Do que se confia às letras - a ciência gramatical nas Etymologiae de Isidoro de Sevilha

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Luciano César Garcia Pinto DO QUE SE CONFIA ÀS LETRAS: A CIÊNCIA GRAMATICAL NAS ETIMOLOGIAS DE ISIDORO DE SEVILHA Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestre em Lingüística, na área de Letras Clássicas, sob orientação do Professor Dr. Marcos Aurelio Pereira. Campinas 2008

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Luciano Csar Garcia Pinto

DO QUE SE CONFIA S LETRAS:A CINCIA GRAMATICAL NAS

ETIMOLOGIAS DE ISIDORO DE SEVILHA

Dissertao apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, para obteno do Ttulo de Mestre em Lingstica, na rea de Letras Clssicas, sob orientao do Professor Dr. Marcos Aurelio Pereira.

Campinas 2008

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Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

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Pinto, Luciano Csar Garcia. Do que se confia s letras : a cincia gramatical nas Etimologias de Isidoro de Sevilha / Luciano Csar Garcia Pinto. -- Campinas, SP : [s.n.], 2008. Orientador : Marcos Aurelio Pereira. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Isidoro, de Sevilha, Santo, m.636. 2. Antigidade tardia. 3. Discurso gramatical. 4. Etimologia - Histria. I. Pereira, Marcos Aurlio. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

oe/iel

Ttulo em ingls: On what we entrust letters: grammatical science in the Etymologies by Isidore of Seville. Palavras-chaves em ingls (Keywords): Isidore of Seville; Late antiquity; Grammatical discourse; Etymology - History. rea de concentrao: Lingstica. Titulao: Mestre em Lingstica. Banca examinadora: Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira (orientador), Profa. Dra. Elaine Cristine Sartorelli e Profa. Dra. Suzy Maria Lagazzi-Rodrigues. Data da defesa: 07/03/2008. Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Lingstica.

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AGRADECIMENTOSGostaria de agradecer Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo apoio financeiro, ao Prof. Dr. Marcos Aurelio Pereira pela orientao e a todos os membros da banca examinadora por todas as sugetes feitas em minha qualificao. Ademais, gostaria de agradecer a todos aqueles que, de alguma maneira, contriburam com algo ao longo de toda minha formao lato sensu.

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Macunama era desbocado duma vez. Falara uma bocagem muito porca, muito! A cunhat no sabia que puto era palavra-feia no e enquanto o heri voltava aluado com o caso pra penso, ficou se rindo, achando graa na palavra. Puto ... que ela dizia. E repetia gozado: Puto ... Puto ... Imaginou que era moda. Ento se ps falando pra toda a gente si queriam que ela botasse uma rosa no puto deles. Uns quiseram outros no quiseram, as outras cunhats escutaram a palavra, a empregaram e puto pegou. Ningum mais no falava em boutonnire por exemplo; s puto, puto se escutava. [...] Mas o caso que puto j entrara pras revistas estudando com muita cincia os idiomas escrito e falado e j estava mais que assente que pelas leis de catalepse elipse sncope metonmia metafonia mettese prclise prtese afrese apcope haplologia etimologia popular, todas essas leis, a palavra botoeira viera a dar em puto, por meio duma palavra intermediria, a voz latina rabanitus (botoeira-rabanitus-puto), sendo que rabanitus embora no encontrada nos documentos medievais, afirmaram os doutos que na certa existira e fora corrente no sermo vulgaris. Mrio de Andrade, Macunama Meliores esse grammaticos quam haereticos. Isidoro de Sevilha, Sententiae

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RESUMOSobre o discurso gramatical produzido na Antigidade tardia nem sempre se encontram olhares cuidadosos. As Etimologias de Isidoro de Sevilha, cuja circulao atravessou os sculos posteriores, tm sido um alvo predileto para consideraes que vo desde o menosprezo puro e simples ao risvel. No entanto, as reflexes linguageiras desses sculos que encerram a Antigidade tm sua razo de ser, uma vez que estabelecem relaes outras com a lngua e com a linguagem. Na tentativa de contar uma outra histria sobre o discurso gramatical antigo e sobre uma de suas ferramentas interpretativas bsicas, a etimologia, optou-se por narrar, em linhas gerais, o percurso das abordagens linguageiras que partem de gregos e romanos e chegam ao trabalho de Isidoro de Sevilha, enfatizando as tenses entre as rupturas e as continuidades desses debates, percorrendo um perodo em que subjaz o acontecimento da emergncia do discurso cristo. Para descrever e interpretar quais as regularidades desse discurso gramatical-etimolgicocristo isidoriano, julgou-se necessrio traduzir o livro I das Etimologias, onde se encontram as definies-chave relativas gramtica e etimologia. Palavras-chave: Isidoro de Sevilha; discurso gramatical; etimologia - histria; Antigidade tardia.

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ABSTRACTIt is not always usual to find careful approaches on the grammatical discourse produced in Late Antiquity. Isidore of Sevilles Etymologies that have circulated through the later centuries have been a favorite target to some considerations from the pure and simple contempt to the laughable. However, the language reflections from those centuries ending Antiquity have their own reason of existence, as they establish different relations with language itself. In order to tell another story about the ancient grammatical discourse and one of its basic interpretative tools, the etymology, we chose to narrate, in general lines, the course of language approaches that has begun with the Greek and Roman until Isidore of Sevilles work, emphasizing the tensions between breaks and continuities within those debates, covering a period in which we may witness the emergency of Christian discourse. In order to describe and interpret which are the regularities of that Isidorians grammatical, etymological and Christian discourse, we found it necessary to translate the first book of the Etymologies where the key definitions relating to Grammar and Etymology are found. Key-words: Isidore of Seville; grammatical discourse; etymology; Late Antiquity.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BJ CARIS. Ars gramm De Bapt. III Diff. DIOM. Ars gramm DON. Ars gramm GG GL ISID. Chron ISID. De fide cath. ISID. Liber num

Bblia de Jerusalm Carsio, Ars grammatica Agostinho, De baptismo Isidoro de Sevilha, Differentiae Diomedes, Ars grammatica Donato, Ars grammatica = Ars minor Grammatici Graeci Grammatici Latini Isidoro de Sevilha, Chronicon Isidoro de Sevilha, De fide catholica Isidoro de Sevilha, Liber de numerorum hebraicorum

ISID. Quaest. in Vetus Test. Isidoro de Sevilha, Quaestiones in Vetus Testamentum ISID. Sent. OLD ORIG. Hex Orig. ORIG. Comm. in Ioann. PG PL PRISC. Inst. gramm. PRISC. Partit. Isidoro de Sevilha, Sententiae Oxford Latin Dictionary Orgines, Hexapla Isidoro de Sevilha, Origines sive Etymologiae Orgines, Commentarium in Ioannem Patrologia Grega Patrologia Latina Prisciano, Institutiones grammaticae Prisciano, Partitiones

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SUMRIO

Introduo

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 01 . . . . . . . . . . . . . . . 07 . . . . . . . . . . . . . . 18

0.1 Como se v a Etimologia de hoje 0.2 Como se v a Etimologia de ontem

1. Alguns breves aspectos da reflexo linguageira na Antigidade . . . . . . 25 1.1 A faina com a palavra: Potica . . . . . . . . . . . . . . . . 26

1.2 Palavras ou materialidade sonante: Msica, Mtrica, Rtmica . . . . . . . 28 1.3 Palavras para (co)mover: Retrica . . . . . . . . . . . . . . . . 30 1.4 Palavras para qu?: Filosofia (Dialtica) . . . . . . . . . . . . . . 35 1.5 Amor pelas palavras: Filologia . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 1.6. Tcnica das palavras: Gramtica . . . . . . . . . . . . . . . 43

2. Etimologia antiga: busca por sentidos . . . . . . . . . . . . . . . 51 2.1 A Etimologia nas diversas disciplinas. . . . . . . . . . . . . . . 56 2.1.1 Prtica versus teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 2.1.2 Potica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

2.1.3 Retrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 2.1.4 Filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 2.2. O sincrnico e o diacrnico: etymologia ex origine e ex ratione/causa . . . 72

2.3 Etimologia como ferramenta hermenutica: comentrio e interpretao . . . 76 3. O Cristianismo e questes de linguagem . . . . . . . . . . . . . . 89 3.1 Algumas vises linguageiras na concepo crist: texto, alfabeto etc. . . . . 90

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3.2 A Bblia, as linguae sacrae e a Etimologia: unidade, inteligibilidade, traduo e comentrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

4. Isidoro de Sevilha e sua enciclopdia etimolgica . . . . . . . . . . 115 4.1 Circuntncia poltica e saber . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 4.2 As Etimologias e a situao lingstica da Hispnia no sculo V d.C. . . . . 127 4.3 As disciplinas antigas nas Etimologias . . . . . . . . . . . . . . 140 4.4 As Etimologias e a Etimologia antiga: rupturas e continuidades . . . . . . 145 4.5 Etimologias e differentiae . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 4.6 Etimologias e Bblia: ueritas hebraica e linguagem coeva . . . . . . 157

4.7. Uma mstica (cientfica) da linguagem: o(s) nome(s) e a(s) lngua(s) de Deus . 168 4.8. O De grammatica e a ars grammatica e os fundamentos ocidentais da leitura . 172 4.8.1 A importncia do texto nas Etimologias . . . . . . . . . . . . 174 4.8.2 Organizao e mtodo de apresentao do Da Gramtica . . . . . . 177 Concluso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 Etimologias: Livro I: Da gramtica . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 1. Da disciplina e da arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 2. Das sete artes liberais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231 3. Das letras comuns . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234

4. Das letras latinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246 5. Da gramtica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258

6. Das partes do discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 260 7. Do nome . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261 8. Do pronome . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279

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9. Do verbo

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290

10. Do advrbio

11. Do particpio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291 12. Da conjuno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 292 13. Da preposio 14. Da interjeio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296 . . . . . . . . . . . . . . . . 296

15. Das letras entre os gramticos 16. Da slaba

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297

17. Dos ps . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 298 18. Dos acentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306 19. Dos formatos dos acentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 309 20. Das pontuaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310 21. Dos sinais das sentenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 312 22. Dos sinais vulgares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318 23. Dos sinais jurdicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319 24. Dos sinais militares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321 25. Dos sinais das cartas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322 26. Dos sinais feitos com os dedos . . . . . . . . . . . . . . . . . 322 27. Da ortografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323 28. Da analogia 29. Da etimologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 330 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 332

30. Das glosas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 334 31. Das diferenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 335

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32. Do barbarismo

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 336

33. Dos solecismos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338 34. Dos vcios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 340 35. Dos metaplasmos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 345 36. Das figuras de construo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 350

37. Dos tropos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359 38. Da prosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 381 39. Dos metros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 382

40. Da fbula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 390 41. Da histria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 393 42. Dos primeiros autores de histrias . . . . . . . . . . . . . . . . 394 43. Da utilidade da histria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395 44. Dos gneros da histria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 395 Referncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 397

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INTRODUOHistoriar sempre um ofcio que flerta com a lembrana, mas, sobretudo, com o esquecimento. Mais do que resgatar, recuperar ou revalorizar, os discursos historiogrficos podem, com freqncia, apagar e recalcar o indesejvel ou o ininteligvel do passado. Alis, a prpria construo de um passado se d na sua relao com o presente. Assim afirma Michel de Certeau (2006, p. 15-16) ao falar sobre o procedimento fundamental da historiografia moderna ocidental:Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porm, repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compe de perodos (por exemplo, Idade Mdia, Histria Moderna, Histria Contempornea) entre os quais se indica sempre a deciso de ser outro ou de no ser mais o que havia sido at ento (o Renascimento, a Revoluo). Por sua vez, cada tempo novo deu lugar a um discurso que considera morto aquilo que o precedeu, recebendo um passado j marcado pelas rupturas anteriores. Logo, o corte o postulado da interpretao (que se constri a partir de um presente) e seu objeto (as divises organizam as representaes a serem reinterpretadas). O trabalho determinado por este corte voluntarista. No passado, do qual se distingue, ele faz uma triagem entre o que pode ser compreendido e o que deve ser esquecido para obter a representao de uma inteligibilidade presente. Porm, aquilo que esta nova compreenso do passado considera como no pertinente desejo criado pela seleo dos materiais, permanece negligenciado por uma explicao apesar de tudo retorna nas franjas do discurso ou nas suas falhas: resistncias, sobrevivncias ou atrasos perturbam, discretamente, a perfeita ordenao de um progresso ou de um sistema de interpretao. So lapsos na sintaxe construda pela lei de um lugar. Representam a o retorno de um recalcado, quer dizer, daquilo que num momento dado se tornou impensvel para que uma identidade nova se tornasse pensvel1.

Esse procedimento, segundo o prprio Certeau (ibid., p. 16-17), muito longe de ser genrico, uma singularidade ocidental. Aps apresentar vrias concepes de tempo diferentes, o autor aventa que: intil multiplicar, fora de nossa historiografia, os exemplos que atestam uma outra relao com o tempo, ou, o que vem a ser o mesmo, uma outra relao com a morte. No ocidente, o grupo (ou indivduo) se robustece com aquilo que exclui ( a criao de um lugar prprio) e encontra sua segurana na confisso que extrai de um dominado (assim se constitui o saber de/sobre o outro, ou cincia humana). que ela sabe efmera toda vitria sobre a morte; fatalmente a desgraada retorna e ceifa. A morte assombra o Ocidente. Por este motivo o discurso das cincias humanas patolgico: discurso do pathos infelicidade e A no ser que indiquemos o contrrio, os relevos autonmicos das citaes pertencem aos prprios textos. Ademais, as passagens citadas das obras em lnguas estrangueiras, cuja traduo, em portugus, no est includa na bibliografia, foram vertidas por ns.1

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ao apaixonada numa confrontao com esta morte que a nossa sociedade deixa de poder pensar como um modo de participao na vida. Por sua conta a historiografia supe que se tornou impossvel acreditar nesta presena dos mortos que organizou (organiza) a experincia de civilizaes inteiras e, portanto, que impossvel remeter-se a ela, aceitar a perda de uma solidariedade viva com os desaparecidos, ratificar um limite irredutvel. O perecvel seu dado; o progresso, sua afirmao. Um a experincia que o outro condena e combate. A historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz capaz de compreender o passado: estranho procedimento, que apresenta a morte, corte sempre repetido no discurso, e que nega a perda, fingindo no presente o privilgio de recapitular o passado num saber. Trabalho da morte e trabalho contra a morte.

Trilhar uma senda dissonante dessa, criticada por Certeau, inteno deste trabalho, ao tratar das Etymologiae de Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.). Isso implica tomar algumas posies referentes histria. Primeiramente, por se tratar de um assunto, a etimologia, que, graas semelhana do significante de ontem com o de hoje, poderia ser apreendido por uma histria da cincia ou das idias, faz-se necessrio explicitar a relao aqui estabelecida com essas reas e seus respectivos pressupostos. De partida, h o imperativo de negar, quando se fala de histria das idias ou da cincia, qualquer ciso entre as categorias de autor e de obra. Quanto a isso, ficamos, novamente, com Michel de Certeau (ibid., p. 38-39):[...] As idias tornam-se uma mediao entre o Esprito (o Geist) e a realidade scio-poltica. Supe-se que constituam um nvel onde se reencontrem o corpo da histria e sua conscincia, o Zeitgeist. Entretanto, a simplicidade do postulado se decompe, diante da anlise, em problemas complexos e aparentemente insolveis. Por exemplo, qual o verdadeiro Newton? De que tipo a unidade que se postula, a de sua obra, e, portanto, a de um perodo? Que suporte fornece a tantas idias diferentes a unidade emprestada s idias do tempo, mentalidade ou a uma conscincia coletiva contempornea? Esta unidade procurada, quer dizer, o objeto cientfico, se presta discusso. Deseja-se ultrapassar a concepo individualista que recorta e rene os escritos segundo sua pertena a um mesmo autor, que, ento, fornece biografia o poder de definir uma unidade ideolgica, e supe que a um homem corresponda um pensamento (como a arquitetura interpretativa que repete o mesmo singular nos trs andares do plano clssico: o Homem, a obra, o pensamento). Tentaram-se identificar as totalidades mentais histricas: por exemplo, a Weltanschauug [sic] em Max Weber (concepo do universo ou viso do mundo), o paradigma cientfico em T. S. Kuhn, a Unit Idea em A. O. Lovejoy, etc. Essas unidades de medida se referem ao que Lvi-Strauss chamar de a sociedade pensada em oposio sociedade vivida. Elas tendem a fazer ressaltar dos conjuntos sancionados por uma poca, quer dizer das coerncias recebidas, implicadas pelo percebido ou pelo pensado de um tempo, sistemas culturais suscetveis de fundar uma periodizao ou uma diferenciao dos tempos. Desta maneira se opera uma classificao do material na base dos incios e fins ideolgicos, ou daquilo que Bachelard chama de rupturas epistemolgicas. As ambigidades desses sistemas de interpretao foram vigorosamente criticadas, particularmente

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por Michel Foucault. Elas se prendem, essencialmente, ao estatuto incerto, nem carne nem peixe, dessas totalidades que no so legveis na superfcie dos textos, mas no interior deles, realidades invisveis que conduziriam os fenmenos. Em nome de qu supor e como determinar essas unidades a meio-caminho entre o consciente e o econmico? Elas ocupam o lugar de uma alma coletiva e permanecem como vestgio de um ontologismo. Logo sero substitudas por um inconsciente coletivo. Na impossibilidade de poder ser realmente controlvel, esse sub-solo extensvel; pode se estender ou contrair vontade; tem amplitude dos fenmenos a compreender. De fato, mais do que ser um instrumento de anlise, representa a necessidade que tem dele o historiador; significa uma necessidade da operao cientfica, e no uma realidade apreensvel em seu objeto.

Como Certeau afirma, um dos grandes crticos desse esquema tradicional da histria das idias Michel Foucault (2005, p. 54), de quem reproduzimos algumas palavras:[...] quatro [...] noes (significao, originalidade, unidade, criao) de modo geral dominaram a histria tradicional das idias onde, de comum acordo, se procurava o ponto da criao, a unidade de uma obra, de uma poca ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indefinido das significaes ocultas.

Segundo ele, foi com a leitura de outros historiadores da cincia e, em especial, com Canguilhem,[...] a que devo o fato de ter compreendido que a histria da cincia no se acha presa necessariamente alternativa: crnica das descobertas ou descries das idias e opinies que cercam a cincia do lado de sua gnese indecisa ou do lado de suas origens exteriores; mas que se podia, se devia fazer a histria da cincia como de um conjunto ao mesmo tempo coerente e transformvel de modelos tericos e de instrumentos conceituais. (ibid., p. 71-72)

Como contraponto abordagem tradicional, Foucault prope (ibid., p. 59):De sorte que o tnue deslocamento que se prope praticar na histria das idias e que consiste em tratar, no das representaes que pode haver por trs dos discursos, mas dos discursos como sries regulares e distintas de acontecimentos, este tnue deslocamento, temo reconhecer nele como que uma pequena (e talvez odiosa) engrenagem que permite introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso, o descontnuo e a materialidade.

A constatao da materialidade das idias e, concomitantemente, dos discursos, pe em xeque a dicotomia (para alguns, falsa; cf. LE GOFF, 2003, p. 95-96 et passim) entre infra-estrutura, ou seja, as condies econmicas, e a superestrutura, o campo das representaes. Certeau (1975, p. 70-71), ao comentar a questo da emergncia das

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instituies cientficas a partir do sculo XVII, trata da diviso infra-/superestrutura nos seguintes termos:A instituio no d apenas uma estabilidade social a uma doutrina. Ela a torna possvel e, sub-repticiamente, a determina. No que uma seja a causa da outra. No seria suficiente contentar-se com a inverso dos termos (a infra-estrutura tornando-se a causa das idias), supondo entre elas o tipo de relao que estabeleceu o pensamento liberal quando encarregou as doutrinas de conduzirem a histria pela mo. , antes, necessrio recusar o isolamento destes termos e, portanto, a possibilidade de transformar uma correlao numa relao de causa e efeito. um mesmo movimento que organiza a sociedade e as idias que nela circulam. Ele se distribui em regimes de manifestaes (econmica, social, cientfica, etc.) que constituem, entre eles, funes imbricadas, porm, diferenciadas, das quais nenhuma a realidade ou a causa das outras. Desta maneira, os sistemas scio-econmicos e os sistemas de simbolizao se combinam sem se identificar nem se hierarquizar. Uma mudana social , deste ponto de vista, comparvel a uma modificao biolgica do corpo humano: constitui, como ela, uma linguagem, mas adequada a outros tipos de linguagem (verbal, por exemplo). O isolamento mdico do corpo resulta de um corte interpretativo que no d conta das passagens da somatizao simbolizao. Inversamente, um discurso ideolgico se ajusta a uma ordem social, da mesma forma como cada enunciado individual se produz em funo das silenciosas organizaes do corpo. Que o discurso como tal, obedea a regras prprias, isto no o impede de articular-se com aquilo que no diz com o corpo, que fala sua maneira. Em histria, abstrata toda doutrina que recalca sua relao com a sociedade. Ela nega aquilo em funo de que se elabora. Sofre, ento, os efeitos de distoro devidos eliminao daquilo que a situa de fato, sem que ela o diga ou o saiba: o poder que tem sua lgica; o lugar que sustenta e mantm uma disciplina no seu desdobramento em obras sucessivas, etc. O discurso cientfico que no fala de sua relao com o corpo social , precisamente, o objeto da histria. No se poderia tratar dela sem questionar o prprio discurso historiogrfico.

Para o autor, o emprego da diviso entre as idias e a sociedade deriva, ademais, de um apagamento, um no-dito do discurso cientfico que tenta colocar a si prprio para fora da histria:[...] impossvel eliminar do trabalho historiogrfico as ideologias que nele habitam. Porm, dando-lhes o lugar de um objeto, isolando-as das estruturas scio-econmicas, supondo, alm disso, que as idias funcionem da mesma maneira que essas estruturas, paralelamente e num outro nvel, a histria das idias no pode encontrar a inconsistente realidade na qual sonha descobrir uma coerncia autnoma, seno atravs da forma de um inconsciente. O que ela manifesta realmente, o inconsciente dos historiadores, ou mais exatamente, do grupo ao qual pertencem. A vontade de definir ideologicamente a histria particularidade de uma elite social. Ela se fundamenta numa diviso entre as idias e o trabalho. Costuma negligenciar igualmente a relao entre as cincias e suas tcnicas, entre a ideologia dos historiadores e suas prticas, entre as idias e sua localizao ou as condies de sua produo nos conflitos scio-econmicos de uma sociedade, etc. Nada espantoso, portanto, que esta diviso, ressurgncia e reforo de um elitismo j bem definido em fins do sculo XVIII (Franois

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Furet, entre outros, acentuou-o freqentemente), tenha como smbolo a justaposio entre uma histria das idias e uma histria econmica. A procura de uma coerncia prpria a um nvel ideolgico remete, pois, ao lugar daqueles que a elaboram no sculo XX. Gramsci, sem dvida, indica sua verdadeira proporo, quando, reexaminando a histria das idias, a substitui pela histria dos intelectuais orgnicos, grupo particular, e do qual analisa a relao entre sua posio social e os discursos que eles produzem. (ibid., p. 40).

A tentativa desta dissertao de ao comentar, acrescentar notas de rodap e apresentar a traduo do livro I (De grammatica) dessa obra isidoriana mergulh-la, o mximo possvel, no conjunto de discursos e prticas coevos a ela, procurando no cindir autor e obra, idias e historicidade. Assim, este trabalho pretende ser uma introduo geral ao conceito de etimologia que habita nas Etimologias de Isidoro de Sevilha. Concomitantemente, a recusa da dicotomia idias e sociedade coaduna-se com outra, a de que haveria um progresso da ou na cincia, de modo que fosse possvel, teleologicamente, avaliar o passado2 como uma fase anterior e pior que a subseqente. Antes, sem entrarmos a fundo no problema das relaes entre passado e presente (cf. LE GOFF, 2003, p. 23-29, 51, 207-234), preferimos no a tranqilidade da linearidade evolutiva pacfica, mas a idia de que no h progresso, porque no h continuidade, mas sim rupturas, mudanas na ordem do discurso e, logo, na vontade de saber. A mesma ruptura que, como disse Certeau, mata o anterior e instaura a revoluo. As rupturas do-se nos jogos de verdade:No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposies verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma cincia mais e menos povoado do que se cr: certamente, h a experincia imediata, os temas imaginrios que carregam e reconduzem sem cessar crenas sem memria; mas, talvez, no haja erros em sentido estrito, porque o erro s pode surgir e ser decidido no interior de uma prtica definida; em contrapartida, rondam monstros cuja forma muda com a histria do saber. Em resumo, uma proposio deve preencher exigncias complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, no verdadeiro. (FOUCAULT, 2005, p.33-4)

O filsofo francs d como exemplo disso o no reconhecimento do trabalho do bilogo Mendel por seus pares coetneos; graas, no entanto, a uma ruptura no discurso biolgico, ele foi, posteriormente, posto na cincia:As aspas servem para questionar a existncia ontolgica do passado e, com isso, trazer baila a noo do passado como uma construo (cf. LE GOFF, op. cit., p. 25).2

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[...] Mendel dizia a verdade, mas no estava no verdadeiro do discurso biolgico de sua poca: no era segundo tais regras que se constituam objetos e conceitos biolgicos; foi preciso toda uma mudana de escala, o desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia para que Mendel entrasse no verdadeiro e suas proposies aparecessem, ento, (em boa parte) exatas. Mendel era um monstro verdadeiro, o que fazia com que a cincia no pudesse falar nele [...]. (ibid., p. 35).

E conclui: sempre possvel dizer o verdadeiro no espao de uma exterioridade selvagem; mas no nos encontramos no verdadeiro seno obedecendo s regras de uma polcia discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos. A disciplina um princpio de controle, da produo do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualizao permanente das regras. (ibid., p. 35-36).

Em se opondo linearidade a ruptura descontnua, o contra-discurso que tencionamos apresentar, ao pretender falar de um recalcado, tambm no pressupe um continuum desse ltimo, como se ele estivesse escondido em algum lugar e, graas anlise, pudesse ser trazido de volta s luzes:[...] o fato de haver sistemas de rarefao no quer dizer que por baixo deles e para alm deles reine um grande discurso ilimitado, contnuo e silencioso que fosse por eles reprimido e recalcado e que ns tivssemos por misso descobrir restituindo-lhe, enfim, a palavra. No se deve imaginar, percorrendo o mundo e entrelaando-se em todas as suas formas e acontecimentos, um no-dito ou um impensado que se deveria, enfim, articular ou pensar. Os discursos devem ser tratados como prticas descontnuas, que se cruzam por vezes, mas tambm se ignoram ou se excluem. (ibid., p. 52-53).

Descontinuidade que fica bem clara nas j citadas palavras de Certeau, que diz: o recalcado, que se tornou impensvel graas ruptura que instaurou um passado pode retornar (e no ser descoberto) nas franjas do discurso, nos lapsos da sintaxe. Por fim, embora no se trate de um trabalho de histria nem de historiografia stricto sensu, explicitamos as duas ltimas no-pretenses (muitas vezes, interligadas) cuja recusa um ndice da atual ordem do discurso historiogrfico deste trabalho: o de no embarcar no historicismo de Ranke do wie es eigentlich gewesen (como de fato aconteceu) nem na iluso de que fala Munslow (1997, p. 178 apud FUNARI, GARRAFFONI, 2007, p. 75-76):O passado no descoberto ou encontrado. criado e representado pelo historiador como um texto que, por sua vez, consumido pelo leitor. A Histria tradicional dependente em seu poder de explicao como a esttua que preexiste

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no mrmore, ou o princpio do trompe l'oeil. Mas esta no a nica Histria que podemos ter. Ao explorarmos a maneira como representamos a relao entre ns e o passado, podemos ver-nos no como observadores distantes do passado mas, como Turner, participantes na sua criao. O passado complicado e difcil o bastante sem a auto-iluso que quanto mais nos engajamos com a evidncia, mais perto estamos do passado. A idia de descobrir a verdade na evidncia um conceito modernista do sculo XIX e no h mais lugar para ela na escrita contempornea sobre o passado.

De volta a Isidoro, a escolha de traduzir o livro De grammatica deu-se pelo fato de acharmos de suma importncia, na compreenso dos pressupostos e mtodos da etimologia nas Etimologias, apresentar quais so os fundamentos relativos lngua ou linguagem de que parte Isidoro, pois, uma vez que, no interior das relaes dos saberes antigos, a etimologia estava subjugada ao mbito mais geral da grammatica, cremos ser indispensvel traduzir o livro inicial que trata dessa disciplina, a fim de, juntamente com o estudo que acompanha a traduo, darmos uma viso de conjunto acerca do conceito isidoriano de etimologia. Concomitantemente, no se pode fugir de questes relativas s vises modernas geralmente, impregnadas por aquela noo triunfante de progresso acerca da etimologia, tanto a de hoje como a de ontem, como fugir historicidade das investigaes de Isidoro na sua relao com a tradio anterior e com uma situao poltico-cultural particular da Hispnia na virada do sculo VI para o VII d.C.; ou seja, cabe perguntar de que lugar fala a obra do bispo de Sevilha. No entanto, vale ressaltar, aqui, que o tratamento a ser dado no pretende ser, de modo algum, exaustivo, pois que no se trata de um trabalho de historiografia, mas sim da apresentao aos leitores de lngua portuguesa de parte traduzida das Etymologiae de Isidoro de Sevilha. 0.1. COMO SE V A ETIMOLOGIA DE HOJE Antes de verificar as avaliaes feitas sobre a etimologia hodierna por parte, por exemplo, da Lingstica moderna, cabe lembrar sua assiduidade como uma forma de labor com/sobre a lngua, mesmo fora dos mbitos eruditos/acadmicos. A glosa etimolgica consta da lista que Authier-Revuz faz da chamada modalizao autonmica, ou seja, configurao enunciativa da reflexividade metaenunciativa (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 14), como uma das formas de que os

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enunciadores lanam mo, quando se percebe a presena de um sentido no-unvoco no enunciado, para fixar um sentido. Uma dessas glosas opera conforme um conjunto de facetas do sentido onde se misturam, de uma maneira complexa, noes metalingsticas e apreciaes subjetivas (figurado, etimolgico, literal, estrito, forte, pleno, verdadeiro, bom...) [...] (ibid., p. 39). Segundo a autora, essa modalizao autonmica relaciona-se:[...] com a metalinguagem natural, observvel no discurso (vs. lgica, externa), [...] isto , o poder de reflexividade das lnguas naturais [...]; com a metalingstica comum, ou epilingstica (vs. cientfica), que d acesso s representaes de sujeitos ao sujeito da linguagem (da lngua, do sentido, da comunicao...); com o metaenunciativo, auto-representao do dizer se fazendo (vs. discurso sobre a linguagem em geral, sobre um outro dizer...) em que o discurso sobre a prtica da linguagem, emergindo desta em pontos do dizer que requerem mais dela do que um comentrio, conjuga os dois planos da prtica e da representao como parte dessa prtica (ibid., p. 15).

Destarte, embora o objeto de que trataremos se encaixe em uma dessas oposies, a importncia da proposta acima, para ns, est em mostrar que o fenmeno etimolgico independe de qualquer tipo de formalizao discursiva, uma vez que pode entrar em cena em qualquer ato enunciativo como uma dentre vrias formas de tentar fixar um sentido desejado. Nesse ponto especfico da enunciao, pouco importa saber se a glosa etimolgica expressa ou no cientfica:A figura pela qual um enunciador desdobra reflexivamente o dizer de uma unidade, atravs de uma explicitao univocizante do sentido dessa unidade no seu dizer, constitui, em si, uma ruptura da evidncia do UM das palavras e de seu sentido no dizer. Escolher em um ponto determinado da cadeia uma unidade X, em relao s outras unidades do paradigma examinvel nesse ponto da cadeia, no suficiente neste caso. necessrio, alm disso, fixar o sentido que essa unidade recebe, em relao aos outros sentidos (polissemia) ou s outras palavras (homonmia, paronmia...) suscetveis de entrar neste segmento X do dizer. Ao assumir o esforo de especificar desta maneira o sentido de um elemento X, o enunciador d testemunho da potencialidade de um sentido outro que ele encontra, no na lngua, mas nas palavras aqui e agora, em contexto, e do qual deve proteger ativamente seu dizer. (ibid., p. 31)

Assim, a etimologia, entendida como esse labor com/sobre a lngua (o esforo de que fala Authier-Revuz), destinado a traar diversas relaes de parentesco semntico entre palavras ou expresses, , sem dvida, um patrimnio coletivo. Como a modalizao autonmica concentra-se, sobretudo, no mbito da palavra, oral ou escrita, pode-se dizer que, talvez, esse mesmo esforo no se d, por exemplo, sobre a sintaxe ou

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a morfologia de uma lngua, com as quais aquele labor tanto mais raro, uma vez que depende de certa formalizao (um discurso tcnico), quanto mais restrito, pois que mais difcil tematizar conscientemente a ordem das palavras e/ou sua prpria constituio interna. muito comum encontrar textos em sentido lato (escrito ou falado) , cuja introduo se destine, em algum momento, a comentar a origem da palavra-chave do tema a ser tratado. Ao comentar a busca pelas palavras, Authier-Revuz (ibid., p. 88-9) afirma:[...] h que se observar que a extrema freqncia dessas buscas de palavra na escrita, ou nos textos orais preparados, onde a representao da busca deriva de algo deliberado e no de uma restrio funcional. Em vez de reduzir essas formas ao status de escria do oral, de barulho da maquinaria da linguagem ao se produzir como tal como diz Barthes , pode-se notar que a representao de um tempo necessrio para se encontrar uma determinada palavra um dos meios de marcar a distncia que separa o enunciador do simples gesto de dizer tal palavra [...].

E acrescenta, sobre possveis efeitos retricos produzidos nos textos:[...] evidente que o texto oral, em que no se pode suprimir as reformulaes, deixa, mecanicamente, no fio do discurso, os traos do processo de produo. No entanto, h que se destacar a forte presena na escrita dessas formas, nas quais a ausncia de restries funcionais lhes confere o status de representao deliberada do encaminhamento, por etapas, da enunciao. A presena desses traos na escrita relativa a uma retrica da rasura mostrada, cujo jogo enunciativo, maneira do oral, no negado. (ibid., p. 97)

Deixados de lado os efeitos enunciativos e pensando sobre os resultados produzidos, esse labor comum com/sobre a lngua (re)nomeado no discurso da Lingstica moderna como etimologia popular, uma vez que, por se tratar de uma operao no formalizada, ou seja, que no segue uma determinada ordem discursiva, carece de cientificidade, no constituindo, pois, uma metalinguagem. Portanto, ainda hoje, dissecar o valor de verdade de um labor com/sobre a lngua fundamental na prpria diferenciao de um saber dito epilingstico (popular) e outro metalingstico (cientfico). Embora haja posicionamentos muito matizados sobre a relao entre esses dois mbitos, o epilingstico e o metalingstico3, o que se encontra com muita freqncia a tentativa,Assim como a definio cuidadosa de Auroux (1992b, p. 16, nota 4): [...] Culioli utiliza o termo para designar o saber insconsciente que todo locutor possui de sua lngua e da natureza da linguagem (a3

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pelo discurso cientfico, de querer acabar com o popular ou, no mnimo, desautorizar qualquer resultado por ele produzido. Slogans do tipo cincia contra fantasia ou contra os abusos etc. so muito comuns. Longe de querer propor uma posio definitiva sobre essa relao, este trabalho deseja entender esse labor com/sobre a lngua como um fenmeno mais abrangente e generalizado, na medida em que, em linhas gerais, est presente em vrios perodos diferentes de diversas culturas. Todavia, tem-se tentado, de alguma maneira, expurg-lo, no Ocidente, como prtica comum atestada, em textos, desde Plato. O tom empregado pelos defensores da etimologia cientfica lembra relatos de epidemiologistas contra avanos indesejveis de perniciosos vrus e/ou de mdicos opondose ao obscurantismo do curandeiro. No difcil encontrar termos como perigo, armadilhas, para os quais deve haver uma espcie de polcia a fim de que se muna os leitores desavisados contra os falsificadores de origem das palavras.4 Guiraud (1979, p.15-16), lingista especialista em Etimologia, no titubeia ao afirmar que: Sem dvida, os

antigos at o incio do sculo XIX no conceberam a idia de relao seno nos termos vagos de uma analogia intuitiva, na ausncia total de critrios racionais e objetivos

linguagem uma atividade que supe ela prpria uma perptua atividade epilingstica (definida como atividade metalingstica no consciente)). Assumimos que inconsciente significa no-representado: em outras palavras, se esse saber insconciente como saber (no sabemos o que sabemos) porque no dispomos de meio (metalinguagem ou sistema de notao) para falar da linguagem. Ainda que no-representado como tal, esse saber pode (e deve) se manipular sob forma de relaes conscientes com seu objeto (no sentido da correo, jogos de linguagem etc.): esta manifestao o que chamamos conscincia epilingstica [...]. Ainda que a existncia de elementos de representao metalingstica coloque um limite entre o epilingstico e o metalingstico, evidente que preciso antes considerar a relao entre os dois como um continuum: o primeiro no pra com o aparecimento do segundo; este ltimo no traz automaticamente um contedo novo sem entrar no metalingstico; enfim, podemos constatar a elaborao de procedimentos codificados (jogos de linguagem etc.) para manifestar a conscincia epilingstica. Contrariamente ao saber das coisas naturais, o prprio do saber lingstico que preciso aceitar que existe um certo sentido da palavra saber no qual possvel dizer que um locutor sabe o que um nome, antes mesmo que existam palavras para diz-lo e gramticos [...]. Isto no implica [...] que o saber do gramtico deva ser a representao desse saber inconsciente. Enfim, todo aparecimento de metalinguagem (existe emprego cotidiano dela) no desemboca necessariamente sobre o tipo de saber lingstico que consideramos como um saber no sentido particular em que consideramos numa tradio gramatical. Poderamos definir aproximadamente esse sentido pelos trs critrios externos seguintes, sendo que o terceiro introduz, sem dvida, uma restrio excessiva: 1. transmisso tradicional especfica; 2. ligao com as artes da linguagem; 3. normas de adequao das asseres controladas pelas discusses, e mesmo protocolos explcitos (consistncia lgica, exemplos cannicos, fatos). 4 Pode-se conferir tais brados numa revista no-acadmica de divulgao que, graas ao sucesso de sua primeira tiragem, recebeu uma outra edio especial. Cf. ETIMOLOGIA (2006; 2007).

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prprios a defini-la.5 Para o autor (ibid., p. 10), a etimologia, que por muito tempo permaneceu uma arte, est em vias de se tornar uma cincia ou, ao menos, de tomar conscincia de que ela dispe, enfim, de meios que lhe permitiriam tornar-se uma cincia6. O autor, ademais, lembra que, mesmo no discurso da lingstica, a etimologia ocupa um lugar duvidoso: Alvo tradicional de sarcasmos da stira, ela no seno um conflito dehipteses, de conjecturas, e, muito freqentemente, de pessoas, [...] ainda hoje ela [a etimologia] permanece a parte mais subjetiva da lingstica [...]7 (ibid., p. 27). Com esse esprito, alerta para o fato de que a etimologia fantasiosa permanece subjacente em muitos procedimentos:Os excessos da stira no devem esconder de ns a generalidade dos procedimentos que, sob formas latentes e mais tmidas, continuam a florescer at nossos dias. A etimologia onomstica que, a partir de uma anedota quase sempre apcrifa, relaciona uma palavra a algum nome de lugar ou de pessoa permanece particularmente vivaz.8 (ibid., p. 18)

Por fim, conclama seus pares a defender esse domnio da indesejada invaso de um exterior fantstico ou no-cientfico: Uma das tarefas da etimologia moderna exorcizar esses fantasmas lexicolgicos, herana da tradio antiga e medieval9 (ibid., p. 19). Assim, no de se estranhar que se pudesse chegar ao ponto de, concretamente, excluir esse tipo de etimologia do mapa, como relata o historiador Hilrio Franco Jnior notexto de apresentao traduo brasileira da obra Legenda urea, composta por um arcebispo de Gnova, Jacopo de Varazze (ca. 1229-1298). Ao comentar as etimologias do genovs, afirma:

Sans doute les anciens jusquau seuil du XIXe sicle nont conu lide de "relation" que dans les termes vagues dune analogie intuitive, en labsence de tous critres rationnels et objectifs propres la dfinir. 6 Ltymologie, qui est longtemps reste un art, est en train de devenir une science; ou plutt de prendre conscience quelle dispose enfin des moyens qui lui permettraient de devenir une science. 7 Cible traditionnelle des sarcasmes de la satire, elle nest pas quun conflit dhypothses, de conjectures, et bien souvent de personnes, [] aujourdhui encore elle [ltymologie] reste la partie la plus subjective de la linguistique []. 8 Les excs de la satire ne doivent pas nous cacher la gnralit de procds qui, sous des formes latentes et plus timides, continuent fleurir jusqu nos jours. Ltymologie onomastique qui, partir dune anecdote presque toujours apocryphe, rattache un mot quelque nom de lieu ou de personne reste particulirement vivace 9 L'une des tches de l'tymologie moderne est d'exorciser ces fantmes lexicologiques, hritage de la tradition antique et mdivale.

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eram, obviamente, produtos da poca e portanto no podem ser julgadas segundo parmetros modernos, como fez o editor do texto aqui traduzido, para quem se tratava de malssimas etimologias, terreno no qual Jacopo falhava muito [...]. Muito menos devemos fazer como um tradutor, que excluiu aquelas etimologias alegando que elas fariam rir, sem proveito para ningum [...]. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 17-18)

Parece que, assim como no se acredita mais na presena dos mortos (Certeau), no mais se concebe que as palavras possam ser relacionadas fora da concepo de radicais morfolgicos e/ou leis fonticas, como se o problema da relao semntica entre palavras estivesse resolvido. Foi com o aporte das gramticas comparadas do sculo XIX que a Etimologia foi alada categoria de cincia e tornada o carro-chefe do nascente domnio da Lingstica. Impressionados por proximidades entre lnguas at ento consideradas dspares como latim, snscrito e alto-alemo, os primeiros comparatistas interessaram-se, sobretudo, por estabelecer graus de parentesco entre essas lnguas e, se possvel, sua histria desde as origens. Porm, possvel que em funo das demandas tradicionais da Etimologia desde Plato, a parte da lngua que se tornou objeto principal dessas gramticas tenha sido a morfologia e o lxico, em vez da sintaxe ou da semntica.10 Assim, a busca por regularidades que explicassem a existncia de formas diferentes, porm, com origens provavelmente semelhantes, levou ao postulado das leis fonticas, as quais tentavam dar conta das mudanas pelas quais o material fnico das palavras passava. Num primeiro momento, compararam-se palavras documentadas. No entanto, assim que se postulou que as mudanas eram reguladas por leis, viu-se aberta a possibilidade de se fazerem reconstrues que revelassem estgios anteriores ao das lnguas historicamente documentadas. Disso nasce o Indo-Europeu, suposta lngua da qual derivam uma gama grande de outras lnguas originalmente espalhadas pelas terras euro-asiticas. A f na etimologia comparada foi tamanha que se chegou a vislumbrar a possibilidade de escrever

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Nesse perodo, ainda no havia nem a rea nem mesmo o termo semntica. Queremos dizer, portanto, que no se tematizaram as questes relativas s mudanas de sentido, problema que fundar, mais tarde, a Semntica, tal qual Bral a definiu. Embora a etimologia dos comparatistas permitisse consideraes a respeito do sentido original das palavras e, mesmo, a respeito de comparaes entre os sentidos diferentes encontrados nas diversas lnguas, no havia, como afirmamos, uma tentativa de explicar por que o sentido das palavras muda, objeto fundador de qualquer semntica.

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contos em indo-europeu, assim que se havia construdo j um certo arquivo lexical dessa suposta lngua. A validade desse modelo parecia inquestionvel. No entanto, quando o comparativismo chegou pesquisa das lnguas romnicas, viu-se que o modelo, embora muito produtivo, no poderia ser justificado em si mesmo. A decalagem percebida entre as formas historicamente documentadas do latim e os supostos desenvolvimentos fonticos nas lnguas romnicas foi decisiva para que o modelo da etimologia comparada fosse posto em xeque. As invectivas contra a infalibilidade da etimologia comparada partiram de trs posies nascentes nas pesquisas lingsticas: i) a Dialetologia e a Geografia Lingstica; ii) o mtodo palavras e coisas e a semntica; iii) o estruturalismo. Tanto a Dialetologia quanto a Geografia Lingstica ajudaram a pr no centro a questo do que uma lngua, graas ao apelo feito em nome do empirismo contra os modelos abstratos e quase mecnicos dos comparatistas. Atestando variedades complexas entre as lnguas nacionais e os dialetos, esses estudos puderam postular, primeiro, que entre lngua nacional e dialeto a diferena de nomenclatura no se explica a no ser por razes scio-culturais e polticas; segundo, que, neste contexto, a Etimologia tornar-se-ia muito mais complexa, uma vez que deveria rastrear, por exemplo, as formas pelas quais as palavras vagam no s historicamente mas tambm espacialmente. Longe de recusar o mtodo comparatista, a Dialetologia e a Geografia Lingstica o refinaram, ao mostrar que as mudanas no so uma explicao per se. Ademais, os estudos desse jaez trouxeram discusso a participao do falante nas mudanas lingsticas, aspecto negligenciado pelos comparatistas, uma vez que a lngua fora concebida como um organismo. Segundo Bassetto (2005, p. 72):Os estudos dos dados do Atlas, feitos por Guilliron, seus discpulos e colegas, mostraram muitos problemas antes ignorados ou apenas mencionados pela escola neogramtica, ento dominante, com [sic] os da homonmia e da etimologia popular. Como exemplo de homonmia resultante da homofonia, Guilliron encontrou na Gasconha a palavra az, correspondente do fr. faisan (faiso) e bigery, fr. vicaire (vigrio) como substitutos do que deveria ser a forma dialetal proveniente do lat. gallum (galo). No gasco, a geminada /ll/, em posio final por apcope, passa normalmente a /-t/, resultando a forma gat, homfona e homnima de gat, de cattum (gato). No ambiente de caractersticas rurais dos pequenos povoados, tal convergncia de formas dos nomes dos animais domsticos e comuns deveria levar ao desaparecimento de uma delas. A criatividade popular elevou o galo a faiso, dada a relativa semelhana; por outra

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via, o comparou metaforicamente a um padre vigrio, que deve zelar pelas mulheres pias e devotas do lugar, infere Wartburg, acordando-as com seu canto para a missa diria.

Mutatis mutandis, so problemas semelhantes aos colocados pela Dialetologia e pela Geografia Lingstica que motivaram o grupo que ficou conhecido como Wrter und Sachen (Palavras e Coisas). Se as leis fonticas no so infalveis enquanto explicao de uma srie de palavras como o mostravam suas variaes dialetais e espaciais, poder-se-ia perguntar, ento, quais pressupostos e motivaes subjaziam a essas diferenas. Do ponto de vista dos pressupostos, a inquirio das Palavras e Coisas advogava pela independncia dessas duas instncias, a da realidade e a da lngua, uma vez que a coisa preexistia palavra. Por isso, nesse mtodo, o estudo das relaes culturais era fundamental, pois, se se considerasse, por exemplo, a histria dos intercmbios tcnicos, seria possvel investigar tambm como as suas denominaes intercambiam-se. Disso, nasce o estudo dos emprstimos lingsticos. Conforme Guiraud (1979, p. 62):Do mtodo da palavra e da coisa surge o estudo dos emprstimos. Nesse tipo de palavra [...] a palavra chega-nos, em geral, com a coisa. necessrio, ento, refazer, de um lado, a histria das coisas (tcnicas, modas, instituies, etc.), de outro, a das relaes polticas e culturais ao mesmo tempo que a das vias de passagem: feiras, mercados, peregrinaes, rotas, etc.11.

Citemos, guisa de exemplo, um dos resultados mais clssicos da pesquisa Palavras e Coisas:Sob esse prisma, foram estudados os termos romnicos derivados do lat. ficatum: port. fgado, cast. hgado, cat. fedge, prov. fedge, fr. ant. firie, fr. mod. foie, friul. fiyat, eng. fio, it. fegato, vegl. fekuat, rom. ficat, alm de muitas variantes dialetais. Trata-se, portanto, de um termo panromnico. Entretanto, o termo latino correspondente iecur; de incio, no se sabia como havia surgido o vocbulo romnico por no se conhecer a coisa designada por ficatum. A pesquisa mostrou que a coisa etimolgica estava no costume dos gregos de engordar patos e porcos com figos; dessa prtica resultava que o fgado desses animais se tornava maior e melhor para o consumo, sendo ento denominado pelos gregos, isto , fgado engordado com figo (gr. , lat. ficum, port. figo). Os romanos importaram a mercadoria e o nome, traduzindo-o por iecur ficatum; por braquissemia, reduziu-se a expresso ao segundo elemento apenas. Assim, ficatum substituiu totalmente a denominao antiga iecur e tornou-se timo dos termos romnicos (BASSETO, op. cit., p. 75).11

De la mthode du mot et la chose ressortit ltude des emprunts. Dans ce type de mot [] le mot nous vient en gnral avec la chose. Il faut donc refaire, dune part, lhistoire des choses (techniques, modes, instituitions, etc.), dautre part celle des relations politiques et culturelles en mme temps que des voies de passage: foires, marchs, plerinages, alliances, etc.

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Estava aberto, portanto, o caminho para que se pudesse sair de consideraes quase que estritamente morfolgicas em direo aos problemas relacionados significao das palavras. nesse contexto que surge a cincia das significaes, cujo nome Semntica foi empregado, pela primeira vez, por Michel Bral num artigo de 1883 (cf. BRAL, 1992, p. 220). Ele defendia a Semntica como uma cincia histrica, porm, no necessariamente comparativa. Contrrio aos exageros das leis fonticas assim como o emprstimo vocabular s cincias naturais, Bral interessa-se em recolocar a interveno humana na mudana lingstica, deixando de conceber a lngua como um autmato que se desenvolve laise. Fenmenos como a homonmia, a sinonmia etc. e o carter eminentemente polissmico das lnguas naturais questionavam certos desenvolvimentos desejveis no interior de um quadro comparatista. Finalmente, no Curso de Lingstica Geral de Saussure, a Etimologia, por ser quase que automaticamente associada aos trabalhos de uma Lingstica Histrica, foi posta em segundo plano como objeto da lingstica estruturalista, uma vez que se encontrava no mbito da diacronia. Para o Saussure do Curso, alis, a Gramtica Comparada, apesar de seus mritos, no constitua uma cincia:Tal escola [...], que teve o mrito incontestvel de abrir um campo novo e fecundo, no chegou a constituir a verdadeira cincia da Lingstica. Jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo. Ora, sem essa operao elementar, uma cincia incapaz de estabelecer um mtodo para si prpria. O primeiro erro, que contm em germe todos os outros, que nas investigaes, limitadas alis s lnguas indo-europias, a Gramtica comparada jamais se perguntou a que levavam as comparaes que fazia, que significavam as analogias que descobria. (SAUSSURE, 2006, p. 10)

Era a sincronia, baseada na idia de que a lngua se constitui por ser um sistema de signos, que ganhara maior ateno, uma vez que, como diz Saussure, na famosa metfora do xadrez:[...] nesse jogo, relativamente fcil distinguir o externo do interno; o fato de ele ter passado da Prsia para a Europa de ordem externa; interno, ao contrrio, tudo quanto concerne ao sistema e s regras. Se eu substituir as peas de madeira por peas de marfim, a troca ser indiferente para o sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o nmero de peas, essa mudana atingir profundamente a gramtica do jogo. No menos verdade que certa ateno se faz necessria para estabelecer distines dessa espcie. Assim, em cada caso, formular-se- a questo da natureza do fenmeno, e para resolv-la, observar-se- esta regra: interno tudo quanto provoca mudana no sistema em qualquer grau. (ibid., p. 32)

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Em vrias passagens do Curso, a Etimologia, ento, nada mais serve seno como um saber acessrio, como, s vezes, se concebe a Estatstica. Para Benveniste, as insuficincias da Etimologia no se devem a ela prpria, mas s dificuldades decorrentes de qualquer reconstruo que lide com a Semntica:As noes semnticas apresentam-se ainda sob uma forma to vaga que para tratar de um s de seus aspectos, seria necessrio comear colocando um corpo de definies rigorosas. Mas essas definies demandariam, por sua vez, uma discusso que versasse sobre os princpios prprios da significao. uma tarefa longa e rdua, da qual os trabalhos consagrados at aqui semntica no do, a no ser, uma idia frgil [...]. Em geral, os critrios de uma reconstruo formal podem ser estritos, porque eles decorrem de regras precisas, das quais no se pode escapar a no ser que se acredite ser possvel substitu-las por outras mais precisas. Todo o aparato da fontica e da morfologia intervm para sustentar ou refutar essas tentativas. Mas, em matria de sentido, no h outro guia que no uma certa verossimilhana, fundada sobre o bom senso, sobre a apreciao pessoal do lingista, sobre paralelos que ele possa citar. O problema sempre determinar se e como, em todos os nveis de anlise, no interior de uma mesma lngua ou em diferentes etapas de uma reconstruo comparativa, dois morfemas formalmente idnticos ou comparveis identificam-se pelos seus sentidos. [...] A etimologia poderia faltar-nos; mesmo dada, ela, sozinha, no seria suficiente para garantir a independncia atual de dois morfemas, os quais poderiam, em virtude de sua identidade formal, ter se associado, de algum modo, pelo seu sentido e criar uma unidade semntica nova. (BENVENISTE, 1966, p. 289)12

Ainda hoje a Etimologia vista de forma divergente no interior do discurso lingstico. Em perspectivas sincrnicas, seu valor considerado (quase) nulo. Porm, com a nova fora que ganham os estudos diacrnicos, especialmente atravs da Lingstica Histrica, a discusso da Etimologia no pode ser deixada de lado. Desde Guilliron, est enunciada a mxima da Etimologia hodierna: fazer a histria total de cada palavra, como se tratasse de uma lexibiografia. O nico matiz acrescentado a isso : desde que seja deLes notions smantiques se prsentent encore sous une forme si vague que pour en traiter un aspect, il faudrait commencer par poser un corps de dfinitions rigoureuses. Mais ces dfinitions demanderaient leur tour une discussion portant sur les principes mmes de la signification. Cest une tche longue et ardue, dont les travaux consacrs jusquici la smantique ne donnent quune faible ide. [] En gnral, les critres dune reconstruction formelle peuvent tre stricts, parce quils dcoulent de rgles prcises, dont on ne peut scarter que si lon se croit en mesure dy substituer des rgles plus exactes. Tout lappareil de la phontique et de la morphologie intervient pour soutenir ou rfuter ces tentatives. Mais, en matire de sens, on na pour guide quune certaine vraisemblance, fonde sur le "bon sens", sur lapprciation personnelle du linguiste, sur les parallles quil peut citer. Le problme est toujours, tous les niveaux de lanalyse, lintrieur dune mme langue ou aux diffrentes tapes dune reconstruction comparative, de dterminer si e [sic] comment deux morphmes formellement identiques ou comparables peuvent tre identifis par leur sens. [] Ltymologie pourrait nous manquer; mme donn, elle ne suffirait pas seule garantir lindpendance actuelle des deux morphmes, qui auraient pu, en vertu de leur identit formelle, sassocier par leur sens en quelque manire et crer une unit smantique nouvelle.12

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acordo com o sistema da lngua. Ou seja, cada palavra traa seu caminho, mas todas dentro de certos limites, que so os da lngua. Quanto etimologia popular, no curioso notar que ela, apesar de ser vista como um dos princpios explicativos de algumas mudanas lexicais, tratada de forma menoscabante no Curso; a comparao que atribuda a Saussure entre a analogia e a etimologia popular bastante sintomtica:Acontece-nos por vezes estropiar palavras cuja forma e cujo sentido nos so pouco familiares, e s vezes o uso consagra tais deformaes. [...] Essas inovaes, por extravagantes que sejam, no se fazem completamente ao acaso; so tentativas de explicar aproximadamente uma palavra embaraante relacionando-a com algo conhecido. Deu-se a esse fenmeno o nome de etimologia popular. primeira vista, ela no se distingue da analogia. [...] a nica diferena seria ento que as construes da analogia so racionais, ao passo que a etimologia popular procede um pouco ao acaso e no leva seno a despropsitos. (SAUSSURE, 2006, p. 202)

Por qu, no se sabe e nem dito por Saussure. O problema aqui com a etimologia popular parece no ser de ordem estritamente lingstica como se poderia imaginar. Parece estar implcito nas palavras de Saussure certo pavor pela assistematicidade. Assim, o problema da etimologia popular no que, como a analogia, um princpio motivador de mudanas lexicais, mas sim que esse princpio soa ao lingista suo como indomvel, imprevisvel, logo, irracional e fora da sistematicidade desejada. Talvez seja por isso que, ao contrrio da Etimologia metalingstica, a epilingstica carea tanto de cientificidade como tal e no possa mesmo ser objeto de estudo, uma vez que lhe escapa uma ordem. assim que ela pode ser deixada de lado:A etimologia popular no age, pois, seno em condies particulares, e no atinge mais que palavras raras, tcnicas ou estrangeiras, que as pessoas assimilam imperfeitamente. A analogia, ao contrrio, um fato absolutamente geral, que pertence ao funcionamento normal da lngua. Esses dois fenmenos, to semelhantes por certos lados, se opem na sua essncia; devem ser cuidadosamente distinguidos. (ibid., p. 204, grifo nosso)

Embora haja fendas importantes, possvel ver continuidades entre a etimologia popular de hoje e as relaes semnticas propostas no dilogo Crtilo, de Plato. Porm e isso no banal , grande diferena h, pois l (como em muitos outros momentos da histria ocidental), no se tratava de popular (no sentido de no representado ou no esclarecido), mas sim de uma verdadeira tkhn (), i.e., um

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saber. Curiosamente, o sinal era invertido: essa tkhn era justamente concebida como destinada a poucos, ou seja, aos poucos que fossem sbios. Outra diferena importante diz respeito concepo de tempo, como expresso nas palavras de Certeau, uma vez que ela pode determinar, em certa medida, a entrada ou no da diacronia no labor com/sobre a lngua. Tanto isso verdade que o prprio conceito de etimologia popular embute a noo de diacronia, fato no necessariamente contemplado pela Etimologia antiga. 0.2. COMO SE V A ETIMOLOGIA DE ONTEM Se, como dito, a Etimologia antiga compartilha prima facie algumas caractersticas com o conceito de etimologia popular, sua apreciao, por parte de autores modernos, torna-se ainda mais difcil, uma vez que ela fez parte de uma investigao considerada sria, cujas discusses sobre seus valores em nada eram diferentes, quanto intensidade, de qualquer debate atual correlato:A etimologia, uma vez considerada a quintessncia do conhecimento humano acerca da lngua, tem sido sistematicamente excluda da maioria dos discursos contemporneos da cincia da linguagem. No interior do programa gerativista relativo teoria e pesquisa lingsticas, no h lugar para especulaes etimolgicas. Fora da gramtica gerativa, a anlise etimolgica contempornea promovida como cientfica e mais verdadeira que tentativas anteriores de dar conta das origens das palavras e da lngua. As prticas e as pressuposies da gramtica e da etimologia da Antigidade clssica e dos albores da Idade Mdia pe-nos em contato com um problema interpretativo na historiografia da lingstica.13 (AMSLER, 1989, p. 8)

Se se imputa, sem mora, o epteto de erro para esse tipo de investigao, no difcil enunciar que:[...] Com efeito, foi a partir do momento em que se estabeleceu, com um mnimo de objetividade e de exatido, a histria e o desenvolvimento das diferentes lnguas que se pde reconhecer a origem das palavras e sua filiao. Um milho de anedotas e de fbulas separam as especulaes de Plato dos trabalhos de Grimm e de Diez. Os princpios, no entanto, de nosso estudo foram postos pelos primeiros gramticos gregos em termos que no se alteraram e que permanecem vlidos; so os mtodos que os antigos no conceberam nem os critrios sem os quais a etimologia permanece uma obra de pura imaginao. Mas esses13

Etymology, once considered the quintessence of human knowledge about language, has been systematically excluded from most contemporary discourses of language science. Within the generative program for linguistic theory and research, etymological speculations do not have a place. Outside generative grammar, contemporary etymological analysis is promoted as scientific and truer than earlier attempts to account for the origins of words and language. The practices and presuppositions of classical and early medieval grammar and etymology present us with an interpretative problem in the historiography of linguistics.

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balbucios e errncias de nossos predecessores conservam todo o seu valor instrutivo. Os erros, progressivamente eliminados, as armadilhas, uma a uma transpostas, e essa longa rota, lentamente desbravada e assinalada, mostra-nos o caminho uma via aberta a duras penas que nos resta percorrer; porque por demais evidente que os mitos lexicais denunciados no primeiro captulo ainda entopem os mais recentes de nossos dicionrios.14 (GUIRAUD, 1979, p. 11; grifos nossos)

Ir alm desse erro foi fundamental para os primeiros lingistas do sculo XIX (sculo da cincia) para construo de um acontecimento: a constituio da Lingstica como uma cincia. Segundo Ducrot (2001, p. 20):[...] como a crena na conservao da matria faz passar da Alquimia Qumica, o princpio da regularidade da modificao lingstica assinala o nascimento da Lingstica a partir daquilo que se chamava ento ETIMOLOGIA. Esta, mesmo quando se apresentava como histrica (o que nem sempre era o caso), e quando explicava uma palavra ao encontrar, num estado anterior, a palavra de onde ela provm, estudava cada palavra separadamente, convertendo-a em problema isolado. Este procedimento tornava extremamente difcil a obteno de critrios, pois com freqncia diferentes etimologias parecem possveis para um mesmo termo. E, assim sendo, como escolher? A Lingstica Histrica, em contrapartida, explica uma palavra b por uma palavra a precedente somente se a passagem de a para b for o caso particular de uma regra geral que seja vlida para muitas outras palavras, e leva a compreender tambm que a' se haja tornado b', a'' tornado b'', etc.

A partir desse momento, toda abordagem que no seguia essa ordem discursiva ganhou a alcunha de fantstica15, obra de pura imaginao (como se a imaginao fosse14

[] Cest en effet partir du moment o on a tabli avec un minimum dobjectivit et de certitude lhistoire et le dveloppement des diffrentes langues quon a pu reconnatre lorigine des mots et leur filiation. Un millnaire danecdotes et de fables spare les spculations de Platon des travaux de Grimm et de Diez. Les principes, pourtant, de notre tude sont poss par les premiers grammairiens grecs dans des termes qui nont pas chang et qui restent toujours valables; ce sont les mthodes, que les anciens nont pas conues, ni les critres faute desquels ltymologie reste un uvre de pure imagination. Mais ces balbutiements et errements de nos prdcesseurs gardent toute leur valeur enseignante. Les erreurs, progressivement limines, les piges, un un luds, et cette longue route, lentement dfriche et jalonne, nous montrent le chemin quil nous reste parcourir sur une voie peine ouverte; car il est trop vident que les mythes lexicaux dnoncs dans ce premier chapitre encombrent encore nos dictionnaires les plus rcents. 15 Cf. o comentrio crtico de Auroux et al. (1985, p. 13-14): [...] Se se toma fantstico em seu sentido banal de produto da imaginao (processo pelo qual uma conscincia em situao no mundo coloca aquilo que ela visa como irreal, segundo a anlise de Sartre, aqui suficiente), claro que o terico fantstico no coloca sua teoria como uma visada do irreal. primeira vista, o fantstico daquilo que assinalado como tal no um produto de si mesmo, como o imaginrio o da conscincia imaginante. [...] O assinalamento de fantstico depende de uma situao de enunciao. o discurso cientfico que produz o fantstico. Nenhum discurso de visada cognitiva em si previamente fantstico, mesmo se se reconhecem nele objetos, como formas de construes, particulares: foi necessrio, em primeiro lugar, que esses objetos e formas fossem particularizadas. Se a cincia que assinala o fantstico como tal, que o fantstico foi concebido como nocientfico e falso. Mais nem tudo que falso no-cientfico: faz parte da prtica cientfica colocar hipteses dentre as quais algumas se concebem como falsas, sem que, por essa razo, sejam consideradas como no-

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pura, sem referncia ao mundo circundante e como se ela no tivesse limites histricos, culturais e lingsticos). Portanto, ao se escrever uma Histria da Lingstica, comum procurar nas obras do passado aquilo que pode ter algo que ver com o que se produz hodiernamente, de modo a construir uma idia de que, apesar dos percalos, das alquimias da vida, h um progresso da cincia, triunfante, cujo cume, curiosamente, o estado atual das pesquisas. Assim, muitas das selees feitas para um trabalho de Historiografia Lingstica podem ser motivadas por simpatias queles antigos que, num determinado ponto, teriam sua obra assemelhada s demandas de hoje, tornando essa historiografia uma mera busca pelos predecessores de um saber atual, a fim de, dessa maneira, advogar pela antigidade de certas reas atuais de investigao. Mas o recalcado da histria insiste em (re)aparecer, no como dejeto deixado na lata do lixo da Histria (da cincia), mas sim como saber vivo, scientia, porque se relaciona com scire, alm de poder estar em jogo tambm um deleite, sapor (cf. OHARA, 1996, p. 3). essa alquimia, essa fantasia, mstica da linguagem que, secundariamente traduo per se, objeto deste trabalho. Ou melhor, justamente a articulao de aspectos considerados msticos com a constituio de uma tkhn que chama ateno para um outro mundo, no qual a mstica uma scientia e a cincia explica (em parte) e refora o mysticus. Uma vontade de transcender o bvio, vezo de toda etimologia criativa:[...] Segundo Malkiel: ... a etimologia criativa pressupe, da parte de seu praticante, um desejo de transcender o domnio do bvio e do muito provvel e de operar no arriscado reino de conjecturas crescentes.... Mais do que marcar a dicotomia cincia/no-cincia, Malkiel substitui-a por um continuum de probabilidades que partem do bvio ao conjectural, as quais dependem, em parte, de se ter maiores ou menores somas de evidncia. Malkiel no corrobora a cientficas e fantsticas. Nem tudo que no-cientfico fantstico e no tem sido sempre assim ([...] Si lon prend fantastique en son sens banal de produit de limagination (processus par lequel une conscience en situation dans le monde pose ce quelle vise comme irrel, selon lanalyse de Sartre, ici suffisante), il est clair que le thoricien fantastique ne pose pas sa thorie comme une vise de lirrel. A premire vue, le fantastique de ce qui est assign comme tel nest pas un produit de lui-mme, comme limaginaire lest de la conscience imageante. [] Lassignation du fantastique dpend dune situation dnonciation. Cest le discours scientifique qui produit le fantastique. Aucun discours vise cognitive nest dabord en soi du fantastique, mme si lon peut lui reconnatre des objets, comme des formes de constructions, particuliers: il a dabord fallu que ces objets et ces formes fussent particulariss. Si cest la science qui assigne le fantastique comme tel, cest que le fantastique est compris comme du non-scientifique, et du faux. Mais tout le faux nest pas du non-scientifique: il entre dans la pratique normale de la science de poser des hypothses dont certaines sont reconnues fausses, sans pour cela tre considres comme non scientifiques et fantastique. Tout le non-scientifique nest pas du fantastique et na pas toujours t comme tel).

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posio de que toda hiptese boa, mas reconhece que os reais desafios etimolgicos so os mesmos perseguidos na etimologia criativa.16 (AMSLER, 1989, p. 9).

Portanto, recorrendo obra de Isidoro assim como a textos correlatos da Antigidade e da Idade Mdia, argumentar-se- que a viso moderna no s se equivoca ao cobrar modernidade da Etimologia, mas tambm no entende seus sentidos variantes, em que se engendra um complexo de reflexes relativas linguagem que apelam ora ao sincrnico, ora ao diacrnico, ora ao uso, ao metafsico e ao mstico:[...] A etimologia tem figurado numa srie de explicaes diferentes da cincia lingstica e em vrios tipos de estudo da lngua: a famosa seo etimolgica no Crtilo de Plato, a enciclopdia etimolgica do conhecimento de Isidoro de Sevilha, a procura de Leibniz em direo ao carter universal da linguagem, e a lingstica histrica assim como a reconstruo das razes indo-europias do sculo XIX. O desenvolvimento da lingstica ocidental pode ser mapeado com grandes detalhes como uma srie de repostas questo de se a lngua tem ou no histria. Mas como parte da produo social do conhecimento, as primevas prticas lingsticas, tais como a etimologia clssica e a de Isidoro, constituem uma formao discursiva, cujas pressuposies, asseres e critrios so discernveis, mas diferentes das de Curtius ou Jerspersen. Atualmente, muitos desses critrios e asseres esto fora do domnio do que muitos lingistas aceitam como cincia legitimada e tm sido remodeladas como linguagem figurativa, folclore, discurso delirante, jogo de palavras. Esse deslizamento de um discurso previamente cientfico, que parte de uma cincia positiva para um jogo figurativo, a motivao para um contra-discurso: a historiografia da lingstica como reconstruo de um domnio cujo momento de cristalizao como cincia passado, mas cuja discursividade e textualidade permanecem. A tarefa da historiografia contar uma outra histria a respeito dessas letras mortas, produzir o passado, trazer vida a rede social dentro da qual esses textos foram concebidos. Tal projeto, inevitavelmente, perturba as margens e fronteiras da cincia na medida em que pe em questo o privilgio absoluto do saber contemporneo.17 (ibid., p. 9-10).

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[] According to Malkiel: creative etymology presupposes, on the part of its practitioner, a desire to transcend the domain of the obvious and highly probable and to operate in the hazardous realm of the increasingly conjectural . Rather than marking the science/nonscience dichotomy, Malkiel substitutes a continuum of probabilities from the obvious to the conjectural, depending in part on whether one has greater or lesser amounts of evidence. Malkiel does not subscribe to the position that one hypothesis is as good as another, but he acknowledges that the real etymological challenges are those pursued in creative etymology. 17 [] Etymology has figured in many different accounts of linguistic science and in various kinds of language study: the famous etymological section in Platos Cratylus, Isidore of Sevilles etymological encyclopedia of knowledge, Leibnizs research into the universal character of language, and nineteenthcentury historical linguistics and the reconstruction of Indo-European roots. The development of Western linguistics can be mapped in great detail as a series of responses to the question of whether or not language has a history. But as part of the social production of knowledge, earlier linguistic practices, such as classical and Isidorian etymology, constitute a discursive formation whose presuppositions, statements, and criteria are discernable but different from Curtius or Jerspersens. Currently, many of these criteria and statements

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Nesta introduo, tentamos mostrar quais os conceitos hodiernos vindos da Histria e da Lingstica que julgamos serem os mais operacionais para tratar da etimologia como um objeto especfico, especialmente, da que se encontra nas Etimologias de Isidoro de Sevilha. Pretendeu-se afirmar a idia de que a etimologia necessariamente contraditria, uma vez que se trata de um labor em que seus sujeitos tencionam estabelecer caminhos para os sentidos pela lngua e com a lngua. No entanto, a prtica etimolgica hodierna, ao menos a que se encontra no discurso lingstico, parece tentar apagar a sua relao contraditria com o diacrnico e o sincrnico, aventando ser possvel apenas acompanhar a histria das palavras sem que essa narrativa tenha conseqncias, ao mesmo tempo, na busca por fixar um sentido atual. partindo do pressuposto de que a contradio constitutiva da etimologia, porque nela se entrecruzam, necessariamente, a histria e a lngua ou seja, relacionam-se passado e presente, produzindo lugares em que o equvoco inevitvel que analisaremos as Etimologias de Isidoro de Sevilha. O que se busca demonstrar que, ao contrrio do discurso etimolgico cientfico atual, a etimologia na Antigidade e no incio da Idade Mdia no exclua o sincrnico de sua reflexo. O discurso etimolgico latino no se preocupava s com a origo (origem), mas tambm com a causa (causa), a ratio (lgica) e o usus (uso) das palavras. Ademais, h outros matizes de emprego do discurso etimolgico que passam, necessariamente, pela apreciao de um certo conceito de lngua, de sentido e de histria. No toa que daremos nfase emergncia do discurso cristo e nova relao que esse estabeleceu com o saber etimolgico e gramatical produzido em ambiente greco-romano. Dentro dessa perspectiva, vimos como fundamental trazer reflexo certas noes de histria presentes nos debates atuais, tanto para melhor dar conta do objeto etimologia como fenmeno inscrito na contradio da histria, prpria da relao passado/presente, quanto para poder falar sobre um discurso etimolgico de outra poca sem o colocar num debate que no era oare outside the domain of what many linguists accept as legitimate science and have been reframed as figurative language, folklore, dream discourse, or language play. This slippage of a previous scientific discourse from positive science to figurative play is the motivation for a counter discourse the historiography of linguistics as the reconstruction of a domain whose moment of crystallization as a science has past but whose discursivity and textuality remain. The historiographic task is to tell another story about these dead letters, to produce the past, to bring to life the social network within which these texts are motivated. Such a project inevitably unsettles the margins and boundaries of science in as much as it calls into question the absolute privilege of contemporary knowledge.

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seu prprio. No temos, por fim, inteno de confrontar os conceitos modernos historiogrficos e lingsticos com aquilo que, nas Etimologias, est dito a respeito da histria e da lngua. A conceituao moderna marca a posio terica de que partimos para, justamente, melhor apreender, descrever e analisar como, nas Etimologias, se relacionam os problemas relativos lngua, histria, construo dos sentidos etc. Esta dissertao divide-se, basicamente, em duas partes: um estudo introdutrio, de carter geral, ao problema da grammatica e da etimologia nas Etimologias de Isidoro de Sevilha; e a traduo do livro I daquela mesma obra, intituado Da gramtica, cujo lugar central em nosso interesse de entender as relaes que se estabelecem entre o problema da linguagem, da grammatica e da etimologia e as questes teolgicas e eclesiais prprias ao discurso cristo. Com essa diviso, entendeu-se que questes de mbito mais geral que problematizam as relaes saber-poder ou lngua e sociedade deveriam aparecer no estudo introdutrio, enquanto os temas mais propriamente tcnicos concernentes ao discurso gramatical antigo e similar fossem apresentados, na segunda parte, juntamente com as notas traduo. Portanto, nos captulos deste estudo que se seguem, abordaremos, de forma abrangente, em primeiro lugar, as correntes analticas de fenmenos relativos linguagem que julgamos ser os mais caros s discusses ulteriores; assim, trataremos do problema da linguagem para a retrica, para a filosifia, etc., bem como o percurso prprio da disciplina que emergiu defendendo que seu objeto a lngua, a saber: a grammatica. Em seguida, passaremos ao domnio da etimologia em suas discusses primevas e descreveremos a fortuna desse labor com a lngua nas diversas disciplinas do saber antigo, alm de tentar traar as linhas gerais dessa inquirio em ambiente greco-latino. No terceiro captulo, abriremos espao para a emergncia do cristianismo como semntica de mundo e para as relaes de fora que estabeleceu com o saber secular greco-romano, donde cunhou um lugar particular nos debates acerca da linguagem. Por fim, aportamos na Hispnia de meados dos sculos VI e VI, onde encontramos a figura do polmata Isidoro de Sevilha, cuja obra Etimologias constitui o objeto central desta dissertao em nossa busca por apreciar qual a particularidade desse discurso e o que h nele de regular. Longe de querer dar uma resposta definitiva, esperamos, no entanto, ter contribudo para enunci-las de forma mais matizada.

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1. ALGUNS BREVES ASPECTOS DA REFLEXO LINGUAGEIRA NA ANTIGIDADEMister difcil o de traar, mesmo que seja grosso modo, os percursos das problemticas relativas linguagem no universo da tradio greco-romana. A tentativa aqui engendrada prope-se matizar melhor esse percurso, de modo a fazer perceber que os problemas linguageiros no eram prprios a um s saber nem abordados sob um mesmo ponto de vista. O mais importante para o fito deste trabalho demonstrar quo presente esteve a questo dos nomes a qual, embora ainda inominada como tal, pode ser vista como etimolgica desde os mais priscos registros gregos, de quem partiremos, uma vez que nosso interesse situa-se nas relaes estabelecidas com os escritores de lngua latina. Dessarte, ao avaliar essa questo, tencionamos evidenciar tanto a presena histrica da Etimologia quanto as suas relaes com fenmenos hodiernos de criatividade lingstica. Esses fenmenos no pressupem, por exemplo, a existncia de escrita. Poemas como os atribudos a Homero e a Hesodo foram possivelmente compostos em perodos anteriores constituio do alfabeto grego a partir do sistema fencio de escrita. Por outro lado, isso no leva a dizer que a existncia ou no de escrita um dado acessrio. Evidentemente, existem certas direes que s se atingem tendo por base a escrita. Mas no sem demora que o papel da escrita tornar-se- predominante no pensamento grecoromano sobre a linguagem a ponto de usurpar o oral. A prpria histria de como se adaptou um sistema de escrita consonantal s exigncias de se anotar segmentos menores que a slaba, isto , passar da escrita fencia ao alfabeto grego, per se um acontecimento de grande interesse. Porm, como lamentam vrios autores (cf. AUROUX, 1992b, p. 22-3; DESBORDES, 1995, p. 9-10), inexistem registros desse processo que tenham sobrevivido at nossos dias. J em Homero, considerado o primeiro monumento suprstite da tradio posteriormente chamada de greco-romana, pululam diversos destaques lngua, seja como uma matria-prima da poesia por meio de sua composio de sons significantes, seja como justamente o instrumento capaz de nomear os seres. Ulteriormente, sobre muitos dos

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destaques homricos que, a princpio, desenvolver-se-o as nascituras disciplinas do mundo antigo: msica, mtrica, potica, retrica, filosofia. Em linhas bem gerais, pode-se dizer que, num primeiro momento, sobretudo o interesse pelo fnico que chama ateno; em seguida, preocupa-se mais com o carter de comover e, logo, de convencer, da lngua; por ltimo, atentar-se- para a questo da lngua como veculo do pensamento, ou seja, chegar-se- ao problema da lngua e da realidade. disso que trataremos em seguida. 1.1. A FAINA COM PALAVRAS: POTICA Por uma srie de vicissitudes de ordem histricas restam-nos como registros mais antigos da tradio grega os textos de Homero. Por isso, somos levados a afirmar que, possivelmente, tenha sido o labor potico que, na Grcia, funda o trabalho com a lngua e que, ulteriormente, sobre ele muitas das disciplinas vindouras colocaram seus alicerces. Desse labor potico e sua relao com a linguagem, dois aspectos abordaremos aqui: sua metalinguagem no-tcnica ou epilinguagem e a referncia pratica do poeta. epilinguagem homrica, por exemplo, subjazem alguns destaques importantes relativos ao estatuto da linguagem. Nela, vrios so os termos empregados para se referir unidade lingstica da palavra:O grego dispe originalmente de uma pluralidade de termos para falar da palavra. Entre os primeiros autores, encontramos principalmente phn, que voz, fenmeno acstico, sem considerao do sentido; pos e mthos, distintos por uma nuana, ponto sempre ntido, do tipo que pos seria a palavra na condio de coisas ditas e mthos a palavra enquanto expresso de uma opinio, de um pensamento. Mas aquilo que os primeiros autores dizem, sobretudo, da palavra que ela um meio de agir sobre o mundo e sobre os seres, o que confirma a atestao, na poca arcaica, de todo um conjunto de prticas religiosas, mgicas, at mesmo, medicinais18. (DESBORDES, 1989, p. 153-4).

Ademais, segundo Neves (2005, p. 20), nos poemas homricos j existe certa ciso entre o falar e o agir, a qual ser fundamental na constituio de outras disciplinasLe grec dispose originairement dune pluralit de termes pour parler de la parole. Chez les premiers auteurs, on trouve principalement phn, qui est la voix, phnomne acoustique, sans considration du sens; et pos et mthos, que distingue une nuance, point toujours nette, telle que pos serait la parole en tant que choses dites et mthos la parole en tant quexpression dun avis, dune pense. Mais ce que les premiers auteurs disent surtout de la parole, cest quelle est un moyen dagir sur le monde et les tres, ce que confirme lattestation lpoque archaque de tout un ensemble de pratiques religieuses, magiques, voire mdicales.18

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como a retrica e a filosofia, por exemplo. Com efeito, inerente idia de que palavra e ao se associam est a de que pode haver uma decalagem entre esses dois planos. Da deriva o problema do engano, entendido como a falta de excelncia na relao entre o agir e o falar:O engano aparece como um dos elementos essenciais da atividade da palavra, no, porm, explicitamente, o que j representaria uma separao de planos, o do engano e do verdadeiro, e isso no feito. O ponto de referncia apenas o da eficcia. O ideal humano a excelncia no fazer e no dizer, mas o que ocorre que essa excelncia repartida: h exemplos no falar como Ulisses e os excelentes no agir como jax e Diomedes. [...] Assim, no poder de Zeus, pai dos deuses e dos homens, manifesta-se a complementaridade da ao e da palavra; representando o ideal humano, Zeus fala forte e age eficientemente. Sua palavra ao. Os homens o ouvem, e nenhum deus tem a veleidade de enfrentlo. (ibid., p. 21; cf. tambm DESBORDES, op. cit., p. 154)

Em Hesodo, o engano j sugerido como um plano possvel; porm em Pndaro que sua autonomia comea a constituir-se:Pndaro, poeta lrico, elabora o elogio dos homens que vencem. Ele , pois, um poeta que relaciona o dizer e o agir bem; no h simplesmente associao como havia em Homero entre o dizer e o fazer, mas, existindo um sentido desse dizer em relao ao fazer, dir-se-ia que comea uma dissociao, que encaminha para a autonomia do dizer. O logos o que dito dos heris; , portanto, o sentido deles. A excelncia sem o logos nada . [...] Os dispensadores da vida eterna so os poetas, pois, sem a palavra, a ao desaparece no esquecimento. A justa medida do dizer do poeta, porm, dispensada pela divindade. Em Pndaro, portanto, j no se mantm aquela associao entre a bela palavra e a faanha excelente, que existia em Homero. Estabelece-se um desajuste entre a palavra e a ao; aquela pode dizer mais que esta. Assim, alm de praticar belas aes, os mortais tm de encontrar o poeta que lhes perpetue a glria. [...] As faanhas nada so se o canto no as conserva; a palavra completa a obra. (NEVES, op. cit., p. 22-23)

Avaliar a importncia atribuda ao fazer potico e ao poeta um exerccio revelador das percepes gregas acerca da linguagem. Da idia de aedo de poeta, uma notvel inflexo surge: enquanto a produo do primeiro primaria pela inspirao, o segundo laboraria sobre a lngua. Assim, se a palavra do aedo mais ou menos entendida como um vaticnio, o enunciado do poeta entendido como fruto de um labor, de modo que se torna passvel de anlise:As premissas de uma anlise da palavra tomada em seu todo aparecem no quadro da reflexo sobre a prtica potica, com a idia de que essa palavra uma construo. Essa idia encontra-se, s vezes, em Homero atravs das metforas da construo e da tecelagem; ela no concerne palavra inspirada (particularmente a do aedo), que se supe ter uma espcie de existncia

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instantnea, mas aparece a propsito de estratagemas e invenes, precisamente quando, no dizendo a verdade, deve-se, sem pressa, fabricar outra coisa. Essa idia de construo, ainda pouco atestada em Homero, toma uma dimenso considervel a partir do sculo VI. Um fator determinante a mudana de status social do poeta, que no mais o aedo homrico de uma corte, mas, propriamente, o poits (de poiein, fazer), um produtor artesanal que trabalha por demanda mediante retribuio. A partir da matria-prima que o assunto, o poeta pe em ao sua habilidade, seu mister, para produzir um canto, comparvel a outros objetos artesanais. [...] A forma rtmica e a msica permitem memorizar e repetir a poesia, a qual pode existir indefinidamente, ao passo que as aes dos homens em si so efmeras. Estabelece-se, assim, uma distncia entre a palavra e aquilo de que ela fala, e, portanto, uma idia de representao [...].19 (DESBORDES, op. cit., p. 155-6).

1.2. PALAVRAS OU MATERIALIDADE SONANTE: MSICA, MTRICA, RTMICA Segundo Desbordes (op. cit., p. 156), todas as cincias da linguagem so, de algum modo, tributrias da msica. No mundo grego, sua importncia foi tamanha quemousik () chegou a fazer referncia ao processo de aprendizado como um todo,

ou seja, aos moldes do que se poderia dizer uma pedagogia. Interessada no material fnico dos poemas, uma vez que esses eram composies orais em sua origem, a msica que, em primeiro lugar, dedicou-se por estudar sua composio, sua materialidade etc. Portanto, nesse sentido deve-se entender a assuno de Desbordes, uma vez que no interior da inquirio musical que se comeou a classificar a qu