças dos
escravos nos arrolamentos de bens. Em grande parte, eles são listados apenas como
‘doentes’, ‘molestos’ ou ‘achacados’. Todavia, esse tipo documental nos possibilita
fazer um exercício complexo e importante de tentar compreender as doenças nessa
época.
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PRIMEIRA TENTATIVA DE CONSTRUIR UM QUADRO NOSOLÓGICO
A construção do perfil nosológico referente ao século XVIII iniciou-se na
pesquisa “Levantamento e catalogação de fontes para estudo da história dos corpos na
comarca de Vila Rica (1700 -1808)”, que realizou uma ampla pesquisa sobre acervos
em arquivos de Ouro Preto e Mariana, no recorte temporal de 1700-1808, num esforço
de sistematização de informações que aprofundassem conhecimentos sobre o corpo do
século XVIII. O presente trabalho é uma continuidade dessa pesquisa, que teve como
principal produto o Catálogo de Fontes História da Saúde e das Doenças na Comarca de
Vila Rica (1700-1808), disponível em http://www.nec.ufop.br/catalogo/catalogo.html,
em que foram catalogadas informações sobre moléstias, agentes das artes de curar, entre
outras informações.
Tendo em vista que os inventários tinham como função a listagem, a avaliação e
partilha de todos os bens, dívidas e créditos que o inventariado deixava, os escravos
eram descritos juntamente aos bens móveis e imóveis, com informações sobre nome,
sexo, origem ou nação, estado físico, habilidades e preço (FLEXOR, 2009: 2). Dessa
forma, as descrições dos bens dos inventários, principalmente no que se refere aos
escravos, permitiram identificar doenças mais recorrentes, sua relação com idade, etnia
e sexo e também a intrínseca relação das enfermidades com a desvalorização monetária
dos escravos. Esse fato é relatado por Schnoor em seu estudo sobre escravarias do vale
do Paraíba na primeira metade do século XIX, em que afirma: “muitos deles alcançaram
valores pequenos, justificados pelos Louvados. Eram os doentes, aleijados, loucos,
alcoólatras” (2007: 7).
Segue abaixo um primeiro agrupamento das doenças realizado por Rosa,
Quadros e Gelape (2013) 3
, tendo como referência inventários post-mortem do 1º Ofício,
do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, abrangendo a temporalidade de 1751 a
1808:
TABELA 1 – Doenças dos escravos encontradas nos inventários post mortem
Doenças
Doente, enfermo, achacado ou
molesto (sem outra
especificação)
Gota Coral Doença de fígado
3 Esses dados estão sendo trabalhados em outro artigo, constando o número de acometimentos por década
e outras variáveis.
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Aleijado, membro(s)
defeituoso(s)
Gota Expelindo sangue pela
boca
Quebrado, rendido da(s)
virilha(s)
Inútil e incapaz Falta de dentes e doença
na boca
Papo Demente, doido, pateta, sem
atenção
Cambota, zambro
Ferida(s) pelo corpo Cansaço, opilação, vício de
comer terra
Doente dos pés, azengas,
quizilas
Incapacidade por velhice, velho Suturado, operado Lobo
Erisipela Morféia, lepra, mal de lázaro Surdo, doente dos
ouvidos
Cego, zaino, com víscida e
belida nos olhos
Asma Queimadura
Inchado dos pés e pernas Gagueira Doença de sangue
Obstrução Mudo Estuporado
Lesão, fratura, destroncamento
de membro(s)
Outras
Fonte: AHCSM. Inventários, 1º Ofício, 1751-1808
A princípio, algumas das doenças mais recorrentes dos escravos no Termo de
Mariana encontradas nos inventários foram agrupadas com a finalidade de se apresentar
mais didaticamente os dados obtidos. Como exemplo, as virilhas rendidas ou quebradas,
que tratam-se de hérnia intestinal (Bluteau, 1792, p. 33), apareceram nas descrições
normalmente dessas formas, mas não é incomum que elas sejam escritas especificando
os escravos apenas como “quebrados” ou “rendidos”. São denominações diferentes para
a mesma doença, o que é o caso também do Papo, referente ao Bócio (Bluteau, 1792, p.
241), outra moléstia de grande decorrência no período.
O agrupamento inicial também foi feito para doenças que apresentam similitudes
de sintomas e implicações, tomando-se como exemplo o caso dos escravos aleijados e
os com membros defeituosos, e dos cativos com feridas e manchas pelo corpo. No
primeiro caso, ambas origens das moléstias podem ser provenientes de esforços de
trabalhos e castigos senhoriais, bem como as implicações, tendo como a principal a
privação de certos serviços. E quando se trata das feridas e manchas cutâneas, em
ambos os casos podem ser provenientes das más condições de higiene, vestimenta e
alimentação, tendo como principais implicações coceiras, sangramentos e infecções na
pele.
Alguns outros tipos de doenças ou sinais/sintomas também foram encontrados,
mas por se tratarem de casos isolados em meio à amostragem metodológica, foram
sintetizados na linha denominada “outros”, porém, não quer dizer que o estudo dessas
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doenças seja menos relevante à historiografia do tema, ou mesmo que não se tratavam
de preocupações no período colonial.
SEGUNDA TENTATIVA DE CONSTRUIR UM QUADRO NOSOLÓGICO
A partir dessa catalogação inicial, percebeu-se a necessidade de se conhecer de
maneira mais profunda o perfil nosológico dessas doenças, em busca da compreensão
de suas possíveis causas e sua correlação com o modo de viver daquela população
cativa naquele período.
Vendo a necessidade de se compreender a fundo termos descritos nas fontes,
está sendo feito um cruzamento de fontes manuscritas com fontes impressas, como
manuais e dicionários médicos, para que se possa construir uma classificação adequada
das descrições em sistemas do corpo humano acometidos ou fontes causais. Dessa
forma, tendo como referência o Glossário de Doenças, produzido por Rosa, Quadros e
Gelape (2013), que está sendo ampliado nesta pesquisa e tem como referência principal
o dicionário Bluteau (1712), está sendo construída uma nova tabela, contendo uma
coluna com o significado de descrições antes incompreendidas, o que dificultava a
classificação.
Percebeu-se também que a primeira tentativa de construção do quadro
nosológico não foi capaz de abordar todos os acometimentos descritos nos inventários,
negligenciando descrições como “escorbuto”, boubas”, “bexiga”, dentre outros
processos de adoecimento intrinsecamente relacionadas ao meio social vigente. Isso
reforçou a necessidade de se obter categorias que abrangessem todos os termos descritos
nos inventários analisados.
A princípio foram tomados como referência para essa categorização das doenças
dois quadros nosológicos estabelecidos para o século XIX, no Rio de Janeiro
(KARASCH, 2000) e em Goiás, (MAGALHÃES, 2004), que trazem as seguintes
formas de classificação.
Tabela 2 – Referências de Metodologias de Classificação
KARASCH, 2000 MAGALHÃES, 2004
Doenças infecto-parasitárias Doenças da infância, gravidez e parto
Sistema digestivo Doenças infecciosas e parasitárias
Sistema respiratório Doenças do aparelho digestivo
Sistema nervoso e sintomas neuro- Doenças do aparelho circulatório
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psiquiátricos
Primeira infância e malformações
congênitas
Doenças de transtornos mentais e sistema
nervoso
Morte violenta e acidental Doenças do sangue e nutricionais
Sistema circulatório Doenças do aparelho respiratório
Doenças reumáticas e nutricionais e
doenças da glândula endócrina
Doenças do aparelho geniturinário
Gravidez, parto e puerpério Doenças de neoplasias
Sistema Geniturinário Doenças de sintomas mal definidos
Causas desconhecidas (Variadas) Doenças de pele e do tecido subcutâneo
Causas de morte mal definidas Doenças de lesões, envenenamentos e
outras causas externas
A partir dessas referências, que classificam descrições encontradas em registros
de óbito, percebeu-se a necessidade de construir algumas novas categorias de
classificação, uma vez que este estudo analisa processos de adoecimento que não
necessariamente tenham levado ao óbito dos escravos descritos em inventário. Foram
então estabelecidas as seguintes categorias de classificação:
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Tabela 3 - Metodologia de Classificação Adotada
CATEGORIA DESCRIÇÃO ANATOMOPATOLÓGICA (em
termos atuais) EXEMPLO
Doenças do
sistema
digestório
Doenças relacionadas aos órgãos do sistema digestório e
seus anexos –
boca, faringe, esôfago, estômago, intestino
delgado, intestino grosso, reto, ânus, pâncreas,
o fígado e vesícula biliar (MOORE, 2007).
“quebrado das
virilhas” ou
“doente do
fígado”
Doenças do
sistema
respiratório
Doenças de fossas nasais, boca, faringe, laringe,
traquéia ou pulmões (BOGLIOLO, 2000).
“achaque de
asma” ou
“tísico”
Doenças do
sistema nervoso
e sintomas
neuro-
psiquiátricos
Doenças relacionadas anatomicamente ao Sistema
Nervoso Central ou Sistema Nervoso Periférico
(MOORE, 2007), ou que tenham levado a alterações das
funções psíquicas elementares (DALGALARRONDO,
2008).
“gota coral”
Doenças do
sistema
geniturinário
Doenças relacionadas aos rins, ureteres e bexiga e aos
órgãos genitais masculinos e femininos (BOGLIOLO,
2000), excluindo-se aquelas relacionadas à gestação ou
ao parto.
“com os
testículos
melhores”,
“doente da
madre com
esta de fora”
Doenças do
sistema
circulatório
Doenças relacionadas ao coração, veias, artérias,
linfáticos ou mesmo aos vasos de menor calibre
(BOGLIOLO, 2000).
“obstrução”
Doenças do
sistema sensorial
Doenças relacionadas aos sentidos - visão, audição,
olfato, tato, paladar (MOORE, 2007) – sejam elas de
origem traumática ou não traumática. No caso de
comprometimento da função do órgão – como “surdo”,
ou “cego” – essa classificação foi ainda acrescida de
Disfunção.
“belida”,
“surdo”
Doenças infecto-
parasitárias
Qualquer destruição tissular com manifestações clínicas
e
patológicas de infecção (BRASIL, 2014)– com exceção
das doenças infecciosas da pele, que foram descritas
separadamente;
“barriga
d´água”
Doenças
reumáticas,
nutricionais e
glandulares
As doenças reumáticas são aquelas doenças e alterações
funcionais que comprometem o aparelho músculo-
esquelético – ossos, cartilagem, estruturas peri-
articulares e/ou de músculos – de forma não traumática;
as doenças nutricionais são aquelas relacionadas à
deficiência de certos nutrientes, como vitaminas ou sais
minerais, gerando sintomatologia já bem caracterizada
desde o século XVII, como, por exemplo, o escorbuto;
as doenças glandulares são aquelas relacionadas ao
sistema endócrino, responsável pela produção e
secreção de hormônios (BOGLIOLO, 2000).
Exemplo:
“papo”,
“escorbuto”
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Doenças da pele
Referem-se a qualquer afecção do tecido epitelial,
culminado em lesões cutâneas superficiais ou profundas,
incluindo-se também nesta classificação as feridas
cancrosas (neoplasias cutâneas), além das doenças das
mucosas, como afecções na boca, lábios, gengiva,
língua (JUNQUEIRA & CARNEIRO, 2004). Neste
caso, excluem-se as lesões de pele traumáticas e as
doenças de mucosa genital, que foram descritas
separadamente.
“erisipela”.
Deformidades
congênitas ou
adquiridas
Abrangem todos os desvios em relação à forma,
tamanho, posição, número e coloração de uma ou mais
partes decorrentes de condição morfológica congênita,
além das deformidades adquiridas, decorrentes de
alguma condição pós-natal, seja ela de origem laboral,
acidental ou patológica (FREIRE-MAIA, 1976; OPAS,
1984). Lesões agudas, provenientes de acidentes ou
acometimentos externos, com ampla chance de cura sem
culminar em deformidades, foram classificadas
separadamente.
“aleijado”,
“malfeito”
Acidentes, lesões
externas
Lesões sabidamente ocasionadas por acidentes ou lesões
traumáticas, não representando doenças de mecanismos
fisiopatológicos. No caso de levaram à perda da função
do órgão, foram ainda classificadas como Disfunção.
fraturas,
“fístulas”, ou
quaisquer
outros achados
provenientes
de traumas,
incluindo as
“suturas”.
Gestação ou
problemas de
gravidez/parto
Gestante ou que apresente complicações que tenham
ocorrido durante a gestação ou durante o trabalho de
parto. Excluem-se as questões embriológicas, que foram
classificadas separadamente.
“pejada”
Senilidade
Sintomatologia sabidamente decorrente do processo de
envelhecimento, geralmente associada à Disfunção.
“velho de
idade”
Disfunção
Doença de qualquer órgão que tenha culminado em
perda de sua função. Essa classificação é uma
complementação do acometimento primário. Portanto,
no caso de disfunção, sempre há uma classificação
prévia.
“cego”
Ao iniciar o processo de classificação das descrições dos inventários, baseando-
se nessas categorias, notou-se uma forte limitação, também relatada por Magalhães
(2004:119)
Umas das dificuldades é a apreensão da terminologia das doenças, pois os
registros apresentam as denominações populares variáveis no tempo e no
espaço. Outra, é a ausência de padronização dos registros, pois em alguns
períodos o documento apresenta riqueza de detalhes e em outros, sequer a
causa da morte é registrada.
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Apesar de não nos interessar a causa da morte, a ausência de informações
precisas e/ou o desconhecimento de alguns termos se mostraram como uma limitação à
classificação de algumas descrições, fazendo-se necessário a utilização da categoria
doenças de sintomas mal definidos, sugerida por Magalhães (2004).
Nessa categoria foram inseridas descrições que não puderam, até o momento, ser
classificadas em nenhuma das categorias acima citadas, por descrição pobre da
sintomatologia, como “doente”, “achacado”, dentre outros, ou por desconhecimento da
terminologia utilizada, como “muito inferior”, “com um lobinho”, “com doença de
pestária”, “com falta de conjunção”, “alparcas no pescoço”, “com achaque de
congolha”, “fintes”, “serrador”, “costumeira”, “rendura”, “rendeira”, “trombeta”,
“palmilhador”, “chagas pelo corpo gallico”, “pés gretados”, “achaque de bamba”,
“zaino de um olho”, “víscida no olho”, “maneta”, “pranto no sangue”, “estípola”,
“espinha inchada”, “beiçudo”, “externado”, “doente de sílica”, “com defluxo no peito”,
“doente de pilouriz”, “doença de cística”.
A partir da adoção dessa terminologia para a construção do quadro nosológico, a
pesquisa encontra-se em fase de classificação das doenças com base nas categorias
adotadas, para uma posterior análise dos dados colhidos e cruzamento entre as variáveis
disponíveis, como gênero, idade e etnia. Todavia, no decorrer desse processo estão
ainda sendo estabelecidos critérios para tentar sanar possíveis interseções entre as
categorias. Isso ocorre, por exemplo, em descrições como edema não especificado
(“inchação”) que foi alocado em doenças de sintomas mal definidos, uma vez que pode
ter diversas causas que não sejam diretamente o acometimento circulatório, que vão
desde fraturas a infecções de tecidos moles; ou mesmo “achaque de fígado”, que pode
estar relacionado ao sistema digestório ou a doenças infecto-parasitárias, cirrose,
neoplasias, dentre diversas outras possibilidades.
Figueiredo aborda essa imprecisão das informações nas fontes e afirma: “os
sintomas são sempre resultados, e é difícil localizar uma descrição na qual os sintomas
estão diretamente associados a um diagnóstico. Logo, os sintomas podem ser assoados a
diversas doenças” (2006: 258).
Esse fato também é recorrente em descrições subjetivas, como “com
enfermidade no estômago”, “achaque no pescoço” ou “com o pé doente”, que se
referem ao local acometido, mas não especificam o tipo de acometimento. Outro caso é
a descrição “lança sangue pela via”, que poderia se referir tanto a uma doença do
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sistema respiratório, com hemoptise, quanto a uma doença do sistema digestório, com
melena. Segue abaixo exemplo desse processo de classificação, com algumas dessas
dificuldades aqui relatadas.
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Tabela 4 – Processo de classificação em andamento
Espera-se dessa análise estabelecer correlações entre as doenças, suas
implicações sócio-político-culturais e os conhecimentos médicos vigentes no período,
contribuindo com o aparato histórico-científico dos estudos sobre o corpo. De todo
modo, este estudo já vem identificando correlações entre as doenças, as condições de
vida e trabalho e suas implicações na temporalidade setecentista, compreendendo o
corpo como local de inscrição, produção e expressão da cultura vigente no contexto da
sociedade escravista.
REFERÊNCIAS
4 VERBETE QUEBRADO: O que tem hérnia intestinal (designação do termo em latim). IN:
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Colégio das Artes e da Companhia de
Jesus, 1712; p.33 5 Acometimento pobremente descrito
6 Leitura paleográfica dificultada pela letra ou pelo estado documental
7 Verbete desconhecido
Nome Procedê
ncia/Etn
ia
Idade Valor Acometiment
o
Ano
Categoria
André Benguela 28 130/8 Quebrado da
virilha4
1750 Doenças do sistema
digestório
Quitéria Mina-
courano
28 100$0
00
Achacada de
asma
1740 Doenças do sistema
respiratório
Miguel Mina 70 25$00
0
Gota coral 1762 Doenças do sistema
nervoso e sintomas
neuro-psiquiátricos
Antônio Carabaí 50 40/8 Aleijado de
ambos os
dedos grandes
do pé
1736 Deformidades
congênitas ou
adquiridas
Brisida de
Pernambuco
Mulata 29 Sem
valor
Incapaz de
serviço
1749 Disfunção
Antônio Cobu 20 110/8 Beiço de baixo
vermelho5
1744 Doenças de sintomas
mal definidos
Bernardo Mina 18 120 Com b[...] nos
joelhos6
1743 Doenças de sintomas
mal definidos
Miguel Congo 40 50$00
0
Com cosa
choques7
1761 Doenças de sintomas
mal definidos
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ABREU, J. L. N. Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século
XVIII. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz: 2011.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Colégio das Artes e da
Companhia de Jesus, 1712.
BOGLIOLO, L.; BRASILEIRO FILHO, G.. Patologia. 6. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 2000.
EUGÊNIO, A. As doenças de escravos como problema médico em Minas Gerais no
final do século das luzes. Varia História, Belo Horizonte, n. 23, p.154-163, jul. 2000.
BRASIL. Fundação Oswaldo Cruz. Biblioteca Virtual em Saúde: O que são doenças
infecciosas e parasitárias? Disponível em:
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