DITAD URA DE CORAÇ - perse.com.br · dimensão do iminente discorrer de um longo drama, um desses...
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ÕES
Tereza Reche
Este livro é uma obra de Ficção, os contos são totalmente
advindos da imaginação da autora, sendo que não são baseados
em fatos verídicos. Portanto, qualquer semelhança com o
presente ou passado são mera coincidência.
Agradecimentos
Ao meu filho José Matheus Dias, ao meu amigo Dr. Otavio
Eboli e familiares, em especial ao meu pai José Martinho
Iatarola (in memoriam).
PRÓLOGO
Em épocas que ideais valiam mais que sentimentos para
muitos, não serviria de argumento o amor. Ainda mais quando
se possui uma alma sonhadora, em meio a uma década de
chumbo, o resultado não poderia ser outro senão feridas fatais.
É 1930, e a Capital Federal do Rio de Janeiro tem por
presidente Washington Luís. A situação se torna conturbada
desde que resolve apoiar Júlio Prestes, presidente de São Paulo
a sua sucessão. Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba rejeitaram,
e tamanha fora rejeição que o romance desencadeia a trama
através deste descontentamento. E num efeito cascata, evento a
evento, a partir de 1930 o país tomará rumos, sofrerá danos,
verterá sangue do próprio sangue, e se verá aprisionado por
aquele que outrora, jurou ser seu libertador.
O romance permeia os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e
Paraná, conta a história da Coluna Prestes, os Levantes
Tenentistas e todos os manifestos que provocaram alianças e as
dissolveram na mesma intensidade numa trajetória curta e
trágica. Movimentos foram promovidos para posteriormente
serem exterminados, e a ilusão de que se havia espaço para
idealistas foi dissipada ao culminar do ano de 1937 pelas mãos
do homem que soube como ninguém destruir sonhos.
Interesses estavam em jogo de um lado, um grupo de
profissionais do Partido Republicano Paulista – PRP.
Do outro, um grande Jornal getulista tentando através de uma
proposta irrecusável comprar um talentoso jovem jornalista,
Felipe Russo. Porém, os planos fogem ao controle quando tudo
é descoberto e infelizmente, existem caminhos que mesmo não
traçados por nós, não nos permite retorno. Obrigado articular a
mídia a favor do governo de Getúlio Vargas, atuando
diretamente contra os seus companheiros, que se encontravam
vertendo o sangue paulista nas trincheiras do Túnel da
Mantiqueira, pelo mesmo ideal que o seu, fez com que Felipe
tomasse decisões que o levariam a um mundo onde honra não
era permitida.
CAPÍTULO I
Paraná, município de Ponta Grossa, ano de 1930. O cenário que
envolve os ventos vindos da Capital Federal, não era muito
amistoso. Naqueles dias, decisões seriam tomadas talvez sem
um mensurar a altura do desequilíbrio que causaria à nação
pela qual tais decisões se focavam. Entretanto, nem todos
brasileiros, ao menos por enquanto, estavam cientes da
dimensão do iminente discorrer de um longo drama, um desses
era Anice, uma menina de quinze anos filha de um militar
rígido e autoritário, talvez como todos os demais decerto. Eram
tempos difíceis, porém não para ela, uma moça que
recentemente deixara a infantilidade dos traços do rosto e
corpo, hoje estava se tornando uma mulher oculta em sua face
de pele tão branca, olhos tão claros e cabelos tão quentes.
Um tipo de anjo perdido na Terra... Portanto o pai, de ciúme e
cuidados exacerbados, escondendo-a a maior parte do tempo
obviamente, principalmente dos rapazes... Na escola havia
inúmeros que desejavam retirar-lhe os óculos, se deparar com
os olhos de cristal esverdeados por trás destes. O
comportamento tímido e reservado de Anice provocava efeito
contrário, deixando cada vez mais admiradores sedentos para
trás... Mas isso é outra história, a questão é que, numa certa
tarde, nem os admiradores, nem o pai militar e nem mesmo ela
poderiam imaginar que sua volta para casa lhe traria um rumo
que mudaria sua vida para sempre.
Caminhava lentamente com uma amiga, quando de repente,
sentiu o tranco forte em suas costas levando-a ao chão
repentinamente, sua boca chocou forte sangrando. Já diante do
pó do chão levou a mão aos lábios e percebeu que havia se
ferido, o susto a fez chorar, não por ter sido atropelada por um
rapaz de bicicleta enlouquecido, mas pelo sangue que perdia
pela boca... – Anice! - Gritou sua amiga Sophia,
uma garota obesa, que mais vivia falando de meninos que
qualquer outra coisa, mesmo sendo ridicularizada
frequentemente pela maioria deles. Era uma idade complicada,
ainda mais naqueles tempos.
- Meu Deus! Perdoe-me! Perdoe-me! Eu não queria.
Insistia repetidas vezes o rapaz da bicicleta, deveria ter este
uns dezoito anos, levava alguns jornais na cesta de uma
bicicleta, não era um galã, mas Sophia, como de costume o viu
assim... – Olá, meu nome é Sophia. – Sorriu ela
enquanto ajudava à amiga se levantar, ainda assustada Anice
alisava avidamente sua roupa empoeirada e limpou a boca com
um lenço oferecido pela amiga, que simultaneamente
mantinha-se atenta ao rapaz. – Precisa ir ao médico!
-Meu pai é médico, não se importe com isso, apenas olhe para
onde anda! - Respondeu ela irritada a desviar o olhar
do rapaz, ainda atenta ao sangue que sujava o lenço, ajeitou os
óculos que não lhe ajudava muito, estava estraçalhado.
- Veja o que você fez, acabou com meus óculos!
- Me perdoe, nem sei como fiz isso, estava olhando para trás.
Perdoe-me, é só o que posso dizer.
- Seu nome, por favor... – Perguntou Sophia,
adentrando no diálogo desencontrado dos dois. – Felipe,
meu nome é Felipe, trabalho de entregador, às vezes de pão,
como não temos mais tanto pão... Agora jornais.
- Vamos Sophia, preste mais atenção Felipe antes de olhar para
trás.
Anice tentou por um momento se mostrar autoritária como
seu pai, entretanto num som tão doce de voz, que parecia uma
melodia aos ouvidos do rapaz. Sophia deu com a mão se
despedindo sorridente, e os olhos dele não se desviavam de sua
recente vítima.
Chegando a sua casa, o pai se encontrava no telefone, o rosto
diante de um quadro, a voz sempre ríspida e apreensiva, o que
haveria de ser desta vez? Entretanto, mesmo parecendo pronto
para sair, ao vê-la desligou imediatamente sequer se
despedindo do amigo. – Filha! O que houve?
- Nada de grave pai, fui atropelada...
- Não acha grave? Olhe seus óculos! E sua boca minha filha,
está com corte profundo! Atropelada por quem?
Anice bem conhecia o pai, então preferiu não contar... Isso
traria graves consequências ao rapaz entregador. – Nem vi,
foi uma bicicleta, e quando olhei já estava longe.
- Mas como pode? Atropelada por uma bicicleta? Venha,
vamos fazer um curativo nisso.
Precisava cicatrizar logo aquele corte, afinal haveria um
grande jantar e seria a primeira vez que ela participaria de um,
seu pai a liberara por ter até que enfim quinze anos! Seria uma
confraternização que reuniria assuntos políticos, mas no
mundo alienado da adolescente, consumido pela sua inocência,
apenas se tratava de um jantar debutante para ela. Chegada a
tão aguardada data, estava especialmente maravilhosa aquela
noite, seu vestido em tom rosa pastel, muito comportado, o
tecido de organza e o sapato branco a deixava ainda mais
angelical. Na festa estava também, Camila Fontana, uma
garota que cursava a mesma escola que Anice, entretanto, sua
experiência e malícia de longe inundavam a ingenuidade da
menina que sequer havia saído de sua casa antes daquela noite.
Camila se aproximou da colega, vestia uma roupa apesar de
comportada bem mais sensual, e mesmo sendo magra e sem as
curvas de uma mulher, tentava atingir essa façanha.
– Olá Anice, então como está se sentindo fora de casa sem ver o
sol?
- É estranho, sempre durmo antes das dez, meu pai apaga todas
as luzes... – Riu a ruiva com um brilho reluzente daqueles
olhos contra a luz dos lustres na sala de jantar.
– Você tem que ter mais personalidade, não pode deixar seu pai
saber de tudo o que se passa. – Anice era limitada de-
mais para alcançar os emaranhados persuasivos de Camila,
então apenas lhe restava sorrir, não compreendeu, e riu
novamente, mas Camila bem sabia o que queria.
– Venha aqui, vou te mostrar uma coisa, mas me prometa que
jamais falará para ninguém.
- É perigoso? - recuou temerosa.
- Como você é medrosa Anice, apenas uma brincadeira, nunca
mais vai esquecer, venha, mas saiba; deve manter segredo
eterno!
A menina receosa fez que sim com a cabeça, e seguiu-a até o
jardim, a casa do militar anfitrião era tão imensa que seria
perigoso até mesmo ele perder-se em um jardim tão belo e
repleto de esconderijos.
– Venha, e cuidado com as pedras, quase torci meus pés hoje
aqui.
Anice estava com medo, a cada passo a escuridão ia tomando
dimensão maior distanciando ambas da mansão onde acontecia
a festa. Então, onde parecia ser um labirinto, estava um sinal
de cigarro na escuridão.
– Olhe! O que é aquilo? - Assustada com a barra da saia
nas mãos para evitar sujá-las, exclamou Anice cessando os
passos. Um som repreensivo longo no ouvido de Anice foi
ouvido por Camila pedindo que ela silenciasse o temor.
Anice então seguiu os passos traiçoeiros da menina, e
chegando mais perto, viu um rapaz encostado em um pequeno
arvoredo. Era um militar também, tinha por volta de vinte anos,
o cigarro foi queimado nos seus pés, e sorrindo ele disse em
olhar lânguido à Camila; - Demorou muito meu
amor... Trouxe uma amiga?
- Sim, ela também quis vir, há algum problema? Ela pode ir
embora se você quiser... – Riu ela, Anice continuava
em silêncio, não compreendendo sequer o que pudesse estar
fazendo ali, também fazia-se difícil entender o que se passava
entre aqueles dois que se olhavam tão fixamente, parecendo se
conhecer. Mas toda aquela inércia de indagações
repentinamente tomou um rumo diferente, o rapaz se
aproximou de Camila, e enquanto levava o olhar à Anice
escondeu despudoradamente sua mão direita dentre as vestes
da amiga que soltou um som um tanto inusitado aos ouvidos de
Anice...
– Eu quero voltar.
- Ei, calma menina... Venha aqui, deixe-me ver uma coisa...
– Disse o rapaz com uma voz tão doce que ela não pode reagir,
sequer o olhava após ele retirar sua camisa o que jamais ela
havia presenciado. Camila via tudo como uma diversão, mas
ela queria sair correndo dali o mais rápido possível. – Me
dê sua mão, está tão trêmula, está com medo do que? -
Perguntou ele docemente tomando devagar as mãos gélidas da
menina. – Por favor, eu quero voltar...
– Então o rapaz levando os braços até sua fina cintura a fez
sentir tão fragilizada, algo a mantinha imóvel agora.
– Eu só preciso ver uma coisa. Por favor, apenas isso, e depois
você pode ir, pode ser?
Não houve resposta, a ruiva ainda tremia, mesmo sentindo o
carinho dele ao envolvê-la em seus braços, Camila começava a
retirar as roupas e Anice trancou os olhos, teve pavor daquele
momento. Mas o pavor logo foi diminuindo, pois os olhos não
viam, mas seu corpo sensível e virgem de tudo e qualquer coisa
que a mantivesse ali se entregava sem ordem dela, ao rapaz de
uma beleza demasiada para ela. Foi ao sentir um beijo singelo e
quente na sua pele tão fria no ombro, ela gemeu. Camila não
estava mais vestida quando abraçava o rapaz, e ela preferiu
permanecer de olhos fechados, seu medo assim se foi, e suas
emoções eram entregues calmamente... Mas quando o deleite
do beijo a tomou por inteiro, já não mais sentia seu sabor e um
novo em si, ao sentir mãos envolvendo e procurando despir seu
corpo abriu os olhos rapidamente, foi então que teve uma
surpresa aterrorizante! Camila roçava o rosto sobre ela, e o
rapaz a envolvia pelos ombros, ela soltou-se de repente de
ambos não sendo detida por eles, aquilo foi demais, Anice deu
um grito repentino tentando escapar dali. – Não! Tire
as mãos de mim sua nojenta! - Calma Anice,
você vai gostar. -dizia a ninfeta, em ares de mulher...
- Não ponha a mão em mim! - Conseguiu
se livrar daqueles braços que a envolvia, e correu, correu como
nunca, perdida no jardim não parava de correr, tremia, sua
respiração era ofegante e agora suas lágrimas caiam
descontroladamente até esbarrar com alguém no escuro e cair
sobre esse vulto.
– Me desculpe! - lembrou-se daquela frase, e a
voz era a mesma. Com o refletir da luz da lua, pode ver que era
o rapaz da bicicleta! Seu destino parecia ser atropela-la fosse
com ou sem ela.
- Você de novo?
- Quem é você? - Logo ele assimilou a luz também a
atingiu, e aqueles olhos que transpassavam qualquer outro, o
fitaram de frente. – É você, Anice? – indagou
lentamente seu nome, como que saboreando cada letra.
– Sim, o que está fazendo aqui?
- Nada, por favor, não deixe ninguém me ver!
- Está escondido?
-Eu... Eu... Vim sem convite, foi isso. Mas eu fui convidado,
apenas esqueci o convite.
- Deve precisar de óculos, esbarra em tudo Felipe.
- Só em você que me lembro de ter esbarrado. Por que está com
olhos vermelhos? Estava chorando?
- Não, eu vou para o jantar, vamos caminhando, eu não me
lembro de por onde é aqui é imenso!
- Também não conheço bem a mansão, mas encontraremos o
lugar...
Riu gentilmente indo na frente, Anice o seguiu. A data daquele
jantar era muito conhecida, não só conhecida quanto
tendenciosa... Era 30 de julho, havia quatro dias morria o
ministro do estado da Paraíba, candidato à presidência da
República, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque,
assassinado pelo jornalista João Duarte Dantas, do partido
(PRP), ligado ao Jornal onde Sergio Russo e Miguel Othon
trabalhavam, pois eram amigos de seus pais.
João Duarte era adversário político de João Pessoa e segundo
informações, o ministro haveria ordenado uma invasão em sua
residência em busca de armas que pudessem estar em sua posse
para uma possível revolta armada, entretanto o que encontram
em um cofre foram cartas de poemas e amor escritas por uma
jovem poetisa, famosa pela beleza, ideias progressistas e
inteligência notável chamada Anaíde Beiriz*. A moça
mantinha relacionamento em com João Dantas, suas cartas
então são publicadas dias depois nos jornais do estado, isso
inflamou o jornalista que lavou sua honra matando João
Pessoa.
A reunião, supostamente “um jantar de gala militar” na
verdade não passava de um momento tenso onde se resolveria
o futuro do país. Ainda na “Catedral Basílica de Nossa Senhora
das Neves”, o corpo de Cavalcanti, permanecia para visitação,
de onde seria transportado no dia 1 de Agosto para o Rio de
Janeiro. No jantar estavam alguns militares envolvidos com
questões políticas, eram chamados de tenentistas. Os assuntos
eram de um lado maçantes em relação aos militares, em
contraposição fútil do lado das esposas, e finalmente
interessante do lado de Anice e Felipe, que conversavam agora
aos risos, enlaçando uma amizade nítida e duradoura. Ela
caminhava lado a lado com ele, que com as mãos no bolso
sequer se lembrava de que ali se tratava de um campo inimigo,
afinal, o rapaz era sobrinho de um jornalista de envolvimento
próximo com o então presidente Washington Luís, caso
soubessem de sua presença não bem vinda ali, poderia lhe
acarretar sérios danos, ainda mais se soubessem das
informações que ele possuía sobre o que haveria de ocorrer na
próxima candidatura... Mas os olhos daquele anjo ruivo
pareciam leva-lo à insanidade, esquecendo-se quanto perigo
estava a correr.
– Você é entregador então, de pães e jornais, como disse aquele
dia que me atropelou?
- Sim, sou sim. E o ferimento da boca, sarou?
- Sim, como disse, meu pai é médico, e cuidou de tudo.
- Mas o que vocês fazem aqui, já que seu pai é médico? Afinal
esse jantar me parece ter apenas militares e tenentes.
- Meu pai é militar. – Felipe parou os passos.
– Quem é seu pai?
- Seu nome é José Arruda Carneiro. Conhece?
- Sim, é um nome conhecido, ele é conhecido de Getúlio
Vargas não é?
- Ele leva muitas pessoas para casa, jantar, almoçar, conhece
todo mundo.
- Eu acho melhor eu ir embora. – sua voz enfraqueceu-se.
- O que houve? Não vai comer? - uma ansiedade tomou
conta dele, o temor por estar ao lado da filha de um militar o
deixou atônito.
– É que não vim para o jantar compreende, eu apenas fiz o que
precisava e agora vou embora.
- Que pena, estava tão bom conversarmos.
- Quem sabe amanhã não a atropelo novamente na rua?
Disse ele em tom de sarcasmo, fazendo-a sorrir. Foi então que
ficou ali, olhando-a e pode perceber o quanto era pura, e,
sobretudo, linda.
- Posso lhe pedir uma coisa?
- Claro, o que quiser.
- Não conte sobre mim para ninguém, ainda mais aos seus pais,
está bem?
- Tudo bem, amanhã eu estarei no jardim da minha casa, bem
cedo, estudando.
- Sim, deixarei o jornal lá, chamarei você, pode ser?
- Sim pode.
Felipe, respeitosamente se despediu ainda com as mãos no
bolso, meneou a cabeça sorrindo, e ela ainda com aquele olhar
vidrado nele, somente brilhava pela forma que o enxergava
agora. Mas aquele momento em que ela parecia flutuar foi
interrompido pela voz de Carmem Arruda Carneiro, sua mãe
que estava ali próxima da porta da varanda.
– Quem é ele?
- Que susto mãe! Onde estava?
-Acho que sou eu quem deve perguntar isso não é mocinha?
- Ele é um, amigo de Camila, e estávamos conversando
somente isso.
- Venha para dentro, está esfriando, e sua amiga onde está?
-Não sei, e sinceramente eu nem quero saber. E ela não é mais
minha amiga!
Aquele questionamento remeteu-lhe a sensações nauseantes,
talvez jamais desejasse rever Camila tão precocemente... A
mãe riu-se dela, desconhecendo o evento ocorrido há poucos
minutos atrás e a acompanhou para o jantar. Enquanto sua
mente dia a dia montava uma longa história de sonhos, agora
com uma face cujo detentor era Felipe, a de seu pai agia
maquiavelicamente em seu escritório em parceria com outros
amigos militares num plano de governo. E de seu escritório, de
pé frente à janela do segundo andar da casa, via uma cena que o
tirou do foco, enquanto os amigos questionavam, discutiam e
debatiam; o governo de Washington Luís, os olhos verdes tais
os da filha pareciam flamejar agora pela cena que viu no
jardim. A filha intocada corria até o portão ao encontro do mais
novo amigo, um rapaz desconhecido “de bicicleta”...
– Felipe! Você encontrou minha casa sozinho?
Perguntou Anice demonstrando a alegria em vê-lo, Felipe
desceu da bicicleta com o jornal na mão, e tudo era
minuciosamente observado pelo pai da menina, do alto do
escritório.
– Como passou?
-Bem, e você?
- Bem também... Anice, eu quero que saiba que não consegui
mais parar de pensar em você desde o dia em que a vi pela
primeira vez.
Ela baixou a cabeça num ato de timidez, mas logo reergueu
num sorriso como sempre beirando o mais casto deles.
– Eu também não Felipe.
Os passos firmes do pai deixaram o escritório onde estavam
seus quatro amigos, e desceu apressadamente a escadaria
chamando a atenção da esposa que se levantou assustada, bem
conhecia seu esposo José Arruda.
– Querido! O que foi que houve?
Tentou interrompê-lo, porém sem sucesso, José continuava
seu marchar até alcançar a saída da casa, sendo visto pelo rapaz
que de imediato voltou-se para a menina e disse já em retirada:
- Preciso ir.
- Por quê? Felipe! O que aconteceu? - Neste exato
instante sentiu a mão forte do militar buscando seu braço.
– Quem era aquele moleque?
- Ai pai, está me machucando! Um amigo do colégio!
- Amigo do colégio? Mas ele não tem sua idade, quem era ele?
Diga agora!
Carmem correu até eles antes que o marido ferisse o braço da
filha, apenas ela tinha o dom de acalmar José Arruda num
ataque como aqueles de ciúmes.
– Vai machuca-la José! Solte-a!
- Ele entrega jornais!
Exclamou ela em lágrimas correndo para dentro de casa, a
mãe a seguiu, mas não a alcançou. Durante uma semana não
viu mais Felipe. Entretanto, numa noite fria de Agosto, ouviu
um barulho que a acordou repentinamente pela madrugada, era
uma pedra lançada na janela, teve medo a princípio, mas pela
fresta pode ver que havia uma bicicleta encostada em uma
grande árvore em frente a sua casa. Abriu vagarosamente a
janela evitando assim acordar os pais e empregados, e
finalmente percebeu se tratar de Felipe, ele acenava com a mão
para que descesse e a menina não receou, rompeu as normas, as
ordens e dissipou o medo. Vestiu-se e correu para frente da
casa, permeou a grama curta do jardim, teve o máximo de
cuidado para não ser vista, e alcançou por fim o portão baixo
que cercava a casa ampla do militar.
- Seu louco, o que está fazendo aqui?
- Vim vê-la, seu pai não pode me conhecer e nem ver meu
rosto!
- Por que se esconde tanto, por que meu pai não pode te ver? Eu
preciso saber, por que foge dele desse jeito.
- Venha comigo, eu vou explicar.
Ela subiu confiante nele na garupa da bicicleta, Felipe emanava
uma confiança por realmente merecê-la. Distantes dali,
debaixo de uma grande árvore, sentaram-se. Ela esfregava os
braços finos contra o frio, e ele retirou sua blusa e a entregou
para que se cobrisse.
– Obrigada. Mas então, quem é você, e por que foge desse jeito
quando se refere ao meu pai?
- Eu vou contar-lhe, mas confiante de que não contaria a
ninguém.
- Confie em mim Felipe, somos amigos.
- Sou filho de jornalista, não posso lhe dizer o nome do meu
pai, é muito perigoso, mas ele apoia Júlio Prestes.
- Meu pai odeia Júlio Prestes!
- Eu sei, por isso estou lhe dizendo, somos conhecidos de João
Dantas, se o seu pai souber, ou sequer desconfiar que a filha
dele, mantém contato com o filho de um jornalista de Júlio
Prestes, não sei o que poderia acontecer.
- Meu pai é muito rígido Felipe, intolerante, mas ele me ama
demais, não faria mal a você por mim.
- Não acredito nisso. Não vindo de militares, sinto muito
Anice, e não deveria ser tão confiante também, é muito nova
ainda para entender.
- Meu pai não deixa ouvir as conversas dele, não fala sobre
trabalho, sempre telefona escondido, mas às vezes eu ouço
algumas coisas sim...
Um brilho nos olhos de Felipe nasceu naquele momento.
-Já ouviu? E o que ouve às vezes?
- Várias coisas... Mas muitas delas eu não me lembro, não
agora.
- Eu compreendo, mas se ouvir algo muito importante, falaria
para mim? Se achar que eu mereço é claro.
- Como algo sobre guerras, levantes, revolução...
- Revolução? Vivemos o tempo todo em revolução. – sorriu
sem retorno dela e houve silêncio entre ambos.
- Poderia ser um pouco mais explícita, por favor?
- É que eu ouvi por acaso certa noite, nas reuniões de sempre
que existem em casa foi de uma revolução, que se daria início
no Rio Grande do Sul.
- Você tem certeza disso?
-Absoluta, ouvi meu pai falar.
- Mas... Fale-me mais, ou pelo menos nomes, algo mais
detalhado, e o restante eu procuro por mim mesmo. Olhe, se eu