Do Livro Para o Violão - Revista de História

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18/10/2015 Do livro para o violão - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/do-livro-para-o-violao 1/4 Do livro para o violão Como ensinar a História do Brasil por meio de canções Miriam Hermeto e Ricardo Lima 1/6/2008 Em sua música popular, o Brasil sempre contou com verdadeiros cronistas da sociedade. Essa tradição é uma rica fonte para pesquisas e estudos históricos. Mas pode ser mais explorada no ambiente escolar. Não que esta seja uma idéia nova. Desde a década de 1980, quando ocorreram importantes transformações nas práticas e nos instrumentos didático-pedagógicos, o uso de fontes diferenciadas, entre elas a música, tornou-se uma tendência para a abordagem de assuntos ligados à História brasileira recente (na edição nº 20 da RHBN, veja o artigo “Lições do caipira”, sobre a utilização pedagógica da música sertaneja). Mais do que apenas ensinar, as canções capturam a atenção dos alunos, seduzem pela sensibilidade e podem até reduzir tensões em sala de aula. No entanto, usar a música para ensinar História tem lá suas dificuldades. Na maioria das vezes, essas práticas esbarram em limites ligados à natureza da linguagem musical. Lidar com canções não é o mesmo que lidar com fontes escritas, pois a música precisa ser escutada. O estudo que se resume à leitura das letras não favorece a construção de sentidos sobre o tema e o documento. A música é som e arte: precisa ser ouvida e usufruída com deleite. Para articular essas duas dimensões, o formato aula-show pode ser uma proposta interessante. A aula-show é, ao mesmo tempo, explicativa e prazerosa. Nela, o ensino de um conhecimento se mistura com a apresentação pautada pelo viés artístico. A condução da atividade é feita como um show, composto de canções relacionadas a algum tema histórico. Por meio das canções e das explicações sobre seus significados históricos, os alunos podem compreender a maneira como essas músicas relatam os conflitos da sociedade em que foram produzidas e as diversas interpretações que os acontecimentos recebem ao longo do tempo. Na educação básica, a criação de uma aula-show pode ser feita pelo próprio professor, pesquisando, elaborando o roteiro e executando as canções. Mais do que isso: ele precisa adotar certa alma de artista, estar disposto a explorar o lado lúdico da experiência. Mas o ideal é que o projeto seja desenvolvido também pelos alunos, que, a partir de orientações do professor, deverão fazer a pesquisa sobre o tema em questão. Ao elaborar um roteiro e apresentar o resultado final para a comunidade, os alunos tornam-se professores e artistas ao mesmo tempo. Uma experiência prática de como utilizar esse instrumento didático foi o projeto “Na Carreira – Edu Lobo e Chico Buarque (1964-1983)”. O trabalho parte da escolha de um tema histórico, com base em sua relevância social e intelectual. Neste caso, foi escolhido o engajamento da produção dos compositores para peças de teatro durante a ditadura. Daí o título “Na Carreira”, nome de uma canção feita pela dupla e que cai como uma luva para a proposta de analisar a trajetória dos dois artistas ao longo daquele período. A relevância do tema se justifica pela qualidade

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Do livro para o violão

Como ensinar a História do Brasil por meio de canções

Miriam Hermeto e Ricardo Lima

1/6/2008  

Em sua música popular, o Brasil sempre contoucom verdadeiros cronistas da sociedade. Essatradição é uma rica fonte para pesquisas e estudoshistóricos. Mas pode ser mais explorada noambiente escolar.

Não que esta seja uma idéia nova. Desde a décadade 1980, quando ocorreram importantestransformações nas práticas e nos instrumentosdidático-pedagógicos, o uso de fontesdiferenciadas, entre elas a música, tornou-se umatendência para a abordagem de assuntos ligados àHistória brasileira recente (na edição nº 20 daRHBN, veja o artigo “Lições do caipira”, sobre autilização pedagógica da música sertaneja). Maisdo que apenas ensinar, as canções capturam a atenção dos alunos, seduzem pela sensibilidade epodem até reduzir tensões em sala de aula.

No entanto, usar a música para ensinar História tem lá suas dificuldades. Na maioria das vezes,essas práticas esbarram em limites ligados à natureza da linguagem musical. Lidar com cançõesnão é o mesmo que lidar com fontes escritas, pois a música precisa ser escutada. O estudo quese resume à leitura das letras não favorece a construção de sentidos sobre o tema e odocumento. A música é som e arte: precisa ser ouvida e usufruída com deleite. Para articularessas duas dimensões, o formato aula-show pode ser uma proposta interessante.

A aula-show é, ao mesmo tempo, explicativa e prazerosa. Nela, o ensino de um conhecimento semistura com a apresentação pautada pelo viés artístico. A condução da atividade é feita comoum show, composto de canções relacionadas a algum tema histórico. Por meio das canções e dasexplicações sobre seus significados históricos, os alunos podem compreender a maneira comoessas músicas relatam os conflitos da sociedade em que foram produzidas e as diversasinterpretações que os acontecimentos recebem ao longo do tempo.

Na educação básica, a criação de uma aula-show pode ser feita pelo próprio professor,pesquisando, elaborando o roteiro e executando as canções. Mais do que isso: ele precisa adotarcerta alma de artista, estar disposto a explorar o lado lúdico da experiência. Mas o ideal é que oprojeto seja desenvolvido também pelos alunos, que, a partir de orientações do professor,deverão fazer a pesquisa sobre o tema em questão.  Ao elaborar um roteiro e apresentar oresultado final para a comunidade, os alunos tornam-se professores e artistas ao mesmo tempo.

Uma experiência prática de como utilizar esse instrumento didático foi o projeto “Na Carreira –Edu Lobo e Chico Buarque (1964-1983)”. O trabalho parte da escolha de um tema histórico, combase em sua relevância social e intelectual. Neste caso, foi escolhido o engajamento da produçãodos compositores para peças de teatro durante a ditadura. Daí o título “Na Carreira”, nome deuma canção feita pela dupla e que cai como uma luva para a proposta de analisar a trajetóriados dois artistas ao longo daquele período. A relevância do tema se justifica pela qualidade

artística das produções, pelo seu papel de cronistas da sociedade brasileira após a década de

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artística das produções, pelo seu papel de cronistas da sociedade brasileira após a década de1960 e pela importância de sua atuação no campo artístico engajado na oposição à ditadura.

Todo projeto de pesquisa exige delimitação de tema, com a definição de um problema histórico.No caso de “Na Carreira”, o problema era o seguinte: quais as formas de engajamento artísticoque Chico e Edu criaram, quais os grupos a que se ligaram, os projetos de sociedade quedefenderam e o tipo de resistência que efetivamente empreenderam por meio de suas canções?A reflexão sobre esses temas levou à definição do subtítulo da aula: “Engajamento, música eteatro. Para além de ‘Upa neguinho’ e ‘Roda Viva’”.

O recorte cronológico foi definido pelas trajetórias dos dois artistas desde o início de suascarreiras como compositores para teatro, em meados da década de 1960, até o momento inicialda parceria. Ao longo do regime militar, Chico e Edu compuseram, sozinhos e com outrosparceiros, muitas canções que se tornaram referências para a música popular. Talvez por isso ogrande público alimente a idéia de que eles sempre foram parceiros. Mas seu “casamentoprofissional” só aconteceu em 1981. Por isso, nosso marco temporal parte de 1964 — ano deprodução de “Upa, neguinho” (por Edu Lobo e G. Guarnieri) — e chega a 1983, quando Edu eChico compuseram juntos “Dr. Getúlio”.

Um projeto de aula-show tem um produto final estabelecido – meio aula, meio show – quedeverá levar o público a compreender o tema. O professor deve pensar sempre no público-alvopara o qual a aula-show se dirige. A opção por um ou outro tipo de platéia faz com que oconteúdo/repertório e a abordagem sejam estrategicamente planejados para se adequar àscondições de assimilação daquele tipo de aluno. Quando a aula é dirigida a alunos de ensinofundamental, por exemplo, o aspecto lúdico pode ganhar ainda mais relevância. Para um públicode estudantes de ensino médio, o tom deve ser mais informativo do que explicativo. Como aaula-show que acompanhou a execução das canções de Chico e Edu tinha um caráterpredominantemente explicativo, optou-se por um público com formação superior.

Finalmente, a montagem da aula-show exige pesquisa de repertório apurada e a elaboração deum roteiro. Essas atividades perpassam todas as etapas anteriores, pois a delimitação do tema,a construção do problema e a definição do marco temporal já exigem estudo e contato com asfontes. Na elaboração da aula “Na Carreira”, foi importante examinar pesquisas a respeito daMPB durante a ditadura e a respeito dos compositores que participaram ativamente no período.O processo incluiu ainda as tarefas de identificar as canções produzidas por eles para peçasteatrais “engajadas”, ler os scripts e ouvir as canções. As fontes utilizadas, portanto, foramdiscos, obras da historiografia brasileira sobre música popular e teatro, as próprias peças e ossites oficiais dos compositores.

Uma vez delimitado o problema, é hora de voltar às fontes para selecionar as canções que vãocompor o roteiro do show. Seleção feita, passa-se à elaboração de pequenos textos que irãoguiar a aula, explicando os sentidos sociais de cada música no momento de sua produção e emtempos posteriores. O roteiro final contemplou doze peças de teatro e vinte canções a elasrelacionadas.

Na execução da aula-show, o professor apresenta as canções entremeadas com explicaçõeshistóricas sobre o tema. Por exemplo, da peça “Calabar”, de Chico Buarque e Ruy Guerra

(1973), selecionou-se um pot-pourri: “Fado Tropical”, “Cala a boca, Bárbara”, “Não existepecado ao sul do Equador” e “Boi voador”. Entre elas, trechos da peça que permitemcompreender o sentido das músicas. Mas, antes de tudo isso, uma fala que contextualiza a peça— censurada na época —, que narra a história da traição do mestiço Calabar durante a guerracontra os holandeses em Pernambuco. O aluno aprende que no início dos anos 1970, com oaparato repressivo da ditadura militar em seu auge, elogiar a traição era uma atitude de claraafronta ao sistema. 

Nem todos os envolvidos no processo da aula-show precisam ser “iniciados” em música. Numa

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Nem todos os envolvidos no processo da aula-show precisam ser “iniciados” em música. Numaturma, se alguns alunos se dispuserem a executar as canções, há muito trabalho para ser feitopelos demais: pesquisa, elaboração de roteiro, montagem de cenário e figurino. Nada impedeque alguns alunos executem as canções enquanto outros se encarregam das informações eexplicações históricas. Cabe a quem coordena o projeto identificar e aproveitar as diversashabilidades do grupo.

É claro que a execução das canções ao vivo torna a tarefa mais proveitosa e eficaz, mas em casode completa falta de “mão-de-obra” especializada, pode-se recorrer a CDs e DVDs.

A ausência de “pompa e circunstância” no evento facilita o contato entre alunos/público eprofessor/artista, o que, por sua vez, ajuda a manter uma certa cumplicidade. Não é umaplatéia composta de espectadores ávidos por assistir a um espetáculo musical, nem uma turmaconcentrada para captar o que o mestre está ensinando. Vários sentidos se cruzam, e diminuemo distanciamento entre alunos e professores. E o formato também pode ser aplicado a outraslinguagens artísticas. É possível, por exemplo, pensar em uma aula-sarau sobre o MovimentoModernista, ou em uma aula-teatro sobre a Grécia Antiga.

A aula-show ensina tanto a quem a produz quanto a quem a assiste, e, por isso, pode setransformar em instrumento pedagógico consistente. E não só para o aprendizado da História,mas também dos procedimentos da pesquisa histórica. Além disso, o método recria umaexperiência ligada à narrativa oral. E ao contextualizar as canções por meio de informaçõeshistóricas sobre sua produção e as diversas apropriações que elas já tiveram, ajuda a refletirsobre os sentidos do passado recriado ali. Se a aula explica, o show revigora a explicação pormeio do prazer que proporciona. Cria-se, assim, uma relação com o passado para além daquelaque o condena a algo estático e longínquo.

Miriam Hermeto é historiadora, mestre em Educação, doutoranda em História na UFMG ecantora. É professora de História da Universidade do Estado de Minas Gerais/FundaçãoEducacional de Divinópolis.

Ricardo Lima é jornalista, cantor e compositor. É pesquisador associado do Núcleo de EstudosMusicais do Rio de Janeiro (Cesap/Ucam), assistente de pesquisa do Projeto República (UFMG)e professor da Universidade do Estado de Minas Gerais/Fundação Educacional de Divinópolis .

Saiba mais - Livros:

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.NAPOLITANO, Marcos. Síncope das idéias; a questão da tradição na música popular brasileira.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro).SOUZA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada; a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. (Coleção História do Povo Brasileiro).

Saiba Mais - Sites:

Aula Show “Na Carreira” no You Tube www.youtube.com/watch?v=LhvUw-mabWw

Chico Buarque: www.chicobuarque.com.br

Edu Lobo: www.edulobo.com.br

“Desconstruindo Construção” e “Gil: a aventura do saber”, em Música Pr’Aprender Brasileira(Lorenzo Aldé): http://www.educacaopublica.rj.gov.br/suavoz/sv12.htm

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