Diz que a outra deve pão há dois meses

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Diz Que a Outra Deve Pão Há Dois Meses Na Golegã ouve-se muito dizer. E quando se ouve dizer, é sempre sobre alguém e nunca nada tem a ver com quem diz. Normalmente, o dizer que se ouve tem um por cento de verdade ali pelo meio. E digo pelo meio porque começa-se e acaba-se sempre com comentários exagerados; só a meio da conversa é que lá sai uma ou outra palavra verdadeira sobre o assunto em causa. Em meios pequenos e que quase toda a gente se conhece é bastante fácil que a filha da dona Matilde tenha ficado grávida 4 vezes no mesmo mês. Ou que o senhor António ande a enganar a mulher, porque ontem alguém o viu no supermercado a falar com “uma bastante mais nova e que é uma vergonha”. E nunca – mas mesmo nunca se sabe quem viu. Porque ouve-se sempre dizer. Lembro-me, em tempos de infância e adolescência, ir a andar pelas ruas da Golegã e ser abordado por alguém que eu nunca tinha visto antes, com a famosa frase: «Ó meu menino, de quem tu és filho?». E com os traços da minha personalidade já a quererem sair cá para fora, por vezes lá respondia eu: «Do carteiro». Curiosamente, a seguir chamavam-me «mal-educado». E vocês nem imaginam como era difícil explicar ao raio da mulher que, se de entre nós os dois tivéssemos que escolher o mais mal-educado, então essa pessoa seria aquela com perguntas inoportunas e, provavelmente, com a vontade insaciável de inventar alguma história sobre um puto que ia a passar na rua. Uma coisa vos digo: Na capital do cavalo, quem pouco sabe, muito diz. E quem muito diz, então é porque não sabe nada. Pelo menos, foi o que eu ouvi dizer.

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Diz Que a Outra Deve Pão Há Dois Meses

Na Golegã ouve-se muito dizer. E quando se ouve dizer, é sempre

sobre alguém e nunca nada tem a ver com quem diz. Normalmente, o dizer

que se ouve tem um por cento de verdade ali pelo meio. E digo pelo meio

porque começa-se e acaba-se sempre com comentários exagerados; só a

meio da conversa é que lá sai uma ou outra palavra verdadeira sobre o

assunto em causa.

Em meios pequenos e que quase toda a gente se conhece é bastante

fácil que a filha da dona Matilde tenha ficado grávida 4 vezes no mesmo

mês. Ou que o senhor António ande a enganar a mulher, porque ontem

alguém o viu no supermercado a falar com “uma bastante mais nova e que

é uma vergonha”. E nunca – mas mesmo nunca – se sabe quem viu. Porque

ouve-se sempre dizer.

Lembro-me, em tempos de infância e adolescência, ir a andar pelas

ruas da Golegã e ser abordado por alguém que eu nunca tinha visto antes,

com a famosa frase: «Ó meu menino, de quem tu és filho?». E com os

traços da minha personalidade já a quererem sair cá para fora, por vezes lá

respondia eu: «Do carteiro».

Curiosamente, a seguir chamavam-me «mal-educado». E vocês nem

imaginam como era difícil explicar ao raio da mulher que, se de entre nós

os dois tivéssemos que escolher o mais mal-educado, então essa pessoa

seria aquela com perguntas inoportunas e, provavelmente, com a vontade

insaciável de inventar alguma história sobre um puto que ia a passar na rua.

Uma coisa vos digo: Na capital do cavalo, quem pouco sabe, muito

diz. E quem muito diz, então é porque não sabe nada. Pelo menos, foi o que

eu ouvi dizer.