Do Marajo Ao Arquivo
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Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 8, n. 2, p. 473-475, maio-ago. 2013
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Do Maraj ao Arquivo como revelao do universalismo amaznico
de Benedito Nunes
Por Mrcio Benchimol BarrosUniversidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho,
Campus Marlia([email protected])
Do Maraj ao arquivo: breve panorama da cultura
no Par chama-se o alentado volume publicado no
ano de 2012 pela Editora da Universidade Federal do
Par (EDUFPA) em colaborao com a Secretaria de
Cultura do Estado do Par (SECUlt), em homenagem
ao saudoso professor Benedito Nunes, fundador do
Departamento de Filosofia daquela universidade e
falecido em fevereiro de 2011. Informa-nos Paulo Chaves
Fernandes, Secretrio de Cultura do Par, em seu texto
de apresentao, que estamos, na verdade, diante da
realizao infelizmente, pstuma de projeto mais
antigo, idealizado pelo organizador da obra, professor
Victor Sales Pinheiro. Pretendia este, depreende-se do
texto mencionado, fazer publicar, pela EDUFPA, uma
coletnea de textos de Benedito Nunes das mais variadas
naturezas e destinaes, que fosse capaz de revelar algo
daquilo que Fernandes chama, justificadamente, de o
pensamento amaznico do homenageado.
De fato, contm o volume variadssima coleo de
oitenta e um pequenos escritos de Nunes, datados entre
1952 e 2011, alguns deles inditos, como Crnica de
NUNES, Benedito. Do Maraj ao arquivo:
breve panorama da cultura no Par.
Org. Victor Sales Pinheiro. Belm:
EDUFPA/SECUlt, 2012. 496 p. ISBN 978-
85-2470-515-1
uma Academia, sobre a tentativa do jovem Benedito de,
juntamente com colegas, entre eles Haroldo Maranho,
fundar uma Academia de letras em Belm, aos moldes
da Academia Brasileira de letras, como tambm um curto
texto sobre o artista plstico Antar Rohit. So artigos
uns publicados em peridicos ou livros acadmicos,
outros em jornais , discursos, apresentaes de obras
literrias, prefcios, entrevistas, orelhas de livros e
ainda textos de outros formatos, precedidos por dois
escritos de apresentao sendo o primeiro aquele
aludido mais acima e o segundo assinado pelo reitor
da Universidade Federal do Par (UFPA) , um artigo
introdutrio, intitulado O universalismo de Benedito
Nunes, de autoria de Sales Pinheiro, e mais um texto
de Nunes, com ttulo de Da caneta ao computador,
no qual uma breve autobiografia intelectual d natural
ensejo a consideraes gerais sobre as relaes entre
poesia e filosofia. Apesar da variedade temtica dos textos
de Benedito Nunes aqui reunidos como tambm da
multiplicidade de intenes com que foram concebidos
e, correspondentemente, dos estilos literrios adotados
pelo autor , eles guardam entre si um trao comum,
que d clara unidade coletnea: a referncia sempre
presente regio amaznica, seja na forma de reflexes
filosoficamente inspiradas sobre sua histria poltica
e cultural, seja na apreciao crtica da obra de seus
mais destacados artistas, especialmente no campo da
literatura, mas tambm incluindo os domnios da msica,
da arquitetura e das demais artes plsticas. Uma quase
exceo representada pelo discurso proferido por
Nunes por ocasio do quinto aniversrio da Faculdade de
Filosofia, Cincias e letras da UFPA (apesar da motivao
local e das referncias iniciais ao momento por que
passava a faculdade, o pensamento de Nunes logo se
dirige ao plano das ideias e histria da filosofia). Assim
sendo, pode-se dizer com tranquilidade que a obra,
de fato, revela o pensamento amaznico do professor
Nunes, e seu mrito mais evidente precisamente o
de reunir em um nico volume tantos escritos em que
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Do Maraj ao Arquivo como revelao do universalismo amaznico de Benedito Nunes
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temas importantes relativos regio so tratados por um
dos intelectuais de maior relevo j por ela produzidos.
Insistir, contudo, no elemento local desses escritos
seria desconhecer o outro lado da inteno de Sales
Pinheiro, expresso no ttulo de seu ensaio introdutrio.
trata-se no somente de pr em destaque a face regional
da atividade intelectual de Nunes, mas tambm de
realar, ao mesmo tempo, o carter universalista deste
pensamento, que, longe de entrar em contradio com o
interesse pelo especificamente amaznico, informa e d
consistncia a reflexes neste campo, elevando-as a um
patamar nunca dantes alcanado. Duas coisas, com efeito,
nos revela a leitura dos textos compilados: primeiramente,
que h um envolvimento profundamente pessoal do autor
com os temas tratados. Benedito Nunes no aborda a
histria e a tradio artstico-cultural da Amaznia como
objetos de estudo estranhos a si mesmo. Percebe-se,
antes, uma identificao afetiva e intelectual profunda do
autor com os objetos analisados; v-se que seus contatos
com tais objetos foram nada menos que determinantes
de sua formao como ser humano e como pensador, e
suas reflexes sobre eles so inseparveis de sua prpria
autoconscincia como intelectual. Falar da arte e da histria
cultural da Amaznia , para Nunes, na verdade, uma
forma de busca de si mesmo, funcionando como extenso
e complemento de sua autobiografia intelectual.
Por outro lado, percebe-se claramente que tais
temas so abordados sob o signo do universal, pois
que so referidos constantemente tradio filosfica e
artstico-literria do Ocidente. Ao debruar-se sobre a
arte e a histria de sua regio, Benedito Nunes no deixa
de ser o ensasta filosfico, o historiador da filosofia e o
crtico literrio, cujo valor se v reconhecido tanto nacional
como internacionalmente; mas, antes, mostra outra faceta
de sua atividade crtico-filosfica. Precisamente, a juno
entre profunda identificao pessoal e o distanciamento
naturalmente exigido pela reflexo crtico-filosfica nos
d a exata medida da contribuio do autor cultura
amaznica, pois a identificao afetiva e existencial com a
regio tambm trao caracterstico dos artistas analisados
por Benedito Nunes, e no h como negar que a obra
de um Dalcdio Jurandir ou um Max Martins tambm
alcana a universalidade, pois fala e significativa tambm
para aqueles a quem falta tal identificao. Mas esta
universalidade tem um limite: a arte se realiza na produo
do objeto artstico, e este vem, necessariamente, reclamar
ainda a interveno da reflexo crtica e distanciada, nica
capaz de pr de manifesto sua insero no contexto
universal da histria da arte e esclarecer suas relaes
com a arte de outros tempos e lugares. A cincia, por
outro lado, j produziu, e continua a produzir, um volume
cada vez mais crescente de conhecimentos sobre nossa
regio, conhecimentos estes tambm dotados de valor
universal. A exigncia da pura objetividade cientfica,
porm, exclui, por sua natureza, a identificao afetiva e
pessoal com o objeto estudado. Seu discurso sempre
o do sujeito que se distingue claramente de seu objeto,
sua voz sempre a voz impessoal do conhecimento
objetivo. Decerto, tolera-se (e mesmo admira-se)
que a sbria elocuo cientfica ceda lugar, aqui e ali, a
irrupes subjetivas ou a consideraes que ultrapassam
os limites ou o escopo da cincia. A linguagem do cientista
resvala, muitas vezes, no literrio ou no filosfico, mas
essa flexibilidade imediatamente paga ao preo da
momentnea renncia quilo que a deve caracterizar,
nomeadamente, objetividade cientfica. J a dico
de Nunes essencialmente filosfica e essencialmente
literria: filosofa ao falar de filosofia e torna-se artstica ao
falar de arte; mas tambm se veste das galas da literatura
ao falar de filosofia, e torna-se filosfica ao falar de arte. Por
isso, nela podem ter voz tanto o apego subjetivo e pessoal
ao solo natal quanto o livre voo especulativo da razo,
que vemos tantas vezes maravilhosamente combinados
nos textos reunidos em Do Maraj ao arquivo. Nestes,
assistimos ao constante esforo do local por refletir-se no
vasto espelho do universal, mas tambm surpreendemos
o universal a deitar amoroso olhar sobre o local. No se
trata, pois, simplesmente, de um autor a falar de temas
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Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum., Belm, v. 8, n. 2, p. 473-475, maio-ago. 2013
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da histria e cultura da Amaznia, mas, sinto-me tentado
a dizer, a prpria Amaznia que, em Benedito Nunes,
toma conscincia de si e busca determinar seu lugar no
campo da cultura ocidental.
Se me for permitido retocar a frase de Fernandes,
diria que Do Maraj ao arquivo revela no tanto
o pensamento amaznico de Benedito Nunes, mas
principalmente o prprio Nunes, como pensador
amaznico. um grande servio prestado aos
admiradores do mestre desparecido, pois aqueles que
o conhecem apenas por seus trabalhos em historiografia
filosfica ou como crtico literrio (certamente, a grande
maioria), desconhecem esta faceta de seu talento ou
a conhecem apenas de forma fragmentria. nestes
textos menores, e muitas vezes despretensiosos, que
se revela mais fortemente esse aspecto de Nunes. tais
textos haveriam de permanecer dispersos entre as
pginas de publicaes acadmicas maiores, de jornais
e nas estantes dos apreciadores da boa prosa e poesia
paraense, no fora a existncia de um arquivo bem
organizado, mantido pelo prprio Nunes, e a iniciativa
de Sales de compil-los em um s volume. Mas, por
outro lado, o admirador de Nunes que lhe descobre
essa face amaznica em Do Maraj ao arquivo h de
ali reencontrar o mesmo intelectual que j conhecia
dos ensaios filosficos e crtico-literrios, pois filosofia
e crtica literria so, como j destacado, os dois pilares
que sustentam sua viso da histria e cultura amaznicas,
tornando-a to singular. trata-se, pois, de mais um
elemento da personalidade filosfica de Benedito Nunes
que aqui se adensa e ganha contorno, unindo-se aos que
so mais familiares a seus leitores. Esta imagem ainda
se enriquece pela multiplicidade dos estilos literrios
aqui dominados pelo mestre. Ao sbrio rigor de sua
prosa filosfica e ao refinamento literrio de sua crtica
esttica, vm aqui somar-se a espontaneidade informal
e o tom por vezes nostlgico-confessional de quem fala
a amigos confidentes de coisas queridas e to prximas
de si, a ponto de suas histrias confundirem-se com
a prpria histria do falante. Assim, a partir do jogo
caleidoscpico que Do Maraj ao arquivo nos prope,
vamos aprendendo a formar a imagem completa de uma
mesma personalidade intelectual, a espelhar-se diante
de ns em multicolorida multiplicidade.
Creio que uma homenagem pstuma a um
intelectual da altura de Benedito Nunes alcana seu
objetivo no exatamente rememorando uma existncia
que findou, mas, antes, proclamando uma necessria
presena no dia de hoje e no de amanh. Mais ainda,
como o caso em Do Maraj ao arquivo, se ajuda
a criar essa presena, a tornar visvel, no presente e
no futuro, aquele a quem se homenageia, em toda a
amplitude de sua atividade como intelectual. Isso , sem
dvida, realizado por esta coletnea, que tive o prazer de
resenhar e que tomo como dever recomendar a leitura
a todos que se interessarem no apenas por assuntos da
histria e da cultura amaznicas, mas tambm pela obra
de um dos principais representantes de ambas.