Doc._Pedag._captulo_7_Moss[1] (2) documentacao pedagogica

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Documentação Pedagógica: Uma Prática para a Reflexão e para a Democracia Gunilla Dahlberg Peter Moss Alan Pence A documentação pedagógica como um processo para encorajar uma prática pedagógica reflexiva e democrática Parece-me que a tarefa política real em uma sociedade como a nossa é criticar os trabalhos de instituições que parecem ser tão neutras quanto independentes; criticá-las de tal maneira que a violência política que tem sempre sido exercida de forma obscura através delas venha a ser desmascarada para que se possa combatê-las. (Foucault. 1974, p. 171) Nos capítulos anteriores, defendemos o caráter socialmente construído do conhecimento e a natureza situada e incorporada da construção da criança, do pedagogo e da pedagogia da primeira infância. Fizemos isso identificando algumas técnicas e práticas pelas quais construímos a criança e o pedagogo e os riscos dessas ações. A partir dessa perspectiva, qualquer atividade pedagógica pode ser vista como uma construção social realizada por agentes humanos, na qual a criança, o pedagogo e todo o meio da instituição dedicada a primeira infância são entendidos como socialmente constituídos através da linguagem. Entretanto, tal perspectiva também implica que a atividade está aberta a mudança; se optamos por construir a atividade pedagógica de uma maneira, podemos também optar por reconstruí-la de outra. Neste capítulo, vamos desenvolver mais o tema de como podemos transgredir as tradições e constituir uma prática alternativa em nossas instituições dedicadas à primeira infância. Essa prática alternativa busca entender como os pedagogos têm construído e representado a si mesmos e às crianças com quem trabalham. Oferece a possibilidade de construir novos significados e, assim fazendo transgredir limites - tanto nas representações como nas práticas. Uma condição necessária para essa prática é formar uma maneira ativa de se opor e resistir ao 1

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Documentao Pedaggica: Uma Prtica para a Reflexo

Documentao Pedaggica: Uma Prtica para a Reflexoe para a Democracia XE "Documentao Pedaggica\: Uma Prtica para a Reflexo" Gunilla Dahlberg

Peter Moss

Alan Pence

A documentao pedaggica como um processo para encorajar uma prtica pedaggica reflexiva e democrtica

Parece-me que a tarefa poltica real em uma sociedade como a nossa criticar os trabalhos de instituies que parecem ser to neutras quanto independentes; critic-las de tal maneira que a violncia poltica que tem sempre sido exercida de forma obscura atravs delas venha a ser desmascarada para que se possa combat-las. (Foucault. 1974, p. 171)

Nos captulos anteriores, defendemos o carter socialmente construdo do conhecimento e a natureza situada e incorporada da construo da criana, do pedagogo e da pedagogia da primeira infncia. Fizemos isso identificando algumas tcnicas e prticas pelas quais construmos a criana e o pedagogo e os riscos dessas aes. A partir dessa perspectiva, qualquer atividade pedaggica pode ser vista como uma construo social realizada por agentes humanos, na qual a criana, o pedagogo e todo o meio da instituio dedicada a primeira infncia so entendidos como socialmente constitudos atravs da linguagem. Entretanto, tal perspectiva tambm implica que a atividade est aberta a mudana; se optamos por construir a atividade pedaggica de uma maneira, podemos tambm optar por reconstru-la de outra.

Neste captulo, vamos desenvolver mais o tema de como podemos transgredir as tradies e constituir uma prtica alternativa em nossas instituies dedicadas primeira infncia. Essa prtica alternativa busca entender como os pedagogos tm construdo e representado a si mesmos e s crianas com quem trabalham. Oferece a possibilidade de construir novos significados e, assim fazendo transgredir limites - tanto nas representaes como nas prticas. Uma condio necessria para essa prtica formar uma maneira ativa de se opor e resistir ao exerccio do nexus saber-poder, aqueles regimes de verdade que tentam determinar para ns o que verdadeiro ou falso, certo ou errado, o que podemos ou no podemos pensar e fazer.

Declaramos anteriormente que aumentar a auto-reflexividade algo que tem um papel importante a desempenhar na prtica pedaggica. Fazendo isso, podemos expandir nosso horizonte social e construir outro relacionamento para a vida, para o trabalho e para a criatividade. Como ento podemos praticar uma pedagogia reflexiva e comunicativa? Isto pressupe, antes de tudo um profissional reflexivo que, junto com seus colegas, possa criar um espao para uma discusso vvida e crtica sobre a prtica pedaggica e sobre as condies de que ela necessita. Alm disso, requer alguns instrumentos. Com a inspirao das instituies dedicadas primeira infncia em Reggio Emilia no norte da Itlia, muitos pedagogos de todo o mundo atualmente comearam a usar a documentao pedaggica como um instrumento para a reflexo sobre a prtica pedaggica e como um meio para a construo de um relacionamento tico com ns mesmos, com o Outro e com o mundo - o que temos denominado tica de um encontro.

Entretanto, a idia e a prtica da documentao pedaggica tem uma longa histria. Tomando um exemplo sueco. a idia da prtica da documentao foi uma caracterstica importante da teoria pedaggica de Elsa Khler. Como Dewey. Elsa Khler abordava de maneira reflexiva e problematizante a prtica pedaggica e as questes a ela relacionadas. A comunicao. a interao e a observao estavam no cerne da pedagogia da atividade de Khler. assim como a idia de que o pedagogo auto-reflexivo deve desenvolver um entendimento da constituio do self. O pedagogo na pedagogia da atividade era visto como uma espcie de pesquisador, e, durante a poca de Khler, muitos pedagogos, devido ao seu envolvimento na reflexo e na pesquisa, realizaram estudos acadmicos e dissertaes escritas (Dahlberg e Lenz Taguchi. 1994; Stafseng, 1994).

Esta construo do pedagogo como pesquisador atravs da prtica reflexiva tambm tem sido influente em Reggio Emilia. No entanto, em Reggio, eles tm questionado as idias dominantes que esto por trs da observao e da documentao. Em vez de entenderem a observao como dizendo respeito ao mapeamento de alguma realidade social universal e objetiva, eles a encaram como um processo de co-construo incorporado em situaes concretas e locais (Kvale, 1992). uni deslocamento da preocupao das teorias para as prticas, da teorizao para a proviso de relatos prticos. instrutivos... O deslocamento da observao da terceira pessoa para o extrair sentido da segunda pessoa... Ns nos tornamos interessados nos procedimentos e dispositivos que usamos ao construir, no mbito social, o tema do estudo... Assim, nos distanciamos da posio individual, da terceira pessoa, externa, contemplativa, do investigador que coleta dados fragmentados de uma posio socialmente externa da atividade observada. (Shotter, 1993. p. 59-60)

Apresentamos a documentao pedaggica como um instrumento vital para a criao de uma prtica pedaggica reflexiva e democrtica. Mas a documentao pedaggica importante por outras razes. Ela tem um papel fundamental no discurso da construo de significado. Em vez de se basear em alguma medida padronizada de qualidade, como no discurso da qualidade, a documentao pedaggica nos permite assumir a responsabilidade pela construo dos nossos significados e chegar s nossas prprias decises sobre o que est acontecendo.

A documentao pedaggica tambm contribui para o projeto democrtico da instituio dedicada primeira infncia, que discutimos no Captulo 4, proporcionando os meios para os pedagogos e outros profissionais se envolverem no dilogo e na negociao sobre o trabalho pedaggico. Tornando o trabalho pedaggico visvel e um tema para debate democrtico e aberto, a documentao pedaggica proporciona a possibilidade de as instituies dedicadas primeira infncia conseguirem uma nova legitimao na sociedade:

Estamos convencidos de que a questo de como restaurar a legitimidade [s instituies dedicadas primeira infncia] nas condies existentes s pode ser tratada se os aspectos econmicos estiverem mais intimamente conectados com os aspectos pedaggicos e cone as noes de valor da educao da primeira infncia. Um pr-requisito para isso que a prtica pedaggica e suas funes sejam tornadas visveis fora do mundo das escolas e dos centros de ateno infncia e que se tornem uma parte do discurso pblico... Da maneira como a consideramos, isso requer a participao de vrios grupos interessados e de uma prtica pedaggica baseada na capacitao, na participao e no discurso reflexivo entre pais, profissionais, administradores e polticos. (Dahlberg e Asn, 1994, p. 166)

Documentao pedaggica no observao da criana

importante esclarecer sobre o que no documentao pedaggica. Ela no deve ser confundida com a observao da criana. Como o entendemos, o propsito da observao da criana avaliar o desenvolvimento psicolgico infantil em relao a categorias j predeterminadas produzidas a partir da psicologia do desenvolvimento, as quais definem o que a criana normal deve estar fazendo em uma determinada idade. O enfoque nessas observaes no so os processos de aprendizagem das crianas, mas a idia de classific-las e categoriz-las em relao a um esquema geral de nveis e estgios desenvolvimentais. Encaradas dessa maneira, as observaes da criana so uma tecnologia de normalizao relacionada s construes da criana como natureza e como reprodutora de conhecimento. Podem tambm estar relacionadas construo da instituio dedicada primeira infncia como produtora de resultados da criana, incluindo o progresso desenvolvimental. Por isso, a observao da criana diz respeito principalmente avaliao do fato de ela estar adaptada a um conjunto de padres. A documentao pedaggica, em contraste a isso, diz respeito principalmente a tentativa de enxergar e entender o que est acontecendo no trabalho pedaggico e o que a criana capaz de fazer sem qualquer estrutura predeterminada de expectativas e normas.

A documentao pedaggica e a observao da criana tambm diferem de outra maneira importante. Adotando uma perspectiva modernista, a observao da criana assume uma verdade objetiva, externa, a qual pode ser registrada, representada com preciso. Est localizada em uma viso tradicional objetivista e racionalista da investigao e da observao em que o mundo entendido come um universo que existe de modo independente, e o conhecimento entendido, como refletindo ou correspondendo ao mundo. Ela assume uma viso de que h qualidades intrnsecas e essenciais que podem ser encontradas no objeto da observao, nesse caso, a criana.

Adotando uma perspectiva ps-moderna, a documentao pedaggica no reivindica que aquilo que documentado seja uma representao direta do que as crianas dizem e fazem: no um relato verdadeiro do que aconteceu. No entanto, esse desafio objetividade no encontrado apenas nas teorias ps-moderna, Durante os ltimos 30 anos, os pesquisadores da ciberntica e da teoria dos sistemas esto lidando com questes similares do conhecimento como sendo uma construo social e cultural. Explorando as implicaes da reflexividade e da auto-referncia na pesquisa da cincia social, esses pesquisadores no esto apenas estudando mecanismos de feedback circulares, mas tambm lidando com o processo da observao e corri o observado (Gergen e Gergen, 1991; Israel, 199 Steier, 1991; von Foerster, 1991). Esses pesquisadores, que so considerados pertencentes a uma tradio ciberntica de segunda ordem, enfatizam a responsabilidade do observador por sua observao, por suas descries, interpretaes e explicaes. A investigao construcionista, como atividade humana. deve se preocupar com um processo conhecido como incorporado em um circuito [circular] reflexivo que inclui o investigador, o qual , acima de tudo_ um observador ativo (Steier, 1991, p. 163).

A documentao pedaggica uni processo de visualizao, mas o que documentamos no representa uma realidade verdadeira mais do que as declaraes sobre o mundo social e natural representam uma realidade verdadeira - ela uma construo social em que os pedagogos, por intermdio do que selecionam como valioso de ser documentado, so tambm co-construtores participativos. O significado no provm apenas do ver ou observar; o significado [no est] repousando na natureza, esperando ser captado pelos sentidos - ao contrrio, ele construdo. produzido em atos de interpretao (Steedman, 1991). Quando voc documenta, voc constri uma relao entre voc mesmo como pedagogo e a criana/crianas, cujo pensamento, cujas palavras e cujas aes voc documenta. Nesse aspecto, a prtica da documentao no pode, de modo algum. existir parte do nosso envolvimento no processo. Do mesmo modo que a encenao, ela o que desempenhamos daquilo que documentamos, tambm seletiva, parcial e contextual.

O que documentamos representa uma escolha, uma escolha entre muitas outras escolhas, uma escolha de que os prprios pedagogos esto participando. Da mesma forma, aquilo que no escolhemos tambm uma escolha. Carlina Rinaldi, uma pedagogista de Reggio Emilia, fala sobre escolher a partir de muitas incertezas e perspectivas possveis, ousando perceber as ambigidades. As descries que fazemos e as categorias que aplicamos, assim como os entendimentos que usamos para extrair sentido do que est acontecendo, esto imersos em convenes tcitas, classificaes e categorias. Em suma, ns co-construmos e co-produzimos a documentao como sujeitos e participantes ativos. Nunca h uma nica histria verdadeira.

Conseqentemente, quando documentamos, somos co-construtores das vidas das crianas e incorporamos nossos pensamentos implcitos do que consideramos serem aes valiosas em uma prtica pedaggica. A documentao nos diz algo sobre como construmos a criana, assim como ns mesmos como pedagogos. Por isso, nos permite enxergar como ns mesmos entendemos e interpreta mos o que est acontecendo na prtica: partindo da, mais fcil perceber que as nossas prprias descries como pedagogos so descries construdas. Por isso. elas se tornam passveis de pesquisa e abertas discusso e mudana - o que significa que, atravs da documentao, podemos perceber como nos relacionamos com a criana de outra maneira. Sob essa perspectiva, a documentao pode ser vista como uma narrativa de auto-reflexividade - uma auto-reflexividade a partir da qual a autodefinio construda. A conscincia de que no estamos representando a realidade, de que fazemos escolhas em relao a discursos dominantes inscritos, facilita analisar criticamente o carter construdo da nossa documentao e encontrar mtodos que se contraponham e resistam aos regimes dominantes.

Estamos certamente a um longo caminho da idia da observao da criana como um registro verdadeiro, uma representao real da criana e do seu desenvolvimento. O que documentao pedaggica?

Quando usamos o termo documentao pedaggica, estamos, na verdade, referindo-nos a dois temas relacionados: um processo e um importante contedo desse processo. A documentao pedaggica como contedo o material que registra o que as crianas esto dizendo e fazendo o trabalho das crianas e maneira com que o pedagogo se relaciona com elas e com o seu trabalho. Tal material pode ser produzido de muitas maneiras e assumir muitas formas - por exemplo, observaes manuscritas do que dito e feito, registros em udio e vdeo, fotografias, grficos de computador, o prprio trabalho das crianas, incluindo, por exemplo, arte realizada no atelier com o atelierista. Este material torna o trabalho pedaggico concreto e visvel (ou audvel) e, como tal, um ingrediente importante para o processo da documentao pedaggica.

Esse processo envolve o uso desse material como um meio para refletir sobre o trabalho pedaggico e faz-lo de uma maneira muito rigorosa, metdica: e democrtica. Essa reflexo ser realizada tanto pelo pedagogo sozinho come pelo pedagogo junto com outras pessoas - outros pedagogos outros pedagogistas, as prprias crianas, seus pais, os polticos. Na discusso do Projeto Estocolmo, no captulo anterior, vimos como a documentao pedaggica, baseada em situaes em pequena escala das instituies, tornou-se o principal trabalho de rede de pedagogos, mas isso no foi fcil - foi necessrio treinamento e novas habilidades. Tambm pressupe que os pedagogos e os outros profissionais possam organizar o seu trabalho tanto para preparar a documentao como para criar tempo para esses processos de reflexo. Uma concluso do Projeto Estocolmo e do trabalho realizado em Reggio Emilia que esta no apenas uma questo de recursos, mas a questo priorizar, criar espao para a documentao pedaggica, porque ela entendida como sendo de fundamental importncia.

A documentao pedaggica como um processo de aprendizagem

Antes de observar com mais detalhes a teoria da documentao pedaggica, oferecemos um exemplo da documentao pedaggica na prtica, partindo do trabalho de um pedagogo que era um dos membros da rede no Projeto Estocolmo. Ele no foi selecionado como uma ilustrao de um trabalho excepcional ou de um pedagogo excepcional. O exemplo dele destina-se a descrever algumas idias que esto por trs do Projeto Estocolmo e a idia que est por trs da documentao pedaggica como um processo de aprendizagem, a qual abre a possibilidade de desafiar os discursos dominantes. Entretanto, difcil descrever um trabalho como este, pois ele envolve muitos processos.

O contexto que os pedagogos nesta instituio dedicada primeira infncia, atravs da sua participao no Projeto Estocolmo, esto tentando ouvir as hipteses e as teorias das crianas, assim como as suas fantasias. Esto tambm tentando enfocar, de uma maneira mais sistemtica, as estratgias de aprendizagem e construo de significado das crianas, assim como sua prpria maneira de desafiar os processos de aprendizagem das crianas. No caso aqui, Anna, uma pedagoga que est trabalhando com urra grupo de crianas mais velhas, comea a documentar um projeto sobre o tempo, registrando o que feito e o que dito. Ela leva a documentao para casa toda noite, a observa e analisa, refletindo e reinterpretando o que est acontecendo, no somente entre as crianas, mas tambm como ela tem construdo as crianas e a ela prpria como pedagoga. A partir da documentao, pode formular perguntas sobre a maneira como a criana-aprendiz e o pedagogo-aprendiz foram construdos em sua prpria prtica, como o conhecimento construdo e que tipo de instrumentos o ambiente oferece para a experimentao e para a simbolizao das crianas. Com o que estas crianas mais se envolvem? Que tipo de teorias estas crianas tm? Como posso desafiar essas teorias? Como possvel estender o trabalho temtico por um perodo mais longo e aprofundar os processos de aprendizagem das crianas? Como o trabalho deve prosseguir?

Estas questes desafiam o pensamento de Anna e o modo como ela realiza o seu planejamento. Se for usada como um instrumento para reflexo, a documentao, em geral, faz com que o trabalho temtico se estenda, em vez de o pedagogo se apressar para chegar ao fim e passar para novas idias e para o contedo porque planejou antecipadamente o que devia acontecer - quando. na verdade, as crianas poderiam continuar trabalhando por um tempo bem mais longo em um determinado projeto temtico, aprofundando seus processos de aprendizagem. Essa maneira de trabalhar requer muita experimentao e muito trabalho interpretativo por parte do pedagogo, muito dilogo com outros pedagogos, no qual perspectivas mltiplas podem ser introduzidas, discutidas e confrontadas. Dessa maneira, o processo pode ser uma maneira de problematizar os prprios entendimentos e uma maneira de trabalhar junto em meio s diferenas (Ellsworth. 1992. p. 106).

Alm de trabalhar sozinha. Anna leva a documentao de volta s crianas para que elas possam reexaminar o que fizeram antes, encontrar nova inspirao e se tornar mais envolvidas com o tema. Ela coloca a documentao na parede, e esta se torna um meio importante de envolver os pais no projeto. As crianas comeam a ir para a instituio com ampulhetas e outros instrumentos para medir o tempo. As crianas tambm envolvem os pais; por exemplo, um dia, as crianas pediram a seus pais para correrem no corredor, e elas marcaram o tempo deles. Por intermdio da documentao, Anna conseguiu tambm discutir seu trabalho pedaggico na equipe de pedagogos que trabalhava em sua instituio e na rede do projeto, mostrando-o ainda a muitos outros pedagogos e aos pais nas reunies, de pais.

Anna disse rede que foi difcil saber como ela reagiria s idias de tempo do animal das crianas. Teria sido fcil dizer que os animais no conseguem entender o tempo - mas ela no fez isso, optando por tratar as hipteses das crianas com muita seriedade. Pode-se dizer que Anna trabalhou com uma perspectiva construcionista social, e no com uma perspectiva construtivista, que assume que a pedagoga tem o direito e o conhecimento verdadeiro, que ela deve estabelecer antes de as crianas terem a oportunidade de explorar suas prprias hipteses (veio Captulo 3 para uma discusso mais ampla dessas duas perspectivas). Esta uma tarefa muito difcil, pois estamos j muito envolvidos em uma perspectiva que assume que a pedagoga j possui a resposta e requer que ela planeje cuidadosamente o que as crianas devem aprender. Nesse trabalho temtico, Anna lutou contra isso, buscando descobrir um frum para dialogar com os outros pedagogos em sua instituio dedicada primeira infncia. (Alm disso, vlido notar que, no decorrer do trabalho, as crianas aprenderam a ver as horas, o tipo de resultado desejvel que freqentemente buscado pela pedagogia da primeira infncia - mas sem o pedagogo precisar realizar nenhum ensino especfico desta competncia.)

O projeto sobre o tempo comeou a partir de uma conversa de um grupo de seis crianas de cinco anos de idade durante o seu almoo. Elas ficaram olhando para o relgio na parede e discutindo a que horas seus pais em geral as buscavam na escola. Anna observou que as crianas tinham um interesse real em saber mais sobre o tempo e o relgio. Assim, no dia seguinte. ela tirou o relgio da parede e o colocou sobre uma mesa no atelier da instituio, diante das crianas. Ento. perguntou-lhes o que o tempo? As crianas responderam:

Com o relgio a gente pode ver que horas so. A gente precisa saber as horas. H diferentes tipos de relgios; relgios de pulso, despertadores, relgios cuco que dizem cuco, relgios de igreja que fazem ding-dong. quando meio-dia. Os animais acordam quando ns acordamos - pois eles no tm seus prprios relgios.

O relgio est no 12 tanto de dia como de noite, e os nmeros dele s vo at o 12.

Uma criana, Johan, tambm conta s outras crianas muitas coisas que ele sabe sobre os nmeros e os ponteiros do relgio, incluindo que os ponteiros tm funes diferentes. Outra criana diz que agora elas querem fazer relgios. Quando se sentam no ateli, esto bem conscientes de que podem fazer coisas diferentes. Anna preparou antecipadamente placas de papel circular e as distribuiu entre as crianas, que comearam a desenhar relgios com nmeros e ponteiros.

Dois dias depois. Anna reexamina com as crianas a sua documentao da discusso anterior. incluindo as respostas que elas haviam dado sua pergunta o que o tempo?. As crianas comeam a discutir novamente. Durante essa discusso, elas falam muito sobre os animais e o tempo, e Anna lhes pergunta como os animais podem saber que horas so. As crianas respondem:

Eles se levantam quando as pessoas acordam e fazem seu caf da manh. Eles acordam quando o sol nasce e dormem quando o sol se pe.

Quando o sol est aqui. est escuro na Austrlia. O sol dividido. O sol o relgio dos animais.

Anna continua a acompanhar a discusso das crianas, documentando o tempo todo o que elas dizem. Em seguida, pergunta s crianas se podemos medir o tempo pelo sol. Uma criana responde que no, ns poder-nos saber as horas pelo relgio. O tempo fica girando. Anna ento pergunta: Ser que ns podemos mesmo medir o tempo?, ao que Martin replica: Sim, quando a gente corre - a gente pode medir o tempo.

Agora as crianas querem correr e medir o tempo, e assim vo para o corredor da instituio. Decidem fazer uma corrida. Martin comea a contar os segundos enquanto os outros correm. Quando a vez de Johan, ele usa um relgio. Espera at que o ponteiro grande chegue em um nmero determinado e, ento, conta quanto tempo demora. As crianas pedem a Anna para escrever os resultados. Depois de um tempo, comeam a questionar por que os resultados foram to diferentes quando Martin contou. Isak diz, ento, que Martin conta muito depressa, e, quando Johan usa o ponteiro grande do relgio, este muito mais lento. Continuam a ponderar por qu, mas percebem que no conseguem resolver o problema.

Uma das crianas descobre que os animais tambm tm de ter um relgio. Ento, diz: Temos de fazer um relgio para os animais, e decidem que tem de ser um relgio redondo com nmeros. Bjrn declara que os animais no tm relgio. Mas Hans insiste que eles tm de fazer um relgio para os animais - e, ento, todos fazem isso. Decidem ainda que uma lmpada poderia ser o sol, mas, quando dirigem a lmpada sobre a placa de papel, no vem nada e percebem que tm de ter algo para lanar uma sombra. Ento, Anna pega uma caneta e a entrega a eles. Johan descobre que, colocando a caneta sobre a placa de papel, eles conseguem obter uma sombra. Johan grita. contente: Oh, parece um ponteiro. Mas, ao mesmo tempo, diz que os animais no conseguem ler nmeros.

Isak move a lmpada, e as crianas percebem que a sombra se move. Todas as crianas querem experimentar isso e comeam a mover a lmpada para posies diferentes para ver como a sombra muda.Fizemos um relgio de sol - diz Johan. Eu que inventei ele - diz Hans.

Mas Bjrn diz que os animais no precisam de um relgio, pois se levantam quando o sol nasce.

Anna podia perceber como as crianas estavam interessadas e, por isso, decidiu que deveriam continuar. Mais uma vez, ajudou-as a rever a documentao anterior, a recapitular o que haviam feito antes. Elas dizem que querem fazer relgios de sol com outro material. Anna lhes d argila e diz para no fazerem relgios muito pequenos. As crianas comeam, muito ansiosamente, a fazer formas redondas com a argila. Uma delas diz que os animais no precisam de nmeros - ento, vamos fazer s pontos. Para fazer os ponteiros, usaram palitos de madeira, descobrindo com o uso de uma lanterna que os palitos podiam servir a esta funo. Comearam a correr e a danar em volta de seus relgios e a dizer que o sol nasce e se pe. Tambm observaram que a sombra muda quando eles movem a lanterna e que podem tornar a sombra mais longa e mais curta e, dessa forma, cobrir vrios relgios.

Fazem relgios de sol no jardim e colocam um bloco de madeira no cho para fazer um indicador de sol, decidindo continuar aquilo mais tarde. Alguns meninos tambm fazem relgios de igreja com pndulos, comeando a explorar como os pndulos se movimentam de um lado para o outro. Dizem que toda a cidade conseguia ouvir o sino quando o pndulo ia de um lado para o outro e que as pessoas ento sabiam quando tinham de sair para o trabalho ou para a escola. Anna pergunta: Podemos medir o tempo com o pndulo? Ela tambm havia trazido seus pesos e a linha de pesca. e as crianas comearam a fazer pndulos com esses materiais.

Descobriram que, se tivessem comprimentos de linha diferentes, o pndulo oscilava de maneira diferente; quando a linha curta, o pndulo anda mais depressa; quando a linha comprida o pndulo anda mais devagar. Tambm compararam quanto tempo demora para pndulos diferentes pararem quando eles os impulsionam. Anna pergunta mais uma vez se eles poderiam medir o tempo com o pndulo: Sim, diz uma criana. como voc faz quando tem uma ampulheta, como os prisioneiros do castelo (referindo-se a um programa de TV que era muito popular naquela poca na Sucia).

Depois disso, as crianas comearam a fazer suas ampulhetas cheias de areia e a comparar as ampulhetas com os pndulos. Tambm comearam a escrever nmeros nas ampulhetas e, de repente, passaram a uma representao onde imaginavam ser os prisioneiros do castelo. Depois disso, comearam a medir tudo com as ampulhetas. Fizeram ainda vidros de tempo cheios com gua, inspirados por um exemplo que um dos meninos trouxe de casa.

Anna pergunta: O tempo existe sempre?. Uma criana replica: Os aniversrios sempre existem - minha me tem de olhar na sua agenda para saber quando vai ser meu aniversrio e quanto falta para o prximo. Outra criana diz que os dias e as horas sempre existem: Vocs podem trazer o tempo de volta? - pergunta a pedagoga. No - responde uma criana - mas antigamente havia mquinas do tempo, e a minha me costumava contar como era antigamente.

Anna comea a falar sobre o ms de setembro, e, em seguida, as crianas comeam a contar os meses; eles dizem que primavera agora e que antes havia sido o inverno. Uma criana diz: O tempo gira como o sol. Mas quando ele volta no mais o mesmo tempo, porque eu no fao cinco anos toda vez que fao aniversrio. Inverno, primavera e outono, inverno, primavera e outono - eles giram- esse deve ser o tempo humano - observa outra criana.

A documentao pedaggica como um desafio aos discursos dominantes

Como j discutimos anteriormente, segundo o pensamento foucaultiano, sempre exercemos poder sobre ns mesmos, o que significa que nos disciplinamos e nos governamos em nossas lutas para conhecer sobre ns mesmos e sobre o mundo. Por intermdio da documentao, podemos desmascarar - identificar e visualizar - os discursos e os regimes dominantes que exercem poder sobre ns e por meio de ns, pelos quais temos construdo a criana e ns mesmos como pedagogos. Por isso, a documentao pedaggica pode funcionar como um instrumento para abrir uma prtica crtica e reflexiva que desafie os discursos dominantes e construa contradiscursos, por meio dos quais podemos encontrar pedagogias alternativas que podem ser moral e eticamente satisfatrias, mas tambm esteticamente agradveis (Steedman. 191, p. 61). Pode ser entendida como uma das tecnologias do self, a qual discutimos no Captulo 2 em relao ao cuidado do self ', cujo uso possibilita criticarmos e nos libertarmos de conceitos incorporados e produzirmos novos conceitos; voltaremos em momentos posteriores a este conceito de cuidado do self'.

Como nos disciplinamos e exercemos poder sobre ns mesmos, encontramos grandes dificuldades para mudar a nossa prtica pedaggica. Como observa Jennifer Gore: enormes obstculos so encontrados e, na verdade, criados por aqueles que buscam (e buscam entender) novas pedagogias. Muitos desses obstculos surgem da tenso fundamental na prpria pedagogia, que requer, daqueles que buscam mud-la, a sua participao nela (1993, p. xi). Esses obstculos implicam que, como pedagogo, voc tenha de encontrar maneiras de transpor essas tenses que resultam do fato de que aquele que o pedagogo seja tambm aquele que esperado para realizar a mudana, isto , aquele que se supe que reconstruir a prtica pedaggica.

A documentao pedaggica pode contribuir para uma auto-reflexidade aprofundada e nos dizer algo sobre a maneira como temos nos constitudo como pedagogos, pois nos ajuda a contar a ns mesmos uma histria sobre ns mesmos (Steier, 1991, p. 3). Ela pode abrir uma possibilidade para o pedagogo perceber suas subjetividades e prticas como sendo socialmente construdas, abrindo, dessa forma, uma oportunidade para romper os discursos dominantes, pois pode ampliar o nosso entendimento de quem somos hoje e como nos construmos para ser dessa maneira, assim como as condies e os riscos das nossas aes (Gore, 1993). Isso significa assumir o controle sobre o prprio pensamento e sobre a prpria prtica, seja como criana, seja como pedagogo - em outras palavras, ser menos governado pelo poder disciplinar.

Por meio da documentao, podemos mais facilmente ver e questionar a nossa imagem de criana, os discursos que incorporamos e produzimos e que voz, direitos e posio a criana adquiriu em nossas instituies dedicadas primeira infncia. Por exemplo, s falamos sobre conceitos como centralidade da criana, assumir a responsabilidade pela prpria aprendizagem. aprender como aprender, criatividade, participao e uma prtica reflexiva - ou eles realmente permeiam a prtica pedaggica`? A documentao pedaggica nos permite refletir de fornia crtica sobre se essas idias esto apenas no nvel da conversa ou se esto sendo postas em prtica e, se esto, de que maneira so entendidas.

O ponto de partida aqui que, quanto maior for a nossa conscincia das nossas prticas pedaggicas, maior a nossa possibilidade de mudar por meio da construo de um novo espao, no qual um discurso ou contra discurso alternativo pode ser estabelecido para produzir nova prtica. , acima de tudo, uma questo de conseguir um insight sobre a possibilidade de ver. falar e agir de uma maneira diferente, e da transpor limites, particularmente para transgredir o projeto grandioso da modernidade e sua determinao de mapear toda a vida humana na busca da Verdade, da Beleza e da Bondade.No processo de visualizar e refletir a maneira como construmos a criana e a ns mesmos est um potencial crtico que, por sua vez, pode funcionar conto um processo de aprendizagem. Tal processo de aprendizagem pode, ao mesmo tempo, servir como um ponto de partida para a reconstruo do trabalho pedaggico. Ele pode operar como uma forma de treinamento em servio e como uma base para a avaliao ao longo das linhas discutidas no Captulo 5 em relao ao discurso da construo de significado. A documentao pedaggica pode, desse modo, proporcionar um meio crtico para os pedagogos e para outros profissionais aprofundarem o seu entendimento do trabalho pedaggico e proporcionarem uma base, se for o caso, para fazer julgamentos e buscar algum acordo sobre esses julgamentos.

De muitas maneiras, usando muitos meios de comunicao, possvel para a pedagoga registrar o que as crianas fazem e o que ela, como pedagoga, faz em relao s crianas e ao seu trabalho. As crianas e as pedagogas podem, enquanto esto trabalhando, mas tambm depois, analisar como se desenvolvem os processos de aprendizagem das crianas. A pedagoga no somente pode desenvolver o seu conhecimento e o entendimento da aprendizagem das crianas, mas compreender tambm a forma como elas esto produzindo conhecimento. E, ao mesmo tempo, pode aprofundar o seu entendimento das conseqncias de suas prprias aes.

Como a documentao pode ser guardada e reexaminada, devendo ser encarada o tempo todo como um registro vivo da prtica pedaggica, o processo de documentao tambm pode funcionar como uma maneira de revisitar e rever experincias e eventos anteriores: desse modo, no apenas cria memrias, mas tambm novas interpretaes e reconstrues do que aconteceu no passado. Por isso, pedagogos ativos conseguiro ser capazes de construir e utilizar experincias bem estabelecidas e, simultaneamente, tomar parte na construo de novas teorias relacionadas aprendizagem e construo de conhecimento das crianas, tendo como base a documentao. Em outras palavras, os pedagogos podem participar da produo de novo conhecimento. Isto pressupe, no entanto, que os pedagogos se envolvam em uma auto-reflexo contnua, algo que atribui altas exigncias sua profissionalizao, mas algo que tambm pode funcionar como um desafio e una inspirao para um envolvimento mais profundo.Visualizar a prtica requer que o processo de documentao se torne parte integrante do trabalho cotidiano e no algo que est de fora. o trabalho que tem de se alternar entre focos diferentes: as prprias experincias da pessoa, a aquisio de um entendimento terico do que est acontecendo e os valores filosficos e sociopolticos que determinam as direes e as vises para o trabalho pedaggico. H uma necessidade, ao mesmo tempo, de proximidade e distanciamento para uma elaborao contnua das tenses entre a teoria e a prtica cotidiana (Lather, 1991, citada em Lenz Taguchi, 1997), para uma forma de espiral que permite que se assuma perspectivas mltiplas, para transitar [de modo circular] entre a auto-reflexo e o dilogo, para passar entre a linguagem da comunidade profissional da pessoa (teoria e sabedoria prtica) e suas prprias paixes, emoes, intuies e experincias.

A documentao como um processo de aprendizagem, mas tambm como um processo de comunicao, pressupe a criao de uma cultura de explorao, reflexo, dilogo e envolvimento. Uma cultura em que muitas vozes - das crianas, dos pedagogos, dos pais, dos administradores, dos polticos e de outras pessoas - participam e podem se fazer ouvir, garantindo, desse modo, que uma multiplicidade de perspectivas possam ser examinadas e analisadas. Sendo assim, podemos abrir um caminho para extrair sentido do trabalho pedaggico - a construo de significado como a descrevemos no Captulo 5 - para as crianas, para os pais e para os pedagogos.

Um obstculo para o desenvolvimento de uma prtica pedaggica reflexiva baseada nas perspectivas mltiplas a influncia muito forte do que foi chamado Lei de Jante (Boalt-Boethius, 1994). A Lei de Jante sugere que a diferena freqentemente tratada atravs da descoberta do menor denominador comum, uma resposta que enfraquece o envolvimento e combate outras perspectivas. outras abordagens e outras vozes que esto sendo examinadas ou esto recebendo destaque na prtica pedaggica. A alternativa Lei de Jante, e reduo da diferena que ela traz, festejar as complexidades das realidades mltiplas, dos entendimentos mltiplos e das perspectivas mltiplas. Essa diversidade proporciona s pessoas perspectivas alternativas, possibilidades para pensar e agir de outra maneira, alm de ampliar as possibilidades de escolha. O processo da documentao nunca pode ser neutro

A conscincia do carter construdo da documentao tambm visualiza que o ato da documentao nunca nem nunca pode ser um ato inocente. Os processos de observao e documentao nunca so, como j foi dito anteriormente, objetivos e, por isso, no so neutros. Ou, como disse o biofsico Heinz von Foerster (citado em Israel, 1992, p. 19): a objetividade uma viso falsa do sujeito de que a observao pode ocorrer sem ele. A questo mais importante aqui deve ser que a criana e o que a criana faz e diz no so objetificados nem situados em categorias j definidas, algo que havia sido comum com o discurso logocntrico e tecnicamente racional da modernidade. Em vez disso, ternos de entender e admitir que a documentao sempre detm nossos sentimentos, desejos e valores subjetivos. Isto no deve ser visto como algo negativo, mas, sobretudo, como algo positivo (Maturana, 1991): no como algo a ser evitado, mas, sobretudo, deve-se entender como isso entra nos processos de documentao.

Tendo a documentao como instrumento para permitir a auto-reflexo, podemos desafiar e oferecer resistncia viso racional da observao, como independente de nossos selves como observadores, de nossos prprios processos de construo e das convenes envolvidas. Entretanto, isso pressupe que ns, quando documentamos algo, podemos conviver e acomodar a complexidade que sempre caracteriza uma situao pedaggica (Dahlberg, 1985). Esse alojamento da complexidade tambm pressupe uma capacidade para deixar para trs um relacionamento reducionista de causa e efeito entre o observador e o que observado e explorado, em vez de entender o carter nico, contingente, local e incorporado das nossas prprias produes como pedagogos (Ellsworth, 1989).

Partindo da perspectiva acima mencionada, a pedagoga tem de se sentir como responsvel pelas construes que faz (von Glasersfeld, 1991). Esta uma forma de intercmbio recproco que pode resultar em muitas interpretaes diferentes e que pressupe ver, ouvir e desafiar, e tambm confiar nas idias e nos pensamentos inacabados de uma pessoa. Mesmo que esta seja uma questo de ousar tornar-se acessvel para a incerteza, para a ambivalncia e para a multiplicidade, no um projeto relativista, no qual cada construo da realidade vista como to boa quanto a outra. A alocao da complexidade tem, isso sim, de ser colocada em relao s questes da importncia do que documentado, onde as respostas esto sempre historicamente situadas em relao poca em que vivemos e direo e viso que temos do nosso trabalho pedaggico.Von Glasersfeld prope que uma orientao similar conduza a uma maior tolerncia rias interaes sociais atravs de uma percepo de que nem os problemas nem as solues so entidades ontolgicas, mas decorrem de maneiras de construo particulares. Por isso, nenhuma soluo para um problema experimental pode ser certa de uma maneira ontolgica: O mundo em que o problema surge depende de uma maneira de ver, de uma maneira de experienciar; onde h uma soluo sempre h outras - mas isso no implica que se goste delas todas da mesma maneira (1991, p. 26).

A documentao pedaggica como um empreendimento perigoso

Como um meio crtico de resistir ao nexus poder/saber, a documentao pedaggica um empreendimento perigoso. Como enfatizamos vrias vezes, visto que muito importante, a documentao nunca pode ser uma atividade inocente. No temos nenhuma garantia. Temos de perceber que riscos e possibilidades no so opostos, mas que existem ao mesmo tempo. Esses processos nunca podem ser neutros e inocentes - tm sempre implicaes e conseqncias sociais e polticas. Podem ser perigosos, como declarou Foucault (1970), pois carregam significado poltico e terico. Por isso, a produo de conhecimento est sempre relacionada produo de poder.

A documentao no uma resistncia necessariamente radical ao nexus poder/saber. O fato de se tornar assim deve, na nossa perspectiva, estar relacionado ao fato de ela perceber o seu potencial para assumir perspectivas mltiplas. Se suscita outras construes e perspectivas, ento a documentao tem o potencial para revelar o carter incorporado da construo de conhecimento e, como tal, funciona como uma prtica emancipatria.

No entanto, ao mesmo tempo, h riscos. As classificaes e as categorias que usamos tambm funcionam como instrumentos para incluso e excluso - tornam-se produtivas. Podemos colocar as crianas e seus feitos em categorias de normal/no-normal. Podemos transformar o Outro no mesmo. A pedagoga, atravs da sua influncia no processo de construo de identidade da criana, exerce poder e controle. Por isso, se no estivermos alertas, a documentao pode se tornar uma prtica para o exerccio do controle e do poder, e no para a resistncia a eles. Considerando tais riscos, sempre precisamos colocar questes sobre que direito temos de interpretar e documentar os feitos das crianas e o que eticamente legtimo. Uma tica de um encontro

Confrontados por estas questes ticas, buscamos algumas respostas no conceito de uma tica de um encontro, que introduzimos no Captulo 2. Trata-se de uma tica que emana do respeito pela criana e do reconhecimento da diferena e da multiplicidade e que luta para evitar transformar o Outro no mesmo que eu. Temos de nos posicionar em outro lugar que no seja onde o 'Outro' o problema para o qual somos a soluo (Lather, 1991, p. 138), renunciar a ser o mestre da verdade e da justia, o grande intrprete.

A arte de ouvir e escutar o que o Outro est dizendo, levando-o a srio, est relacionada a uma tica de um encontro. O mesmo acontece com o ver - mas o que queremos dizer com ver? fcil demais separar os relacionamentos humanos do seu significado moral. Como observa Bauman:

Tirar fotos torna-se um substituto para ver. claro que voc tem de olhar para direcionar suas lentes para o objeto desejado ...Mas olhar no ter. Ver uma funo humana, um dos grandes dons com que o homem dotado: ele requer atividade, abertura interna, interesses, pacincia. concentrao. Na realidade, um instantneo (a expresso agressiva importante) significa essencialmente transformar o ato de ver em um objeto. (1995, p. 132-134, nfase original)

O insight de que entramos em processos como a documentao pedaggica sendo sujeitos participatrios, sendo companheiros, ou, nas palavras de Reeder (1997), sendo o sujeito tico do ato, implica uma importante responsabilidade. A tica entra porque devemos assumir responsabilidade por nossos atos, incluindo todo ato de observao, e por nossas escolhas. Como Bauman, declararamos que somos inevitavelmente seres morais, pois estamos diante do desafio do Outro, que o desafio da responsabilidade pelo Outro, uma condio de ser-para (1995, p. 1).

No contexto da dimenso tica da documentao, convm tambm voltar noo de tica de Foucault, que ele captou na expresso cuidado com o self' (Foucault, 1986; ver tambm Gore, 1993). Por esse termo, que introduzimos no Captulo 2, Foucault no quer dizer apenas estar interessado em si mesmo, mas se e como optamos por nos constituir - o self no nos dado, ns temos de constituir nossos selves como uma obra de arte. Em relao documentao pedaggica, interessante observar mais integralmente a inspirao grega de Foucault para suas idias do cuidado com o self. A prtica greco-romana do self, na qual Foucault se inspirou, diferente de um conceito confessional ou teraputico; tambm diferente do que poderia ser chamado o culto californiano do self. No autofascinao e auto-absoro, mas desenredar-se e auto-inveno, isto a construo do self, e no da autoconscincia. Uma das tcnicas usadas pelos gregos na constituio de seus selves foi a hypomnemata, agendas usadas para construir um relacionamento permanente com o prprio self:

Eles no constituem um relato do self'... A questo no buscar o indescritvel, no revelar o oculto. no dizer o no-dito, mas, ao contrrio disso, coletar o j dito, reunir aquilo que se pde ouvir ou interpretar, visando a um objetivo que nada menos que a constituio do prprio se/f... Este o objetivo da hyponmemata: fazer a reunio do logos fragmentrio transmitido pelo ensino, pela audio ou pela leitura, como um meio de estabelecer o relacionamento mais adequado e mais perfeito possvel do prprio self com o prprio self. (Foucault, 1986, p. 365)

Gore, ao analisar a noo de Foucault (1993, p. 151) de cuidado com o self em relao educao do professor, diz que explorar as implicaes e os efeitos de tal abordagem de manter um dirio vis--vis com uma prtica pedaggica radical poderia resultar em um uso mais criterioso dos dirios na educao do professor... O que imagino mais um traado histrico do que significa ser um professor em contextos especficos, e no um relato pessoal ou biogrfico. Abrindo um frum

Nossa viso construcionista do conhecimento, da construo de significado e da aprendizagem est relacionada a uma viso da ao comunicativa e das relaes sociais que assumem o Outro como igual, mas no o mesmo, e a importncia da solidariedade entre os seres humanos. Isso, por sua vez, assume um dilogo vvido, baseado em valores, e uma poltica relacionada ao que desejamos de nossas instituies dedicadas primeira infncia. Essas instituies devem ser entendidas como portando, mas tambm criando, valores culturais e simblicos, e, alm disso, conforme declaramos no Captulo 4, questes importantes em um projeto mais amplo de democracia. A pedagogia da primeira infncia e as instituies dedicadas a essa fase da vida esto sempre relacionadas a questo filosfica do que queremos para nossas crianas no atual momento e no futuro, uma questo que ternos de nos colocar repetidas vezes. As estratgias que escolhemos para trabalhar com as crianas e nossa prtica pedaggica dizem muito sobre a nossa maneira de conceituar os potenciais, a posio e os direitos cvicos das crianas na sociedade e, por isso, tambm a maneira como construmos nossas idias de democracia.

Construindo as instituies dedicadas as crianas como fruns para o envolvimento e para o dilogo, para uma tica de um encontro, essas instituies vo alcanar um papel importante a desempenhar abrindo novas possibilidades, na qual o bem-estar social e a democracia reconstrudas baseiem-se na visibilidade e na incluso das crianas. Encarar as instituies dedicadas s crianas como fruns na sociedade civil e, como tais, motivadoras de oportunidades para as crianas e para os adultos se reunirem e se engajarem no discurso - em projetos de significado social, cultural, poltico e econmico - confere a essas instituies um significado especfico: elas sero vistas como uma comunidades, onde a vida e o trabalho das crianas podem ser vistos como contribuies a essa comunidade.

A comunicao, a reflexo e a ao podem ser vistas como uma forma de argamassa que conecta o trabalho pedaggico nas que pode conectar a instituio dedicada primeira infncia com a sociedade que a cerca. A idia da instituio dedicada primeira infncia como um frum, onde a criana vista como um cidado e como parte de uma comunidade, pressupe que formulemos e continuamente reformulemos um contrato social entre o indivduo, as instituies pblicas, o Estado e o mercado. Ela requer relacionamentos participatrios, para que a instituio dedicada primeira infncia torne-se um frum em que crianas, pedagogos, pais, polticos e outros estejam envolvidos. Para fazer isso, temos de construir fruns que incorporem a tica de um encontro - um encontro que caracterizado por um modo de ver, ouvir e desafiar mais experimental e exploratrio.O papel da documentao pedaggica na construo dessas instituies dedicadas primeira infncia de fundamental importncia. A documentao oferece um ponto de partida importante para o dilogo, mas tambm para criar confiana e legitimidade em relao comunidade mais amola, abrindo e tornando visvel o trabalho dessas instituies. Graas documentao, cada criana, cada pedagogo e cada instituio pode conseguir uma voz pblica e uma identidade visvel. Isso que documentado pode ser visto como uma narrativa das vidas das crianas, dos pedagogos e dos pais na instituio dedicada primeira infncia, uma narrativa que pode mostrar as contribuies das instituies para a nossa sociedade e para o desenvolvimento da nossa democracia. A documentao pode oferecer s crianas e aos adultos momentos reais de democracia que teve sua origem no reconhecimento e na visualizao da diferena provocada pelo dilogo. Esta uma questo de valores e de tica (Rinaldi, 1994).

DAHLBERG,G. MOSS P. PENCE A. Qualidade na Educao da Primeira Infncia perspectivas

ps modernas . Porto Alegre. Artmed, 2005

N. de T. Aqui a explicao entre parntese refere-se palavra em ingls, snapshot. que literalmente significa tiro rpido.

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