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DO ARSENAL AO PORTO, DA GESTAÇÃO AO PARTO Imagens da construção de navios de guerra no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940, mostrando a evolução da técnica e os rituais de apresentação de uma ideia de progresso FERNANDO RIBAS DE MARTINI* Volta e meia me perguntam: qual é o seu objeto de estudo? Costumo responder que é um objeto bem grande. Meu tema de pesquisa em história é a construção naval militar, especialmente no Brasil do século XX e focada, no momento, nas décadas de 1930 e 1940. Uma atividade industrial que oferece diversas opções de estudo, com variada escolha de pontos de vista: econômico, político, militar, das relações trabalhistas, do impacto da atividade nas relações sociais ou mesmo nas relações internacionais, além do desenvolvimento da ciência, técnica e tecnologia – e estas últimas opções estão especialmente no meu foco, entendendo-se a tecnologia como um conceito que se situa na interpenetração entre ciência e técnica (DAUMAS, 1965: xvii). Opções de objetivos não faltam, mas vale a pena não se esquecer do objeto, materialmente falando. Sim, o tal grande objeto ao qual me referi logo acima. Afinal, quando falamos em construção naval militar, nunca é demais lembrar que essa atividade visa produzir um objeto: o navio de guerra. *Universidade de São Paulo – Departamento de História – mestrando em História Social

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DO ARSENAL AO PORTO, DA GESTAÇÃO AO PARTO

Imagens da construção de navios de guerra no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940,

mostrando a evolução da técnica e os rituais de apresentação de uma ideia de progresso

FERNANDO RIBAS DE MARTINI*

Volta e meia me perguntam: qual é o seu objeto de estudo? Costumo responder que é um

objeto bem grande. Meu tema de pesquisa em história é a construção naval militar,

especialmente no Brasil do século XX e focada, no momento, nas décadas de 1930 e 1940.

Uma atividade industrial que oferece diversas opções de estudo, com variada escolha de

pontos de vista: econômico, político, militar, das relações trabalhistas, do impacto da

atividade nas relações sociais ou mesmo nas relações internacionais, além do

desenvolvimento da ciência, técnica e tecnologia – e estas últimas opções estão especialmente

no meu foco, entendendo-se a tecnologia como um conceito que se situa na interpenetração

entre ciência e técnica (DAUMAS, 1965: xvii). Opções de objetivos não faltam, mas vale a

pena não se esquecer do objeto, materialmente falando. Sim, o tal grande objeto ao qual me

referi logo acima. Afinal, quando falamos em construção naval militar, nunca é demais

lembrar que essa atividade visa produzir um objeto: o navio de guerra.

*Universidade de São Paulo – Departamento de História – mestrando em História Social

Alguém interessado nesse assunto vai encontrar, com algum esforço, uma quantidade razoável

de documentos escritos para a pesquisa de navios e sua construção. Datas, planejamentos,

cronogramas, uma pequena historiografia onde a maioria dos autores é militar ou engenheiro

(ou ambos), notícias em jornais, depoimentos transcritos e memórias escritas, relações de

materiais, de compras de equipamentos e armamentos diversos em fornecedores brasileiros ou

estrangeiros, livros de administração do pessoal que trabalhou no projeto e construção dos

navios, manuais técnicos e descrições dos métodos construtivos das embarcações, etc. Uma

variedade significativa de fontes escritas para construir, por inferência, a história dessa

atividade e de seu objeto conforme qualquer das opções citadas no parágrafo anterior.

Mas o que dizer do objeto em si, como realização da atividade de construção? Bastam os

textos? Esta última pergunta, num aspecto geral, já recebia uma resposta negativa de Marc

Bloch em sua Introdução à História (BLOCH, 1997: 115) escrita na década de 1940, e depois

alçada à condição de “manual” por gerações de historiadores influenciados pela Escola dos

Annales. Então, para começar, sejamos pelo menos contemporâneos ao que se teorizava em

história naquela mesma década em que, com a Segunda Guerra Mundial em curso, eram

construídas algumas das embarcações que vou mostrar neste trabalho. É o mínimo que esses

velhos navios “merecem”: que nossa visão de história não fique presa a concepções mais

velhas do que eles próprios, como objetos de estudo.

Porém, pode não ser o bastante começar pela concepção de que fontes escritas não bastam,

com o perdão do trocadilho. Dizer que não bastam dá a entender que precisam ser

complementadas por outras fontes, como as que pertencem à cultura material (imagens,

objetos ou seus resquícios). Mas a proposta aqui é, no mínimo, dar a mesma importância a

essas “outras fontes”, fugindo da noção de serem “complementares” ou usadas somente para

provar argumentos textuais. Proponho um exercício diferente: vamos tentar inverter a lógica

e começar do objeto, do que é possível apreender de sua materialidade a partir de seus

resquícios diretos ou indiretos, como eram feitos e para que finalidade, para só então passar às

fontes escritas em buscas de novas respostas e perguntas.

Infelizmente, e resguardada uma única exceção que é o monitor Parnaíba (construído entre

1936 e 1938 e ainda em atividade na Marinha do Brasil em Ladário – MS), todas as belonaves

construídas no país no período que estudo foram desativadas e viraram sucata, não havendo

nenhuma preservada (como museu flutuante, por exemplo). Para as finalidades de preservação

da memória, restam uns poucos resquícios materiais que faziam parte diretamente desses

grandes objetos, como peças expostas na forma de monumentos - e o próprio conjunto de

fatos e escolhas que levou à transformação em peça monumental ou de acervo de museu já

seria tema para um trabalho específico dentro de meu próprio campo de pesquisas: pode-se

questionar por que esses resquícios “importam” à sociedade, como perguntaria Daniel Miller

em seu jogo de palavras entre materialidade e importância quando utiliza a palavra “matter”

em inglês, já no título de seu trabalho (MILLER, 1988: 3).

Pode-se aproveitar a presença material dessas “sobras” para pensá-las no contexto social de

ontem e hoje e como parte constituinte do mesmo, como forma de focalizar o objeto em si, ao

mesmo tempo em que se evita a simples fetichização, como propõe o mesmo autor (MILLER,

1988: 9). Mas a análise de partes restantes será o foco de outro artigo, pois as questões e

métodos acima também podem empregados no estudo de outros resquícios da cultura material

ligados a esses navios, e que felizmente são mais abundantes: fotografias.

Construção do casco do monitor Parnaíba no Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras (AMIC), Rio de Janeiro.

Foto via Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha (DPHDM).

Imagens como esta acima, que mostra o casco do primeiro navio sendo construído no novo

Arsenal da Marinha da Ilha das Cobras (AMIC) na Baía de Guanabara, em frente ao centro do

Rio de Janeiro (falaremos um pouco mais do AMIC a seguir). A foto mostra as obras no casco

do monitor Parnaíba, citado brevemente mais acima, uma embarcação de relativamente

pequeno porte (deslocamento próximo a 700 toneladas), para patrulha fluvial. Embora a

fotografia não traga a data impressa, as fontes escritas sobre as obras desse navio, que situam

o início da construção em 11 de junho de 1935 e o lançamento em 2 de setembro de 1937

(CÂMARA, 2011: 42-43), podem ser contrastadas ao fato da imagem mostrar a obra do casco

já no nível do convés principal. Como a construção ou “erguimento” de um navio com a

tecnologia do período começa de baixo para cima (NEWTON, 1941: 157), isso permite supor

que a foto foi tirada entre o final de 1936 e início de 1937. Um observador mais informado

sobre as técnicas da época, olhando com atenção a estrutura mostrada na foto, vai reparar em

furos nas vigas horizontais do alto do casco, no sentido transversal do mesmo.

Sequências de furos em partes estruturais são características de técnicas construtivas por

rebites, utilizados para união entre peças metálicas. No caso, aço. Trata-se da técnica mais

comum ainda na década de 1930, embora a novidade da solda elétrica (que une peças de aço

diretamente, sem furos e inserção de rebites) já estivesse ganhando espaço à época mesmo em

países com mais tradição em construção por rebitagem, como a Inglaterra – mas que por

muitos anos ainda empregaria em massa essa técnica mais consagrada (NEWTON, 1941: 16).

Além dos furos, no topo da superfície vertical mais à esquerda, que aparenta ser do

chapeamento lateral do casco, vemos uma linha de rebites, e junto a essa lateral, pode-se ver

peças de conexões das vigas com a estrutura transversal, também unidas por rebitagem.

Na foto, os trabalhadores mais atrás, à esquerda, estão junto a um objeto de onde sai fumaça,

semelhante a uma churrasqueira dos dias atuais, onde se conecta uma mangueira

(provavelmente de gás). A forma do equipamento e o contexto permitem identificá-lo como

um aquecedor de rebites, que normalmente recebem aquecimento imediatamente antes de sua

introdução nos furos das partes de metal a serem unidas – assim, ao resfriar e encolher

longitudinalmente, suas cabeças apertam com mais firmeza as peças, pressão que é

fundamental estruturalmente e para garantir, juntamente com outras técnicas, um casco à

prova d’água (NEWTON, 1941: 9-14). Há também escoras de madeira sustentando

provisoriamente partes da estrutura de aço. Condições de trabalho ao ar livre (evidenciadas na

foto) também podem ser temas de reflexão, como o uso de chapéus de aba larga. Os que

cobrem as cabeças do grupo à direita seriam rígidos como os capacetes atuais ou seriam

moles? E essa foto, que objetivo estaria por trás dela? Documental, recordação pessoal,

confecção de um relatório? Para esta última pergunta, que também é pertinente às demais

imagens deste trabalho, vale dizer que o AMIC tinha um serviço fotográfico próprio desde

pelo menos a primeira metade daquela década, explicitamente voltado confecção de álbuns

históricos e informativos sobre as obras de construção das próprias instalações do Arsenal,

conforme relatório das atividades do ano de 1934 (BRASIL, 1935: 58-59). A documentação

crescente que era gerada tinha um serviço próprio de arquivo, e é de supor que a imagem

acima (e outras) sejam prosseguimento dessa finalidade documental já à época em que se

construíram os navios – o que não impedia que fossem tiradas, em certos casos, em ângulos

bastante privilegiados para também contarem uma história de progresso que vai além da

simples documentação, como veremos a seguir.

Já que citamos as obras das instalações do AMIC, faz sentido falar um pouco sobre o Arsenal,

a partir de fontes escritas. Suas instalações vinham sendo construídas desde a década anterior

(especialmente seu grande dique seco) e o AMIC é considerado a maior obra de engenharia

realizada no Brasil entre as décadas de 1920 e 1930, apesar das primeiras providências em se

utilizar a área disponível na Ilha das Cobras para esse fim específico datarem do início do

século (TELLES, 2001: 114). Até a inauguração do prédio da laminação da CSN (Companhia

Siderúrgica Nacional, ou Usina de Volta Redonda) em 1945, sua oficina principal de 270

metros de comprimento era a maior construção industrial brasileira (TELLES, 2001: 116).

Aliás, o Arsenal e seu maquinário atual e antigo também podem ser “objetos” para análise,

mas agora é hora de focarmos nas imagens.

Os trabalhos no Parnaíba serviram como aprendizado e teste para engenheiros e operários

(CÂMARA, 2011: 41). Dois anos após o início da construção do monitor fluvial, as duas

grandes carreiras (áreas dos estaleiros / arsenais, sobre as quais navios são construídos e

depois lançados a uma superfície aquática adjacente) já se encontravam bem ocupadas de

obras de embarcações. Havia pressa, ditada pela obsolescência dos navios que compunham a

esquadra, e havia também a disponibilidade de recursos (ainda que limitados) e a vontade

política para se concretizar um plano de construção naval no próprio país, conforme Programa

Naval aprovado em 1932 e ampliado nos anos seguintes (MARTINS, 1985: 105-107, 183-

186, 209-217).

A dimensão desse trabalho pode ser percebida na foto da página seguinte, que considero uma

das mais significativas para se entender a construção naval militar do Brasil naquele período,

pois mostra as obras de forma ampla, mas também com riqueza de detalhes. Usei o parágrafo

acima para situar minimamente o leitor no contexto histórico, algo necessário para começar a

entender a imagem. Mas a proposta não é utilizar a imagem abaixo só como “prova” do que é

encontrado nas fontes escritas: é partir da imagem para a interpretação / problematização.

Arsenal de Marinha da Ilha das Cobras (AMIC), com data de 12 de setembro de 1938 (Foto DPHDM).

Num primeiro olhar, percebemos um guindaste se destacando no quadrante superior esquerdo

da foto. Ao fundo, os edifícios de uma cidade, onde se vê uma igreja bem à esquerda (cuja

cúpula ajuda a identificá-la como a Nossa Senhora da Candelária, na área central do Rio de

Janeiro). Ocupando a maior parte da imagem, estão duas grandes carreiras ao ar livre e sob o

sol (que aparenta estar bem forte, pelo contraste da sombra que acompanha o lado direito da

foto, e que pode ser de um edifício de grande comprimento, fora de quadro). As duas

carreiras, lado a lado, são separadas por uma elevação dotada de trilhos sobre os quais se

apoia um grande guindaste. Como afirmar que são grandes as carreiras e o guindaste? Usando

como referência três pessoas bem ao lado deste último.

Mais à direita, há outra elevação dotada de trilhos, e podemos supor que estes servem a um

outro guindaste, provavelmente usado como plataforma para a foto. Em pé sobre um desses

trilhos, e próxima a uma pilha de chapas de metal, está uma outra pessoa, aparentemente

olhando para a carreira maior. Essa pessoa também se presta como referência para atestarmos

a dimensão desse conjunto de instalações.

Foquemos nos detalhes na carreira maior: podemos contar cinco cascos em construção nessa

área, dispostos em dois conjuntos. Os três cascos do conjunto de trás aparentam ser de maior

porte que os dois da frente, e suas obras também parecem estar mais adiantadas (ou acumulam

mais tempo de construção), com mais estruturas unidas e com andaimes ladeando cada casco -

pensando na interação do homem com o objeto, além das informações já citadas sobre método

de construção de baixo para cima, quanto mais adiantada está uma obra, mais altos e visíveis

são os andaimes, que permitem a esses homens o acesso às partes superiores do casco. Isso

fica mais claro comparando a altura das estruturas já montadas nos três cascos de trás com

suas contrapartes nos dois da frente.

A construção dos navios parece ser feita a partir de uma estrutura longitudinal: trata-se da

quilha da futura embarcação, descrita muitas vezes como a “espinha dorsal” de uma

embarcação (NEWTON, 1941: 52). Essa estrutura, na obra vista ao centro da metade inferior

da foto, segue paralela ao piso da carreira até curvar para cima nas duas extremidades.

Peças no formato de semi-círculo ou “meia-lua” (com a parte reta para cima) estão colocadas

transversalmente sobre a quilha, apoiadas em vigas aparentemente de madeira, e mais à

direita, vemos uma delas “deitada” sobre suportes no piso (que recobrem toda a carreira), ,

com um trabalhador sobre ela. Essa “meia-lua” deitada que localizamos, e que na verdade é

parte de uma “antepara” do casco, não é a única visível. Há outra à esquerda do outro casco

do conjunto da frente. E há mais uma no conjunto de trás, próxima à obra do casco do meio.

Como há homens de pé sobre a metade esquerda dessa peça, podemos concluir que ela é

maior do que a que está mais perto da extremidade inferior da foto, onde outros homens

servem como referência de tamanho. O conjunto dá a entender que essas anteparas são

montadas na horizontal, sobre o piso da carreira, para então serem colocadas na vertical, sobre

a quilha – e, de fato, é este o procedimento usual de construção na época, com as anteparas

instaladas o mais cedo possível na obra, tendo papel tanto estrutural quanto, com o navio

pronto, de prover compartimentos estanques em caso de ruptura do casco (NEWTON, 1941:

83-89). E como são instaladas? Essa é provavelmente uma das funções do grande guindaste

da foto, que se deslocaria sobre os trilhos para que sua haste pudesse alcançar qualquer parte

da carreira. Na próxima página, uma ampliação da imagem acima deixa mais visíveis os

detalhes.

Podemos ver as superfícies arredondadas de rebites em algumas das partes mostradas,

mostrando que essa técnica construtiva era empregada na estrutura do casco. A quilha

também pode ser vista com clareza, assim como uma estrutura (aparentemente de madeira) na

qual a quilha se apoia para manter seu formato. Sobre a quilha, vê-se uma antepara

longitudinal de formato retangular em cada um dos cascos.

Vejamos a ampliação de outra parte da foto, que mostra a segunda carreira, à esquerda do

grande guindaste. Podemos perceber os contornos mais escuros de dois navios em avançado

estágio de construção nessa carreira, e várias pessoas trabalhando.

Quando vemos a elevação onde está guindaste, ajudados pelo fato de sua tonalidade ser mais

clara, fica bem nítida uma diferença de ângulo, ou inclinação, entre essa elevação e o piso da

carreira. Qual das duas estaria inclinada? O guindaste, pelo seu porte, deve ser pesado. E

trilhos são adequados a deslocamentos de objetos pesados sobre superfícies niveladas, com o

mínimo possível de inclinação para um máximo de eficiência. Imaginando como, depois de

prontos, os pesados cascos serão deslocados para a água, concluímos que o piso da carreira é

um plano inclinado, com sua parte mais baixa voltada para o mar (a cidade ao fundo ajuda

nessa conclusão, assim como a superfície aquática que pode ser vista mais à esquerda da

foto). De fato, fontes escritas corroboram que os cascos são construídos sobre um plano

inclinado para facilitar seu futuro lançamento ao mar (NEWTON, 1941: 42), e esse plano, a

carreira, deve ser suficientemente forte para aguentar o peso dos cascos e as forças envolvidas

no próprio lançamento – e o projeto das carreiras do AMIC previa 1.270 estacas como

fundação para lages de concreto (BRASIL, 1935: 39).

Em resumo, a foto mostra as carreiras do Arsenal em plena atividade, com sete navios em

construção simultânea e em estágios diferentes de andamento das obras. Isso em setembro de

1938, (como indica a data escrita no canto inferior direito), apenas dois anos depois do

primeiro navio (o monitor Parnaíba) ter iniciada a sua construção. A análise restrita a essa

foto, cujo autor encontrou um ângulo que enquadrasse todos os navios nas carreiras, deixa

transparecer uma impressão de grandiosidade desse esforço construtivo, de atividade

complexa com diversos trabalhadores, técnicas e equipamentos – uma atividade que

“importava”, para os envolvidos em seu registro, documentação e, quem sabe, divulgação.

E, numa interpretação possível, a foto conta uma história, traz em si uma cronologia da era

industrial, uma ideia de passagem do tempo e do progresso (tanto no sentido de cumprimento

de fases de obras quanto do progresso material, de realizações) de uma moderna atividade

industrial em sua época, bem em frente ao centro da capital do Brasil (ao fundo na foto). Uma

grande indústria que produz grandes objetos tecnológicos, que gradualmente podem fazer o

caminho do passado ao futuro, do arsenal ao porto, como diz a primeira parte do título deste

trabalho, numa cadência industrial de produção em série de complexos produtos.

Cada casco, em seu estágio de construção, mostra a passagem do tempo em direção a esse

progresso. Chapas cortadas e empilhadas no lado direito são o começo de tudo, e aguardam

que o guindaste (que domina a cena) coloque-as na carreira, para comporem peças maiores.

Algumas partes são vistas fixadas sobre quilhas, permitindo traçar os primeiros contornos de

futuros cascos. Mais atrás, outros cascos maiores representam obras em estágio mais

avançado (a bem da verdade, ficarão prontos depois dos que estão mais à frente, pois são

navios de maior porte e construção mais complexa e demorada). E, na carreira em segundo

plano, à esquerda na foto, dois navios quase completos se aproximam da hora do lançamento.

Trabalhadores pontilham a cena, pequenos quando comparados a esse panorama.

A foto traz uma narrativa do trabalho e dos frutos desse trabalho, que não são artefatos

comuns: são armas de guerra, que saindo dessa instalação industrial podem ser apresentadas à

sociedade como garantias de sua segurança contra inimigos que venham do mar. São a

renovação da defesa dessa sociedade, armas que ela mesma constrói e que por vários anos

(pela durabilidade desse objeto da cultura material) poderão ser vistas ao largo de sua capital

ou de outras cidades litorâneas. Ou, quando estiverem em alto-mar, a imagem das mesmas

servirá de lembrança. São também evidências materiais presentes de eventos históricos (suas

construções e decisões a esse respeito) que aconteceram no passado (JONES, 2007: 3). Mas aí

já estou, talvez, extrapolando os limites desta foto. A apresentação dos navios à sociedade é

um assunto para a imagem a seguir.

Lançamento do contratorpedeiro Marcílio Dias no AMIC em 20 de julho de 1940, ladeado de outros dois navios

da mesma classe, em construção (Foto DPHDM).

Primeiro, algumas rápidas informações para situar o leitor no contexto: quando a obra de um

navio atinge um estágio em que o trabalho pode continuar junto a um cais, o casco é lançado à

água, livrando assim o espaço que ocupava na carreira para o início de uma nova construção.

Esse momento é retratado na foto acima, onde é lançado o primeiro de três contratorpedeiros

cujas obras começaram no mesmo dia, oito de maio de 1937 (CÂMARA, 2011: 58), com uma

solenidade de batimento de quilha, que é equivalente à inauguração da pedra fundamental de

um edifício. Esse marco do início da construção contou com a presença do próprio presidente

Getúlio Vargas. Coube a ele fazer o cravamento do primeiro rebite na estrutura da quilha do

Marcílio Dias (M1), usando um martelo hidráulico, enquanto outras autoridades faziam o

mesmo nas quilhas do Mariz e Barros (M2) e Greenhalgh (M3) (REVISTA MARÍTIMA

BRASILEIRA, 1937: 1168). Pouco mais de três anos e dois meses depois, em vinte de julho

de 1940 (CÂMARA, 2011: 58), uma nova cerimônia era realizada: o lançamento do Marcílio

Dias, que podemos ver “escorregando” para o mar nesta foto.

Esse navio, com a designação “M1” pintada no costado perto da proa, e cuja popa acabou de

tocar o mar, é o elemento central da foto. As marolas e a espuma dão a noção de movimento.

Também salta aos olhos a presença de uma multidão que ocupa praticamente toda a área seca

disponível com exceção de duas popas de navios em construção, onde há menos gente. Mais

ao fundo, à direita, estão em formação paralela cinco navios muito semelhantes entre si, e

aparentemente fundeados (um deles só aparece parcialmente). Estes, juntamente com o navio

em lançamento, as popas de dois outros em construção e a multidão que praticamente

emoldura a ação, são os elementos principais perceptíveis num primeiro olhar.

Como um todo, esta foto parece mostrar uma celebração, um ato festivo. O navio, elemento

central, está embandeirado de proa à popa. Trata-se claramente de uma cerimônia de

lançamento, quando um navio é batizado (normalmente com direito à quebra de uma garrafa

de champanhe no seu costado por uma madrinha) imediatamente antes de ser lançado. É um

ritual que tem sua ordem de eventos, para o qual uma grande quantidade de pessoas é

convidada. Vemos pessoas com o uniforme branco da Marinha, mas também muitas outras

em trajes civis. A quantidade é tal que elas ocupam não somente as elevações ao lado da

carreira (que vimos na foto anterior), mas também o longo quebra-mar que cerca a área de

lançamento, tornando-a uma superfície de águas mais calmas. Em suma: é a sociedade sendo

apresentada a um novo objeto tecnológico. Ela comemora uma realização, o fato de se ter

construído essa grande arma naval que fará parte de sua segurança contra inimigos externos.

Já se pode ver o casco esguio, adequado a cortar o mar a grande velocidade, e as duas altas

chaminés que também transmitem essa ideia de potência e desempenho. Na sua superestrutura

(conjunto de construções acima do convés) já se encontram as marcações circulares de onde

serão instalados seus canhões. Aparentemente, não falta muito para que ele seja completado e

que, tripulado por militares provenientes dessa sociedade, encontre sua finalidade principal,

como arma. Mas, no momento da foto, seu uso é outro: ele é foco de atenção para as

realizações materiais dessa sociedade, que mostra do que é capaz.

Escrevi que se trata de um ritual, descrevi pessoas testemunhando a saída do navio do local

onde foi construído, quando ele toca pela primeira vez num novo elemento onde passará sua

vida útil, inicialmente numa área protegida, abrigada dos perigos desse mar, onde já se vê

outros navios em formação, que “testemunham” a chegada do novo integrante de sua família,

a esquadra. O leitor pode farejar algum fetichismo nessa visão, mas este pode ser justificado

pela própria montagem da cerimônia, que acredito explorar um fetiche por fazer correlações

claras entre esse momento marcante da história de um objeto e de um momento que é próprio

da vida humana: o parto. E vem daí a segunda parte do título deste artigo.

Após a “gestação” na carreira (e o batimento de quilha que iniciou o processo pode também

ser comparado à concepção), o navio “nasce” para a sociedade. Deixa o elemento onde foi

preparado e tomou forma e é expelido para outro, escorregando por um suporte que recebe o

nome sugestivo de “berço”. Sua chegada é comemorada e aparentemente é motivo de orgulho

para as pessoas que cercam o recém-chegado. Outras futuras “crias” dessa sociedade estão

próximas, e aguardam a vez de também deixar essa primeira morada e em breve se reunir aos

outros membros da “família”, que podemos ver mais ao longe, à direita. Exagero? Talvez não,

quando se confronta a cena à descrição do fato pelo próprio diretor do AMIC à época,

almirante Júlio Regis Bittencourt, em suas memórias (fonte lida por este autor somente após

já ter desenvolvido esta interpretação da cena): “No mar, ao sul da ilha fundearam em linha os

seis mineiros, que ali se perfilaram para receber o seu belo irmão, que se encaminhou para o

dique para largar o berço que o conduziu.” (BITTENCOURT, 2005: 206)

Vale a pena dar uma olhada mais de perto nesses “irmãos” que já estão no mar. Ampliando o

canto superior direito da foto, percebemos a tripulação perfilada sobre o convés, nesse

momento fazendo do objeto (navio de guerra) um uso diferente do seu principal (navegar e

combater). O navio com a tripulação disposta cerimoniosamente representa o respeito à

liturgia do momento, ao ritual, às autoridades presentes e à sociedade. E os próprios navios

estão em formação, conferindo marcialidade ao momento. Fumaça escura sai da chaminé do

mais próximo, demonstrando que caldeiras estão acesas mais abaixo. Vapor branco sai da

parte logo à frente da chaminé do outro, onde normalmente se localiza a saída de seu apito.

Podemos supor, mesmo sem acessar arquivos sonoros, que o som de apitos saudava o ato.

E que navios são estes? Poderia me estender mostrando outras imagens ao leitor para

comprovar quais são, mas creio que, já perto do final deste trabalho, basta dizer que pelo

menos metade deles estava, dois anos antes, em construção sobre as carreiras mostradas na

foto que analisamos antes desta. São da classe “Carioca” de seis navios-mineiros-varredores

de 500 toneladas de deslocamento leve, três vezes menos que o deslocamento do

contratorpedeiro que está sendo lançado, e quatro unidades desta classe haviam sido

incorporadas ao setor operativo da esquadra apenas um mês antes (CÂMARA, 2011: 48-58),

marcando uma nova etapa em seus trajetos “do arsenal ao porto”. A partir daí, interpreto que

essa foto também faz uma narrativa temporal, tendo representações do passado, do presente e

do futuro numa mesma cena. Conforme o ponto de partida de quem vê, são duas opções. Em

ambas, o presente é o contratorpedeiro “M1” sendo lançado.

Se começarmos pelos navios em formação ao largo, eles representam o passado, pois já

passaram por esse ritual e chegaram à “vida adulta”. E os dois cascos ainda em construção,

que ladeiam o navio lançado, representam o futuro, pois em breve seguirão o caminho deste

último. Mas podemos começar a “leitura” da cena pelos cascos em construção, e assim eles

representam o passado do navio que é lançado, ou a etapa de “gestação” que este já venceu, e

os navios ao largo representam o seu futuro, operando na esquadra e, eventualmente,

presenciando os rituais de apresentação de novas gerações. Em ambos os casos, o que importa

na narrativa é a mesma noção de progresso, de realização material e tecnológica vivenciada

por esta sociedade, presenciando o ato naquele momento ou em sua representação por meio da

foto, suporte material para reconstruir essa memória nos anos e décadas seguintes.

Mas o progresso técnico também aparece na leitura também “técnica” da imagem. Acima,

vemos uma ampliação da área inferior esquerda da foto, mostrando parte da estrutura da popa

de um dos contratorpedeiros, ainda por incorporar as chapas que fecharão o convés. Podemos

ver vigas transversais e anteparas, como já vimos em fotos anteriores. Mas, nesse caso, não há

pequenos furos sequenciais em suas superfícies, onde serão presas as chapas do convés (os

furos que se vê são grandes, nas laterais das peças, e servem para reduzir o peso total). Isso

indica que, ao menos nessa área da obra, não se está utilizando a técnica de construção por

rebites, e sim por solda, numa época em que a solda elétrica ainda estava se disseminando na

construção naval de países tradicionais construtores de navios militares, como vimos.

A partir daí, podemos levantar problemas sobre a introdução dessa técnica no Brasil, o porquê

de a vermos mais claramente nesses navios, de onde foi introduzida e como. Mas isso já é

tema para outro artigo, assim como outros navios em construção que aparecem também na

foto de lançamento do último “classe M”, na página de abertura deste trabalho, e que traz uma

variação dos mesmos elementos da fotografia do lançamento do primeiro deles. No momento,

importa mais ressaltar a ideia de progresso sendo mostrada à sociedade, perpetuada nas

imagens. Após toda essa análise baseada em fotos, tomo a liberdade de usar uma fonte textual

para reforçar essa interpretação, outra vez com as lembranças do almirante Regis Bittencourt,

que as presenciou da posição privilegiada de quem coordenava a própria atividade:

“Olhavam para os lados, para a frente, para cima, para baixo, perguntando-se se

ali era mesmo um pedaço do Brasil, se realmente era verdade que aquele casco

esguio, altaneiro, orgulhoso e belo era feito por mãos de seus patrícios, aqueles

homens orgulhosos de seu esforço e trabalho que formigavam entre aquela massa

tão grande e as carreiras tão bem construídas! (BITTENCOURT, 2005: 206)

Bibliografia:

BITTENCOURT, Júlio Regis (1822 - 1964). Memórias de um engenheiro naval: uma vida,

uma história. Rio de Janeiro, Serviço de Documentação da Marinha, 2005.

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Imagem da página de abertura: lançamento do contratorpedeiro Grenhalgh no Arsenal de Marinha da Ilha das

Cobras, Rio de Janeiro, em 8 de julho de 1941 – Foto via Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação

da Marinha – DPHDM (Agradeço à DPHDM pela autorização para o uso e publicação das imagens).