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Revista Eletrônica Fundação Educacional São José

10ª Edição ISSN:2178-3098 ________________________________________________________________________________

¹Rosilaine Fátima de Paula: Mestranda do Curso de Mestrado em Letras do Centro de Educação

Superior de Juiz de Fora. Endereço: Rua Olegário Maciel, 1667/406/Seringueira - Paineiras - Juiz de

Fora – MG. Cep: 36016011 Tel: celular: 32 – 84261257/ E-mail: [email protected]

DO CANTO, DO DESENCANTO:

O DESAFINO DE TORQUATO NETO

Rosilaine Fátima de Paula¹

RESUMO

No presente estudo, pretende-se demonstrar um pouco do multifacetado perfil do poeta,

jornalista, crítico e letrista, Torquato Neto. O jovem desviante, cujo caráter “marginal” fê-lo

ser considerado pela crítica como o grande maldito do seu tempo, tendo sido comparado aos

grandes escritores de tradição funesta, como Rimbaud, Marlamé e Baudelaire. Através desta

leitura busca-se desvendar a causa maior do caráter torto e desviante do artista, seria apenas

um ato de rebeldia, simpatia, ou simplesmente pura desarmonia? Daí a proposta de ler o

lirismo avesso de Torquato, através da melancolia, da angústia, da negação de uma realidade e

também, de aspectos tão presentes e dos quais, a partir de um contato com sua história, não se

consegue mais desvencilhar sua obra: o tropicalismo, a angústia, a morte, o suicídio, enfim, o

grande desencanto.

PALAVRAS CHAVE: Tropicalismo, Torquato Neto, desafino, desencanto, morte.

ABSTRACT

In the present study, it intend to show some of the multifaceted profile of the poet, journalist,

critic and writer, Torquato Neto. The excluded Young, whose character “marginal” made him

be considered by critics as the greatest damned of his time, it was compared to the greatest

writers of sorrowful tradition, like as Rimbaud, Marlamé and Baudelaire. Through this

reading seeks to reveal the bigger cause of the crooked and excluded character of the artist,

would be only an act of the revolt, sympathy, or just pure dissonance? So the proposal to read

the Torquato´s reverse lyricism, through the melancholy, the anguish, the denial of reality and

also, in aspects so currents and which from a contact with his story, it´s not possible anymore

loosen his work: the tropicalism, the anguish, the death, the suicide, finally, the big

disillusionment.

KEYWORDS: Tropicalism, Torquato Neto, being out of tune, disillusionment, death

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O CARA MAIS UNDERGROUND QUE CONHEÇO É O TORQUATO

Eu, fragmento de uma sensibilidade que produz um

ritmo. Eu, que vim ao mundo para participar dessa

missa louca, com minha doida dança na derrocada dos

valores que torturam a alma humana.

Jorge Salomão

Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina, capital do Piauí, no dia 9 de

novembro de 1944. Filho do promotor público, Heli Rocha Nunes e da professora Maria

Salomé da Cunha Araújo. Detentor de precoce inteligência, desde criança se interessava por

leituras e tinha a escrita como compulsão. Ainda com 9 anos de idade escreveu sua primeira

poesia. Aos 15 anos, deixou sua “Tristeresina”1, pois esta já não aportava os “sonhos de

rebeldia” do poeta, e foi para Salvador. Foi nesta cidade que descobriu seu lado baiano de ser,

principalmente depois das relações afetivo-culturais que travou com Gilberto Gil, Caetano e

Maria Bethânia. A própria Ana Maria Silva, sua futura esposa, era baiana (embora viessem a

se conhecer somente no Rio de Janeiro). Foi ainda nos ares da Bahia que conheceu e se

apaixonou pelas obras de um dos seus maiores inspiradores, Carlos Drummond de Andrade,

além das de outros poetas modernos que tanto influenciaram a missão vanguardista do autor.

Em 1963, mudou para o Rio de Janeiro a fim de cursar a faculdade de Jornalismo.

Não se formou, mas exerceu a profissão em vários periódicos cariocas e, mais tarde (70/71),

foi convidado a escrever sobre manifestações artísticas e culturais no jornal Última Hora, na

coluna denominada “Geléia Geral”.

Foi na cidade maravilhosa que os laços de amizade com a turma “tropical” se

estreitaram, Torquato se descobriu um grande letrista, principalmente quando começou a

escrever suas primeiras parcerias com Gil e Caetano.

Ele se revelava um homem tímido, geralmente calado e de ar misterioso. Bebia

muito e trazia uma aura melancólica que o familiarizava aos grandes poetas malditos do

romantismo. Aquela tristeza, misturada a uma aspereza genial, faziam do poeta um ser de

talento impar, mas errante, destoado do mundo ao qual pertencia. Perambulava da alegria dos

festivais à solidão dos hospitais, onde tantas vezes era internado para tratar sua falta, ou

talvez, excesso de lucidez.

1 O poeta se refere a sua cidade natal como Tristeresina. (NETO, 1973, p.107)

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Assim, entre caminhos e desvios, no dia 10 de novembro de 1972, após a

comemoração dos seus 28 anos, ouvia-se o último suspiro de uma das mais geniais e

promissoras figuras da produção cultural brasileira dos últimos tempos. Torquato Neto

trancara-se no banheiro de sua casa e ligara o gás, dali resolvera partir para nunca mais voltar,

como predizia na canção composta em 1966 em parceria com Edu Lobo, Pra dizer Adeus:

Adeus

Vou pra não voltar

E onde quer que eu vá

Sei que vou sozinho

Tão sozinho amor

Nem é bom pensar

Que eu não volto mais

Desse meu caminho (NETO, 2004, p.105).

Embora houvesse planejado, Torquato não publicou nenhum livro em vida e sua

atuação em campos culturais diversos não possibilitou a configuração de uma obra de sentido

uno. Seus textos foram colhidos, organizados e lançados no livro Os últimos dias de

Paupéria, 1973, pela Editora Eldorado Tijuca, uma montagem rara feita pelo amigo e poeta

Waly Salomão e pela artista gráfica e viúva de Torquato, Ana Maria Silva. Mais tarde, em

1982, o livro foi reeditado e estendido pela editora Max Limonad.

Esse livro representa bem o perfil da figura fragmentada do artista e sujeito

Torquato, já que não oferece linearidade, ou ordem cronológica simples. Nele, encontramos

algumas letras de composições musicais, poesias, textos publicados na coluna “Geléia Geral”

e até mesmo alguns textos escritos no sanatório e em seu auto exílio europeu, além de outros.

É uma verdadeira miscelânea que mostra o caráter artístico e comprometido do poeta e

também seus momentos de crise existencial, onde predominava o aspecto de um sujeito

descentrado, desencontrado do espaço e do tempo em que habitava.

Em 2004, foi lançada mais uma coletânea de textos do autor. Organizado por

Paulo Roberto Pires, o livro, que recebeu o nome de Torquatália, é dividido em dois

volumes: o primeiro, {DO LADO de dentro}, reúne textos inéditos da juventude, manifestos

tropicalistas, canções, poesias, experimentações visuais, correspondências, os escritos íntimos

e diários do poeta. O segundo, {GELEIA geral}, reúne exclusivamente os textos jornalísticos

de Torquato: todos os textos da coluna “Geléia Geral” (71-72), do jornal Última Hora, e os

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inéditos da coluna “Música Popular” (67), do Jornal dos Sports, e do suplemento cultural

“Plug” (71), Correio da Manhã.

Mesmo tendo organizado os livros mantendo uma ordem cronológica, inserindo

algumas introduções e dividindo em seções temáticas a fim de facilitar o entendimento do

leitor, ainda não conseguiu dirigir uma leitura unívoca da obra do autor, permanecendo o

caráter fragmentado, no qual muitas vezes é possível se embaraçar.

A revisitação dessas obras proporciona um olhar sobre as manifestações artísticas

e culturais vividas no país naquele momento e, também, um olhar sobre o aspecto individual e

até mesmo universal do sujeito, que se via desorientado em meio aos desejos de grandes

conquistas e transformações, mas tendo a voz reprimida pela censura da ditadura militar em

que vivia o país, observa-se, além desses, um aspecto intimista que também é muitas vezes

revelado pelo poeta.

Para André Pires (2000, p.15), esse estilo multifacetado do autor o caracteriza

como um “criador ‘não especializado’ cuja atuação se expandiu por códigos estéticos e

circuitos culturais diversos (poesia, letras de música, jornalismo cultural, cinema, televisão

etc.)” mesmo tendo se tornado conhecido como um “poeta”, e tendo seu nome propagado

pelas letras de músicas que escrevia.

E é assim que se procura lançar um olhar sobre o autor, vendo-o principalmente

como um poeta, mas um poeta no sentido amplo, um poeta que não desagrega o discurso

estético do discurso cultural, fundindo em sua obra, aspectos tanto artísticos como

existenciais. Um poeta, que ao mesmo tempo em que participou ativamente dos movimentos

como o Tropicalista, em que predominava uma estética conjunta, também não deixou a sua

individualidade distante daquilo que ele expressava, tendo um escrita voltada para um

pensamento próprio, de pertencimento ou não ao mundo à sua volta, uma postura pessoal,

desbundada, produzindo textos carregados de temas como a melancolia, o desajuste e a morte,

que mesmo antes do suicídio o vigiava.

Como verificado, Torquato Neto passeou por vários locais de produção textual,

mas foi através das letras de músicas que encontrou ser verdadeiro “lugar ao sol”, ou seja, foi

principalmente através da música que o nome de Torquato obteve maior visibilidade no

ambiente cultural brasileiro. Por isso, não se pode deixar de mencionar a participação do

poeta em um dos maiores movimentos musicais da história brasileira, a “Tropicália”.

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DO CANTO

Para avaliar melhor a atmosfera que rondava a vida do autor e principalmente a

atmosfera “tropicalista”, é interessante lançar um olhar à época e às transformações políticos-

culturais que fervilhavam naquele tempo. Diante disso, pode-se começar pela visão ampla e

precisa da escritora e crítica, Suzan Sontag.

Susan Sontag (1987), em seu artigo “Uma cultura e a nova sensibilidade”,

comenta que, após o advento da Revolução industrial, nos vimos diante de uma nova forma de

visão de mundo, o que denomina de uma nova sensibilidade, que está presa às nossas

experiências, que são novas aos olhos da humanidade, neste sentido a arte sofre uma

transformação de sua função, que passa a ser um instrumento modificador da consciência e

das formas de sensibilidade, “o que testemunhamos não é tanto um conflito de culturas quanto

a criação de um novo tipo de sensibilidade” (1987, p.341).

No mundo predominava um clima de revolução e de grande rebeldia, que

surgiram de momentos de transformações e dessa nova mentalidade que se instaurava. A

descrença nos padrões econômicos e políticos era crescente e criticava-se a propagação

capitalista. Até mesmo a religiosidade ocidental fora colocada em xeque e grandes incertezas

surgiram. Nesse clima de tensão, desponta na Califórnia um movimento que buscava uma

vida alternativa, uma postura utópica e contracultural: a filosofia hippie, movimento que

propagava uma postura positivista e pacifista, com apreço à vida natural, à filosofia oriental

zen-budista, ao comportamento hedonista, além de fazer apologia às drogas, ao sexo livre e ao

som psicodélico do rock’n-roll. Esse comportamento transviado e contestador, podia ser

interpretado como uma forma de protesto contra o sistema dominante, conforme apontou

Paulo Henriques Britto, em seu artigo “A temática noturna do rock pós-tropicalista”:

aderir a uma comuna budista, vegetariana e pacifista, tomar drogas ou entrar para

um grupo que utilizava táticas de guerrilha urbana eram maneiras alternativas de

rejeitar um sistema que enviava jovens para lutar uma guerra inexplicável na

Indochina”(BRITTO, 2003, p.192)

Esse clima revolucionário e desbordado ecoou no Brasil no final dos anos 60,

influenciando, ainda que primariamente, um movimento vanguardista cujo principal desejo

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era subverter a realidade da música popular brasileira, o “Tropicalismo”, nome recebido em

referência à obra do artista plástico Hélio Oiticica, Tropicália. Liderado por Caetano Veloso,

juntamente com o parceiro Gilberto Gil, além de contar com a participação de outros grandes

artistas nacionais como Gal Costa, Tom Zé, os Mutantes, Rogério Duprat, Nara Leão, José

Capinan e Torquato Neto, esse movimento rompeu com a tradição da música brasileira. E

essa era de fato a intenção da garotada tropical, desconstruir a imagem nacionalista e

tradicional da música popular brasileira através de um projeto que procurava incorporar vários

traços da tradição cultural e folclórica nacional, da indústria cultural moderna, da arte pop,

além de diversos gêneros musicais (samba, baião, rock, bossa nova, etc.). O intuito do grupo

era não só obter uma universalização da linguagem musical brasileira, como também estender

o movimento a uma verdadeira mudança comportamental, incorporando elementos da cultura

mundial, principalmente do mundo do rock e do movimento hippie. Essa miscelânea poderia

ser captada através de um novo processo antropofágico, cuja raiz foram buscar no ideário

modernista de Oswald de Andrade. Segundo Caetano Veloso, em seu livro Verdade

Tropical, o “Manifesto antropófago” de Oswald tem relação direta como a ideologia

tropicalista, conforme podemos conferir:

O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da

devoração. Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação

nova, viesse de onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, assimilar sob

espécie brasileira a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com

qualidades locais iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo

e lhe confeririam, em principio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez,

num confronto internacional, como produto de exportação...A idéia do canibalismo

cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos "comendo" os

Beatles e Jimi Hendrix. (VELOSO,1997, p. 172)

Claro que essa comparação para Caetano se dava muito mais como um grande

argumento contra a defesa dos nacionalistas do que como uma comparação propriamente dita

entre os movimentos, visto que o tropicalista observava grandes diferenças entre os dois e

considerava a forma de invocação de suas ideias antropofágicas bastante simplistas. Mas,

apesar das diferenças históricas e culturais, pode-se dizer que esse processo realmente se deu

de forma parecida, visto que os dois enfrentaram momentos de grande necessidade de

reinvenção da realidade nacional.

Mesmo que os ideais tropicalistas já estivessem repercutindo pelo país com a

explosão de suas propostas no festival de 67, principalmente através do lançamento da música

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“Alegria Alegria”, de Caetano; para que o movimento ganhasse força e se expandisse como

um acontecimento planejado e conjunto, fazia-se necessária a construção de um disco que se

tornasse o grande manifesto da Tropicália, e, é aqui, que ganha força a atuação de Torquato

Neto (claro que não se pode deixar de mencionar também sua importante participação como

autor de manifestos e grande divulgador da Tropicália). O disco seria criado de forma unívoca

em relação aos temas e às composições musicais, e teria a participação daqueles que estavam

empenhados no movimento. Assim, em 68, o disco Tropicália ou Panis et circensis é

lançado, contando com a participação de Torquato, Capinan, Nara e Tom Zé, além, é claro, da

base formada por Gil, Gal, Mutantes, Duprat e Caetano. A participação de Torquato neste

momento é de grande relevância, sua empolgação e engajamento tropicalista são bem

demonstrados em uma das letras escritas para o disco, interpretada por Gilberto Gil, e que se

tornou uma canção manifesto do movimento, intitulada “Geléia Geral”:

Um poeta desfolha a bandeira

E a manhã tropical se inicia [...]

Na geléia geral brasileira

Que o jornal do brasil anuncia

É bumba iê, iê boi

Ano que vem mês que foi

Ê bumba iê, iê iê

É a mesma dança, meu boi

“A alegria é a prova dos nove”

E a tristeza é teu porto seguro [...]

Três destaques da Portela,

Carne-seca na janela,

Alguém que chora por mim

Um carnaval de verdade,

Hospitaleira amizade,

Brutalidade jardim[...]

Salve o lindo pendão dos seus olhos

Ea saúde que o olhar irradia...

(NETO, 2004, p.126-127)

Caetano Veloso (1997), referindo-se às impressões de Torquato sobre o

movimento, comenta que inicialmente ele recebeu as ideias de subversão ao ambiente da

MPB (Música Popular Brasileira) com um pouco de desconfiança, mas que logo aderiu ao seu

ideário transformador, sendo um dos primeiros a digerir e apreender a totalidade do objeto da

Tropicália. Nesta composição o poeta consegue captar a aura mixordiada do movimento

tropical e sintetizá-la em poucas palavras, já que a letra é construída a partir de recortes de

diversos ambientes culturais: tradição folclórica nacional (bumba meu boi) como o pop rock

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(iê, iê, iê), a cultura popular (carnaval) com a erudita (citando Pignatari2 e Oswald

3). Além

disso, o letrista desconstrói símbolos que marcam a nacionalidade brasileira, quando inicia

com “o poeta desfolha a bandeira”, mostra que artista tem o dom da subversão, da

desconstrução, podendo até mesmo utilizar trechos do próprio Hino Nacional da Bandeira

para construir sua poesia e desconstruir um pensamento “salve o lindo pendão dos seus

olhos”. Paralelamente ao discurso textual, não se pode deixar de comentar o arranjo de

Rogério Duprat elaborado para a letra, que mistura guitarra, baião, ópera, criando uma

correspondência entre as duas.

Conhecida um pouco da trajetória de Torquato Neto e do seu engajamento às

manifestações culturais de seu tempo, faz-se necessário o retorno ao assunto chave deste

estudo, e que será tratado agora com maior relevância: o lado torto do poeta, a febre do

escorpião encravado na sua própria ferida.

DO DESENCANTO

Quando se dispõe a fazer uma leitura da obra de Torquato Neto, percebe-se que o

nome do poeta vem sendo atrelado, tanto no meio jornalístico quanto acadêmico, com rótulos

que revelam uma característica desencantada, sempre adjetivado de maldito, desviante, torto,

marginal, desbundado. Aqui a postura também não é diferente, e esse panorama da vida

apresenta-se como base para retratar tanto o seu momento mais encantado e ativo, como o

período “Tropical”, como o grande desencanto do poeta.

Como é sabido, o tropicalismo não foi um movimento de cunho diretamente

político, mas, devido ao seu caráter contestador e desbundado, sofreu grande repressão do

Governo Militar, perdendo sua efervescência após a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-

5), em dezembro de 1968, quando ocorreram as prisões de Gil e Caetano. Antes mesmo desse

momento considerado o “segundo golpe”, Torquato, já rompido como os baianos e prevendo

o clima repressor que estava para se instaurar, se auto-exilou em Londres e Paris. É neste

momento de “chumbo”, que o movimento contracultural ganha força na realidade brasileira,

advindo do movimento tropicalista e das repercussões mundiais, a figura contestante, mas

reprimida, começa a surgir como peso na realidade nacional.

2 Décio Pignatari foi o primeiro a utilizar o termo “geleia geral” na revista Invenção nº 5: “na geléia geral

brasileira, alguém tem que exercer as funções de medula e de osso” (PIRES, 2000, p.82) 3 O trecho “a alegria é a prova dos nove” pertence ao Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade

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De acordo com a visão de Britto (2003) esse período “pós-tropicalista” se fez

bastante similar ao movimento contracultural californiano, principalmente em relação à

adesão de posturas comportamentais, como a postura política, o fervor da sexualidade, as

roupas, o cabelo, o misticismo e o amor ao rock, mas, ao mesmo tempo adquiriu certa

diferença, pois exprimia uma visão da realidade um pouco diferente daquela ideologia

utópica. Segundo ele, nesse momento tem-se um movimento reprimido, em que os artistas e

cancioneiros começaram a discursar sobre temas como o desespero, fracasso, solidão e a

loucura.

Heloísa Buarque de Hollanda (1980), no livro Impressões de viagem, fazendo

um panorama desse momento, comenta que as atitudes marginais, experiências com drogas,

alienação política, a descrença em um futuro promissor e a busca constante por novas

maneiras de pensar o mundo, favorecem o surgimento de um ambiente em que a loucura

passa a ser vista como uma forma de romper com a lógica racionalizante, surgindo muitos

casos de internamento e até mesmo suicídio, não só no ambiente literário, mas em um cenário

bem maior. Para exemplificar essa situação, a autora faz menção ao caso de Torquato, cujos

textos manifestam a temática da loucura e da morte.

Torquato sempre teve um discurso regado pelos desafetos, mas, depois da

repressão pós-tropicalista, seu lado melancólico e pessimista foi acentuado. Conforme aponta

André Pires (2000), a postura pós-tropicalista de Torquato se faz bastante diferente daquele

letrista tão empenhado em mudar a realidade da cultura brasileira, mostrando-se cada vez

mais gauche e solitário e descrente da eficácia do signo verbal, trocando a antropofagia da

cultura, por um comportamento de autofagia, em que o escorpião vai se encravando cada vez

mais na própria ferida. O discurso do poeta se faz cada vez mais permeado por sentimento de

nostalgia, tristeza, angústia em relação à vida moderna, inadaptação em relação às grandes

cidades, principalmente após o retorno do seu autoexílio em Londres, de onde voltou mais

desajustado do que nunca.

Um exemplo desse desencontro está na letra de “Três da madruga”, composta em

parceria com Carlos Pinto, onde retrata uma cidade vazia, de uma triste madrugada, em que o

poeta já não encontra abrigo e é tomado por uma grande solidão, a letra explicita o

descentramento do sujeito, a sua inadaptação com o mundo, seu desencontro como a cidade e

com seu próprio ser..

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Três da madrugada

Quase nada

Na cidade abandonada

Nessa rua que não tem mais fim [...]

E esta cidade que me mata

De saudade

É sempre assim...

Triste madrugada

Tudo é nada

Minha alegria cansada

E a mão fria mão gelada

Toca bem de leve em mim

Saiba:

Meu pobre coração não vale nada

Pelas três da madrugada

Toda palavra calada

Nesta rua da cidade

Que não tem mais fim... (NETO, 2004, p.103)

Embora seja perceptível a mudança do comportamento de Torquato, e o seu

grande desencanto neste momento tão repressor da realidade brasileira, não é possível atrelar

seu caráter marginal, ou maldito, apenas a essas relações político-sociais. Pois, quando se faz

uma leitura de textos que foram escritos bem antes desse momento, é possível perceber que o

desencanto, a solidão, a loucura e a morte, sempre foram presentes na consciência do autor, e

desde muito cedo já estavam presentes em seus versos.

“O soneto da contradição enorme”, presente no livro organizado por Paulo

Roberto Pires, não datado, mas que se enquadra na divisão feita pelo organizador entre os

“inéditos da infância” (textos que foram produzidos entre os anos de 61 e 62, a maioria em

Salvador e que estavam guardados na casa dos pais em Teresina) revela, desde antes do

desencanto pós-tropicalista, o teor melancólico e desajustado do poeta. Nesta leitura, percebe-

se que Torquato parecia se esforçar para viver em um mundo que não respondia com beleza

ao seu olhar, e que já naquele momento era difícil esconder de todos a ideia da morte que às

vezes flutuava em seu pensamento, que também vivia permeado por grandes fantasmas e

desesperança.

Faço força em esconder o sentimento

Do mundo triste e feio que eu vejo

Tento esconder de todos o desejo

Que eu não sinto em viver todo momento

Que passa. Mas que nunca passa inteiro.

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Deixa comigo o rosto da lembrança

E o fantasma de só desesperança

Que me empurra e de mim me faz obreiro (NETO, 2004, p.46)

Para Paulo Andrade, encontra-se na obra de Torquato Neto um “estilhaçamento

do sujeito lírico, que por entre caminhos e descaminhos arrisca-se à palavra escrita como ação

de resistência” (2002, p.81), e que se veste de uma postura marginal, estando sempre na

contramão do discurso dominante ou de qualquer tipo de ideologia. Torquato viveu pouco,

mas intensamente, tendo sua trajetória marcada pelo deslocamento, pela marginalidade e pelo

comportamento transgressor e resistente. Seu suicídio precoce acentuou essa imagem

desviante e comprovou mais uma vez seu amor pela tragédia e pela autodestruição, conforme

já comentava em um texto não datado e intitulado Let’s play that, conforme a letra, da

canção Let’s play that. Neste texto o autor revela seu amor pelo lado trágico da vida e da

própria literatura, revela sua paixão pelos mitos marginais e salienta a sua forte ligação com

os aspectos contraculturas e o modo marginal de se impor socialmente.

Era o seguinte: eu tentando lutar contra a tragédia, o abismo, a catástrofe e ao

mesmo tempo apaixonado por ela. Pois eu estou aqui. Ainda tenho algum tempo e

sei como explodir o mundo. (...) eu perdi a briga: morro de amores pela catástrofe e

vou alcançá-la: correto?(NETO, 1982, p.323)

Essa paixão pela tragédia, pelo lado desviante do mundo, só faz comprovar a

familiarização do poeta com a marginalidade. Torquato, embora tivesse vivido e sentido todo

esse momento introspectivo e repressor, já possuía um caráter melancólico nato, pois a

obscuridade e a raiz desviante e solitária vinham do seu próprio desajuste generalizado, já

estavam predestinados, conforme o mesmo descreve na bela intertextualidade que realiza

como o Poema das sete faces, de Drummond; essa vida torta já estava enraizada no mais

íntimo suspirar do artista, seu destino era mesmo esse, o de ser contestador, gauche, com a

missão de desafinar o coro dos contentes, conforme fica claro na letra da canção Let’s play

that:

Quando eu nasci

Um anjo louco muito louco

Veio ler l a minha mão

Não era um anjo barroco

Era um anjo muito louco, torto

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Com asas de avião

Eis que esse anjo me disse

Apertando a minha mão

Com um sorriso entre dentes

Vai bicho desafinar

O coro dos contentes (NETO, 2004, p.131)

Contestador e desviante até na escolha da linguagem, usando de gírias próprias da

linguagem contracultural brasileira da época, o uso expressão bicho também retrata de forma

clara o desafino, o caráter marginal do poeta, que teve sua missão anunciada por um anjo

também marginal, que preconizava uma vida inteiramente dedicada a ser gauche e

transgressor do sistema dominante. Assim foi a trajetória torquateana predestinada a ser

errante, marginal, tendo sua sina cumprida conforme desde cedo revelada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar este estudo, nada mais justo que tentar responder às questões

colocadas no texto de apresentação sobre quais seriam as principais motivadoras do caráter

melancólico de Torquato Neto. Assim, chega-se à conclusão de que o lado torto do artista se

faz pelos três substantivos relacionados no início deste estudo: por rebeldia se dá devido a sua

proposta contracultural, seu movimento ligado ao desbunde geral da época, principalmente a

sua relação com o tropicalismo e o pós-movimento. Por simpatia, conforme visto, o lado

trágico sempre despertou a curiosidade e inquietação do poeta, que se fez fã dos grandes

malditos e com eles mantinha uma relação inspiradora, e a desarmonia, esta era sua grande

sina, a de ser errante, destoado do mundo em que vivia, sua grande proposta e seu grande

desatino, que culminou no símbolo maior do seu desencanto: o suicídio, seu grande brado

desafinado ao coro dos contentes.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: uma poética de estilhaços. São Paulo: Annablume, 2002.

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BRITTO, Paulo Henriques. A temática noturna no rock pós-tropicalista. In: DUARTE, Paulo

Sérgio; NAVES, Santuza Cambraia (Orgs.). Do samba canção à tropicália. Rio de Janeiro:

Dumará, 2003, p. 191-199.

CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34,

1994.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde:

1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 1980.

NETO, Torquato. Os últimos dias de paupéria. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca,

1973.

______.Os últimos dias de paupéria. São Paulo: Max Limonad, 1982.

______. Torquatália: obra reunida de Torquato Neto. Paulo Roberto Pires (Org.). 2V. Rio de

Janeiro: Rocco, 2004

PIRES, André Monteiro Guimarães Dias. A ruptura do escorpião: ensaio sobre Torquato

Neto e o mito da marginalidade. São Paulo: Cone Sul, 2000.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Schwarz, 1997.