Do Puru-zu-tim ao rito fúnebre barroco: A incorporação de ... · vendo nos Registros de Óbitos...
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AROLDO DA SILVA TAVARES
Do Puru-zu-tim ao rito fúnebre barroco: A incorporação de administrados à sociedade colonial.
(Curitiba 1731-1777)
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado de Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do curso de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima.
CURITIBA
2004
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AROLDO DA SILVA TAVARES
Do Puru-zu-tim ao rito fúnebre barroco: A incorporação de administrados à sociedade colonial.
(Curitiba 1731-1777)
Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado de Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do curso de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima.
CURITIBA
2004
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente vamos agradecer a Deus pois sem ele não estaríamos aqui.
A meus pais pois sem eles eu não estaria aqui.
Ao professor Carlos Lima sem o qual esse trabalho não estaria aqui.
E finalmente aos meus amigos e a todos que de alguma forma contribuíram para
minha formação.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................2 2. DISCUTINDO A ADMINISTRAÇÃO EM CURITIBA...................................9 3. SENHORES E SUAS POSSES..........................................................................31 4. RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO, ESCRAVIDÃO E INCORPORAÇÃO
EM CURITIBA NO SÉCULO XVIII..............................................................43
5. CONCLUSÃO....................................................................................................58 REFERÊNCIAS.....................................................................................................63
Introdução:
Para entendermos um pouco mais sobre a questão do trabalho indígena no
Brasil colonial, especificamente em Curitiba - século XVIII-, é necessário
atribuirmos novos significados a ela. Seguindo uma nova tendência da
historiografia, devemos incluir a força de trabalho nativa dentro de uma dinâmica
comercial e social do império ultramarino português1, uma vez que a historiografia
tradicional tem relegado a questão indígena uma importância secundária,
analisando, muitas vezes superficialmente as relações estabelecidas entre dois
povos muito diferentes, mas que estavam imersos em uma mesma dinâmica
colonial.
Entendemos como “dinâmica” o conjunto de relações sociais, econômicas e
religiosas que se estabeleceu entre os europeus e os demais grupos - índios,
negros, mulatos, etc. - na colônia. A respeito dessa relação e seu valor histórico
vemos alguns trabalhos que levantam algumas questões muito interessantes. É o
1 Para mais informações sobre estas novas discussões ver: ALENCASTRO, Luiz F. de. O trato dos viventes. São Paulo: Cia das Letras, 2000. E também a excelente visão de MONTEIRO, John Manuel . Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
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caso do livro de John Monteiro, o qual nos mostra a participação ativa da mão de
obra indígena em quase todos aspectos da formação da sociedade e economia
paulistas.2
Nos últimos anos, muitos autores vêm demonstrando uma
exploração sistemática da mão de obra indígena em lavouras de exportação3 e em
várias outras atividades fundamentais para colônia. Schwartz vai revelar as
relações entre índios e a economia de grande lavoura na Bahia. Mesmo após a
proibição desse tipo de escravidão e também após a introdução do elemento
africano, a utilização do cativo indígena vai ser de fundamental importância para a
formação desse tipo de economia.4. Esse tipo de visão se opõe à de uma
agricultura de subsistência, como pode ser visto em Lucila Herrmann, que
classifica o período anterior a 1775 como “ciclo da economia de subsistência”5.
A participação dos nativos na economia e na sociedade sempre foi
colocada - erroneamente - nos primórdios da colonização ou vista como atividade
periférica de subsistência. E a esse respeito vamos, através de nosso trabalho,
problematizar essa questão em Curitiba. Temos de observar com muito cuidado o
deslocamento temporal da utilização da mão de obra nativa que, em maior ou
menor grau, e guardando as especificidades regionais, vai existir até o século
XVIII e influenciará consideravelmente os rumos da colônia. Tal informação pode
ser encontrada em quase todos os autores dessa nova corrente de análise do
trabalho indígena.
Outro aspecto a ser analisado é a questão da relação deste elemento nativo
com o colonizador português. Existem inúmeras complicações nesse
relacionamento e, segundo Muriel Nazzari,6 o próprio estatuto jurídico a respeito
2 MONTEIRO, John. op. cit., pp. 07 - 10. 3 VENÂNCIO, Renato P. Os últimos carijós: a escravidão indígena em Minas Gerais: 1711 - 1725. Revista brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, v. 17, n.34, 1997.p.1. 4 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p.40. 5 Cf. ALVES Maurício M. A transição da escravidão indígena para a africana em Taubaté/SP p.5. 6 NAZZARI, Muriel . Da escravidão à liberdade: a transição de índio administrado para vassalo independente em São Paulo colonial. In: SILVA, Maria B. N. da. Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2000. Apud: GARCIA, Elisa F. A utilização da mão de obra Indígena no Rio grande de São Pedro: O caso dos índios “Administrados”. (ref)
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do trabalho forçado indígena é bastante ambíguo. Para entender um pouco mais
dessa questão vamos analisar o primeiro livro de óbitos da catedral de Curitiba,
vendo nos Registros de Óbitos e nas informações contidas nesses documentos
alguns aspectos da relação entre índios e brancos em Curitiba.
Para realizar tal trabalho devemos evocar a conjuntura colonial paranaense
durante o século XVIII, que apresenta uma maior interação com o mercado
colonial estabelecido para o abastecimento das Minas. Podemos ter em mente
essa participação em obras clássicas da historiografia paranaense, como
exemplo, a famosa História do Paraná7 : “ Aquelas fazendas de criação de gado
dos campos do Paraná se desenvolveram com a venda de seu gado aos mineiros
a altos preços em ouro.” O tropeirismo e as demais atividades econômicas do
Paraná colonial devem ser melhor compreendidas no intuito de estabelecer uma
base de discussão sobre a escravidão indígena e sua posterior substituição pela
mão de obra africana.
Observando que a economia colonial paranaense, teve sua origem na
capitania de São Paulo, a utilização de mão de obra indígena é de grande
importância no século XVIII. Isso pode ser encontrado em muitos historiadores
tanto os clássicos como em trabalhos recentes: devemos analisar até que ponto e,
principalmente, até quando essa exploração vai existir e como são obtidos cativos
indígenas durante esse período. Lembramos que com a descoberta do ouro a
demanda cada vez maior de cativos para as Minas é uma realidade8. Logo é
necessário analisar o caso de Curitiba e definir quais são os principais motivos da
demanda por cativos.
Ao sabermos os motivos da utilização de escravos indígenas em Curitiba no
século XVIII, vamos apresentar um dos aspectos de relação entre senhores e
servos, procurando entender qual a dinâmica estabelecida no Paraná a respeito
dessa suposta “instituição escravista”, que foi um problema ambíguo e permeado
de obstáculos em toda Colônia. Uma vez que, segundo a legislação9, a escravidão
7 BALHANA, Altiva Pilatti, et al. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. v. 1. 8 ALVES Maurício M.,op. cit. e também : VENÂNCIO, Renato P. op. cit. 9 Ver Índios livres índios escravos, Beatriz Perone-Moises In: CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
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indígena era “proibida”, somente a guerra justa e a administração constituem
algumas formas de continuar utilizando esse tipo de força de trabalho. Veremos
como deve ser relativizada a expressão “tráfico” no tocante a mão-de-obra
indígena, uma vez que, segundo Alencastro, o “tráfico” pressupõe algumas
condições que não são encontradas no caso indígena.10
Ao analisar uma possível, diferenciação entre o tratamento dispensado a
africanos em relação ao dispensado aos índios podemos obter muitas informações
sobre essa relação senhor-escravo. Em seu capítulo sobre compadrio Schwartz
nos fala: “As condições de trabalho e de tratamento dispensado aos índios
administrados diferiam muito pouco, quando diferiam, das condições e do
tratamento aos escravos negros”11.
Pretendemos elaborar uma discussão, até então inexistente, a respeito das
relações entre colonos e administrados em Curitiba durante o século XVIII,
levando em conta os fatores populacionais, de estrutura da posse e do ritual
funerário.
Assim, o presente trabalho vai buscar uma nova visão das relações
escravistas em Curitiba colonial, uma vez que insere nesse contexto alguns
aspectos da relação entre grupos sociais distintos, porém unidos por uma série de
questões. E, ao longo dos anos estudados, poderemos acompanhar algumas
modificações nestes quadros sociais, levantando hipóteses explicativas. É
importante situar esse trabalho dentro de uma nova abordagem dos estudos
indígenas, seguindo uma linha crítica vista em Monteiro, Schwartz, Alencastro e
muitos outros. Uma de nossas preocupações é fornecer uma visão da exploração
do trabalho indígena, bem como sua incorporação na sociedade colonial
paranaense. Forneceremos dados para uma possível comparação e reflexão a
respeito da questão indígena durante o século XVIII.
Será necessária uma breve discussão para definir essa “condição jurídica”
do nativo, tendo em mente a “proibição da escravidão indígena” e os “casos
permitidos” pela Coroa Portuguesa, como a guerra justa e a administração.
10 ALENCASTRO, Luiz F. op. cit. 11SCHWARTZ, Stuart B. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru : Edusc, 2001. p.278.
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Vamos extrair da fonte informações sobre o contingente populacional
visando uma comparação futura com outros contingentes de cativos. A distribuição
da população indígena por sexo e idade, nos plantéis curitibanos, pode nos
apresentar uma série de informações no tocante à definição da sociedade
escravista12. Através do levantamento da procedência étnica vamos saber quais
as “preferências” da sociedade colonial para composição de sua mão de obra.
Em segundo lugar, vamos levantar informações relativas ao padrões da
posse de escravos em Curitiba, visando uma indicação da evolução - temporal -
do tamanho dos plantéis, trabalho realizado por vários autores em outras
localidades13, contudo de difícil manejo devido à falta de documentos bem como à
omissão de alguns registros14. Ainda observando a posse, vamos tentar obter
alguns indícios sobre algumas características dos senhores - títulos, estado civil,
etc.. Poderemos, talvez, observar aspectos da relação escravos/administrados,
em casamentos ou filiação. O Registro de Óbito fornece, em alguns casos, o nome
do administrador, seu título e estado civil. Portanto, será possível traçar uma
indicação do perfil do administrador de índios paranaense. Assim, analisando
esses dados, teremos uma idéia da estrutura de posse de escravos e
administrados em Curitiba e saberemos um pouco mais sobre a administração
indígena.
E, por fim, chegaremos ao rito fúnebre, que está repleto de informações
preciosas a respeito da vida social desses administrados. Uma delas é a relação
com as irmandades de escravos locais, que pode ser identificada nos registros.15
O local de sepultamento, dentro ou fora da matriz, nos mostra uma indicação de
sua importância social. A utilização de uma mortalha específica é de grande
relevância, bem como outros itens do ritual16. Outro aspecto que deve ser
12 MONTEIRO, Jonh. op. cit., pp. 118 - 119. 13 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. MONTEIRO, Jonh. op. cit, VENÂNCIO, Renato P. op. cit. 14 Cabe lembrar a proibição oficial da escravidão indígena pelo governo português. Ver Beatriz Perone-Moises op. cit. 15 MOURA, Ana Maria da Silva e LIMA, Carlos A. M. Devoção e incorporação: igreja, escravos e índios na América portuguesa. Rio de Janeiro, 2002 (no prelo), pp.132-141. 16 Ver REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil século XIX. São Paulo : CIA das Letras, 1991, cap 2-8.
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lembrado são os sacramentos recebidos pelo cativo, uma vez que a conversão do
gentio é um dos principais argumentos para sua escravização ou administração.
Tentar compreender esses elementos da relação entre índios e seus
senhores requer a utilização de três instrumentos de análise. Em um primeiro
momento, veremos a movimentação dos dados ao longo do tempo, 1733 – 1777,
o que vai possibilitar obter uma série de informações, tais como a evolução dos
plantéis, a substituição da mão-deobra e a composição familiar do cativeiro. Outro
instrumento será a comparação com a escravidão africana, em Curitiba e em
alguns outros lugares, o que nos leva a pensar mais amplamente sobre a
sociedade escravista. E, finalmente, é sempre válido elaborar uma comparação
com alguns autores que trabalharam temas semelhantes confrontando dados e
problematizando certas questões.
Para uma grande parte da historiografia brasileira a utilização da mão-de-
obra indígena ocorreu nos primeiros tempos da colonização, sendo mal-sucedida
e substituída pela do escravo africano17, com exceção de São Paulo, Grão-Pará e
Maranhão: regiões, consideradas pobres e impossibilitadas da aquisição de
cativos africanos.
Contudo, existe uma nova visão a respeito da utilização da mão-de-obra
nativa, sendo gestada a partir de autores preocupados em romper com modelos
redutivistas e de certa maneira depreciativos. Ao levar em conta fatores de ordem
conjuntural, econômica e social, visamos esclarecer a relação entre colonos e
índios. Trabalhos como o de John Monteiro e Stuart Schwartz, Alencastro e muitos
outros seguem esse pensamento.18.
No Brasil a discussão historiográfica a respeito do ritual funerário e sua
importância ainda é muito escassa, apesar de existirem alguns excelentes
trabalhos. Vamos situar em nosso trabalho alguns dos aspectos levantados por
João José Reis em seu livro19, tais como: As instituições que, às vezes, ajudavam
o nativo em sua morte (o enterro nas igrejas era visto como uma das maneiras de
17 GARCIA, Elisa F. A utilização da mão de obra Indígena no Rio grande de São Pedro: O caso dos índios “Administrados”. (ref) 18 Idem. pp 3. 19 REIS, João José. op. cit. , pp. 22 - 24.
10
salvar sua alma), a preparação para morte - mortalha, cortejo etc - a hierarquia na
morte - local do sepultamento, acompanhamentos etc. Veremos, então, uma
maneira original de estudar as relações raciais no Paraná, tendo em mente
conhecer um pouco mais dessa dinâmica interna da sociedade colonial curitibana
do século XVIII. Uma forma que encontramos de fazer isso é pesquisando fontes
primárias, como o Registro de Óbitos da catedral de Nossa senhora da Luz do
Pinhais de Curitiba.
Utilizaremos em nosso trabalho uma das únicas fontes de informação a
respeito dos índios administrados, os registros eclesiásticos20. Faremos o
fichamento do Primeiro Livro de Registro de Óbitos da catedral de Curitiba,
visando obter informações como o nome do cativo e a data, provável, de sua
morte. Será possível saber onde, na igreja, ele foi sepultado, e qual a sua
condição jurídica declarada. A respeito de sua família, poderemos indicar seu
estado civil, e sua filiação. Sobre o rito fúnebre, poderemos saber qual foi a
mortalha, se houve, qual irmandade participou e se houve acompanhamento
funerário. O autor do registro aproxima uma idade para o morto e coloca quais
sacramentos ele recebeu. É claro que uma grande parte dos registros não
apresenta toda essa quantidade de informação, contudo, ao longo do tempo,
teremos uma visão ampla a respeito dessas informações.
20 Primeiro “livro de Óbitos” da Catedral Basílica de Nossa senhora da Luz dos Pinhais, 1733 - 1765. Segundo “livro de Óbitos” da Catedral Basílica de Nossa senhora da Luz dos Pinhais, 1765 - 1777.
11
Capitulo 1: Discutindo a administração em Curitiba.
1.1: Um breve contexto histórico da região.
Antes de falarmos sobre Curitiba no século XVIII, cabe considerarmos um
pouco melhor a presença do índio e sua efetiva participação em períodos mais
recuados da história do Paraná. A titulo de introdução, lembramos os estudos do
Centro de Pesquisas Arqueológicas, que falam da ocupação pré-histórica do
território paranaense: no oeste do estado haveria datações de aproximadamente
oito mil anos. Sabemos que varias tribos em diferentes estágios culturais
ocuparam o vasto território que atualmente corresponde ao Paraná; eles possuíam
culturas diversas e de muitas formas interagiam entre si e com o meio que os
cercava. Portanto devemos valorizar a antiga ocupação indígena que predominou
nessa região durante um período de tempo bem maior do que a ocupação
européia.
Podemos também citar brevemente a colonização espanhola no Paraná,
lembrando que os limites estabelecidos pelo tratado de Tordesilhas, em 1494,
colocavam a região sobre controle da Espanha. Seus objetivos eram subordinar o
12
grande contingente indígena a fé católica e à Coroa espanhola, estabelecer uma
continua presença na região, para conter os avanços portugueses e, talvez,
implantar um porto no Atlântico. Assim, tivemos a implantação de um projeto
colonizador na região espanhola do Paraná.
Sem dúvida, o grande destaque desse processo será a participação dos
jesuítas e a construção das reduções do Guairá: nessa etapa, segundo o Padre
Montoya, estava sendo realizada a “conquista espiritual”21. Ao reunir grupos de
índios e catequiza-los nas reduções podemos imaginar o impacto na cultura e na
organização tribal desses grupos. Ainda devemos chamar a atenção para a
utilização espanhola da mão-de-obra nativa através da encomienda22 e de muitas
outras formas de trabalho às quais o nativo foi submetido pelos castelhanos. Com
as bandeiras paulistas, em especial a de 1628 comandada por Raposo Tavares,
as povoações do Guairá vão ser destruídas e muitos de seus habitantes, índios e
missionários, vão buscar refúgio em outras regiões do continente americano, além
do grande número de cativos que foram levados para as varias regiões da
América portuguesa, sobretudo para São Paulo.
A povoação portuguesa do Paraná até então constituía-se em uma
pequena faixa de terra no Litoral atlântico23, cuja posse cabia aos irmãos Martin
Afonso de Souza e Pero Lopes de Souza. De início houve uma certa estagnação
no processo de colonização, que só foi invertida com o descobrimento de ouro de
lavagem na região de Paranaguá. A busca do metal precioso vai atrair vários
colonos e até pessoas do reino para a região, o que vai possibilitar a ocupação do
21 MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná , Uruguai e Tape. Porto Alegre : Martins Livreiro Editor, 1985. 22 Índio encomendado era o índio entregue ao espanhol para fins de conversão e catequese. Originada na Espanha medieval e no repartimento das populações mouras entre os conquistadores espanhóis, na colonização americana, a encomienda se desenvolveu como uma relação de proteção e de dependência entre grupos de índios e um patrono, ou colonizador, que tinha a obrigação de doutriná-lo, em troca da utilização de seu trabalho. Na realidade a 'encomienda' constitui uma instituição capital no desenvolvimento da colonização de mão-de-obra indígena em proveito do europeu e acobertando a escravidão indígena, pois deixava a salvo a liberdade jurídica do índio, resguardando a suprema soberania da Coroa espanhola sobre novos súditos. In: DE ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz. Relatório sobre a situação dos Guarani-Mbya do Rio Grande do Sul: a questão de terras. Rio de Janeiro: Fundação Nacional do Índio, datilografado. 1985, p. 27. 23 A capitania de Santana, que depois ficou conhecida como Santo Amaro.
13
planalto, com a fundação de arraiais, permitindo uma presença definitiva de
portugueses no Paraná.
Mesmo com a forte influencia do ouro de Paranaguá, Curitiba sempre
esteve ligada a expansão paulista rumo ao sul, e vai se tornar um grande foco de
ocupação portuguesa nos limites com as terras espanholas. Ao discutirmos isso
cabe lembrar algumas características da sociedade e economia paulista que vão
encontrar uma permanência, embora transformada pelas novas condições do
local. Podemos repetir as palavras de Otavio Iani: “Uma sociedade escravocrata
fundada na utilização do trabalho de índios e africanos ou seus descendentes e
mestiços”24. No decorrer deste trabalho, vamos demonstrar alguns elementos
dessa sociedade e alguns aspectos das relações entre esses grupos. Mas sem
dúvida é importante frisar que não somente a busca do ouro foi impulso para o
surgimento da vila de Curitiba. Segundo Monteiro, aventureiros da vila de
Parnaíba trilharam os sertões de Oeste e Sul estabelecendo novas vilas como Itu,
Sorocaba e Curitiba.25 O desenvolvimento dessas vilas reflete a busca por mão-
de-obra indígena, a qual já não era encontrada com tanta facilidade nas
proximidades de São Paulo.
Contudo, o esgotamento da mão-de-obra, devido a constante preação, e a
descoberta do ouro em outras regiões da colônia vão desencadear muitas
mudanças na economia local, dependente de uma limitada atividade de
subsistência, que muitas vezes não era suficiente para abastecer a população da
vila e dos arredores. Podemos ver que a situação de miséria já não era novidade
no XVII: “Os habitantes que viviam no planalto ao redor de Curitiba e que aí se
fixaram por volta de 1641, viviam em condições miseráveis e primitivas”26.
A decadência da mineração acentuou um quadro de grande pobreza no
início do século XVIII, tendo inclusive crises de abastecimento que podem ser
24 IANNI, Otávio. As metamorfoses do escravo. São Paulo, 1962. 25 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 81. 26 PINHEIRO MACHADO, Brasil. Formação da estrutura agrária tradicional dos campos gerais. IN: Boletimda universidade Federal do Paraná. Curitiba, Departamento de História. 1963. 3, p.8.
14
sentidas em 1751.27 Mas conjuntamente a esta decadência e às limitações da
produção agrícola, ou talvez sendo uma resposta interna a esse quadro, as
atividades ligadas ao tropeirismo e criação de gado vão ganhar espaço no
contexto paranaense. Vamos notar o constante aumento da demanda por carne e
bestas de carga nas novas fronteiras auríferas recém estabelecidas. A ligação
entre os grandes criadores do sul e a região de São Paulo é bem antiga, mas
somente foi sistematizada e melhorada a partir de 1731 quando ficou conhecida
como “Estada da Mata ou Caminho do Viamão”, ligando, através do território
paranaense, a região do Viamão no Rio Grande do Sul até a famosa feira de
Sorocaba. Segundo Stuart B. Schwartz: “Em 1750, contudo, a economia local já
estava definitivamente voltada para a produção e criação de gado e de produtos
agrícolas”28. Estamos verificando que houve realmente uma mudança do garimpo
para a pecuária e o tropeirismo, e também encontramos indicações de uma
política voltada para o desenvolvimento da agricultura na região: “O problema do
abastecimento é sentido pelas autoridades, que procuram incentivar o cultivo de
gêneros como a mandioca, trigo etc.”29 Sabemos que o Paraná chegou a
exportar farinha de trigo e outros gêneros e que as políticas de incentivo à
agricultura persistiram no final do XVIII.
O tropeirismo e as várias atividades desenvolvidas em torno da pecuária e
do abastecimento das minas em outros locais da colônia, com certeza, vão
modificar inúmeros aspectos da economia local. Sabemos, contudo, que a mão-
de-obra indígena continuou sendo muito importante nessa nova fase, mas o
escravo negro ganha cada vez mais espaço nos plantéis da região.
Com as constantes disputas por território e até mesmo o princípio do utilis
possidetis que passou a vigorar com o tratado de Madrid em 1750, Curitiba tornou-
se uma região estrategicamente fundamental. E seguindo esse raciocínio, deveria
ser assegurada uma forte presença militar conjugada a uma efetiva colonização.
27 Essas dificuldades podem ser vistas com mais detalhes em: BOLETIM DO ARQUIVO MUNICIPAL DE CURITIBA. Curitiba, Impressora gráfica paranaense. 1906. p. 13-32. e também podemos ver a pobreza da época em WACHOWICZ, Ruy Christóvam. População Curitibana e paranaense de 1780. Curitiba. 1780. 28 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru : Edusc, 2001. p. 274. 29 BURMESTER, Ana Maria. A população de Curitiba no século XVIII-1751-1800-segundo os registros paroquiais. Dissertação de mestrado . Curitiba: UFPR. 1974. p. 7.
15
Quanto mais próspera e desenvolvida fosse a colonização portuguesa no local,
maiores seriam os lucros e a segurança territorial dessa fronteira do império
português. E, nesse sentido, a utilização de índios como mão-de-obra e milícia é
fundamental para assegurar a própria colonização. Aqui podemos iniciar as
discussões sobre a administração indígena, que, segundo vamos ver, não foi
somente uma peça na colonização mais, em muitos aspectos, refletia a própria.
1.2. Livre ou Escravo: Definição da condição de administrado.
No vocabulário indo-europeu em geral, e no vocabulário latino em
particular, cativo define o individuo feito prisioneiro (captivus = prisioneiro), ainda
detido por seu captor ou pelo traficante. No século XVII, quando corsários e
piratas mouros singravam o Mediterrâneo, o litoral de Portugal e as costas
atlânticas do Norte da África, seqüestrando cristãos e levando-os para as praças
de Magrebe, cativo designa um estatuto transitório, acidental, de privação de
liberdade.30
Esta definição é dada nos estudos de Alencastro31 sobre as diferenças
entre cativos e escravos, e, especifica também que na América portuguesa não
vingara o trato fundado na troca contínua de escravos indígenas, em que a
captura de cativos margeava a ilegalidade, sendo regularmente denunciada pelos
missionários e, às vezes, pelas autoridades régias. E acrescenta: “significado
diverso tem, portanto, a palavra escravo, característica de um estado jurídico de
transição permanente do indivíduo adquirido para uso do seu proprietário.”32
Para Stuart B. Scwartz33 o Brasil apresentava para os Habsburgos, que
dirigiam a Espanha e Portugal, a dificuldade de reconciliar dois objetivos
potencialmente conflitantes. De um lado, desde meados do século XVI, tinham
tentado limitar o uso e o abuso que os colonizadores faziam da população
30 MATHIEX, J. “Trafic et prix de L homme em Méditerranée aux XVII siécles”, Annales E.S.C., vol IX(2), 1954, pp.157-64. 31 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “O trato dos viventes”:Formação do Brasil no Atlântico Sul/ São Paulo. CIA das Letras, 2000 pp.86. 32 BENVENISTE, E. Lê vocabulaire dês institutions indo-europénnes,vol. 1, pp.129-37 e 355-61. 33 SCHWARTZ Stuart b. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial.Coleção Estudos. Editora Perspectiva.
16
indígena, na América. Com este fim em vista, tinham sido promulgadas leis desde
1512 que proibiam expressamente a escravização de índios exceto em certas
circunstâncias: ”Hei por bem e mando que todos sejam postos em sua liberdade; e
que se tirem logo do poder de quaisquer pessoas em cujo poder estiverem. Lei de
30 de Julho de 1609”34
Talvez a constante procura de metais preciosos tenha sido uma política
ainda mais consistente nos monarcas Habsburgo; o começo e o fim da economia
nacional estavam restringidos ao ouro e à prata. As condições no Brasil faziam
com que a procura de novas fontes ricas em minério e a manutenção da liberdade
dos índios fossem objetivos contraditórios, mas a primeira década do século XVII
foi testemunha de uma atividade bastante considerável nas duas esferas.
Possivelmente não foi por acidente que a chegada do Tribunal da Relação, em
1609 tenha coincidido com essa atividade35
Jacob Gorender 36 assinala que, no Brasil, os indígenas se agrupavam em
tribos nômades, pertencentes à formação social que se denomina de comunismo
primitivo. Havia diferenciações em seu grau de desenvolvimento, evidenciando-se
que as tribos da orla oceânica possuíam equipamento cultural mais avançado do
que algumas do remoto interior: podemos aqui citar os grupos Tupi-Guarani em
oposição aos Jê, A modalidade de contato entre os portugueses e as tribos
autóctones mudou radicalmente assim que a Coroa tomou a decisão de ocupar o
território mediante o povoamento e a exploração econômica permanente. Agora,
tratava-se de expulsar os aborígines de grandes tratos de terra, sucessivamente
ampliados, e de obrigá-los ao trabalho escravo.
A guerra e o extermínio indiscriminados tornaram-se inevitáveis, por mais
que a Coroa e os Jesuítas se empenhassem em disciplinar a atuação dos colonos
e impor ao menos algumas normas de convivência que salvassem da destruição
completa o patrimônio populacional representado pelos nativos.37 Colocada entre
34 BALHANA, Altiva Pilatti, et al. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. v. 1 35 Diálogo das grandezas. P.5:1. DE ABREU, Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. 2. Ed. (Rio de Janeiro, 1960) 36 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5a. ed. Ver. e amp.São Paulo, Ed. Ática, 1988 37 Acerca do processo de escravização e extermínio dos indígenas pelos colonizadores no século XVI, V. Carta de Pero de Góis a D.João III, de 29 de Abril de 1546, e carta de Pero Borges a D.
17
a pressão dos jesuítas, que se orientaram no sentido de catequese e da formação
de aldeamentos indígenas sob o seu controle, e a cobiça dos colonos,
exclusivamente interessados na ocupação da terra e na escravização, a Coroa
portuguesa produziu infindável e contraditória legislação que imprimiu caráter
peculiar à escravidão dos índios. Esta oscilou entre a “forma completa e variadas
formas incompletas”
As leis coloniais relativas aos povos indígenas do Brasil parecem constituir
o locus de um debate que envolve as principais forças políticas da colônia. Desde
o trabalho pioneiro de João Francisco Lisboa (1852), as análises da situação legal
dos índios durante os três séculos de colonização reafirmaram o caráter ineficaz
ou francamente negativo das leis.38 A profusa legislação indigenista e a farta
correspondência trocada entre a metrópole e a colônia acerca dos problemas
colocados pela relação com os povos indígenas comprovam a preocupação e
refletem o debate. O conjunto das idéias expressas ou subjacentes à questão
ainda é um campo a ser explorado. A dificuldade de acesso aos documentos,
jamais compilados, aliada à idéia de que Portugal teria dado pouco interesse à
questão jurídica colonial e, principalmente, a idéia de que o estudo das leis,
demasiado formal, pouco teria a revelar, fizeram com que os estudos de legislação
indigenista colonial privilegiassem o aspecto político-econômico da questão em
detrimento de seu aspecto propriamente jurídico.
Tomada em conjunto, a legislação indigenista é tradicionalmente
considerada como contraditória e oscilante por declarar a liberdade com restrições
do cativeiro a alguns casos determinados, abolir totalmente tais casos legais de
cativeiro (nas três grandes leis de liberdade absoluta: 1609, 1680, e 1755), e em
seguida restaurá-los. Quando se olha mais detalhadamente as disposições legais,
percebe-se, porém, que ao tomando-as em conjunto, assim como aos “índios” a
que se refere, simplifica-se bastante o quadro. O próprio modo como Malheiro
João III, de 07 de Fevereiro de 1550. In:HCPB, v.3,p.263 e 268-269; “Regimento de Tomé de Sousa” de 17 de Dezembro de 1548, contendo normas da Coroa sobre o trato com os indígenas. 38 PERRONE, Beatriz M.In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org). História dos índios no Brasil. São Paulo. CIA das Letras, 1992.
18
(1986)39 glosa os textos legais opera generalizações que acentuam a imagem de
contradição: nele, assim como naqueles que se fundamentam em seu trabalho,
fala-se de “liberdade dos índios” e “escravização dos índios” como se, em ambos
os casos, as leis se referissem a todos os indígenas do Brasil, indistintamente.
Havia, no Brasil colonial, índios aldeados e aliados dos portugueses, e
índios inimigos espalhados pelos “sertões”. A diferença irredutível entre “índios
amigos” e “gentio bravo” corresponde um corte na legislação e política indigenistas
que, encaradas sob esse prisma, já não aparecem como uma linha tortuosa
crivada de contradições, e sim duas, com oscilações menos fundamentais. Nesse
sentido, pode-se seguir uma linha de política indigenista que se aplica aos índios
aldeados e aliados e uma outra, relativa aos inimigos cujos princípios se mantém
ao longo da colonização. Nas grandes leis da liberdade, a distinção entre aliados e
inimigos é anulada e as duas políticas se sobrepõem.40
Outro aspecto a ser lembrado, ao tentar uma definição mais clara a respeito
da condição jurídica e social dos índios, é a questão terminológica empregada nos
registros. Havia uma distinção feita pelo senhor de índios, também usada nos
documentos oficias da Coroa e do clero, que podem nos indicar algumas
mudanças na forma de tratamento desse tipo de mão-de-obra.
Muitos autores incluíram em seus trabalhos alguns comentários sobre essa
“classificação” dos índios. Alencastro nos mostra como esses nomes podem ter
sido empregados para dissimular a escravidão, que era rigidamente controlada
pelas autoridades da Metrópole. Segundo esse autor, podemos encontrar na São
Paulo seiscentista denominações como: “peças do serviço”, “gente de obrigação”,
“serviçais”, “gente do Brasil” 41.
Em um texto mais específico sobre a realidade curitibana, Schwartz
apresenta uma evolução dessas denominações, demonstrando em suas análises
que no final do XVII podemos observar termos como “servito” ou “serviço”,
39 MALHEIRO, A. Perdigão. A escravidão no Brasil. Petrópolis. 1976.apud: MONTEIRO, John Manuel. Op. Cit. p. 152. 40 PERRONE, Beatriz M. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org) História dos índios no Brasil.São Paulo, CIA das Letras, 1992. 41 ALENCASTRO, Luiz F. de. O trato dos viventes. São Paulo: Cia das Letras, 2000. p 120.
19
diminutivos do clássico “servo” que virá a ser empregado na primeira metade do
século XVIII. Após 1723 já encontramos o termo “administrado” e a palavra
“escravo” fica cada vez mais rara no tocante aos índios.42 Neste ponto, é válido
lembrar que nos registros de óbito podemos encontrar em linhas gerais essa
evolução, mas existem alguns casos particulares como o de João, em 1747: o
termo “escravo” foi usado para classificá-lo no mesmo registro; ele também é
chamado de Bugre.
Podemos observar, através das constantes mudanças nas denominações
empregadas na época, a indicação de uma possível transformação das relações
entre os grupos sociais, ponto citado por Schwartz, quando o índio é visto cada
vez mais como escravo em alguns pontos; porém, a distinção ideológica e jurídica
ainda se impõe.
Segundo Monteiro,43 indiferente do nome que tenha sido dado ao cativo
indígena no Brasil, sua realidade política e social era dúbia e conflitante. Por um
lado as leis da Coroa afirmavam a liberdade incondicional de um tipo de nativo, o
amigo e aliado. Por outro lado, existe a possibilidade de utilizar a mão-de-obra
obtida em alguns casos, como o de inimigos, através da guerra justa ou o resgate
de prisioneiros inter-tribais. Mas é sabido que “segundo o costume da terra” os
índios aldeados e aliados44 eram amplamente empregados em trabalhos e
condições muitas vezes idênticas às da escravidão. A administração dos índios
como mão-de-obra é vital para a sustentação da própria sociedade colonial em
São Paulo e, podemos dizer, em Curitiba, que vive condições conjunturais
semelhantes.
Durante a pesquisa nos registros de óbitos, pudemos observar que as
ocorrências vão se alterando ao longo dos anos. Na primeira metade do século
XVIII pudemos encontrar em vários casos denominações que nos mostram essa
contradição social específica, como: “servo”, “forra administrada”, “gentio da terra”
e, na maioria dos casos, “administrados”. Quando nos aproximamos do final do
42 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru : Edusc, 2001 p 278. 43 MONTEIRO, John Manuel . Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 147 153 44 CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
20
século, observamos o aumento do número de libertos e forros, e a diminuição
considerável de índios: uma explicação razoável seria a substituição pela mão-de-
obra africana. Contudo a omissão de registros e “troca” de condição jurídica, para
fugir de problemas legais, pode ter sido utilizada pelos senhores de índios em
Curitiba.
Para burlar a lei colonial ou para especificar condições sociais diferentes,
muda-se a denominação dada aos índios. Em alguns casos pudemos perceber a
influência do contato com a escravidão negra; em outros, a própria adequação da
nomenclatura a uma realidade social específica, a administração de índios por
particulares, é um exemplo dessa situação singular praticada no Paraná.
Afim de se compreender um pouco mais o estatuto dos administrados, para
além da questão terminológica, está o problema das crianças filhas de
administradas. Qual era a condição desses indivíduos, uma vez sabendo - em
relação à escravidão negra – “que o parto segue o ventre”, ou seja, filho de
escravo será escravo? A situação específica desses índios e alguns indícios nos
registros nos levam a indicar o seguinte problema:
A situação do nativos trazidos do sertão parece ser aplicável para as
crianças, uma vez que a principal forma de escravidão legal era a guerra justa e,
portanto, os homens guerreiros seriam mortos no processo e as mulheres e
crianças levadas à escravidão legalizada. Essa prática parece ter um certo reflexo
na administração, já que é uma condição muito próxima da escravidão
propriamente dita.
Não devemos cometer generalizações, lembramos que as leis coloniais que
tratam da questão indígena não regulam satisfatoriamente esse aspecto das
relações entre senhores e índios. Sendo assim, não existe uma norma padrão ou
correta. A observação dos registros paroquiais permitiu, contudo, a elaboração de
uma tabela contendo muitos dados relevantes sugestivos que serão discutidos a
seguir.
Separamos os administrados e escravos segundo o sexo e em seguida
definimos uma idade limite de quinze anos para a condição de criança, para
21
acompanhar a evolução temporal45 dos números da população infantil em
comparação a adulta identificando possíveis diferenças. Ainda será possível uma
comparação com a população escrava sob o mesmo recorte.
Devemos levar em conta que o registro de óbitos, devido a suas limitações
de precisão, fornece apenas uma indicação, uma possibilidade que deve ser
confrontada com outras fontes e problematizada. A grande mortalidade infantil,
enormes distâncias, medo das autoridades, são alguns fatores que dificultavam o
registro, distorcendo o quadro estatístico.
,,,
Tabela1: Número de óbitos de escravos e administrados segundo faixa etária
e sexo (Curitiba, 1731 – 1777)
• ADULTOS
ADM (M) ADM (F) ESCRAVO (M) ESCRAVO (F)
1731 – 39 6 9 17 13
1740 – 49 8 14 17 10
1750 – 59 8 32 27 14
1760 - 69 7 12 21 16
1770 - 77 2 10 23 18
• CRIANÇAS*
ADM (M) ADM (F) ESCRAVO (M) ESCRAVO (F)
1731 – 39 10 4 4 7
1740 – 49 5 4 4 7
1750 – 59 7 15 8 7
1760 - 69 2 1 14 12
1770 - 77 - 1 20 9
Fonte: Catedral Basílica de Curitiba. Óbitos, 1731-1777.
45 Os intervalos arbitrados seriam decênios mas devido à fonte o primeiro e o último intervalo são um pouco menores.
22
Obs: A soma das tabelas de adultos e crianças não corresponde exatamente aos
números da tabela 2. Isso se deve às lacunas apresentadas pelo registro que,
portanto, foram deixadas de fora das tabulações.
* Considerando como crianças indivíduos de até 15 anos de idade.
Ao observarmos os números, notamos uma tendência de queda nos
administrados e uma alta na população escrava, o que será discutido em breve. O
que chama a nossa atenção é a queda bem mais acentuada da população infantil
- quando relacionada à queda da população adulta. Recordando a alta mortalidade
infantil no período e comparando-se esta à população africana, destacamos a
singularidade da situação. A grande diferença entre o número de mulheres
administradas e o de crianças nos indica que os filhos destas não eram
considerados como administrados. Portanto, somente as crianças descidas
diretamente do sertão detinham tal condição o que limita totalmente a reprodução
vegetativa desse tipo de mão-de-obra.
Se observarmos os números referentes aos escravos, não encontraremos a
mesma disparidade, assinalada nos administrados, entre os números de óbitos de
crianças e de adultos. Podemos notar nos anos trinta um total de nove mulheres
administradas para quatorze crianças, já nos anos setenta vemos dez mulheres e
apenas uma criança. Se seguíssemos o raciocínio clássico, em que essas
comunidades apresentavam alta taxa de mortalidade46 mas também de
natalidade, notamos como não é possível afirmar que os filhos de administrados
fossem considerados como tal A mortalidade não pode ser considerada
responsável pelo decréscimo do número de crianças nos óbitos. Ao contrário, a
mortalidade faz aumentar, e muito, o número de crianças nos óbitos, pois estas
são sempre, no mundo pré-industrial, as suas maiores vítimas.. Sem dúvida, é
preciso problematizar os dados, sabendo que a omissão de registros era muito
46 “Entre os carijós, a baixa natalidade conjugava-se a um altíssimo porcentual de mortalidade. No gráfico abaixo, podemos observar que, em 1718, o gentio da terra era responsável por cerca de 26,6% do total de óbitos de cativos da freguesia de Guarapiranga.” Ver: VENÂNCIO, Renato P. Os últimos carijós: a escravidão indígena em minas gerais: 1711 - 1725. Revista brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, v. 17, n.34, 1997.
23
elevada47. Havia também fatores de ordem epidêmica, em especial surtos de
sarampo e rubéola, além de, até mesmo, elementos de ordem social.
Contudo, é possível pensar que estes fatores serão de grande relevância
para se compreender melhor a substituição da mão-de-obra indígena pela africana
na região. Uma vez que a presença escrava já é mais númerosa que a de
administrados nos anos trinta, como podemos explicar a existência de um
processo tão longo de transição de mão-de-obra? Sabendo que os preços de
escravos negros eram muito elevados, entendemos a administração em Curitiba
como uma forma de acumulação. E, embora tenha sofrido diversos entraves, foi
fundamental para o desenvolvimento da economia e para a formação da
sociedade paranaense.
Ao lançarmos o olhar sobre os dados referentes às crianças, vemos uma
outra perspectiva: a complexidade das relações entre colonos e índios em
Curitiba, pois a reprodução vegetativa da mão-de-obra está diretamente ligada à
condição imposta à criança pela sociedade e pelas leis coloniais.
1.3: Aspectos da mão-de-obra em Curitiba.
Tabela2: Número dos óbitos de escravos e administrados segundo o sexo,
por decênios (Curitiba, 1731-1777)
ADM. MASC. ADM. FEM. ESC. MASC. ESC. FEM.
1731-9 18 14 31 22
1740-9 15 18 25 18
1750-9 16 53 36 21
1760-9 9 13 35 28
1770-7 2 11 45 28
Fonte: Catedral Basílica de Curitiba. Óbitos, 1731-1777.
47 O sub-registro das crianças só poderia interferir nesse raciocínio, de forma significativa, se ele fosse maior no final do período, mas não temos indícios apontando para isso.
24
Ao observarmos a tabela 1, podemos notar uma tendência de queda no
número de óbitos da população administrada. Esse fato, quando analisado em
conjunto com o expressivo aumento do número de escravos, nos indica a
substituição da mão-de-obra em Curitiba. Alusões a esse processo podem ser
encontradas em autores como Schwartz, em seus estudos sobre a família escrava
no Paraná48. Contudo, segundo os registro de batismo apresentados por esse
autor, essa transição teria acontecido por volta de 1740. Os registros de óbito nos
revelam um recuo dessa data, como podemos observar, já em 1731 os escravos
são mais númerosos que os administrados. Isso nos indica que uma série de
fatores conjunturais vão determinar, em Curitiba, uma situação que é comum a
outras áreas escravistas do Brasil colonial, como o caso de São Paulo visto por
Monteiro: a mudança da mão-de-obra empregada e comercializada. A diferença
fundamental será a forma que esse movimento ganhou no contexto paranaense
tanto do ponto de vista temporal como nos aspectos econômicos e culturais.
Como já foi dito, é sempre importante problematizar os dados e as fontes
de informação, no caso, os registros de óbito. Estes se apresentam de forma
regular durante o período estudado, mas devemos destacar que a omissão de
dados e o sub-registro podem distorcer conclusões mais específicas sobre os
temas abordados. Portanto, apresentamos apenas uma indicação e algumas
hipóteses que devem servir como padrão de comparação com outras fontes e
raciocínios que nos levem a entender, um pouco mais, o período estudado.
Existem númerosas pesquisas a respeito da diminuição e até do massacre
da população indígena durante a colonização européia. Vamos nos ater às
explicações e tendências que encontram respaldo em nossas fontes primárias e
que se mostram aplicáveis à realidade regional, tendo em mente, no período
estudado, a ampla utilização da mão-de-obra nativa em Curitiba e Campos Gerais,
como nos mostra o clássico Romário Martins:
Sem se descuidarem do trabalho das minas para os quais dispunham de índios ‘administrados’
sinônimo, nesse tempo de ‘escravizado’, os homens do grupo de Mateus Leme foram se fazendo
criadores de gado e as populações que os sucederam não tiveram, no planalto de Curitiba e nos
campos gerais, e até o 800, mais rendoso meio de vida.49
48 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos roceiros e rebeldes. Bauru : Edusc, 2001. p. 275 49 MARTINS, Romário. História do Paraná. Curitiba: Editora Guaíra, ( ? ) pp. 217-224
25
Cremos que o entendimento deste citado massacre é de fundamental
importância para uma melhor compreensão da história colonial do Paraná.
Muitos autores apresentam hipóteses explicativas para tal fato. Segundo
Monteiro, o sistemático apresamento de índios por parte dos paulistas, para serem
utilizados como mão-de-obra, provocou um “despovoamento” das regiões mais
próximas. Daí portanto a necessidade de percorrer distâncias cada vez maiores, o
que dificultava e encarecia a preação devido a inúmeros fatores que não convém
discutir no momento.
Outra questão a ser lembrada era a própria condição jurídica e prática da
escravidão indígena. Com a vinda de um maior número de representantes da
Coroa para essa região, (reflexo do ouro nas Gerais) e ressaltando-se a proibição
da escravidão indígena pela Coroa portuguesa, como vimos anteriormente, temos
uma tendência à diminuição do número de administrados50. A isto some-se a
grande mortandade causada pelas condições de vida e, principalmente, pelo
grande número de doenças, às quais a população ameríndia estava mais
suscetível, como Varíola, Rubéola, Gripe e, em Curitiba, a Lepra:
“O terrível mal de S. Lazaro, de que a V. Ex. ª dei conta em carta de 10 de mayo de 1768, esteve
algum tempo amortecido nesta Capitania q. ´ se fizerão preces em todas as freguesias; porem se vão
declarando em muitos pessoas e em diferentes partes os tristissimos sintomas de voracissima queixa
para a qual se não se pode descobrir remédio”51
Como sabemos, a população pré-cabraliana era de fato mais suscetível a
doenças trazidas da Europa, conseqüência, segundo Alencastro, da “Unificação
Microbiana do mundo”52. Esse autor nos fala do isolamento das populações
nativas que não foram submetidas, por uma série de fatores, às grandes
pandemias européias. Esse isolamento pode ser comprovado por questões
sangüíneas. O autor nos fala, por exemplo, da não existência de tipos sangüíneos
A e B sendo predominante o tipo O dentre os indígenas, sinalizando um grande
50 Aqui é importante frisar que o sub-registro dessa camada da população é muito grande. 51 O governador D. Luis Antonio de Souza. Apud BURMESTER, Ana Maria. A população de Curitiba no século XVIII-1751-1800-segundo os registros paroquiais. Dissertação de mestrado . Curitiba: UFPR. 1974. p. 47. 52 ALENCASTRO, Luiz F. de. O trato dos viventes. São Paulo: Cia das Letras, 2000.p. 127.
26
isolamento desses grupos. Estudos antropológicos citados por Alencastro também
evidenciam esse mesmo aspecto.
Assim, podemos compreender de uma maneira mais clara a diminuição da
população administrada em Curitiba. De fato, em 1756 encontra-se registro de
uma “peste de sarampo” 53 que teve início em Paranaguá e se estendeu a
Curitiba. No gráfico número 1, a epidemia coincide com o grande aumento de
óbitos na população. Isso poderia explicar a curva crescente de óbitos na
população indígena, principalmente feminina. E podemos ir mais longe: essas
doenças têm efeito maior sobre uma população enfraquecida pela fome. Em 1751
encontramos uma violenta crise de abastecimento:
“Nobiliss. os Snr. es deste Senado da Coriyt. A A geral falta de mantim. Tos neste
districto tem chegado a tanto a padecela os Sold. Os desta guarda q ` a força de
sua tolerância, em hû certão despido de víveres ... “54
Logo, as crises de abastecimento conjugadas a grande pobreza,
aumentarão tragicamente o número de vítimas das epidemias na metade do
século. Esse efeito terá um impacto bem maior sobre a população indígena
administrada, tendo em vista a fragilidade de seu sistema imunológico, frente às
inúmeras doenças trazidas de outros continentes e as péssimas condições de vida
às quais eram submetidos.
Já o aumento da população escrava é notório na segunda metade do
século XVIII, época em que temos no Paraná e na Colônia de um modo geral
reflexos da economia mineradora. No Paraná, o transporte de gado para a região
de São Paulo vai movimentar as engrenagens do mercado interno e fortalecer a
economia da região, que se encontrava decadente desde a exaustão das minas
de ouro. Dentre as obras clássicas da historiografia paranaense, podemos citar a
famosa História do Paraná55 : “ Aquelas fazendas de criação de gado dos campos
do Paraná se desenvolveram com a venda de seu gado aos mineiros a altos
preços em ouro”. O tropeirismo e as demais atividades econômicas do Paraná
colonial devem ser melhor compreendidas, no intuito de estabelecer uma base de
53 BURMESTER, Ana Maria, op. Cit. p. 44. 54 Idem à nota número 7. 55 BALHANA, Altiva Pilatti, et al. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. v. 1.
27
discussão sobre a escravidão indígena e sua posterior substituição pela mão-de-
obra africana. Justamente no início do século XVIII, quando os preços dos
escravos estão muitos elevados, devido à grande demanda nas minas de ouro.
Essa passagem só será possível se elencarmos a administração indígena como
peça fundamental na acumulação e nas demais atividades dos colonos.
O ouro, segundo alguns pesquisadores, vai capitalizar setores da economia
que passam a comprar mão-de-obra africana. Essa força de trabalho era de maior
custo, porém mais resistente a doenças e sua escravidão era juridicamente legal.
Em Curitiba, esse processo de transição já vinha sendo realizado, e vai se
completar ao longo do XVIII.
Gráfico 1
Número médio anual, por decênios, dos óbitos de escravos e administrados segundo o sexo (Curitiba, 1731-1777)
0
1
2
3
4
5
6
1731-9 1740-9 1750-9 1760-9 1770-7
adm. masc.
adm. fem.
esc. masc.
esc. fem.
Fonte: Catedral Basílica de Curitiba. Óbitos, 1731-1777.
Como sabemos, a mão-de-obra indígena foi amplamente utilizada nos
primórdios da colonização paranaense. Em nosso trabalho notamos que o
processo de substituição, pela força de trabalho africana, vai ser longo e muito
irregular devido à administração de índios que manteve até o século XVIII a
exploração do trabalho nativo, seguindo de perto um “modelo paulista” de
cativeiro: grande parte da colonização do Paraná pode ser enquadrada na
expansão paulista rumo ao sul.
28
Seguindo esse raciocínio, vemos no Paraná colonial a manutenção de
alguns padrões como a utilização preferencial de índios Tupi e Guarani, e a
observação de uma divisão de trabalho característica das sociedades originais.
Vamos ver como a dinâmica interna dos grupos nativos vai, de certa forma
determinar a composição dos plantéis paranaenses.
Em nossos dados pudemos encontrar, durante o século XVIII, o predomínio
de mulheres entre a população administrada adulta56 e justamente o contrário na
população escrava africana do mesmo período. Essa indicação nos leva a analisar
um pouco mais as sociedades originais desses indivíduos e sua influência na
formação dessa mão-de-obra na região. Será importante lembrar que seguimos o
modelo de preação paulista, fazendo parte da mesma capitania e, portanto,
seguindo caminhos muito parecidos em relação à escravidão e sociedade.
Contudo, devemos ressaltar as especificidades paranaenses, inclusive na
periodização dos acontecimentos.
A discussão a respeito da composição da mão-de-obra, especificamente da
população administrada, é muito ampla e, de certa forma, inconclusiva, pois as
fontes disponíveis são fragmentadas: quando especificam a possível origem do
cativo, esbarram nas generalizações comuns na época. Podemos citar como
exemplo a palavra “carijó” que aparece nos registros de óbito para designar alguns
índios. Entendemos que ela poderia estar se referindo aos Tupi-guarani. Nas
palavras do dicionário Bluteau:
“CARIJOS, Carîjos. Povos do Brasil.Tem seu principio nas prayas do rio cananea,
trazem guerras intestinas com os Goyanás. He a mais dócil, & accomodada nação
de toda a costa do Brasil, & sobre tudo singular em não comer carne humana.
Noticia do Brasil do padre Simão de Vasconcellos, pág 68.”57
Existem porém muitas incertezas sobre isso. Podemos encontrar em
Monteiro um pedido dos colonos para que se declarasse guerra justa aos carijós,
que teriam matado muitos brancos inclusive padres jesuítas. Para Monteiro o
termo carijó não se refere somente aos Guarani mas é genérico a grupos aliados
56 Como dito, convencionamos tratar por “adulto” o individuo com mais de quinze anos. 57 BLUTEAU D Raphael Vocabulário Portuguez e Latino. 1712 – 1727 cd UERJ
29
aos portugueses. 58 É interessante como certas palavras podem ganhar tantos
significados dentro de um contexto tão amplo e pouco conhecido, como é o
período colonial, como nesta outra definição para os carijó:
“No século XVII, os guarani também chamados de carijó ou cário, constituíam a
maior nação indígena, formando um grupo homogêneo aparentado aos
tupinambás e que pertenciam à maior família lingüística do Brasil chamada de
tupi-guarani.” 59
Portanto, torna-se difícil uma especificação mais apurada e bem delimitada
sobre a composição da mão-de-obra em Curitiba. Vamos apresentar algumas
indicações baseadas em nossos dados, comparando-as com informações de
outras regiões.
Das várias famílias e troncos lingüísticos nativos do Brasil colonial,
destacamos os tradicionalmente lembrados grupos Tupi-Guarani e o grande
tronco Jê . Grupos estes que vão compor o histórico binômio Tupi-tapuia a que
muitos cronistas se referem como sendo as duas grandes nações indígenas do
local. Hoje com um maior aprofundamento dos estudos e uma visão mais aberta
sobre o tema podemos dar conta da enorme complexidade cultural e etnográfica
existente no Brasil. O primeiro contato com grupos tupi do litoral e a posterior
seqüência de acontecimentos como as trocas alianças e, por que não, um relativo
comércio, criaram entre os grupos tupi e os portugueses uma relação cultural que
vai se desenvolver com a vinda dos jesuítas, e se transformar na principal fonte de
contato entre esses dois mundos tão distintos.
Com o passar dos anos, e devido à intensificação do processo de
colonização do Brasil, nos moldes mercantilistas, a falta de mão-de-obra vai fazer
com que esses índios sejam sistematicamente envolvidos no esquema de
ocupação européia e mercantilista do território. As tribos tupi aliadas serviam de
58 MONTEIRO, Negros da terra. Op. Cit. p 53. 59 PETERLE, Michele. O contato de duas culturas diversas: os índios guarani e os europeus jesuítas, História Hoje ed trimestral nº3 ano2000.
30
defesa contra os vários grupos nativos, destacando os Jê, inimigos e até mesmo
contra outros europeus que assediavam o litoral da colônia.60 Na comarca de São
Paulo colonial essa mão-de-obra foi amplamente utilizada e segundo Monteiro61
sua estrutura econômica estava assentada na sua captura e exploração. Quando
esse contingente populacional começa a ficar escasso, os paulistas iniciam
verdadeiras cruzadas rumo ao sertão com o intuito de obter “remédio para sua
pobreza”. O deslocamento dos paulistas em busca de ouro e das grandes
reservas de “mão-de-obra guarani” no Guairá vem em direção dos campos de
Curitiba.
Ao observarmos os registros de óbitos de Curitiba notamos por várias
vezes a referência aos administrados como carijós, o que pode indicar uma
preferência por grupos Guarani no tocante a composição da mão-de-obra local.
Como se pode imaginar, as expedições de apresamento vão entrar em contato
com muitos grupos indígenas. Contudo, havia uma preferência pelos tupi-guarani
aos demais grupos.
Um caminho para compreender esta preferência será observar como sua
cultura parece atender de um certo modo às necessidades do colono português.
Monteiro nos fala da tentativa de “padronizar essa população tão diferenciada
utilizando o modelo do cativo guarani”62 . Nas palavras de Egon Schaden “Embora
o guarani seja incapaz de conceber a vida humana sem as alegrias da caça e da
pesca , a base de seu sustento lhe é fornecida pela lavoura.”63
O fato terem a agricultura como base de subsistência, portanto sendo mais
sedentários que outros grupos, vai se aliar à necessidade de mão-de-obra nas
fazendas e gerar uma busca cada vez maior por esse tipo de cativo. Devemos
lembrar também o aspecto geográfico inerente à situação: a maior concentração
de grupos guarani, que ocupou e dominou grandes extensões dos estados
meridionais do Brasil e territórios limítrofes do Uruguai, Argentina e Paraguai 64,
60 ALENCASTRO, Luiz F. de. op. Cit.p.122. 61 MONTEIRO, John Manuel. Op. Cit. p. 9. 62 Idem, p166. 63 SHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo, EDIPE , 1962, p. 45 64 idem, p 18.
31
isso possibilitava um facilitado acesso dos preadores Curitibanos em busca dos
futuros cativos carijó.
,,,
Tabela2: Número de óbitos de escravos e administrados segundo faixa etária
e sexo por decênios (Curitiba, 1731 – 1777)*
ADM (M) ADM (F) ESCRAVO (M) ESCRAVO (F)
1731 – 39 6 9 17 13
1740 – 49 8 14 17 10
1750 – 59 8 32 27 14
1760 - 69 7 12 21 16
1770 - 77 2 10 23 18
Fonte: Ver Tabela 1.
* Somente os Adultos
Para observar de uma maneira mais clara a complexa composição da mão-
de-obra no Paraná colonial, separamos os escravos e administrados segundo a
idade que consta no registro de óbito. Apesar de não possuir total precisão, este já
citado expediente serve como uma baliza razoável: consideramos adultos os
indivíduos com 15 anos ou mais, e notamos um grande predomínio da população
feminina nos administrados, situação que se inverte nos escravos.
De um modo geral, como já vimos anteriormente, a legislação proíbe a
escravidão indígena. Um dos únicos meios de se conseguir a posse legal de
cativos era a chamada guerra justa, que consiste em atacar tribos que vinham
hostilizando os brancos. Dessa forma é natural que, no embate, sejam mortos os
guerreiros das tribos deixando um maior números mulheres e crianças nas mãos
do colono65. Mas a própria dinâmica interna das sociedades indígenas,
especialmente a guarani, tem influência nessa configuração: em muitas tribos
cabe às mulheres a maior parte das tarefas ligadas à lavoura, sendo raros os
65 CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). op. Cit. P. 127.
32
momentos de participação do homem, como na derrubada da mata para o rocio66
e nas práticas religiosas visando uma boa colheita. Em geral Isso era muito
vantajoso para os colonos, pois liberava os homens para outras atividades de
grande importância: o transporte, a preação e a defesa.
Assim, vemos Curitiba refletindo um modelo de exploração indígena
preocupado em satisfazer as necessidades básicas do colonizador, as quais,
nesse momento, podem ser definidas como alimentação, defesa e mão-de-obra.67
O segundo ponto a ser mencionado, com relação à tabela, é a presença de
um maior número de escravos do sexo masculino em oposição ao que foi visto na
população administrada. Existem vários aspectos a serem considerados ao se
discutir essa indicação, como a posição geográfica e as próprias condições do
tráfico atlântico.
Por ser uma região limítrofe entre o território luso-espanhol, estando de
certa forma excluída dos grandes lucros gerados pelo açúcar, devemos considerar
levar em conta alguns fatores, como a existência de um grande número de
escravos crioulos ou nascidos no Brasil, devido à impossibilidade de importar
escravos diretamente da África. E como esta era uma região de fronteira, estava
sujeita a uma série de problemas, como a falta de uma estrutura adequada, além
de ataques tanto de tribo inimigas quanto de outras nações européias. Portanto,
vemos como uma medida preventiva dos senhores vindos de outras regiões, até
mesmo ao adquirir mão-de-obra escrava, darem preferência aos homens.
Todas as áreas de fronteira agrária eram de maioria masculina. Por outro
lado, as áreas que recebiam muita gente pela via do tráfico atlântico de escravos
africanos também eram muito masculinas. Há dúvidas entre os historiadores a
respeito dos motivos. Alguns dizem que a demanda nas Américas era por
homens, porque trabalhavam mais. Mas se fosse assim os homens custariam
muito mais que as mulheres, o que não ocorria, as diferenças de preços eram
66 Geralmente feita em mutirão ou puxirão: Trabalho coletivo em prol do grupo, presente em todos os gupos guarani até os dias de hoje para mais informações ver: SHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo, EDIPE , 1962. p. 57-60. 67 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p 45.
33
pequenas, chagando a 5% ou 10%68. Outros sustentam que os homens
predominavam no tráfico atlântico porque os africanos retinham as mulheres, uma
vez que como nos índios do Paraná, a agricultura era praticada por elas na África;
e porque se as mulheres viessem para as Américas o esquema do tráfico
acabava, já que os homens não têm úteros.
68 Klein, Herbert. A escravidão africana. São Paulo: Brasiliense, 1986.
34
Capitulo 2: Senhores e suas posses.
“O primeiro aspecto é o predomínio, de certa maneira de sua estrutura interna,
orientada para a subsistência de seu próprio grupo social e para a manutenção da
estrutura geral tradicional, do predomínio de uma classe senhorial composta de
famílias patriarcais.”69
Ao lermos o clássico acima (merecedor é verdade, de uma certa crítica),
vemos a possibilidade de observar, nos registros, indicações sobre essas
“Famílias patriarcais”. Sobretudo seus chefes – os senhores de índios e escravos
– com a intenção de saber um pouco mais sobre sua participação na sociedade
escravista curitibana. Outra possibilidade, conjugada à primeira, será a verificação
do tamanho das posses: embora sabendo das limitações presentes na fonte,
poderemos problematizar suas mudanças e padrões no transcorrer do período
estudado. Assim saberemos um pouco mais sobre a “estrutura geral tradicional” a
que se remete Brasil Pinheiro Machado
2.1: Algumas informações sobre os senhores
Existem poucas informações a respeito dos senhores que detinham a mão-
de-obra Curitibana; suas vidas geralmente são analisadas segundo critérios
meramente econômicos ou jurídicos. Pouco ou quase nada se sabe sobre
aspectos sociais ou culturais da vida destas pessoas na época colonial. As fontes
eclesiásticas ajudam a entender um pouco mais sobre aspectos tão importantes,
uma vez que a vida na colônia estava em grande parte ligada a atividades
religiosas. É nesse sentido que pretendemos colocar aqui alguns detalhes que
podem ser extraídos dos registros de óbito a respeito desses senhores. Estudando
um pouco mais sobre o administrador de índios teremos uma visão mais ampla
das relações entre ele e seus cativos.
69 PINHEIRO MACHADO, Brasil. Formação da estrutura ag´rria tradicional dos Campos Gerais. In: Boletim da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Departamento de História, nº 3, jun. 1963, p. 4-27.
35
Para tanto vamos analisar alguns elementos na composição de seus
plantéis, como a posse de administrados e escravos, verificando sua possível
distribuição ou substituição. A finalidade é saber se o senhor que possui
administrados também mantém escravos ou se ambos podem ser encontrados
simultaneamente em sua posse. Podemos até mesmo indicar uma possível
substituição ao longo do período. Além disso podem ser explorados outros dados,
como a presença ou não de títulos de referência: “Capitão Mor” ou “Doutor” e
comparar esses senhores com os demais.
Um primeiro fator a ser analisado será o da pequena propriedade, pois
vemos que mais da metade dos senhores de Curitiba (59%), segundo os registros
de óbitos, possuíam apenas um administrado ou escravo durante o período.
Estamos falando de uma significativa parcela de colonos que pode nos dar uma
primeira pista sobre a preferência da mão-de-obra a ser empregada em suas
propriedades. E já de início notamos uma forte tendência de se optar por escravos
negros ao invés de administrados. Aproximadamente 69% dos pequenos
proprietários detinham escravos em seu poder. Isso pode ser explicado pela maior
resistência do negro às variadas doenças e até mesmo por uma maior
adaptabilidade deste aos propósitos mercantis de seu dono, segundo a visão
deste . Enfim, verificamos que em Curitiba senhores com apenas a posse de um
indivíduo em seu plantel têm uma tendência a optar por escravo ao administrado.
Uma outra possibilidade é verificarmos o grande proprietário ou pelo menos
os que constam nos registros mais de cinco vezes. Sabendo que essa faixa
representa 11% do total de senhores, e tendo idéia de sua importância,
verificamos que apenas três dos vinte e quatro registros obtidos possuem somente
administrados em sua propriedade. Os casos estão bem distribuídos por todo o
período, com exceção da década de setenta.
Em situação oposta, contabilizamos oito senhores que registram somente
escravos. Destes, a grande maioria se concentra na segunda metade do século,
em especial nas décadas de sessenta e setenta. Finalmente, recortamos os
senhores que possuem conjuntamente escravos e administrados, que serão a
maioria com mais da metade dos registros dessa faixa. Notamos que existe, ao
36
observarmos todo o período, uma tendência de proximidade entre as proporções
de administrados e escravos, com um predomínio dos últimos. Em cento e um
registros encontrados, temos uma presença de quarenta e quatro administrados
para cinqüenta e sete escravos, o que indica que o grande proprietário de Curitiba
detinha em seu poder ambos os tipos de mão-de-obra. De acordo com os dados
anteriores ao final no período, já existe uma preponderância dos escravos, na
composição dos plantéis, o que nos mostra a antiguidade da escravidão negra na
região. Mas é fundamental destacar que a contínua presença indígena aponta sua
importância na economia e na própria substituição, que segundo os dados, vem se
processando ao longo do século XVIII.
Após verificarmos uma possível preferência na escolha da mão-de-obra
podemos levantar, brevemente, alguns títulos encontrados nos registros de óbito.
Não pretendemos fazer nenhuma análise de sua respectivas funções ou dos
cargos que representam, mesmo porque a fonte não permite tais levantamentos.
Aqui buscamos relacionar algumas referências a títulos, encontradas nos
registros, e comparar com o tamanho e a escolha da posse.
O que verificamos ao procurar no registro por palavras que identificassem
de uma maneira mais clara o “senhor”, foi a recorrência de certos títulos. Assim,
localizamos que cerca de 20% (43 em 220) dos senhores possuem alguma
referência quanto à sua posição na sociedade colonial. Os títulos mais recorrentes
são o de capitão, sargento ou alferes quando tratamos de oficiais da Coroa, padre
ou vigário para os eclesiásticos e doutor ou licenciado como demais membros da
sociedade.
Como já dissemos, não cabe aqui discutir a efetividade ou não desses
cargos e sua prática, mas sim, como eles interferem na distribuição da mão-de-
obra. Uma das primeiras coisas a nos chamar atenção é a grande concentração
de mão-de-obra em suas mãos. Quase a totalidade dos senhores com um grande
número de escravos se encontram nessa categoria. E como já vimos
anteriormente, e podemos reforçar nesse momento, existe um predomínio muito
grande da escravidão sobre a administração.
37
Isto nos leva a pensar um pouco na legislação: as grandes leis de liberdade
absoluta – principalmente a de 1680 e 1755 – teriam pressionado de alguma
maneira esses senhores em sua escolha pelo tipo de mão-de-obra? Sabemos que
em outras regiões, como São Paulo, isso não foi verificado, mas, fica aqui uma
possibilidade “paranaense”, embora devamos problematizar a fonte, pois ela nos
permite apenas um indício de um quadro bem mais amplo.
Para exemplificar de uma maneira mais clara, vamos citar alguns casos de
senhores comentando brevemente seu histórico e a evolução temporal em suas
posses. Em primeiro lugar, vamos levantar dados referentes a Braz Domingues
Vellozo. Segundo Romário Martins, ele teria nascido em Curitiba onde ocupou
vário cargos de administração, chegando em 1737 a ser Tenente-Coronel70.
Minerador no Arraial Grande, atual São José dos Pinhais. Teria sido, também, um
grande defensor da sociedade Curitibana no século XVIII frente aos interesses
externos. Ao analisarmos os dados presentes nos registros vemos que Braz
Domingues vai constar como senhor em dez registros, sendo que em sete deles
figuravam administrados e, em três, escravos. Notamos que a distribuição se deu
ao longo de todo período impossibilitando maiores afirmações quanto à
substituição de mão-de-obra.
Verificamos também em suas posses que três de seus cativos eram
casados: Manoel, escravo, casado co Ângela que também era escrava de Braz;
Felipe, casado com Quitéria, ambos administrados; E o escravo Venturo, casado
com Ângela, que era administrada, fato que nos permite comprovar o sub-registro
uma vez que os ditos cônjuges não aparecem no registros até 1777. Um outro
aspecto é o sugestivo casamento entre o escravo e a administrada, talvez visando
manter sua posse.
Podemos apresentar, para uma comparação, Gaspar Carrasco dos Reis,
ilustre filho de Baltazar Carrasco dos Reis. Casou-se em Curitiba com a filha do
Capitão Antonio da Costa Velozo e foi criador de gado em Passaúna onde detinha
uma sesmaria. Ele teria morrido em 1729, portanto os registros aqui referidos
estariam em posse de seus filhos ou de um tutor legal. Constam nove registros de
70 Embora não tenhamos encontrado isso em nossa fonte.
38
administrados sob sua posse, sendo que oito dele situam-se nas décadas de trinta
e quarenta: isto aponta uma concentração de administrados nas primeiras
décadas do século XVIII ou até antes.
Outra figura ilustre da região será o Doutor José Rodrigues França: nos
dezenove registros no qual ele figura como senhor, vemos uma clara tendência à
posse de escravos, cerca de 75% do total de sua mão-de-obra. Ainda verificamos
que três dos cinco administrados localizam-se nos anos trinta, o que vai reforçar a
teoria de que o grande predomínio da administração teria sido no final do século
XVII e primeiras décadas do XVIII. Após esse período ela continua existindo, mas
vai lentamente perdendo força, até seu completo declínio no início do século XIX.
Para completar: podemos citar dois exemplos disso: primeiro, o filho do
capitão povoador Mateus Leme, José Martins Leme, que detinha seis índios e um
escravo, dos quais apenas dois nativos e o negro estão datados na segunda
metade do século. Seguindo esse raciocínio, estendemos o caso de João
Crisostomo que tem quatro de seus cinco escravos registrados nas décadas de
sessenta e setenta. Assim podemos ter uma idéia de algumas mudanças sociais e
econômicas em Curitiba, bem como, um indicativo das posses de alguns senhores
da região.
2.2 Indicações sobre a posse de mão-de-obra em Curitiba, 1731 – 1777.
Curitiba, no século XVIII, era uma pequena sociedade escravista que se
reorganizava, juntamente com a região Sul do Brasil, adaptando-se às novas
correntes mercantis que sopravam na direção das minas de ouro e diamantes que
haviam sido descobertas na região central da colônia. Nesse sentido o período
ganha uma importância fundamental, pois poderemos observar possíveis
transformações e levantar algumas hipóteses, mesmo que muito limitadas, em
relação a sua dinâmica social e econômica.
39
No início da povoação, muitas famílias de relativo poder e posse se
estabeleceram nessa região, o que pode ser explicado pela busca de ouro nos
primeiros tempos. Com a descoberta de ouro nas Gerais, as tropas passaram a
ser elemento fundamental na economia paranaense. Os inúmeros currais se
espalhavam pelos chamados campos de Curitiba, sendo que esse novo e farto
mercado se apresentava como uma alternativa a produção de ouro de lavagem,
que na época estava quase esgotada. Cabe aqui questionar a importância, ou a
super valorização do ouro encontrado no planalto: durante quanto tempo ele será
realmente a base da economia local? A venda de gado era uma atividade muito
lucrativa: “Apesar da descrença dos curitibanos, em 1731 entrou nos campos de
Curitiba a primeira tropa, tangida por cem tropeiros, e composta de ‘duas mil e
tantas cabeças, entre cavalos mulas e éguas’. ”71
Com a abertura do caminho do Viamão, em 1731, o Paraná vai se tornar
intermediário das relações comerciais entre o Rio Grande e as feiras de animais
de São Paulo. Além dessas atividades podemos destacar a notória venda e
criação, segundo Romário Martins, de gado “vacum” para o abastecimento das
minas, e o aluguel de pastos para invernagem de tropas. Em Romário Martins72
existe a idéia de que o comércio e a criação de gado tiveram uma influência
decisiva no povoamento do território paranaense, maior até que o ouro, por fixar
mais a população.
E, contrariando a idéia sempre presente em manuais didáticos, de que a
produção de gêneros alimentícios no Paraná sempre esteve ligada à subsistência,
podemos apontar a seguinte transformação:
“Já em 1780, ‘a alfândega de Santos anunciava a chegada das primeiras farinha
de trigo procedentes de Paranaguá’, originárias de Curitiba”73 Essa foi uma reação
das autoridades e dos senhores a crise de abastecimento que castigava a vila na
metade do século. Assim, podemos indicar uma sociedade envolvida nas
transformações econômicas da colônia.
71 BALHANA, Altiva Pilatti, et al. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. v.1. p. 65. 72 MARTINS,Romário. Historia do Paraná. Curitiba. Empreza Graphica Paranaense. 1937. p. 270-271. 73 BURMESTER, Ana Maria. Op. Cit. p. 7.
40
Como foi visto na primeira parte dessa pesquisa, a mão-de-obra indígena
ainda era muito forte na vila até as primeiras décadas do século XVIII. Já em 1731
a população escrava é maior que a administrada, o que demonstra uma forte
inclinação para o escravismo negro. Em seus estudos sobre essa transição na
Bahia, Schwartz 74 aponta para a formação de um pecúlio que vai possibilitar a
posterior transição para o mercado africano de escravos.
Para verificar essa possibilidade e formular outras questões, decidimos
observar a dinâmica das posses de grandes senhores em Curitiba. Para tanto
classificamos os senhores segundo de acordo com a quantidade de administrados
e escravos que sepultaram, como uma aproximação ao tamanho dos plantéis,
tanto de escravos como de administrados, dividindo em cinco períodos conforme
veremos na tabela
Como exemplo: podemos citar o já mencionado Gaspar Carrasco dos Reis
que vai sepultar a expressiva quantidade de nove administrados, tornando-o um
dos poucos senhores a enterrar cinco ou mais administrados. Essa verificação foi
repetida para todos os senhores, produzindo-se assim uma lista com os maiores
senhores de administrados de Curitiba. Em cada um dos sub-períodos que vêm
sendo utilizados ao longo desta monografia (1731-1739, 1740-1749 etc) foi
verificada a presença destes maiores senhores entre os que sepultaram
administrados, a fim de ver se eles eram mais freqüentes no início ou no final do
período estudado. Sua freqüência nos registros de óbitos como senhores de
administrados é considerada aqui um indicador que permite uma aproximação à
evolução do tamanho das posses de administrados. As grandes posses de
administrados eram mais freqüentes no início do período, o que reforça nossa
idéia da antiguidade da substituição de mão-de-obra. Em seguida, repetiu-se o
procedimento para o caso das posses de escravos.
As ocorrências dos senhores, com um determinado número de escravos,
foram comparadas ao total geral do período. Assim, elaboramos uma tabela
contendo as porcentagens de “grandes senhores” em relação ao total. Sempre é
importante lembrar das distorções provocadas pelo sub-registro e pela separação
74 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos op. cit.
41
das paróquias que ocorrem nesse intervalo. Os registro de óbito apenas apontam
uma tendência que poderá ser confrontada com outras fontes e comparada a
outras regiões da colônia.
Tabela 6: Concentração da posse de administrados, por decênios
(Curitiba, 1731-1777)
Período Ocorrência de
senhores com mais
de cinco
administrados
Total de
administrados
% de senhores
sobre o total.
1731 – 1739 11 32 34
1740 – 1749 9 33 27
1750 – 1759 13 69 19
1760 – 1769 5 22 23
1770 – 1777 13 0
Fonte: Catedral Basílica de Curitiba. Óbitos, 1731-1777.
Sabemos que a “grande propriedade”, tendo em mente plantéis com um
grande número de cativos, não é uma característica da região de Curitiba. Isso
pode ser explicado por fatores de ordem econômica, como a não-participação de
forma mais direta no mercado de exportação atlântico, como ocorria em outras
regiões, como a Bahia, que apresentavam um altíssimo número de escravos e sua
concentração nas mãos de uma pequena elite.
Em Curitiba encontraremos uma realidade diferente, mas com alguns
padrões semelhantes. Para criar a tabela, arbitramos um padrão de grandes
senhores, que constam nas atas, enterrando cinco ou mais administrados ao
longo de todo o período. Em seguida, podemos verificar a ocorrência desses
senhores distribuídos em cinco parciais75, como se pode observar. Os totais, na
75 Seriam períodos de dez anos, mas a fonte não possibilitou tal divisão. Como se pode notar a primeira e a última parcial são menores.
42
tabela, indicam o número absoluto de administrados referidos nas atas. Assim,
temos as porcentagens, ou seja a participação, dos grandes senhores de índios
em relação aos demais. Os indícios demonstram que grande parte do índios
estava nas mãos de poucas pessoas abastadas e que suas posses mantém um
patamar quase constante ao transcorrer do período. Devemos lembrar que na
década de cinqüenta houve uma grande epidemia, como visto anteriormente, que
vai distorcer um pouco a continuidade dos dados.
O que podemos pensar ao ver que, apesar de uma tendência de queda na
população indígena, os grandes senhores mantém uma participação elevada no
total de administrados do período? Voltamos ao modelo de acumulação de
trabalhadores forçados, proposto por Schwartz. Estamos vendo a concentração da
mão-de-obra nas mãos de grupos tradicionais, que reproduzem sua riqueza
possibilitando não só a substituição da mão-de-obra, mas também a manutenção
da diferença social existente entre eles e outros membros da sociedade.76
Não podemos excluir nem ignorar o grande número de senhores com
apenas um ou dois cativos;. Embora não relacionados na tabela, eles estão
presentes e participantes no conjunto de relações coloniais, diferente do que
afirma Caio Prado em relação à rígida estratificação Senhor – escravo, separados
por uma gama de desclassificados “poor whites”,77 que tinham pouca influencia no
sistema mercantil colonial.
Em Curitiba, vemos uma grande parte da mão-de-obra sob controle dessa
“classe média”78 e os grandes senhores que citamos nem podem ser comparados,
em termos de posse, ao grande senhor de engenho de áreas como o Nordeste
Açucareiro. Mas fica indicada uma tendência de concentração da riqueza,
expressa em administrados: esse montante poderá ser transformado em escravos
negros, como veremos, no transcorrer do período.
76 ALVES, Maurício Martins. Caminhos da pobreza: A manutenção da diferença em Taubaté (1680-1729). Dissertação de Mestrado, UFRJ, 1995. p. 72. 77 PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 17ed. São Paulo, Brasiliense, 1981. 78 Guardando todas as proporções e anacronismos presentes em tal afirmação.
43
Tabela 7: Concentração da posse de Escravos, por decênios
(Curitiba, 1731-1777)
Período Ocorrência TOTAL %
1731 – 1739 13 53 24
1740 – 1749 16 43 37
1750 – 1759 19 57 33
1760 – 1769 15 63 23
1770 - 1777 16 73 21
Fonte: Catedral Basílica de Curitiba. Óbitos, 1731-1777.
Comparando a tabela 7 com a 6, vê-se que não parece ter havido muita
diferença entre o grau de concentração da posse de escravos, em comparação
com o de administrados. Por outro lado, o enraizamento da escravidão africana
em Curitiba não se deu por uma tendência marcante ao incremento da
concentração da posse: ao contrário, tal enraizamento processou-se
aparentemente através de uma maior importância das posses menores. Ou seja, a
escravidão africana não se enraizou mais em Curitiba devido a um aumento
excessivo das maiores posses. A concentração da posse de escravos parece ter
sido relativamente constante, em termos aproximados.
Ao montarmos a tabela 7 seguimos o mesmo procedimento apresentado na
anterior, mas agora contabilizando os registros de escravos, visando uma
comparação entre os contingentes de mão-de-obra. Logo notamos que existe uma
forte tendência de aumento da população escrava, como de fato já esperávamos.
Mas o que parece ser sugestivo, ao observar as porcentagens, será uma
concentração muito parecida com a dos administrados.
Comparando os dados de ambas (tabelas 6 e 7) vemos que a queda
constante do número de administrados aliada ao progressivo crescimento da
massa de escravos não vai afetar de forma significativa a participação dos
grandes proprietários, o que pode indicar que esses “peixes grandes” da região
não empobreceram com a substituição de administrados por escravos, eles
somente vão se adaptar ao novo contexto apresentado na época. Confirma-se o
44
modelo de que a posse de administrados constituiu acumulação para a transição
para a escravidão africana. Não houve substituição de elites. Em outros termos,
não se pode pensar que a transição da administração para a escravidão africana
processou-se através da entrada de novos senhores (de escravos), em
substituição aos antigos senhores (de administrados), ou a suas famílias.
Ao vermos que existe uma dinâmica interna, tanto da sociedade colonial
como dos grupos nativos, definindo a composição da mão-de-obra e o tamanho
dos planteis, lembramos da proposta de interpretação lançada por Caio Prado, na
qual teríamos na Colônia uma economia voltada para o mercado externo, e nas
chamadas zonas periféricas – como o Paraná colonial– uma economia de
subsistência79. Nesse ponto devemos observar que a criação de gado e a
integração com Bandeiras preadoras paulistas são atividades desenvolvidas
desde os primeiros fogos da região. Segundo Romário Martins, em 1661, o
sertanista que obteve a primeira sesmaria concedida em Curitiba, Balthazar
Carrasco dos reis, “já nesse sítio residia há alguns anos, com sua família, onde
mantinham criação de gado vacum, ovino e cavalar”80. Assim, devemos observar a
região com as lentes da nova visão historiográfica proposta anteriormente, na qual
será de grande importância verificarmos as relações internas da economia. Os
dados indicam a existência de uma elite local que concentra uma grande parte da
mão-de-obra disponível e que não estará tão sujeita as oscilações do mercado.
Verificamos, também, a existência de uma camada significativa dos
senhores que enterram apenas um escravo ou administrado durante o período:
para ser específico, mais da metade do total (59%) de senhores. Contudo,
devemos lembrar que os senhores, muitas vezes não levavam todos seus cativos
para serem enterrados conforme o costume, devido aos custos do processo e ao
enorme espaço a ser percorrido entre a fazenda e a igreja. Sendo assim, podemos
trabalhar apenas com indicações a respeito do tamanho real dos plantéis.
De uma maneira geral, podemos verificar a queda no número de
administrados, sendo que no último decênio a participação de grandes senhores
79 PRADO JR, Caio. Op cit. p. 163. 80 MARTINS, Romário. Terra e gente do Paraná. Curitiba: Coleção farol do saber. 1995. p.29.
45
desaparece, aliada ao aumento vertiginoso dos escravos ao longo de todos os
decênios. Devemos desconsiderar a década de cinqüenta, a qual, como já vimos
na primeira parte dessa pesquisa, apresenta um comportamento anormal devido a
uma epidemia de sarampo.
Estamos acompanhando os efeitos da economia do ouro, somados às
dificuldades em se adquirir e manter mão-de-obra nativa, à substituição da mão-
de-obra e à integração com outras economias da colônia. O que, porém, não
invalida a importância dos fenômenos internos da região. Hebe de Casto e
Fragoso e Florentino apontam essa acumulação de riquezas como fator de
diferenciação sócio-econômica81. Assim podemos pensar que as mudanças que
ocorrem no século XVIII em Curitiba vão favorecer a substituição da mão-de-obra
e até mesmo um redirecionamento de várias práticas econômicas. Mas a elite
regional aqui estabelecida vai se adaptar à nova realidade sem sofrer grandes
perdas. Vemos também que a utilização da mão-de-obra indígena permitiu uma
acumulação de capital que vai possibilitar esses senhores comprar escravos
negros e, de certa maneira, manter sua posição de hegemonia social.
81 Para melhor discutir esse tema ver: CASTRO, Hebe Maria M de. Ao sul da história. São Paulo, Brasiliense, 1987. e também ver: FRAGOSO, João L. F. e FLORENTINO, Manolo G. O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro, Diadorim, 1993.
46
Capitulo 3: Relações entre religião, escravidão e incorporação em Curitiba no
século XVIII.
“Todo proyecto colonial tiene como ideología subyacente la implantación de un
nuevo orden cultural, entendiendo cultura en su sentido más amplio de modo de
ser, de pensar y de actuar sobre el mundo y organizar la sociedad.”82
Nas palavras de Melià vemos como o projeto colonial vai interferir de forma
absoluta nas varias sociedades presentes na região, em especial os guaranis –
que, como já foi visto, estavam mais adaptados aos anseios dos colonos –
ocupantes de uma vasta área do território paranaense. Nessa parte da pesquisa
pretendemos explorar, com base na fonte e comparando com alguns autores,
alguns aspectos da incorporação do índio à sociedade colonial.
Como sabemos, a religião católica foi um dos principais instrumentos do
europeu, no sentido de trazer os índios para a vida em “sociedade”83 e, mais que
isso, a conversão e catequese constituíam o que podemos chamar de “sentido
ideal” da colonização.
Nessa direção, decidimos apontar três aspectos observados nessa relação
colono-índio, que podem ser vistos com base nos registros de óbito: em primeiro
lugar relembramos a importância da religião na conquista e escravidão dos nativos
o que pode ser diretamente relacionada com a hipótese central de nossa pesquisa
– a incorporação do índio a sociedade. E o rito fúnebre nos ajuda a entender como
ela se processou em alguns momentos. Em segundo lugar, vamos discutir o rito
fúnebre em si, as práticas do bem morrer em Curitiba no século XVIII. E para
finalizar essa parte, falaremos um pouco sobre a participação dos administrados,
negros e mestiços em irmandades locais.
3.1 Religião e Incorporação em Curitiba.
82 MELIÁ, Bartolomeu. El guarani conquistado y reducido: Ensayos de etnohistoria. Asincion: CEADUC, 1988. p. 161 83 Do ponto de vista europeu é claro *
47
A abertura do Novo Mundo à colonização e exploração européia criou
oportunidades novas e aparentemente ilimitadas para a expansão da agricultura
de exportação em grande escala e a busca de metais preciosos. Os primórdios da
colonização do Brasil foram marcados pela história dos contatos entre
portugueses e indígenas ao longo da costa. Do escambo à escravização a mão-
de-obra dos índios foi utilizada em variadas atividades do colonizador: uma força
de trabalho relativamente barata e prontamente acessível até que o colono se
encontrasse totalmente capitalizado.
Entre os povos indígenas que entraram em contato com os portugueses
nas duas primeiras décadas da história brasileira, os mais numerosos e
amplamente dispersos eram os da família lingüística tupi-guarani. E o principal
grupo na região da futura capitania de Santana era o guarani. A economia guarani
era basicamente de subsistência. Assim, cada aldeia produzia para atender às
suas necessidades, havendo pouca troca de gêneros alimentícios com outras
aldeias. E a religião era, e segundo Schaden84 ainda é, o elemento principal da
cultura tribal, abarcando inclusive as atividades econômicas. Portanto, devemos
redimensionar o impacto da cristianização na vida dessas comunidades, uma vez
que sua religião original foi sendo lentamente substituída, embora devamos tomar
muito cuidado com a aceitação e a total conversão dos nativos85. Sendo assim,
sabemos que o impacto dessa aculturação vai produzir nas sociedades indígenas
uma nova ordem cultural que por sua vez favoreceu a conquista européia da
América em geral.
Apesar das tentativas de resistência, por parte dos nativos, como as
guerras, os movimentos messiânicos – a busca da terra sem mal86 – e o
sincretismo inerente a uma evangelização desse tipo, sabemos que a maioria dos
grupos indígenas que entraram em contato com os europeus foram massacrados 84 SHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo, EDIPE , 1962. p. 107-148. 85 Monteiro cita o caso do padre Afonso Brás que testemunhou muitos indís voltarem aos “modos gentílicos” após o batismo. Ver: MONTEIRO, John Manuel . Negros da terra. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 48 -49. 86 Acreditavam numa terra sem males, para onde, em determinadas circunstâncias, poderiam ser transportados sem morrer e onde seriam felizes infinitamente. Por isso que os temporais, enchentes, etc. os apavoravam, porque todos almejavam chegar a essa terra sem males.Ver: CLASTRES, Hélène. Terra sem mal. São Paulo: Brasiliense, 1978
48
pela tríade mortal de doenças, guerras e fome. A natureza do relacionamento
entre europeus e indígenas foi determinada, em grande medida, pela natureza da
presença portuguesa, por seus objetivos econômicos e por seus interesses
caracteristicamente europeus em três aspectos básicos: alimentação, defesa e
mão-de-obra.
Sabemos que o papel marcante da religião católica foi justamente interferir
na dinâmica interna das comunidades nativas. As reduções e aldeamentos
acabavam com os ciclos de migrações, feitas para o rocio e/ou por práticas
religiosas, alem de interferir na organização espacial do grupo. Outro aspecto que
vai marcar essa fase do contato será a condenação da guerra ritual que tinha um
papel decisivo na afirmação da identidade étnica. Somada a esse processo, temos
a interferência dos padres na forma do plantio e a proibição de muitas práticas
tradicionais, como por exemplo a antropofagia, além de outros elementos que
eram de grande importância para sua cultura: a poligamia e o casamento
interfamiliar, principalmente o homem com a filha de sua irmã, foram duramente
combatidos pelos missionários. Sabemos, contudo, que o parentesco é a base da
dinâmica social dessas comunidades.
Em Monteiro podemos encontrar alguns relatos de padres que mesmo não
concordando com a escravidão geral e indiscriminada dos índios, não viam outra
solução adequada aos problemas da colônia: “Não se pode portanto esperar nem
conseguir nada em toda essa terra na conversão dos gentios, sem virem para cá
muitos cristãos , que conformando-se a si e a suas vidas com a vontade de Deus,
sujeitem os índios ao julgo da escravidão e os obriguem a acolher-se à bandeira
de Cristo”.87 Essa frase do padre Anchieta pode nos levar a refletir a posição
efetiva da igreja a respeito da escravidão indígena. Nos registros de óbito,
encontramos um caso bastante ilustrativo: o padre Lucas Rodrigues França teve
registrado nas atas quatro administrados de 1747 a 1759. Portando, podemos
perceber que as atitudes da igreja e especialmente de seus membros obedeciam
a uma lógica que, de alguma forma, respondia aos apelos do mercado e da
conjuntura colonial. Vemos que o pensamento da igreja não era uniforme, uma
87 MONTEIRO, op cit. p. 41.
49
vez que muitos de seus membros diferiam a respeito da utilização do trabalho
indígena. Como exemplo, temos o padre França, que era do clero secular,
bastante diferente do regular – e os jesuítas eram contrários a escravidão.
Sendo assim, a Igreja Católica vai contribuir de forma significativa para a
implantação do uso forçado de mão-de-obra indígena em Curitiba, ao reduzir,
aldear, cristianizar e, de certa forma, “domesticar” os chamados “gentios
bárbaros”. A mão-de-obra escrava dos nativos foi amplamente utilizada no
Paraná, sob denominação de administrados – como já vimos anteriormente. O
ponto a ser destacado é o respaldo institucional dado pelo pároco ao oficializar
essa pratica no assento de óbito.
Já o rito funerário é bem mais revelador, a respeito de que motivos teriam
os senhores para trazer os ossos de seus administrados e escravos mortos em
sua propriedades rurais para serem devidamente sepultados na Matriz. E também
no tocante aos elaborados funerais, cortejos e até mesmo sepulturas e vestes
cerimoniais providenciadas pelas irmandades, das quais administrados tomavam
parte ao lado de escravos e homens livres. Toda essa preparação para o bem
morrer nos mostra o quão incorporados estavam os índios à sociedade e cultura
portuguesas, tanto que até na morte participavam do mesmo catolicismo barroco88
e elaborado, praticado aqui na colônia.
3.2: O Bem morrer: praticas fúnebres e hierarquia nos assentos de óbito.
Pode parecer estranho estudar os ritos fúnebres e outras práticas
tradicionais, no final da vida de administrados e escravos, na Curitiba colonial.
Tudo isso para tentar conhecer um pouco mais sobre a vida dessas pessoas e
suas relações internas e externas, dentro do contexto no qual estão inseridas. Mas
se pensarmos no grande impacto que a morte e a relação com os mortos exerce
em todas as culturas humanas, cremos que essa é uma maneira excepcional de
se verificar modificações, permanências e até mesmo projetos culturais em
desenvolvimento. Sabemos que o projeto colonial desde seu princípio possui um
88 REIS, João José. Op. Cit. p. 49.
50
forte caráter religioso, não menosprezando outros inúmeros fatores como a
economia de mercado, mas a idéia de uma colonização cristã será a tônica que
move o próprio ideal do colonizador.
E, dentro dessa visão religiosa do mundo, a crença na existência do
paraíso ou do inferno após essa vida faz da morte uma verdadeira passagem da
qual pode depender a salvação ou condenação. Assim, o cristão procura
assegurar que sua transição desse mundo para o próximo seja cercada de todos
os cuidados possíveis, para seu sucesso espiritual. Muito bem, então, podemos
notar a importância de um bom rito de passagem e um enterro “correto”, pelo
menos respeitando a prática cristã.
Para as sociedades indígenas e africanas o rito fúnebre e todos os
processos que envolvem a morte, como rezas indumentária ou até mesmo a
causa do óbito, são de grande importância. Em geral, as sociedades tribais têm
uma prática religiosa intensa, que se liga a quase todas atividades do grupo. Não
pretendemos fazer aqui um estudo antropológico da religião ou do rito fúnebre:
nos interessa descrever sua importância na organização social e como ela serviu
de ponte para incorporação do índio à sociedade colonial.
Em Schaden, vemos que a existência do indivíduo na sociedade guarani
estava, e de certa forma ainda está, ligada a estados de crise. Situações como o
nascimento, a maturação biológica, as doenças, o nascimento dos filhos e
finalmente a morte, requerem certas precauções e práticas tradicionais89. É nesse
momento que devemos comparar esta visão de mundo guarani com a visão
católica, em especial os sacramentos do batismo, casamento, penitência e
extrema-unção. Pode-se pensar que o rito fúnebre, tão forte em ambas religiões,
serve como lente para entendermos um pouco mais sobre a integração dessas
culturas.
Ao estudar uma revolta popular na Bahia, João José Reis vai levantar
algumas questões referentes a práticas fúnebres do catolicismo português, que
foram amplamente adotadas na colônia.
A cemiterada foi um episódio que teve como motivação central a defesa de concepções religiosas sobre a morte, os mortos e em especial os ritos fúnebres, um aspecto importante
89 SHADEN, Egon. Op cit. p. 85 – 98.
51
do catolicismo barroco. Um catolicismo que se caracterizava pro elevadas manifestações de fé: missas celebradas por dezenas de padres, acompanhadas por corais e orquestras, em templos cujas abundante decoração era uma festa para os olhos, e sobretudo funerais grandiosos e procissões cheias de alegorias, de que participavam centenas de pessoas. 90
E Curitiba vai incorporar essa tradição de um pratica católica elaborada e
em certos momentos até extravagante; de fato, temos aqui um catolicismo
barroco, que vai reproduzir as práticas trazidas do Reino, mas adaptando-as à
realidade local e sua sociedade.
A comunidade negra, bem como suas práticas e especificidades culturais,
não pode ser deixada de fora dessa discussão. Existem numerosos estudos sobre
esse caminho de duas mãos, no qual, a região influencia a comunidade mas
também é influenciada no processo. O sincretismo, como diriam muitos autores,
pode ser notado na “africanização da religião dominante”91. Contudo, essa
expressão deve ser discutida, bem como a noção de sincretismo.
Defende Mary Karash que esta operação não significava necessariamente
a conversão dos escravos, muito menos o sincretismo religioso - uma parte
católica e outra parte africana - ou o ato de esconder os "deuses" africanos atrás
das santas imagens. Significava, principalmente, a incorporação das imagens
católicas, dos novos símbolos, à religião da África Central.92 Assim podemos
caminhar na direção de uma incorporação e da importância da identificação
religiosa do grupo.
Embora cientes da utilização de vários grupos indígenas na composição da
mão-de-obra em Curitiba, temos que os guaranis são o de maior destaque. Como
já visto, a religião constitui um aspecto fundamental da vida desse povo: vamos
observar qual seriam as suas atitudes diante da morte. Tentar compreender,
embora de maneira superficial, a importância do rito fúnebre nesse contexto vai
ajudar na compreensão do processo incorporativo.
90 REIS, João José. Op. Cit. p. 49. 91REIS, João José. Op. Cit. p. 65. 92 KARASH, Mary. 1987. Slave life in Rio de Janeiro. Princeton, Princeton University Press. P. 261-284, para uma discussão de festas no século XIX, ver: ABREU Martha, Festas religiosas no Rio de Janeiro:perspectivas de controle e tolerância no século XIX. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 14, 1994, p. 183-203.
52
Existem muitas dúvidas sobre os ritos fúnebres praticados pelas várias
etnias pré-colombianas. Entre os guaranis, esse é um tema muito difícil de ser
abordado, devido à dificuldade de se conseguir relatos.
Segundo Shaden, o rito fúnebre poderia ser composto de diferentes formas
para garantir uma transição segura para uma espécie de paraíso “uma terra sem
males”93, que poderia ser alcançado em vida (o que explicaria as constantes
migrações), ou após a morte. Dentre algumas práticas, devemos lembrar o enterro
em grandes vasos de cerâmica, lembrando a grande habilidade dos guaranis
como ceramistas: o defunto era colocado em posição fetal e junto com ele eram
enterrados seus objetos pessoais. Fala-se também de enterros no interior das
ocas e do hábito de se acender uma fogueira junto ao túmulo, para iluminar a
trajetória do espírito em sua difícil jornada. Podemos ainda destacar várias rezas e
cantos que poderiam ser feitos pelo ñanderú (médico-feiticeiro) com ou sem a
participação da comunidade. E ainda poderíamos nos estender falando sobre a
concepção de múltiplos espíritos ou sobre noções de doença e morte, mas
achamos que fugiria da proposta inicial do trabalho.
O que devemos frisar, portanto, será a existência de um rito fúnebre
elaborado e de grande importância na cultura guarani. Ao reduzir e doutrinar os
índios, a sociedade portuguesa limitou ou cerceou tais práticas tradicionais,
impondo a fé católica e suas tradições. Ao ser submetido a essa brutal
reorganização cultural, o nativo incorpora as práticas do catolicismo barroco a
seus conceitos tribais de religião. E o rito fúnebre nos possibilita essa visão tanto
do ponto de vista do índio, quanto da missão catequizadora do colono.
Muito bem, como essas idéias vão se processar em Curitiba no século
XVIII?
Reis chama atenção para as práticas religiosas do fim da Idade Média e a
aproximação entre vivos e mortos, a proximidade dos cemitérios, o enterro em
igrejas e sobretudo o cemitério e a igreja como local de integração social. Assim,
na pequena Curitiba, encontramos uma extensão dessas tradições européias,
guardando as devidas proporções: o catolicismo barroco também vai ter aqui sua
93 CLASTRES, Hélène. Op cit.
53
influência. No período estudado, a maior parte dos sepultamentos foi realizada na
Igreja Matriz, salvo na segunda metade do XVIII, quando as capelas e outras
freguesias passam a receber algumas dessas atividades.94 Segundo nossa fonte,
os sepultamentos eram feitos dentro da igreja ou no adro desta, e, como veremos,
havia possíveis critérios para separação.
Para trabalhar questões tocantes ao rito, cabe destacar as informações
fornecidas pelos registros de óbito95, e que serão discutidas a partir de agora.
Algumas informações chamam atenção nessa parte da pesquisa: o local do
enterro (dentro ou no adro) e muitas vezes até a posição (junto à torre, entre os
bancos). O padre também informa os sacramentos recebidos pelo moribundo e
muitas vezes até o motivo de não ter tais benefícios. Essas informações são muito
importantes, pois indicam o possível sucesso do morto em sua passagem para o
além; e, num certo grau, até mesmo seu prestígio no mundo dos vivos . Ainda
pudemos encontrar dados sobre o funcionamento da irmandade do Rosário, como
esquife, mortalha, e cruz. E por fim realizamos um levantamento de observações
gerais que esporadicamente o vigário elaborava. Elas contém, às vezes, a causa
da morte, e em outras o motivo de não haver ministrado todos os sacramentos e
até testamentos96 ditados ao padre com os últimos suspiros.
Com relação ao local do enterro sabemos que era um elemento de grande
importância nas praticas do “bem morrer”. Segundo José Reis:
De um modo geral, pessoas de qualquer condição social podiam ser enterradas nas igrejas, mas havia uma hierarquia do local e do tipo de sepultura. Uma primeira divisão se fazia entre o corpo, parte interna do edifício e o adro, a área em sua volta. A cova no adro era tão desprestigiada que podia ser obtida gratuitamente. Ali se enterravam escravos e pessoas livres muito pobres.97
Vamos notar que essa diferenciação também se dava nos enterros na
Matriz de Nossa senhora da Luz. Para demonstrar a divisão entre escravos e
administrados elaboramos uma tabela, segundo as informações obtidas no
94 Uma lista das principais capelas da região e algumas informações sobre elas pode ser vista em: BURMESTER, Ana Maria. Op. Cti. P. 16-17. 95 Como exemplo Um registro padrão pode ser visto nos anexos, p.?. 96 Tivemos dois casos: Jerônimo Rodrigues Seixas (1735, Mulato) e Guilerme Nogueira Passos (1740, Mulato) ambos “naturais” do Rio de Janeiro. 97 REIS, João José. Op. Cit. p. 175.
54
Registro de Óbitos. Essa tabela apresenta o local do enterro e os números de
administrados e escravos que forram lá sepultados.
Tabela 8: Enterros registrados na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, 1731 – 1777.
LOCAL ADMINISTRADOS ESCRAVOS
ADRO 74 141
DENTRO 81 127
Fonte: Ver tabela 1.
Notamos uma considerável igualdade entre os números de enterros de
administrados no adro e dentro da igreja, praticamente metade em cada local.
Esse fato se repete na população escrava, que como já sabemos era
numericamente maior, segundo os registros. Para buscar uma explicação para
essa situação, primeiramente lembramos que não eram proibidos os enterros de
escravos ou índios no interior das igrejas, sabemos inclusive da existência de
“tumbas” próprias de certas irmandades.
Entre os escravos, podemos apontar que trinta e três pertenciam a
irmandade do rosário e cinqüenta e nove eram crianças e do restante muitos
morreram sem os sacramentos. Portando podemos aventar a hipótese de que o
enterro dentro da igreja estava relacionado a algum desses fatores. Já os
administrados apresentam uma situação muito parecida, temos vinte irmãos do
rosário e vinte e sete crianças. Uma mudança considerável: será que os demais
índios não apresentam a falta de sacramentos? Então, qual seria a explicação
para sua sepultura ser feita dentro da igreja? Um indício no sentido de explicar tal
fenômeno seria que a grande maioria dos nativos foi sepultada no final do período,
quando a administração já não se mostrava tão forte e as bases dessa instituição
se encontravam decadentes. Isso leva a crer que o índio que sempre recebeu ou
tratamento, ao menos do ponto de vista legal98, diferenciado do escravo, agora
também passava a ter um local diferenciado de sepultura.
98 Podemos relembrar aqui as primeiras discussões a respeito da administração peitas no primeiro capitulo.
55
Sendo uma das bases do catolicismo, um elemento muito valorizado em
todas as fazes da vida do indivíduo são os sacramentos. Sempre presentes na
vida e em especial na morte dos católicos. Sabendo que a catequese é um dos
pontos fundamentais da colonização e mais ainda da própria administração,
resolvemos verificar os óbitos em que o indivíduo não recebeu, ou não consta no
registro, nenhum dos sacramentos. Verificamos durante o período cento e dez
óbitos sem que conste nenhum sacramento, desses a grande maioria foi de
escravos (79). Por várias vezes o padre aponta o motivo da falta, que muitas
vezes é colocado como sendo a distância do local onde habitava o morto ou ser o
enterro de ossos que estavam no Sertão. Os vinte e seis administrados, que são
apontados sem sacramentos, parecem gozar de uma atenção especial de seus
senhores quanto ao fator religioso, o que se torna compreensível devido a
natureza de sua condição. Para demonstrar a importância dada à catequese e aos
sacramentos eclesiásticos, podemos citar o exemplo de Feliz Leite, que foi
“penalizado em cinco tostões” por não chamar o padre para ministrar os devidos
sacramentos à Maria “do gentio da terra”, em 1733.
Enfim, existiam inúmeros cuidados a serem tomados no tocante as formas
de bem morrer e, nesse contexto colonial, Curitiba teve sua parcela de
“catolicismo barroco”. Segundo Philippe Ariès “A morte bela e edificante, final de
uma vida justa e santa passada no mundo”99. Nesse sentido, escravos e
administrados vão participar e até mesmo interferir nessa complexa relação
cultural, buscado uma salvação que muitas vezes nem compreendem e outras
vezes reinterpretam de acordo com sua própria visão de mundo e de religião. Ou
seja, podemos observar através do rito fúnebre, ainda que seja de maneira
limitada, aspectos dessa borrada fronteira sócio-cultural entre os grupos aqui
referidos.
3.3: A irmandade do Rosário: índios e outros grupos na composição da irmandade
em Curitiba.
99 ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de janeiro. F. Alves, 1982. p. 342.
56
As confrarias, divididas principalmente em irmandades e ordens terceiras,
existiam em Portugal desde o século XIII, dedicando-se a obras de caridade, a
seus próprios membros ou pessoas carentes da comunidade. Em geral
associações de leigos, aceitando também religiosos, funcionando em igrejas que
as acolhessem e obedecendo a um certo compromisso aprovado pelas
autoridades eclesiásticas.
Uma igreja poderia acomodar mais de uma irmandade, contanto que
tivessem nomes distintos; seus santos patronos eram venerados em altares
laterais. Muitas irmandades em áreas mais centrais, do ponto de vista mercantil e
até mesmo em locais afastados, começaram uma carreira tímida em altares
laterais chegando a ter suas próprias igrejas: podemos citar a Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos de Curitiba.
A administração das confrarias ficava a cargo de uma mesa diretora,
presidida por juizes, piores, presidentes entre outras. Essa mesa era composta de
cargos específicos como: Escrivão, tesoureiro e mordomo, que desempenhavam
suas funções durante um ano, sendo que eram cargos eletivos. A organização
dessas ordens nos parece um tema de grande relevância. Contudo, pouco
explorado, e infelizmente nossa fonte não pode ajudar nesse sentido.
Com relação aos membros pertencentes às irmandades, eram exigidas
certas condições raciais ou/e sociais de seus integrantes, geralmente presentes
nos estatutos ou compromissos da confraria. Mas estes fatores eram, de certa
forma, maleáveis, e obedeciam a dinâmicas internas e externas à própria
comunidade. Um exemplo pode ser a presença notória de índios em uma
irmandade de negros, que por sua vez raramente aceitava africanos.100
Os deveres dos irmãos eram, de um modo geral, o bom comportamento
aliado à devoção católica, o pagamento das anuidades e a participação nas
cerimônias da irmandade. Isso trazia aos irmãos certos benefícios como
100 Em Curitiba ver: MOURA, Ana Maria da Silva e LIMA, Carlos A. M. Devoção e incorporação. Igreja, escravos e índios na América Portuguesa. Curitiba: Peregrina, 2002, parte I, cap. 3, para uma visão mais ampla ver: REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil século XIX. São Paulo : CIA das Letras, 1991. cap. 2.
57
assistência médica e jurídica, um determinado socorro financeiro e o ponto
principal, para nossa pesquisa, o direito a um enterro decente, com
acompanhamento de irmãos e irmãs e sepultura na capela da irmandade.
Em Curitiba, devido à grande população indígena administrada, e alguns
fatores conjunturais como a área de fronteira e o tropeirismo, a formação de
irmandades ganha contornos específicos como veremos, no período de 1731 a
1777. Dos 539 assentos encontramos 74 registros de irmãos do Rosário (ou seja
mais de 13%), uma quantidade realmente expressiva. Embora sabendo que
grande parte dos autores que estudam irmandades considerariam baixa essa
porcentagem, sabemos que as pequenas irmandades, principalmente em uma
situação como a de Curitiba, poderiam ser compostas dessa forma.
Para um acompanhamento mais detalhado da evolução temporal dos
quadros de saída (pois estamos vendo os óbitos) da irmandade do Rosário e
visando uma comparação entre os das várias etnias que a compunham,
elaboramos uma tabela contendo o número de administrados, escravos e outros
elementos citados nos registros – em sua grande maioria homens livres pobres.
Cremos que a divisão por sexo deverá facilitar a abordagem. Temos em mente,
também, que grade parte dos dados é lacunar devido ao sub-registro e que essa
pequena amostragem representa apenas uma indicação, um sentido a ser
explorado no futuro em outros projetos.
Tabela 5: Número dos óbitos de administrados, escravos, pertencentes a
irmandade do Rosário, segundo o sexo, por decênios [[[suprimir o “por
decênios”]]] (Curitiba, 1731-1777)
ANO ADM - M ADM - F ESC - M ESC - F
1731 – 39 1 1
1740 – 49 1 1
1750 – 59 13 5 4
1760 – 69 3 7 10 8
1770 – 77 3 3
Fonte: Ver tabela 1
58
Ao observamos os dados, podemos fazer uma idéia da composição,
aparente, da irmandade do Rosário de Curitiba. Mas como nos mostra Lima não
existe uma total confiabilidade nos registros uma vez que muitos senhores
poderiam interferir para que seus cativos fossem enterrados com auxilio da
confraria sem, no entanto, ter pertencido a ela em vida.101 Contudo, isso faz parte
do processo de incorporação social que nem sempre é dado e completo, sendo de
muitas formas ambíguo e confuso.
Os números indicam uma grande flutuação dos irmãos administrados, como
vemos no período de 31 a 49: compõe a metade do quadro de irmãos e até a
década de setenta eles ainda são muito numerosos na confraria, sendo que
desaparecem dos registros na ultima parcial. Essa informação sem dúvida merece
ser discutida, pois vemos em Curitiba um fenômeno singular: uma irmandade
cujos quadros são ocupados quase que igualitariamente, durante quase vinte
anos, entre índios e negros.
Nesse ponto, devemos lembrar que o Paraná no século XVIII ainda
completava sua lenta transição da mão-de-obra indígena para a africana. Nessas
condições, observamos algumas especificidades no jogo étnico102 das confrarias,
conforme a época analisada. Notamos uma grande concentração de
administradas na década de cinqüenta, o que reflete entre outras coisas uma
epidemia de sarampo que grassou na vila, conforme visto no primeiro capitulo. É
possível perceber um crescente aumento do número de escravos, o que nos
aponta a substituição da mão-de-obra e conseqüentemente um aumento do
número de negros. Isso nem sempre obedece às mesmas proporções e apenas
serve como tendência.
Quanto aos administrados, buscamos entender os motivos de sua filiação à
irmandade do Rosário. É necessário olharmos não só o caráter incorporativo no
sentido da aculturação e pertencimento ao grupo maior – a sociedade cristã – mas
também a própria dinâmica das sociedades originais103. No ambiente colonial
101 MOURA, Ana Maria da Silva e LIMA, op. Cit. 102 Idem, p. 103 MONTEIRO, John. Op. Cit. p.8 – 9.
59
escravista notamos a dificuldades em estabelecer relações de parentesco, que
nas sociedades indígenas são de estratégica importância. Para exemplificar, nos
25 registros de nativos que pertenciam à irmandade do Rosário, apenas cinco
deles eram casados, o que nos leva a pensar na confraria como uma espécie de
família fictícia, uma possibilidade de tecer novas relações de parentesco e trocas.
Ainda pensado na dinâmica dos grupos indígenas lembramos a importância do
grupo da religião, em danças coletivas, festas e rezas.
Assim vemos que as irmandades enquanto associações corporativas eram
de certa maneira hierarquizadas e excludentes. Um detalhe encontrado nos
registros indica certos privilégios destinados a alguns irmãos, como nos fala Reis:
o rito fúnebre desse catolicismo barroco, pode ser mais ou menos elaborado. Para
tanto, revolvemos contar os que, alem de figurarem como membros da irmandade,
possuíam um esquife104. Localizamos menos da metade possuíam esquife (31 em
74) e estavam divididos da seguinte maneira: doze administrados, onze escravos
e cinco forros. Podemos perceber que mais uma vez administrados e escravos
estão em uma relativa igualdade o que indica a grande influência, pelo menos
nesse período, dos índios na irmandade local. Para um melhor entendimento
dessa situação seria necessária uma consulta ao compromisso e ao livro de
admissão da irmandade, o que não foi possível nesse trabalho.
Então temos na irmandade do Rosário o reflexo da sociedade híbrida de
Curitiba no século XVIII, que se apresenta como uma região escravista e sobre
tudo uma fronteira do Brasil colonial. Fronteira em muitos aspectos, não só pelo
fato de limitar-se com o território espanhol, mas também pelo fato de sua
sociedade colonial limitar-se com outras sociedades – a indígena e a africana –
gerando um hibridismo105. Essa linha, que não pode ser totalmente delimitada e
que por vezes separa mais, em muitas outras aproxima seus membros e está
exemplificada na irmandade local: uma comunidade composta de muitos
segmentos que ao longo do tempo vão alternando suas proporções, obedecendo
104 Segundo o dicionário Brasileiro Globo esquife pode ser um pequeno barco ou um caixão para transportar cadáveres, podemos encontrar referências parecidas no dicionário BLUTEAU “esquife de enterrar”. Ver ref. 105 LIMA, Carlos A. M. Um pai amoroso os espera: sobre mestiçagem e hibridismo nas Américas Ibéricas. In: MOURA, Ana Maria da Silva (org.). Desigualdades. Rio de Janeiro: LEDDES (no prelo)
60
a uma dinâmica muito própria que vai levar em conta elementos intra e extra-
grupo, bem como obedecendo à conjuntura do Paraná colonial.
61
Conclusão:
Elaboramos no presente trabalho, uma discussão, a respeito das relações
entre administrados e outros segmentos sociais em Curitiba durante o século
XVIII. Tentamos entender um pouco mais dessa dinâmica interna dos grupos, que
segundo o que foi visto, interfere de maneira essencial na formação do Paraná
Setecentista. Para tanto, levamos em conta vários fatores como a legislação, os
costumes, historiografia, aspectos populacionais, a estrutura da posse e
principalmente o ritual funerário.
Assim, o presente trabalho buscou uma nova visão das relações sociais na
Curitiba colonial, uma vez que insere nesse contexto alguns aspectos da relação
entre grupos sociais distintos, porém unidos por uma série de questões. E, ao
longo dos anos estudados, pudemos acompanhar algumas modificações nestes
quadros sociais.
É importante situar esse trabalho dentro de uma nova abordagem dos
estudos indígenas, seguindo uma linha crítica, que visa redimensionar a
participação dos índios na história do Brasil. Uma de nossas preocupações foi
fornecer uma visão da exploração do trabalho indígena, bem como sua
incorporação na sociedade colonial paranaense. E fornecer, também, dados para
uma possível comparação e reflexão a respeito da questão indígena durante o
século XVIII, de uma maneira mais ampla.
Como não falar um pouco sobre as fonte nessa breve conclusão? Os
Registros de Óbitos são pouco estudados pelos pesquisadores e fornecem tantas
informações, sobre os mais variados assuntos! Durante a pesquisa e o manuseio
das citadas fontes, pudemos entender como é grande o montante de
possibilidades de pesquisa desse material. É claro que muitos cuidados devem ser
tomados, uma vez que demonstramos como é grande o sub-registro ao longo de
todo período relacionado. Portanto, devemos trabalhar com uma tendência, uma
possibilidade, e não com valores absolutos
62
Na primeira parte de nosso trabalho apresentamos um breve histórico do
Paraná, do qual destacamos a antiguidade da presença indígena na região, cerca
de oito mil anos. Logo discorremos sobre a pluraridade cultural aqui encontrada,
aqui vale lembrar o que diz respeito ao binômio colonial Tupi – Tapuia. Que pode
ser expresso na região por muitos grupos em especial os Guaranis e Kaigang.
Pudemos também apresentar o território paranaense como palco das
missões e reduções espanholas, principalmente no Guairá. Sua trajetória de
“conquista espiritual” foi detida pelo assedio paulista em busca dos índios ali
alocados. Ainda falando sobre este contexto, temos a importância do ouro na
atração de colonos portugueses para a região. Contudo, sua rápida decadência
vai forçar uma adaptação dos colonos ali radicados.
Vimos também que a fundação de Curitiba está ligada à expansão paulista
rumo ao Sul106, e nesse sentido temos muitas semelhanças com sua evolução.
Sabemos que, desde seu estabelecimento no planalto curitibano, muitos pioneiros
já criavam e comercializavam gado. Essa atividade vai ganhar cada vez mais
importância, até seu apogeu no período em que a demanda na região das Minas
era muito grande e a região servia de caminho das tropas que vinham do Sul107.
Como vimos será nesse contexto que Curitiba vai se desenvolver até o século
XVIII.
A seguir foi delimitada uma definição mínima, da condição de administrado,
que, sobretudo, eram índios utilizados como força de trabalho nos primeiros
séculos de nossa história. Colocamos também as diferenças existentes entre
cativo e escravo, o que em muito se deve ao tráfico e ao desenraizamento do
prisioneiro. Sobre a legislação colonial, embora muitos autores a caracterizem
como contraditória e oscilante, nos concordamos com a teoria de Beatriz P.
Moisés que indica a existência de duas políticas diferenciadas para os índios do
Brasil. Uma para os inimigos e selvagens, que garantia a escravidão em certos
casos como guerra justa ou resgates. Outra para os “índios amigos e aliados”, que
106 Podemos ver essa discução em: MARTINS, Romário. História do Paraná. Op. Cit. . p 178. Ou uma visão mais ligada aos índios em MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. Op. Cit. p. 81. 107 Ver os Caminhos Históricos do Paraná em: Romário. História do Paraná. Op. Cit. . p 97 – 114.
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não poderiam de forma alguma ser escravizados ou hostilizados: eles deveriam
ser catequizados e integrados a sociedade.
Contudo, a prática era bem diferente e segundo o “uso e costume da terra”
os índios de maneira geral eram preados no sertão e utilizados pelos colonos.
Para burlar a lei colonial ou para especificar condições sociais diferentes, muda-se
a denominação dada aos índios. Em alguns casos, podemos perceber a influência
do contato com a escravidão negra e em outros, a própria adequação da
nomenclatura a uma realidade social específica: a administração de índios por
particulares é um exemplo dessa situação singular na qual Schwartz cita coisas
como: servo, serviço. Segundo Alencastro, podemos encontrar na São Paulo
Seiscentista denominações como: “peças do serviço”, “gente de obrigação”,
“serviçais”, “gente do Brasil”108. Para melhor definição da condição do
administrado fizemos uma abordagem do caso das crianças, filhas de
administrados, e constatamos que elas não seriam consideradas da mesma forma
ou pelo menos não eram registradas como tal nos óbitos.
A respeito da mão-de-obra encontrada nos registros, devemos lembrar que
a população escrava já era superior a de administrados no início do período. Fato
que pode ser explicado pelas especificidades presentes na conjuntura
paranaense. Vemos também que os dados do óbito diferem dos apresentados por
Schwartz em seus estudos sobre batismo em Curitiba, uma vez que a presença
feminina era bem maior entre a população indígena, fato que, também pudemos
verificar, vai de certa forma distorcer os números de batismos, uma outra
possibilidade, e a importação de mão de obra escrava que não constava nas atas
de batismo. Outro aspecto relacionado à população será uma tendência de
continuo crescimento da população escrava em contrapartida ao declínio da
administração. A população administrada ainda sofre como uma grande epidemia
na metade do século.
Ao falarmos sobre a posse destacamos o fato de que a concentração de
administrados se dá de fato no início do período, enquanto os escravos vão se
distribuir ao longo de todo período e especial mente na segunda metade. Outra
108 ALENCASTRO, Luiz F. de. O trato dos viventes. Op. Cit.. p. 120.
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constatação relevante, será a de que a substituição do braço indígena pelo
africano não vai empobrecer os senhores que mantém uma relativa estabilidade
em suas posses.
E, por fim, analisamos aspectos mais ligados ao rito fúnebre, em especial
verificamos que a lógica atribuída a religião pelo índio nem sempre se processava
conforme o planejado pelas autoridades eclesiásticas. Muitas vezes a própria
dinâmica das sociedades indígenas e afro-descendentes aqui relacionadas
interfere de uma maneira complexa na percepção e nos significados atribuídos as
práticas e tradições da nova religião e por que não da nova cultura.
As várias práticas do “bem morrer” são relacionadas por João Jose Reis em
sua obra sobre a Bahia. Encontramos também em Curitiba esse catolicismo
barroco e elaborado, mas guardando as devidas proporções de período e
conjuntura. Podemos verificar uma aparente igualdade nos locais de enterro (Adro
ou Dentro) entre administrados e escravos. Sabendo que a idade do defunto e o
pertencimento ou não a uma irmandade eram fatores muito importantes para uma
boa sepultura, verificamos também a importância dispensada aos sacramentos e
outras atividades que assegurassem a salvação do cristão, que estava sob “tutela
espiritual” de seu senhor.
Logo após isso, demonstramos a singular composição da Irmandade do
Rosário de Curitiba, na qual verificamos que índios e negros tinham proporções
muito significativas Essa informação sem dúvida merece ser discutida, pois vemos
em Curitiba uma irmandade cujos quadros são ocupados quase que
igualitariamente, durante o período. Nesse ponto devemos lembrar que o Paraná
no século XVIII ainda completava sua lenta transição, da mão de obra indígena
para a africana, nessas condições observamos algumas especificidades no jogo
étnico na irmandade do rosário.
Vemos em Curitiba uma sociedade inserida no contexto de relações sociais
e mercantis da colônia, reproduzindo necessidades e criando condições para um
desenvolvimento em resposta a esse mercado que a engloba. Assim percebemos
a administração como uma forma de acumulação e como forma de criar condições
para a existência de uma escravidão negra. E nesse contexto o administrado é
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envolvido no esquema colonial mercantil, tendo sua cultura afetada no processo,
mas também modificando a sociedade colonial simultaneamente.
Seria minimamente uma presunção tentar chegar a conclusões precisas e
pontuais referentes a um tema tão complexo e pouco explorado como são a
incorporação indígena e a Administração em Curitiba. O que pudemos elaborar foi
apenas um passo de uma longa caminhada em direção ao aprofundamento sobre
o tema. Levantamos algumas hipóteses explicativas, mas nem todas elas tiveram
uma discussão suficientemente elaborada e aprofundada. Enfim sabemos que
ainda existe muito a ser feito e discutido, e estamos prontos para seguir.
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