Do território usado à multiterritorialidade

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DO TERRITÓRIO USADO À MULTITERRITORIALIDADE: REFLEXÕES SOBRE O LAZER E O TURISMO EM SEGUNDAS RESIDÊNCIAS NO NORDESTE BRASILEIRO * Lenilton Francisco de Assis** RESUMO O artigo apresenta uma análise preliminar sobre os velhos e novos usos das segundas residências no Nordeste brasileiro, adotando como matriz teórica o território usado e a multiterritorialidade. Para tanto, retoma alguns fundamentos ontológicos e epistemológicos para justificar o emprego de tais categorias/conceitos na Geografia. PALAVRAS-CHAVE Território usado; multiterritorialidade; segunda residência; turismo; Geografia. ABSTRACT The article presents a preliminary analysis on the old and new uses of second homes in northeastern of Brazil. Used territory and multiterritoriality form the theoretical basis for this analysis that reviews some ontological and epistemological approaches to justify the employment of these categories/concepts in Geography. KEY WORDS Used territory; multiterritoriality; second home; tourism; Geography. Introdução As ideias desenvolvidas no presente artigo partem de inquietações sobre o espaço geográfico no período atual da Globalização, quando a técnica e a política constituem o pano de fundo para uma discussão sobre o seu uso, ou melhor, sobre o território usado . A adoção dessa categoria cunhada por Santos e Silveira (2001) nos permitiu fazer algumas mediações teórico-práticas entre os objetos e as ações que intensificam/ diversificam o uso do território para o lazer e o turismo em segundas residências. Compreender os velhos e novos usos do território pelas segundas residências é um desafio que nos colocamos, motivados pelas existências contemporâneas que permitem à sociedade, como nunca antes, vivenciar uma pluralidade de territórios ou uma multiterritorialidade . A associação dessa metáfora/conceito proposta por Haesbaert (2006) levou-nos a realizar, inicialmente, uma discussão onto-epistemológica sobre o emprego de categorias, conceitos e metáforas na Geografia; e a desenvolvermos, na sequência, uma análise preliminar sobre as segundas residências no Nordeste brasileiro. Do território usado à multiterritorialidade: pressupostos ontológicos e epistemológicos A busca pelo conhecimento do mundo é um dos fundamentos da ciência. A realidade e sua dinâmica estão sempre instigando os * Este texto é uma versão revista e ampliada do trabalho de conclusão da disciplina Questões de Método em Geografia, ministrada pela Profa. Dra. María Laura Silveira, no segundo semestre de 2007, na Pós-graduação em Geografia Humana da USP. ** Professor Assistente do Curso de Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA - Sobral/CE); Doutorando em Geografia Humana na USP; Bolsista do CNPq - Brasil. E-mail: [email protected] GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 26, pp. 45 - 58, 2009

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DO TERRITÓRIO USADO À MULTITERRITORIALIDADE:REFLEXÕES SOBRE O LAZER E O TURISMO EM SEGUNDAS

RESIDÊNCIAS NO NORDESTE BRASILEIRO*

Lenilton Francisco de Assis**

RESUMOO artigo apresenta uma análise preliminar sobre os velhos e novos usos das segundas residências noNordeste brasileiro, adotando como matriz teórica o território usado e a multiterritorialidade. Paratanto, retoma alguns fundamentos ontológicos e epistemológicos para justificar o emprego de taiscategorias/conceitos na Geografia.

PALAVRAS-CHAVETerritório usado; multiterritorialidade; segunda residência; turismo; Geografia.

ABSTRACTThe article presents a preliminary analysis on the old and new uses of second homes in northeasternof Brazil. Used territory and multiterritoriality form the theoretical basis for this analysis that reviewssome ontological and epistemological approaches to justify the employment of these categories/conceptsin Geography.

KEY WORDSUsed territory; multiterritoriality; second home; tourism; Geography.

Introdução

As ideias desenvolvidas no presente artigopartem de inquietações sobre o espaço geográficono período atual da Globalização, quando a técnicae a política constituem o pano de fundo para umadiscussão sobre o seu uso, ou melhor, sobre oterritório usado. A adoção dessa categoriacunhada por Santos e Silveira (2001) nos permitiufazer algumas mediações teórico-práticas entreos objetos e as ações que intensif icam/diversificam o uso do território para o lazer e oturismo em segundas residências.

Compreender os velhos e novos usos doterritório pelas segundas residências é um desafioque nos colocamos, motivados pelas existênciascontemporâneas que permitem à sociedade,

como nunca antes, vivenciar uma pluralidade deterritór ios ou uma multiterr itor ial idade. Aassociação dessa metáfora/conceito proposta porHaesbaert (2006) levou-nos a real izar,inicialmente, uma discussão onto-epistemológicasobre o emprego de categorias, conceitos emetáforas na Geografia; e a desenvolvermos, nasequência, uma análise preliminar sobre assegundas residências no Nordeste brasileiro.

Do território usado àmultiterritorialidade: pressupostosontológicos e epistemológicos

A busca pelo conhecimento do mundo éum dos fundamentos da ciência. A realidade esua dinâmica estão sempre inst igando os

* Este texto é uma versão revista e ampliada do trabalho de conclusão da disciplina Questões de Método em Geografia, ministrada pela Profa. Dra.María Laura Silveira, no segundo semestre de 2007, na Pós-graduação em Geografia Humana da USP.

** Professor Assistente do Curso de Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA - Sobral/CE); Doutorando em Geografia Humana naUSP; Bolsista do CNPq - Brasil. E-mail: [email protected]

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cientistas a formularem e reformularem teorias,equações, modelos e esquemas abstratos dereferência empírica. É um constante ir e vir dosaber, no qual o conhecimento produzido é a basepara as novas descobertas que emanam dosproblemas sociais.

A ciência, embora seja uma das maisextraordinárias criações do homem, “não é o lugardas certezas absolutas”, como nos lembra Granger(1994, p. 113). Os conhecimentos científicos sãosempre parciais e relativos, já que evoluem apartir das constantes revisões epistemológicas eontológicas que têm a Filosofia como vanguarda.

A ontologia é conhecida como a Filosofiaprimeira, a metafísica que se preocupa com o ser(essência) das coisas; “trata-se daquele saber queantecederá os saberes específicos” (MARTINS,2007, p. 34). Já a epistemologia busca construiruma teoria do conhecimento, a partir da análisedos princípios, métodos e resultados das ciências(JAPIASSU, 1991).

Apesar desses distintos enunciados, aontologia e a epistemologia têm funçõescomplementares na construção do saber, poiscomo ressalta Silva (1986, p. 25), “[...] nãoexiste ontologia que não se dê primeiro comoepistemologia e, portanto, como teoria doconhec imento, gnosiolog ia, lógica emetodologia”. Isso se justifica porque todareavaliação do corpus de uma ciência, do seuser, requer uma discussão sobre o seu objeto esua existência, ou seja, sobre o sistema decategorias, conceitos e métodos de análise quelhe dá operacionalidade e coerência - interna eexterna1.

É a Filosofia que alimenta o debate intere transdicipl inar e, consequentemente, ainterlocução entre a ontologia e a epistemologia.A Filosofia sempre foi considerada a mãe detodas as ciências, adjetivo esse que lhe trouxeinterpretações equivocadas de ser ela aresponsável pela reflexão dos fundamentos decada ciência em específico.

Contrapondo-se a isso, Sartre já alertavaque “é chegado o tempo em que cada disciplinaconstrói sua própria filosofia” (apud SANTOS,

1988a, p. 11). Mas essa tarefa epistemológicaespecífica não decretaria a morte da Filosofia?

Acreditamos que não, pois a Filosofiainvoca uma permanente reflexão sobre osproblemas humanos de uma época, sobre asideias e categorias que perpassam osconhecimentos específicos. Japiassu (1991, p.193) esclarece que:

O papel da Filosofia é o de manter a aberturado espaço epistemológico. Ela deve criar umhorizonte comum que recuse a todoconfinamento. Não pode curvar-se a umaepistemologia qualquer, pois deve ser a“epistemologia de todas as epistemologias”,isto é, o lugar onde as epistemologias seneutralizam umas às outras naquilo quepossuem de excessivo. Mas também o lugaronde as epistemologias devem fecundar-semutuamente, não se esquecendo jamais de suaobediência ao humano.

Nessa perspectiva, Santos (1988a, p. 11)ao defender o debate filosófico na Geografiaressalta que “não se pode pedir ao filósofo paraescrever em um jargão de geógrafo. [...] A teoriageográfica tem de ser buscada no seu domíniopróprio: o espaço. A Filosofia pode ser um guia,mas os filósofos não nos oferecem respostas [...]”.

A reflexão filosófica quase sempre foinegligenciada na Geografia, em detrimento dosestudos empíricos, das descrições dos fatosnaturais e humanos que guardavam pouca relaçãoentre si. Haesbaert (2006, p. 17) chega mesmoa afirmar que “o distanciamento da Geografia emrelação às bases filosóficas que norteiam oprocesso de elaboração do conhecimento é,certamente, responsável por grande parte denossa fragilidade em termos de uma posturacrítica e efetivamente transformadora”.Fragilidade essa que também tem cerceado umdebate mais amplo da Geografia com as demaisCiências Humanas.

Então, pensar a Geografia com ascontribuições da Filosofia, ou melhor, buscarconstruir uma ontologia do espaço, foi e ainda éum desafio enfrentado por poucos geógrafos dopaís, dentre os quais se destacam Silva (1978;

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1986), com suas inquietações pioneiras, e Santos(1988a; 1997) - que pôde compartilhá-las eaprofundá-las2.

De acordo com Silva (1978, p. 128):

Hoje, propõe-se uma ontologia do lugar quedeve ser, antes do mais, uma ontologia doespaço. [...] Uma das tarefas principais é “pôrde pé” a ref lexão f ilosófica a part ir dapreocupação do espaço como ser. [...] Trata-se de construir um conhecimento geográfico apartir de uma visão não fragmentada domundo, trabalho que vem sendo realizadoagora, a partir do momento em que osgeógrafos percebem que as idéias têm lugarem Geografia.

No afã de superar essa visão fragmentadade mundo (tão presente na Geografia Clássica eModerna), Santos (1988a, p. 12) também defendeque “uma Filosofia da geografia deve-sealimentar, em primeiro lugar, da noção detotalidade”. Esta categoria abrangente permiteum tratamento objetivo do atual período daGlobalização que é marcado pela convivência deuma universalidade empírica, graças aos avançosda técnica, da ciência e da informação.

A operacionalização da totalidade, comorecurso de método geográfico, deve partir dolugar e das suas articulações com o mundo, ouseja, de um movimento dialético entre o universale o particular que tem nos eventos e na divisãoterritorial do trabalho algumas mediações paraanálise.

A totalidade, assim posta, apresenta-secomo um caminho para reacender o debatefilosófico na Geografia contemporânea e paraconstruir uma ontologia do espaço – já que Santos(1997, p. 16) mais uma vez nos alerta que “narealidade, o corpus de uma discipl ina ésubordinado ao objeto e não o contrário”.

O objeto da Geografia, o espaço, sempresuscitou discussões controversas no seio dessadisciplina e entre outras ciências (SANTOS;SOUZA, 1986; SANTOS, 1988b). Esse debate foie ainda é alimentado por questionamentos sobrea suposta unidade do espaço, em contraponto

aos diferentes métodos utilizados pela GeografiaFísica e Humana. Também ecoam críticas, dentreoutras, ao caráter sintético, abrangente edescritivo da Geografia.

A crise de paradigmas que assola asCiências Humanas na contemporaneidadetambém repercute entre os geógrafos, ensejandoalguns confrontos e debates entre distintascorrentes de pensamento. Na Geografia brasileira,podemos dizer que essa crise se traduz em duaslinhas de análise: uma crítica à Geografia Críticae a sua imposição como dogma que não possibilitauma reavaliação da disciplina diante da novadinâmica da Globalização e de outros métodosde investigação (como os defendidos pelaGeografia Física, Cultural e Humanista); e omovimento inverso, dos que admitem a existênciade uma crise da Geografia Crítica, ocasionada peloabandono do marxismo e pelo ref luxo dopensamento crítico e radical (CARLOS, 2007) quetem sucumbido a uma Geografia Aplicada,parcelar, que dispensa a teoria e se deixa seduzirpelos encantos do mercado, levando àsegmentação da realidade e da própria ciênciageográfica3.

A construção de uma ontologia do espaço(que seja uma teoria social e contemple amultiplicidade do mundo e das maneiras deentendê-lo) permitiria à Geografia, em tese,suplantar algumas dessas críticas e querelas. Mas,defende Martins (2007) que restringir ao espaçoo debate sobre a essência (ser) e a existência(ente), na Geografia 4, é um “equívocosubjacente”, pois como esclarece o autor:

Qual a existência que define a essência desseser que o espaço supostamente é? Por assimdizer, no debate geográfico, espaço é um serde um ente, ou seja, é como se pudéssemosafirmar que um ente é espaço, que seu ser éespaço. [...] Confundir existência com essência,ou mesmo categoria com conceito é nãodiscernir entre estar/ter e ser. Ainda que sejamaspectos indissolúveis, e mutuamentedeterminantes, não podemos confundi-los nadefinição ôntica do ente, nem na definiçãoontológica do ser. [...] Espaço só poderá seressência enquanto ente ideal, ou seja, como

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algo diante da Idéia que necessita ser definido.Fora isso, ante os entes materiais ele écategoria, propriedade fundamental de tudoque Existe (MARTINS, 2007, p. 34-35. Grifonosso).

Sob a forte influência marxista da décadade 1980, Costa e Moraes (1984) tambémcolocaram essas questões e se propuseram arealizar uma ontologia do espaço que definissepara a Geografia um objeto dotado de existênciaconcreta e individualidade diante das demaisciências. Para eles, o objeto da Geografia nãopoderia estar no espaço tomado em si mesmo,mas na relação sociedade/espaço, ou melhor, noprocesso social de valorização do espaço.

Dessas provocações ontológicas (que sãomuito salutares à crítica e ao avançar daGeografia!), emerge uma discussão basilar sobreas categorias e os conceitos fundadores dessadisciplina, especialmente sobre o rigor do seu usoe das suas definições.

Categoria e conceito são dois termos queguardam certa sinonímia no vocabulário científico.A distinção entre eles, geralmente, só ocorre noplano filosófico, onde também não se encontrauma solução satisfatória, como podemos observarnas definições abaixo:

Categorias são conceitos fundamentais quedeterminam um tipo mesmo de objeto científico(GRANGER, 1994, p. 111. Grifo nosso).

Não há conceito simples. Todo conceito temcomponentes, e se define por eles (DELEUZE;GUATTARI, 2007, p. 27). O conceito é ocontorno, a configuração, a constelação de umacontecimento por vir. Os conceitos, nestesentido, pertencem de pleno direito à Filosofia,porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. [...] Destacar sempre um acontecimentodas coisas e dos seres é a tarefa da Filosofiaquando cria conceitos, entidades (Ibidem, p.46. Grifo nosso).

O conceito, na concepção de Deleuze eGuattar i, é uma entidade metafísica, um“conhecimento do conhecimento”, que seassemelha, em muitos aspectos, ao que outros

autores denominam de categorias filosóficas, ouseja, aqueles conhecimentos universais abstratosque se tornam concretos pela práxis, dandosubsídios às disciplinas para formularem suascategorias e conceitos específicos.

As duas definições acima também atestamo quanto é difícil precisar uma distinção entreconceitos e categorias, no âmbito da Filosofia.Mas, de uma maneira geral, podemos depreenderque as categorias se sobrepõem aos conceitos,embora também os complemente. Althusser(1976, p. 27), ao destacar a importância de uma“Filosofia espontânea das ciências”, já sinalizavapara esse fato, ao dizer que “a Filosofia enunciateses que reúnem e produzem não conceitoscientíficos, mas categorias filosóficas”.

Portanto, podemos entender as categoriascomo noções mais sólidas e abrangentes queconsolidam uma ciência ao longo do tempo. Issonão quer dizer que as categorias sejam estáticasao movimento da sociedade. Ao contrário, elasadquirem status ontológico (de essência),exatamente, por acumularem maior carga dereflexões inter e transdisciplinares. Já osconceitos, são representações mais concretas dopensamento; são recortes mais empíricos do realque dão operacionalidade às categorias e, logo,à ciência. Eles expressam noções científicas maisfluidas e flexíveis à dinâmica social, com maiorpoder de se impor e se transformar diante darealidade.

Longe de esgotarem o debate, essasdefinições parciais nos ajudam a refletir sobre asprovocações supracitadas por Martins (2007), deque, na Geografia, não se pode atribuir ao espaçoum estatuto ontológico, de ser e ente, decategoria e conceito.

Vale lembrar, na citação grifada acima, queesse mesmo autor reconhece existência eessência, categoria e conceito, como aspectosindissolúveis e mutuamente determinantes -como já dissemos alhures.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em queo espaço é “forma e modos de ser” (SILVA, 1986),ele também é um conjunto part icular dedeterminações, ou seja, de conteúdos que dão

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vida às formas. Santos (1988b, p. 16) explica que“o conteúdo corporificado, já transformado emexistência, é a sociedade já distribuída dentro dasformas geográficas, a sociedade que se tornaespaço”. Essa existência (ou forma-conteúdo)pode ser apreendida por diversos conceitos como:território, paisagem, lugar, região, etc5. Taisconceitos ou recortes espaciais dão maioroperacionalidade ao espaço que é a categoriafilosófica, abstrata e abrangente da Geografia.

Entretanto, definir o espaço como objetoda Geografia não esgota os questionamentos seele é o objeto em si, se é a relação sociedade/espaço ou a relação sociedade/natureza.Prosseguir na construção de uma ontologia doespaço é um caminho para superar tais questõese, provavelmente, formular outras. Como um dosprincipais expoentes desse debate na Geografiabrasileira, Santos (1997, p. 16) destaca que:

É indispensável uma preocupação ontológica,um esforço interpretativo de dentro, o quetanto contribui para identificar a natureza doespaço, como para encontrar as categorias deestudo que permitam corretamente analisá-lo.Essa tarefa supõe o encontro de conceitos,t irados da realidade, ferti lizadosreciprocamente por sua associação obrigatória,e tornados capazes de utilização sobre arealidade em movimento. A isso também sepode chamar a busca de operacionalidade, umesforço constitucional e não adjetivo, fundadonum exercício de análise da história (Grifonosso).

Esse esforço interpretativo de dentro daGeografia é motivado pela realidade externa aessa ciência, pelas novas questões e problemasque o mundo propõe no presente. “Como arealidade é dinâmica, os conceitos devem darconta do movimento” (SILVEIRA, 2003, p. 18).

Destarte, essa constante busca pelaoperacionalidade geográfica tem rebatimentosimediatos nas categorias e conceitos que tendema mudar de conteúdo/significado e/ou a sersubstituídos pelas metáforas. Estas são usadaspelas ciências para adjetivar um pensamento novoque ainda carece de maior fundamentaçãoteórico-metodológica.

As limitações explicativas das metáforas,muitas vezes, as transformam em noçõesefêmeras. Mas elas também podem se consolidarcomo conceitos e categorias científicas, sendoassim elementos constitutivos da evolução doconhecimento.

O emprego de metáforas é mais habitualnas Ciências Humanas. Na Geografia, muitasdelas são frequentemente criadas ou tomadas deempréstimo de outras disciplinas (a exemplo defim do Estado, aldeia global, desterritorialização,não-lugares, etc.), denunciando um certodescuido epistemológico da Geografia em nãorefletir, internamente, sobre algumas metáforascitadas e em continuar com o “exercício defabulações” (SANTOS, 2000).

O uso excessivo das metáforas, emqualquer ciência, é sempre uma operação de riscoà banalização das categorias e conceitos, com aperda das suas coerências interna e externa. Porisso, Santos (1997, p. 15) adverte que “[...]nestes tempos acelerados, o tropel dos eventosdesmente verdades estabelecidas e desmanchao saber. Mas a moda avassaladora das citaçõesfrescas não pode eliminar os debates inspiradosem idéias f ilosóficas cuja lição não écircunstancial”.

Preocupado em formular uma Geografiado Presente baseada numa revisão rigorosa sobreas noções fundadoras de uma ontologia doespaço, Santos (1997) apresenta na sua clássicaobra, A natureza do espaço, diversas metáforas- rugosidade, forma-conteúdo, meio técnico-cient íf ico-informacional , vertical idade ,horizontalidade, território usado, espaço banal,espaço luminoso, espaço opaco, etc. - queadquiriram o status de conceitos e categoriasgeográficas, a partir do esforço epistemológicoempreendido por este Autor ao longo das últimastrês décadas do século passado.

Santos (1997, p. 171) mesmo chamouatenção para o fato de que “a metáfora é umelemento do discurso, mas não pode substituir oconceito, a teoria, a explicação. Recurso de estilo,ela pode ajudar o entendimento de uma situação,mas não toma o lugar da explicação. E esta é

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inspirada no próprio funcionamento das coisas oudas situações”.

No bojo das categorias, conceitos emetáforas geográficas, o território6 se destaca,na atualidade, como um conceito que retorna aocentro dos debates nas Ciências Humanas, commaior capacidade de apreender as relações depoder que se manifestam no espaço geográfico,nas múltiplas escalas e dimensões de análise(naturalista, política, econômica e cultural).

O território sempre teve na Geografia umaforte conotação política e naturalista, herdada dascontribuições de Ratzel e do seu pioneirismo emvincular o solo (espaço físico, ambiente outerritório) ao Estado, determinando uma relaçãode dependência deste àquele. Para Ratzel (1983,p. 94-96), “[...] o Estado não pode existir semum solo. [...] A tarefa do Estado, no que concerneao solo permanece sempre a mesma em princípio:o Estado protege o território contra os ataquesexternos que tendem a diminuí-lo”.

Ao superest imar a importância doterritório para o desenvolvimento do Estado-Nação, Ratzel foi responsabilizado (com certoexagero!) por naturalizar a Geografia Política etambém o território. Suas ideias alimentaramalgumas teses expansionistas e beligerantes,provocando, consequentemente, uma retraçãonas análises espaciais da política e na evoluçãodo conceito de território.

Após décadas sendo preterido pelacategoria espaço (que se tornou objeto daGeografia Crítica), o território ressurge no debategeográfico a partir das novas leituras7 sobre opoder, ou como diz Foucault (2001), sobre os“poderes” que emanam das diversas esferas einstituições que regulam a vida em sociedade.Raffestin (1993) foi um dos principais geógrafos8

a propor, numa perspectiva relacional (política,econômica e cultural), uma discussão do territórioque considerasse as múltiplas dimensões eescalas de poder através das quais os grupossociais dominam e se apropriam de umadeterminada porção do espaço.

Território e espaço não são sinônimos eRaffestin (1993, p. 143) deixou claro essa

diferença ao afirmar que “o território se forma apartir do espaço, é o resultado de uma açãoconduzida por um ator sintagmático (ator querealiza um programa) em qualquer nível. Ao seapropriar de um espaço, concreta ouabstratamente [...], o ator ‘territorializa’ oespaço”.

O espaço é muito mais amplo que oterritório, embora o primeiro não deva ser apenasentendido como o substrato do segundo. O espaçogeográfico é, essencialmente, um espaçoproduzido pela sociedade, tendo a natureza comocondição concreta da produção social.

A Geografia do Poder de Raffestin (1993)propunha ir além de uma Geografia do Estado(atrelada a Ratzel), libertando o território de umavisão restrita à delimitação das fronteiras doterritório nacional. Com essa abordagem, asescalas de análise ampliaram-se, incorporandoao território outros temas e dimensões – dosmicroterritórios das prostitutas, camelôs etaxistas aos macroterritórios do narcotráfico,multinacionais e grupos terroristas.

As territorialidades cíclicas e móveis(SOUZA, 1995) também trouxeram uma riquezade situações para a análise geográfica que passoua incorporar outras referências de tempo eespaço. O território ainda se elasteceu das árease zonas contíguas (rigidamente marcadas pelasfronteiras) para os pontos e linhas que formamas redes e articulam múltiplos territórios.

Toda essa complexidade dos territóriosganhou força no último quartel do século XX quandoa “sociedade informacional, global e em rede”(CASTELLS, 2002) fez erigir uma multiplicidade depoderes que têm resultado em novos usos doterritório e na sua elevação ao posto de categoriageográfica – território usado (SANTOS; SILVEIRA,2001; SANTOS, 2002) – assim como à profusão dediversas metáforas e/ou mitos como fim dosterritórios, desterritorialização, desenraizamento,reterritorialização e multiterr itorial idade(HAESBAERT, 2006; SAQUET, 2007).

Entender esses novos processos e usosdo território é um desafio que nos colocamos, emseguida, motivados pelas existências

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contemporâneas que permitem à sociedadeexperimentar, mais intensamente, umapluralidade de territórios ou umamultiterritorialidade. Esta metáfora geográfica,proposta por Haesbaert (2005; 2006), já teria,hoje, a potência analítica e operacional de umconceito? Ou a força ontológica de uma categoriaque fundamente uma Geografia do Presente?

Antes de buscarmos possíveis respostaspara essas questões, vale considerarmos apertinente advertência do próprio Haesbaert(2007, p. 3):

Hoje, num mundo de “hibridismo” como onosso, os conceitos estão longe de carregar aambição formal de outrora, e às vezes tambémaqui precisamos trabalhar muito mais comintersecções e ambivalências do que comfronteiras ou limites claramente definidos. Porisso, falamos no caráter contrastivo dosconceitos, num sentido que pode lembrar (semradicalizar) a diffèrance de Derrida, onde umacabará sempre sendo (re)definido pelo outronuma resignificação sempre em aberto.

Nessa perspectiva, território usado emultiterritorialidade serão tratados aqui comoconceitos híbridos e relacionais que trazem apossibilidade de explicar o mundo atual, a partirde uma releitura dos seus significados ou mesmoda associação com outros conceitos e metáforas.

Portanto, sem desprezarmos aimportância de outras atividades (como asfinanças, os transportes, as telecomunicações, ocomércio, etc.), delimitaremos o lazer e o turismoem segundas residências como recortes empíricospara as breves reflexões, a seguir, sobre oterritório usado e a multiterritorialidade.

Segundas residências emultiterritorialidade no Nordeste brasileiro:uma análise preliminar

As segundas residências são conhecidascomo habitações temporárias de lazer ocupadasnos de finais de semana, feriados e férias anuais.Geralmente, elas se localizam em áreas não muitodistantes da primeira residência, onde as

amenidades naturais (praia, montanha, campo)são os principais atrativos. Em muitos estudos,as segundas residências também são classificadascomo alojamentos turísticos sem suscitar maioresdiscussões.

Em que pesem as polêmicas técnicas econceituais, consideramos que esses domicíliosocasionais tanto são habitações de lazer quantoalojamentos turísticos. Precisar as distinções entreambos tem sido um desafio perseguido pordiversos pesquisadores (ASSIS, 2003; 2006;ANDREU, 2005), sobretudo considerando quealém do tradicional veraneio nas casas de praia ecampo, a segunda residência, hoje, também ébastante procurada por turistas que preferemadquirir um imóvel nos condomínios que aliaminfraestrutura residencial e hoteleira (condo-resorts).

As segundas residências estão, na suaessência, associadas à expansão do urbano e àformação de áreas residenciais segregadas. Asmodernas redes de informação e transporteglobalizam a segunda residência, fazendo comque elas se mult ipliquem pelo mundo,notadamente nos países desenvolvidos, onde amelhor distribuição de renda permite a um maiorcontingente populacional o acesso a estashabitações.

Nos países em desenvolvimento, assegundas residências também estão emexpansão. No litoral do Nordeste brasileiro, porexemplo, o crescente interesse dos turistasinternacionais em adquirir um imóvel particularpara uso nas férias tem transformando assegundas residências na nova atração do mercadoimobiliário.

O número de domicílios de uso ocasional(segundas residências), no Nordeste, subiu de116.938 para 552.198, entre 1980 e 2000,registrando uma taxa de crescimento anual de8% que foi superior à média do país (6,9%) parao mesmo período (ASSIS, 2006, p. 298).

De acordo com a Associação para oDesenvolvimento Imobiliário e Turístico doNordeste Brasileiro9 (ADIT), “entre 2000 e 2003,o número de turistas com casa própria no

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Nordeste brasileiro cresceu cerca de 200%enquanto o de turistas que ficaram hospedadosem hotéis caiu 12,5%” (PETERSEN, 2006, p. 25).

O capital imobiliário local que, desde adécada de 195010, produz as tradicionais casasde praia e de serra para o lazer e o veraneio daelite nordestina, nas últimas décadas, vem sefundindo ao capital financeiro global (dos bancosprivados e das cadeias hoteleiras internacionais)para investir, com o incentivo do Poder Público,na construção e venda de residênciassecundárias, especialmente em condo-resortspara turistas estrangeiros.

Casas e apartamentos de diversospadrões são ofertados pelas imobiliárias e resorts,sobretudo através do sistema de TempoCompartilhado (Timeshare), em que o compradorpaga uma fração do valor do imóvel e uma taxade manutenção anual para ter o título depropriedade de uma unidade habitacional em umresort, totalmente equipada e mobiliada.

Os turistas estrangeiros que compramimóveis no Nordeste preferem osempreendimentos em condomínios devido àredução dos custos de manutenção, à maiorsegurança e à crescente valorização imobiliária.Esses novos usos da segunda residência têmlevado a um casamento entre o setor imobiliárioe o turismo, dando origem ao recente e aindacontroverso Turismo Imobiliário ou TurismoResidencial (MAZÓN; ALEDO, 2005).

No litoral nordestino, “os empresários dosegmento imobiliário estimam que os turistasestrangeiros já respondem por cerca de 30 a 50%dos negócios” (CASTRO, 2006, p. 6). E a previsãoé de crescer ainda mais, considerando o númerode grandes investimentos que têm aportado naregião desde a criação da ADIT. Segundo essaassociação, “somente a soma dos projetosportugueses e espanhóis alcança R$ 3,7 bilhões.Até 2014, estão previstas 7.250 novas unidadesimobiliárias na região” (ADIT, 2008).

Tanto nos condo-resorts, quanto nas casasde praia e de campo, as segundas residênciasprovocam problemas de subut il ização dainfraestrutura em alguns períodos e de sobre-

utilização em outros. A distribuição espacialdesses domicí l ios é composta por áreasheterogêneas, dispersas e segregadas dosnúcleos urbanos, o que representa um desafiopara os gestores e técnicos de planejamentocompatibilizarem a oferta de serviços básicos peloterritório, considerando os diferentes usos dapopulação residente e temporária.

Se por um lado as segundas residênciastêm contribuído para melhorar a infraestrutura ea economia de alguns municípios nordestinos(com a abertura de estradas, o aumento docomércio, a oferta de empregos e de melhoresserviços), por outro, elas também têm provocadoo aumento da especulação imobil iária, dadegradação dos ecossistemas e das mudançasnas atividades tradicionais.

Todos esses processos engendrados pelolazer e pelo turismo nas segundas residências sãoresultados de prát icas sociais que têmrebatimentos sobre o território, o qual é “[...]fundamentalmente um espaço definido edelimitado por e a partir de relações de poder”(SOUSA, 1995, p. 78). Poder esse aqui entendidono seu sentido multidimensional, que tem umadupla conotação, material e simbólica, pois comonos lembra Haesbaert (2006, p. 79), “[...] oterritório pode ser concebido a part ir daimbricação de múltiplas relações de poder, dopoder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais simbólico das relações deordem mais estritamente cultural”.

Nesse sentido, podemos dizer que assegundas residências tanto geram um vínculomaterial (da posse de uma outra fração doterritório além daquela já ocupada pela primeiraresidência) quanto diversas representaçõessimbólicas (status social, poder econômico, paz,isolamento, oportunidade de reencontro da famíliae da natureza perdida na cidade).

Com algumas ressalvas, podemos aindaassociar essa visão híbrida de território, derivadade Haesbaert (2006), à noção de “territóriousado” proposta por Santos e Silveira (2001, p.247), já que para eles “[...] quando quisermosdefinir qualquer pedaço do território, deveremos

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levar em conta a interdependência e ainseparabilidade entre a materialidade, que incluia natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana,isto é, o trabalho e a política”.

O território usado é, para Santos (1996),sinônimo de espaço geográfico e de espaço banal,ou seja, um conjunto indissociável de sistemasde objetos e sistemas de ações que não temapenas um sentido material ou funcional, mastambém é dotado de signif icados e dasexperiências humanas. Essa aparente confusãoconceitual entre espaço e território expressa, naverdade, uma crítica de Santos (2002, p. 15) aolegado de “conceitos puros”, herdados daModernidade, que atravessam séculos quaseintocados.

Nos últimos trabalhos, Santos (2001;2002) passou a atrelar o adjetivo “usado” aoconceito de território, tentando se desvencilharde uma concepção material ista e político-econômica (de grande destaque na sua obra!)que restringe o território a uma superfície inerteonde ocorrem as ações do Estado e das empresas.A expressão terr itór io usado, por maiscontrovertida que pareça, busca reforçar o seucaráter impuro e totalizante de não ser apenassuporte ou receptáculo das atividadeseconômicas, mas um importante ator que refletee condiciona as relações entre os homens e suasbases físicas e sociais.

No caso das segundas residências,podemos dizer que o território usado compreendeum campo de forças que abriga e condiciona aação dos visitantes, empresários, Poder Públicoe população receptora. Ele é apropriado e usadopor todos esses atores em cooperação ou emconflito de interesses. O uso do território tanto oconverte em mercadoria através da venda decasas e apartamentos para os turistas, quantoem moradia, espaço de descanso e de identidadepara visitantes e nativos.

São os múltiplos usos do território queatribuem sua importância e o torna uma arenaonde diferentes grupos sociais disputam seudomínio e ocupação. Por isso, Santos (2002, p.15) destaca que “é o uso do território, e não o

território em si mesmo que faz dele objeto daanálise social”.

Consideramos, então, que o territóriousado e a multiterritorialidade formam uma matrizteórica híbrida, relacional e multiescalar capaz defundamentar uma análise dos velhos e novos usosdas segundas residências.

O progresso técnico dos sistemas detransporte e comunicação aumentou a mobilidadeentre a pr imeira e a segunda residência,intensificando os usos de múltiplos territórios demoradia, trabalho, lazer e turismo. Esse aumentoda mobilidade possibilita às famílias locais daclasse média vivenciar uma multiterritorialidadeentre o domicílio permanente e suas tradicionaiscasas de temporada; assim como permite a umaelite global desfrutar da multiterritorialidadeatravés dos diversos lugares que visita comfrequência e das segundas residências que alipossui para a prática do turismo e/ou comoinvestimento imobiliário.

A multiterritorialidade é aqui entendida noseu sentido abrangente de processo ou ação quecorresponde, segundo Haesbaert (2006, p. 343-344), à:

[...] possibilidade de acessar ou conectardiversos territórios, o que pode se dar tantoatravés de uma “mobilidade concreta”, nosentido de um deslocamento físico, quanto“virtual”, no sentido de acionar diferentesterritorialidades mesmo sem deslocamentofísico, como nas novas experiências espaço-temporais proporcionadas através dociberespaço.

A partir desse entendimento, podemosdizer que as segundas residências intensificam aterritoritor ialização, ou melhor, amultiterritorialidade (entre a primeira e a segundaresidência) como um processo que integra deforma concomitante a desterritorialização e areterritorialização.

No Nordeste brasileiro, os dados e asinformações supracitadas atestam a necessidadede aprofundar essa perspectiva de análise quetambém é compartilhada por Rodrigues (2006,

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p. 306) quando afirma que “o território turístico,em particular, sendo um espaço dominado e/ouapropriado, assume um sentido multiescalar emultidimensional que só pode ser devidamenteapreendido dentro de uma concepção compósita,ou seja, de multiterritorialidade”.

Não enfrentar esse debate específico eabrangente que as segundas residências há muitorequerem é abrir mão de explorar o potencialexplicativo que o conceito de multiterritorialidadeoferece para compreender a complexidade deusos e relações que esses domicílios engendramna atualidade.

Considerações finais

Diante do exposto, podemos atribuir aoterritório o status de categoria geográfica quereadquire importância na teoria social críticacontemporânea, (re)aproximando a Geografia daFilosofia e aquela das demais Ciências Humanas.Como toda categoria, o território não é estático,tendo os seus usos e significados alterados peladinâmica da sociedade que, ao longo do tempo,redefine as relações de poder (materiais esimbólicas) entre os grupos sociais e seusespaços.

O território, cada vez mais, incorporaum sentido híbrido, relacional e multiescalarque enseja novas leituras e entendimentos,como território usado e multiterritorialidade queaqui brevemente apresentamos.

No Nordeste brasileiro, os velhos enovos usos do território pelas segundasresidências incitam diversos estudos equestionamentos nesse sentido. A difusão doscondo-resorts na região altera a tradicionalconcepção da segunda residência comohabitação de lazer, já que nesses complexosmistos de hotelaria e condomínio os turistasestrangeiros são os principais clientes. As novasformas de multipropriedade, assim como asredes e inovações que aumentam a mobilidade,tornam mais intensas e complexas adesterritorialização e a reterritorialização a queveranistas e turistas se submetem aodesfrutarem de uma segunda residência forado seu lugar de moradia habitual.

Entender esses múltiplos usos doterritório ou a multiterritorialidade provocadapelas segundas residências é um desafio queurge e um convite a prosseguir com aspesquisas e reflexões.

1 Também são usados os termos metadisciplina oumetaciência para expressar essas revisões ecríticas epistemológicas/ontológicas. Japiassu(1991, p. 191) explica que “hoje em dia, cadaciência duplica-se numa disciplina fundamentalcorrespondente que constitui sua metaciência.Esta se apresenta como um estudo vindo apósuma ciência e interroga-se sobre seus princípios,seus fundamentos, suas estruturas e suascondições de validade, elevando-se a um nívelsuperior”. Na Geografia brasileira, recentemente,Carlos (2007, p. 11) vem defendendo a construçãode uma metageografia a partir de uma reavaliaçãodo marxismo e da crítica radical

2 Deve-se ainda registrar, dentre outros, ascontribuições de Moreira (2007), Costa e Moraes(1984); Silveira (1999; 2003), Spósito (2004) eMartins (2007).

Notas

3 Em que pesem os distintos direcionamentos teóricos,muitas dessas críticas de Carlos (2007) seassemelham ao manifesto apresentado, em 2000,pelo grupo de Estudos Territoriais Brasileiros,coordenado por Milton Santos, que defendia o“papel ativo da Geografia” (BERNARDES, et al.2001). Como já esperado, ambos os trabalhosterminam apontando seu olhar sobre a Geografiae o mundo como um caminho possível para “asuperação das alienações vividas” e para se“encontrar um enfoque totalizador”. Emboraapresentem preciosas reflexões para a renovaçãoda Geografia, essas análises também trazemácidas e exageradas críticas a alguns segmentosdo saber geográfico, a exemplo da abordagemgeográfica do turismo que é rotulada por Carlos(2007, p. 9) como uma “certa Geografia doturismo”. Isso demonstra, no mínimo, um rançomarxista de ainda atribuir menos importância

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científica às atividades elitistas ou terciárias;assim como, um descuido (ou descaso!) emnão reconhecer os significativos trabalhossobre o turismo produzidos pelos geógrafosnas últ imas décadas (RODRIGUES, 1996;2001). O turismo é uma atividade complexa emult ifacetada que só recentemente temganhado a atenção científica e, cada vez mais,requer pesquisas e reflexões interdisciplinares.E a Geografia tem dado grandes contribuiçõesnesse sent ido, en focando, espec ial “ossistemas de objetos e sistemas de ações” queresultam na “produção do espaço” pelo turismoe para o turismo. Os métodos e enfoques daGeografia do Turismo têm sido diversos, masconvergem para a formulação de propostas ecríticas às “contradições da realidade e docapital”. Ela é, portanto, um dos segmentosmais ativos da Geografia que não pode seracusada de estar produzindo um refluxo ouuma fragmentação do pensamento geográfico,pois se há neste uma crise, é sempre um bommomento para superar os dogmatismos queimpedem esforços conjuntos (e diversos!) paraa reabilitação social da disciplina.

4 As origens desse debate são apresentadas porMore ira (2007, p. 133-141) em uminteressante texto intitulado de “o mal-estarespacial no fim do século XX”.

5 Entre os geógrafos brasileiros que se destacamnos estudos epistemológicos da Geografia, nãohá um consenso sobre qua is se r iam osconceitos e/ou categorias centrais dessadisciplina. Silva (1986) sugere, entre outras,oito categorias fundamentais (espaço, lugar,área, região, território, habitat, paisagem epopulação); Corrêa (1995) propõe cincoconceitos-chave (paisagem, região, espaço,lugar e território); Moreira (2007) também citatrês categorias básicas (espaço, território epaisagem); e Santos (1997) apresenta umleque diversificado de conceitos e categorias,como espaço , região, pa isagem, lugar,território, configuração territorial, formaçãosoc ioespac ia l, e t c . Porém, conformedestacado, o espaço é a categoria comum atodos esses autores.

6 Segundo Claval (1999, p. 7), “os geógrafos dosanos sessenta atribuíram tudo ao espaço. Hojeem dia, e les falam mai s comumente deterritório. Essa mudança reflete em parte osdebates epistemológicos internos à geografia.Ela é, sobretudo, testemunha de uma profundatransformação do mundo, e de uma mutaçãocorrelata das maneiras de compreendê-lo”.

7 Dentre as quais também se destacam as deinspiração fenomenológica, humanista oucultural que discutem como a identidade, ocotidiano, o simbolismo e as representaçõessociais estabelecem nexos com o espaço (jáque ele é sempre uma referência importante!)na construção das territorialidades ou dasidentidades territoriais. A esse respeito, veros interessantes trabalhos de Mesquita eBrandão (1995), Claval (1999) e Haesbaert(1999; 2007).

8 Sem dúvidas, foi o geógrafo francês ClaudeRaffestin quem mais influenciou os geógrafosbrasileiros a fazerem uma releitura do conceitode território nas últimas décadas, sobretudoatravés da sua obra Por uma Geografia doPoder. Mas, não podemos deixar de registrar,nesse período, as contr ibuições de JeanGottman, Robert Sack e Giuseppe Demmateis,cujas obras foram analisadas por Haesbaert(2006) e Saquet (2007).

9 Criada em junho de 2006 para realizar a uniãoentre turismo e mercado imobiliário, a ADITtem como foco a atração de investimentos, amelhora da infraestrutura do Nordeste e dalegislação, especialmente, a ambiental.

10 Segundo Becker (1995, p. 10), “no Brasil, oaparecimento do fenômeno da segundaresidência dá-se na década de 1950 sob aégide do ‘nacional-desenvolvimentismo’ quefoi responsável pela implantação da indústriaautomob i l í s t i ca , pe la ascensão dorodovia r ismo como mat r iz p r inci pal dostransportes e pela emergência de novosestratos sociais médios e urbanos que, aospoucos, começariam a incorporar entre os seusvalores sócio-culturais a ideologia do turismoe do lazer”.

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Trabalho enviado em Janeiro de 2009

Trabalho aceito em Agosto de 2009