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NOVIEMBRE 2013 “DO AMOR” “DO AMOR” Daniela Goulart Desde criança eu escuto a palavra zona, meu pai estava na zona. Eu cresci com essa palavra na cabeça até, muitos anos mais tarde, encontrar o caminho da zona. E não foi difícil pois havia uma zona na porta da minha casa. Da janela do meu quarto eu escutava as putas rindo, chorando, brigando, carros a noite inteira com som alto. Elas entravam e saiam dos carros com naturalidade. Essa cena me marcou, e eu conheci uma puta, Meire, 27 anos com cara de 58. Isso me marcou também: o rosto conta uma história. E o de Meire era impressionante. Meu trabalho de fotografia é dedicado a alegria e espontaneidade da alma ioruba e índia, como uma fuga da civilização, pois essa entristece a alma. E como eu precisava de assunto pra fotografar, o assunto foi, durante os anos de 2002 e 2008: as putas das Rua Guaicurus em Belo Horizonte, o baixo centro, velho, popular, violento, decadente, vivo e pulsante. O baixo centro é, a meu ver, a alma da grande cidade brasileira, ali está o arcaico, o original; a riqueza dos detalhes e fachadas das lojas populares, das bugigangas, roupas de liganete, estampas de flores, prédios velhos caindo aos pedaços, hotéis baratos, botecos, cartazes amarelos com o preço do pastel e caldo de cana escritos à mão. Aí eu peguei um ônibus, e encontrei Dos Anjos, que distribuía camisinha e gel KY na zona. Ela me levou na zona rica, média e pobre. Em uma tarde eu vi as putas esperando o programa, sentadas, deitadas, de calcinha, toalha,

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NOVIEMBRE 2013 “DO AMOR”

             

“DO AMOR” Daniela Goulart∗

Desde criança eu escuto a palavra zona, meu pai estava na zona. Eu cresci com essa palavra na cabeça até, muitos anos mais tarde, encontrar o caminho da zona. E não foi difícil pois havia uma zona na porta da minha casa. Da janela do meu quarto eu escutava as putas rindo, chorando, brigando, carros a noite inteira com som alto. Elas entravam e saiam dos carros com naturalidade. Essa cena me marcou, e eu conheci uma puta, Meire, 27 anos com cara de 58. Isso me marcou também: o rosto conta uma história. E o de Meire era impressionante.

Meu trabalho de fotografia é dedicado a alegria e espontaneidade da

alma ioruba e índia, como uma fuga da civilização, pois essa entristece a alma. E como eu precisava de assunto pra fotografar, o assunto foi, durante os anos de 2002 e 2008: as putas das Rua Guaicurus em Belo Horizonte, o baixo centro, velho, popular, violento, decadente, vivo e pulsante. O baixo centro é, a meu ver, a alma da grande cidade brasileira, ali está o arcaico, o original; a riqueza dos detalhes e fachadas das lojas populares, das bugigangas, roupas de liganete, estampas de flores, prédios velhos caindo aos pedaços, hotéis baratos, botecos, cartazes amarelos com o preço do pastel e caldo de cana escritos à mão.

Aí eu peguei um ônibus, e encontrei Dos Anjos, que distribuía camisinha

e gel KY na zona. Ela me levou na zona rica, média e pobre. Em uma tarde eu vi as putas esperando o programa, sentadas, deitadas, de calcinha, toalha,

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“DO AMOR”

camisola, banho tomado, cabelo molhado. Sempre tem uma escada na entrada da zona, dava um frio enorme na barriga. O cheiro era doce. As paredes impregnadas de não sei o que. Sexo? Os homens entram e saem sem parar, parecia um formigueiro, e elas, calmas, nas portas dos quartos, controlam tudo, quem entra e quem sai.

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“DO AMOR”

Ali eu escutei as conversas, cúmplice, casos de amor e violência. As putas no Brasil gozam e apaixonam, fingem também, e muito, são atrizes. É tudo misturado, não tem nenhum profissionalismo. Neuza Priscila Laura Julie Patrícia Madalena Paula Lúcia amam e odeiam seus clientes. Casam com eles, mas nunca dá certo. Tem filhos. Namoram. Transam. Muitas vezes elas só escutam eles falarem das coisas da vida, do medos que eles têm, e nem transam.

Luzia é quase índia, tinha uns 50 anos. Usava uma peruca Chanel

amarrotada, uma mini saia de tricô e sandália de salto alto. Gordinha e baixinha. Um doce de pessoa. Nos finais de semana ela ia pra casa de um homem, limpava a casa dele tb, eu acho. E reclamava comigo do pouco dinheiro que ele dava pra ela. Eu perguntei: porque vai então? E ela continuava indo. É sempre assim em qualquer lugar.

Laura era feliz, falava e ria muito, gostava de vermelho, pagou faculdade do filho com o trabalho da zona. Muito a vontade com tudo isso, se assumia publicamente como puta, dava entrevista pra televisão, jornal, rádio. Eu entrei no quarto dela uma vez para fotografar, a luz e a roupa de cama eram vermelhas, a roupa dela também, e tinha uma pia no quarto, ao lado da cama. Laura tem uma irmã gêmea idêntica. A irmã não é puta, é evangélica.

Julie era Ana. Era líder porque precisava de uma líder. Veio do interior de São Paulo, me contou como foi a primeira vez na zona, disse que viu um anúncio no jornal, tinha saído de casa, briga de família. Ela disse que a transa da puta é totalmente diferente, é outra coisa. Escutei muito dela. Julie era bonita, inteligente e mal tratada. Gostava de um cara que não gostava dela e tinha um cara lindo que gostava dela mas ela não gostava dele. Ele era lindo, homem. Uma vez vi ele sentado num bar, numa cobertura de um hotel amarelo, numa noite de festa muita agradável. Era impossível não notar a beleza solitária e italiana deste senhor. Ele deu pra Julie um estola de pele, que ela me deu e eu passei pra frente.

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Priscila era uma mulher linda, alta, corpo poderoso. Ela posou para mim meio cansada em cima da sua cama de calcinha sem sutian. Era tão bonita que trabalhava no melhor hotel da rua.

Lúcia é de Goiânia. Brava, esquentada, cabelo cacheado e pintado de ruivo. Tinha um namorado em Goiânia, que sabia do trabalho dela em BH. Lúcia era bi, transava com garotas também, e com todo mundo, pagando ou não. Também conheci o quarto dela, cama baixa e larga, estrategicamente posicionado na entrada da zona. Certa vez, um amigo, ou primo do namorado de Goiás, ofereceu cinquenta reais pra ela transar com ele. Ela não topou e contou pra todo mundo o caso, como um ato de extrema fidelidade e honra.

E tem as putas da Praça da Rodoviária. Luzia ficava lá, Neuza e Paula também. A praça é um lugar para as senhoras. Paula era uma senhora comum, bem-humorada, gorda, usava óculos, parecia qualquer coisa menos puta. Fazia os programas nos motéis ao redor da praça, e conhecia todos os pintos, de todos os jeitos e tamanhos, e segundo ela, os homens deixam de comer para pagar um programa, pois sexo é coisa muito forte, é carne com carne.

As putas que eu conheci gostavam dos homens – mas não da polícia e dos donos dos hotéis. As mais profissionais lidavam muito bem com a fantasia, com a fragilidade masculina, e controlavam aquele momento que rola de tudo, e rola muito do que é impossível para alguns fazer com a mulher ou com a namorada.

E cada homem tem seu jeito, mas é na fragilidade que eles se igualam, se revelam sem máscaras dentro daqueles quartos vermelhos. As putas os acolhem assim, na fragilidade, e aí fica tudo bem. E depois disso, não há mais nada.

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                                                                                                                       ∗  Daniela Goulart é fotógrafa, vive e trabalha em Belo Horizonte. Mestre em Artes Visuais, professora de fotografia na Escola Guignard. Participou de várias exposições Panorama da Arte Brasileira, Coleção Pirelli/MASP de fotografias, Projeto Pampulha.