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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, especialização em Relações Internacionais, realizada sob a orientação científica do Professor Auxiliar Tiago Moreira de Sá, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à

obtenção do grau de Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais,

especialização em Relações Internacionais, realizada sob a orientação

científica do Professor Auxiliar Tiago Moreira de Sá, da Faculdade de

Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

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À minha Família, de duas e de quatro patas.

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer aos meus familiares e amigos, que me apoiaram durante todo o

processo de desenvolvimento desta dissertação, que me motivaram a seguir em frente mesmo

quando o desespero ganhava terreno no meu espírito e quando o caminho parecia demasiado

tortuoso para continuar a palmilhar.

Quero agradecer aos meus “irmãos de quatro patas”, cujo ânimo muitas vezes me fez

ver a luz ao fundo do túnel e cujas brincadeiras e companheirismo foram essenciais para

aliviar a pressão e fazer dissipar aquela nuvem negra que nos momentos mais difíceis teima

em pairar sobre as nossas cabeças.

E quero deixar um especial agradecimento ao meu orientador Tiago Moreira de Sá, por

ter querido continuar a acompanhar-me mesmo depois de o processo de desenvolvimento da

dissertação ter demorado mais tempo do que o previsto.

A todos, deixo-vos a minha eterna gratidão.

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Estados Unidos e Rússia no pós-Guerra Fria: a construção de novas dinâmicas políticas e relacionais, ou como um “degelo” tímido aproximou

Oeste e Leste

United States and Russia in the post-Cold War: the construction of new relational and political dynamics, or how a timid “thawing” brought West

and East closer together

Filipe Tiago Pimentel Rações

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais, especialização em Relações Internacionais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de

Lisboa

Resumo

Com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos viram a sua posição de proeminência no sistema internacional ser consolidada e foram investidos do papel de “comandante” da ordem internacional liberal que emergiu da conclusão do conflito. Do outro lado do oceano Atlântico, o antigo adversário tinha sido dissolvido, dando lugar a uma constelação de novos países independentes, entre os quais a Rússia de destacava, empenhada em virar a página do seu passado soviético e construir um novo caminho, em direção à democracia e à liberalização económica.

No âmbito de um novo conjunto de circunstâncias, Estados Unidos e Rússia procuravam definir os seus novos papéis no sistema internacional: um queria afirmar-se como potência mundial incontestável; o outro procurava legitimação internacional e reconhecimento como o herdeiro único e legítimo da União Soviética.

A par da definição de novas identidades, Estados Unidos e Rússia procuravam quebrar o gelo que durante décadas impossibilitou boas relações entre os dois países e encontrar bases comuns de entendimentos e perceções que servissem de suporte ao desenvolvimento de dinâmicas de cooperação e até de parceria, em matérias tão importantes para os Estados Unidos como o combate à proliferação de armas nucleares.

Este trabalho pretende trazer à luz as novas dinâmicas relacionais entre os Estados Unidos e a Rússia e compreender qual o lugar de uma nova Rússia pós-soviética no pensamento norte-americano de política externa, com especial enfoque nas questões da expansão da NATO para Leste e da desnuclearização da Ucrânia.

PALAVRAS-CHAVE: Estados Unidos, Rússia, pós-Guerra Fria

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Abstract

With the end of the Cold War, the United States saw their position of prominence in the international system be consolidated e were vested of a role of “commander” of the international liberal order that emerged from the ending of the conflict. On the other side of the Atlantic ocean, the former adversary had been dissolved, giving rise to a constellation of new independent countries, among which Russia stood out, committed to turning the page of its soviet past and building a new path, towards democracy and economic liberalization.

In the context of a new set of circumstances, the United States and Russia sought to define their new roles in the international system: one wanted to assert itself as the unquestionable world power; the other sought international legitimization and recognition as the only legitimate heir of the Soviet Union.

Along with the definition of the new identities, the United States and Russia sought to break the ice that for decades had made impossible de rise of good relations between the two countries and sought to find shared bases of understandings and perceptions that would support the development of dynamics of cooperation and even partnership in matters so important for the United States such as the fight against the proliferation of nuclear weapons.

This work intends to shed light on the new relational dynamics between the United States and Russia and understand the place of a new post-soviet Russia in the american thinking of foreing policy, with special emphasis on the NATO enlargement to the East and the denuclearization of Ukraine.

KEYWORDS: United States, Russia, post-Cold War

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Índice

Introdução .......................................................................................................... 1

Estado da Arte .................................................................................................... 4

I. Uma nova estrutura do sistema internacional ........................................... 6

II. O fim da Guerra Fria: momentos de transformação e o novo sistema

internacional ................................................................................................... 9

II.1 Anarquia internacional e a preeminência norte-americana ................. 15

III. Bill Clinton: continuidade e liderança no mundo pós-Guerra Fria ..... 27

IV. “Envolvimento e Alargamento”: a estratégia dos EUA para o pós-

Guerra Fria .................................................................................................... 29

V. Estados Unidos e a Rússia: avanços, recuos e uma relutância cautelosa

……………………………………………………………………………...33

VI. O degelo: Estados Unidos e Rússia, de inimigos a parceiros

cooperantes ................................................................................................... 35

VII. Expansão da NATO para Leste, a questão nuclear e as relações EUA-

Rússia ............................................................................................................ 43

VII.1 Expansão da NATO para Leste e a difusão da democracia ............. 44

VII.2 A questão nuclear: cooperação entre Estados Unidos e Rússia pela

não-proliferação ......................................................................................... 65

VII.3 A negociação nuclear trilateral: Estados Unidos, Rússia e Ucrânia 69

Conclusão ........................................................................................................ 83

Referências bibliográficas ............................................................................... 88

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Introdução

O presente trabalho tem por objetivo compreender as alterações ocorridas nas dinâmicas

relacionais entre os Estados Unidos e a Rússia durante a presidência de William Jefferson

Clinton e perceber de que forma os Estados Unidos perspectivavam e interagiam como o

antigo adversário do Leste europeu.

Pretende-se lançar luz sobre alguns aspetos do pós-Guerra Fria e das relações entre Estados

Unidos e Rússia que não são normalmente tidos em consideração nas análises destas

dinâmicas. Este trabalho procura explorar a forma como os Estados Unidos olhavam para a

Rússia e compreender o significado por detrás das suas ações e as suas motivações para com

a potência de Leste. O objetivo central é a verificação da tese de que a animosidade que

pautou as relações entre Estados Unidos e Rússia durante a Guerra Fria desvaneceu-se e deu

lugar a um novo modelo relacional, caracterizado por tentativas de aproximação entre Oeste

e Leste, por cooperação ao nível nuclear e securitário, ao mesmo tempo que os Estados

Unidos mantinham-se hesitantes em permitir que a Rússia fosse efetivamente integrada na

comunidade das grandes nações democráticas, preferindo mantê-la na periferia.

Para esse fim, começou-se por criar um quadro teórico do fim da Guerra Fria – das causas e

dos efeitos –, passando depois para a construção de uma contextualização teórica do sistema

internacional e das dinâmicas que lhe estão inerentes no momento da dissolução da União

Soviética e do surgimento de uma nova ordem internacional.

Este quadro teórico sustenta-se na corrente construtivista da disciplina das Relações

Internacionais, considerando que é a escola que melhor está equipada para analisar e

compreender as dinâmicas e motivações subjacentes às ações dos Estados Unidos para com

a Rússia.

É colocada em causa a ideia de William Wohlforth, Michael Cox e G. John Ikenberry de que

o fim da Guerra Fria originou um sistema internacional unipolar, estabelecendo-se como mais

precisa a conceção de uma estrutura “uni-multipolar” avançada por Samuel Huntington

(1999), colocando o ênfase do surgimento de um sistema internacional composto por uma

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superpotência rodeada de vários complexos regionais, e que interagem numa base de

influências recíprocas.

Estabelecendo a estrutura e o consequente funcionamento do sistema internacional do pós-

Guerra Fria, passa-se então para a definição do ambiente internacional que servirá de pano

de fundo para o desempenho da política externa de Bill Clinton.

É analisado, de forma abrangente, o fim da Guerra Fria e são apontadas algumas possíveis

causas para a dissolução do bloco comunista soviético, radicada na permeabilidade deste

último às ideias, princípios e valores da comunidade de nações democráticas ocidentais.

Ainda, são identificadas as três grandes transformações do sistema internacional que foram

propiciadas pelo fim do conflito bipolar e criaram as condições à emergência de uma nova

organização internacional.

Desta feita, procura definir-se a nova identidade dos Estados Unidos já não tendo como

contraponto a União Soviética, estabelecendo-se um conjunto de orientações que guiarão a

política externa da potência norte-americana no pós-Guerra Fria.

Caracterizando a identidade pós-Guerra Fria dos Estados Unidos, é possível estabelecer um

ponto de partida para a análise das relações entre Washington e Moscovo, com especial

destaque para a forma como os Estados Unidos percecionam o antigo adversário e novo

parceiro de cooperação em matérias como o combate à proliferação nuclear.

Numa fase posterior, são analisadas as Estratégias de Segurança Nacional da Administração

Clinton, de forma a tentar perceber os interesses e motivações dos Estados Unidos na nova

era, servindo essa análise de rampa de lançamento para a análise do lugar da Rússia na

política externa norte-americana.

Com as novas dinâmicas relacionais estabelecidas, são identificados dois momentos

essenciais para a relação entre Estados Unidos e Rússia: a expansão da NATO para Leste e

a desnuclearização da Ucrânia.

Estes são dois momentos-chave que ajudam a precisar a definição da visão dos Estados

Unidos para a Rússia e para o espaço pós-soviético. Além disso, são cruciais para perceber

até que ponto a Rússia é ainda considerada pelos Estados Unidos como um adversário, apesar

declarações de membros do governo de Clinton que indicam que a Rússia é um parceiro

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estratégico e que a reforma democrática do país é a prioridade de topo da política externa

norte-americana.

Por fim, é feito um balanço da atuação dos Estados Unidos nos dois momentos acima

referidos, procurando perceber se foram seguidos os melhores caminhos ou se existiam

trilhos que melhor serviriam os objetivos traçados.

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Estado da Arte

É já bastante abundante a literatura que procura refletir sobre o final da Guerra Fria e sobre

o papel dos Estados Unidos no novo sistema internacional ordenado pelos princípios e pelos

valores liberais do hemisfério ocidental.

William Wohlforth (1999), Michael Cox (2001) e G. John Ikenberry (2005) consideram que

a ordem internacional do pós-Guerra Fria é uma que se caracteriza pela unipolaridade, pela

centralidade exclusiva dos Estados Unidos no sistema internacional. Samuel Huntington

(1999) contesta a ideia de um sistema unicamente unipolar e avança o conceito de “uni-

multipolaridade”, uma ideia que tem em conta as dinâmicas de regionalização que com o

desparecimento dos bloco conflituantes da Guerra Fria encontravam espaço para se

estabelecerem, desenvolverem e fortalecerem.

Alexander Wendt (1995) considera que a análise da estrutura do sistema internacional não

pode apenas olhar para a concentração de capacidades materiais, mas deve também ter em

conta as relações sociais que se estabelecem entre os vários atores. Ao contrário do alcance

limitado das teorias neorealistas, Wendt afirma, a corrente construtivista considera as

capacidades materiais juntamente com os significados que elas possam adquirir no contexto

das várias bases de conhecimentos e expectativas partilhadas em que elas possam atuar. Por

outras palavras, o construtivismo considera que as capacidades materiais, por si só, não têm

significado, e que só o adquirem nos contextos em que elas forem aplicadas ou tiverem

relevância.

No que diz respeito a literatura sobre as relações entre a Rússia e os Estados Unidos no pós-

Guerra Fria, temos como exemplos O Pós-Guerra Fria de Carlos Gaspar, que dedica uma

considerável porção da obra às dinâmicas do mundo depois da dissolução da União Soviética.

Mas é de assinalar a escassez de literatura que procure definir, com relativa profundidade, as

relações não apenas políticas mas também sociológicas entre os Estados Unidos e a Rússia

depois do conflito bipolar, num momento em que os dois países sofrem um processo de

transformação identitária – talvez mais radical no caso da Rússia do que do nos Estados

Unidos – que deve ser tomado em consideração na análise das dinâmicas da nova era.

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Ademais, apesar de John Mearsheimer (1993) e Steven Miller (1993) construírem casos,

respetivamente, a favor e contra a construção de dissuasor nuclear ucraniano, e de existir

literatura que versa sobre a expansão da NATO para Leste (Reiter, 2001), não podemos

deixar de referir que se falha na tentativa de procurar encontrar um fio condutor comum para

ambos os acontecimentos e associá-los ao posicionamento dos Estados Unidos no mundo e

a sua perspetiva da nova Rússia a caminho da democracia, mas que ainda luta com os

fantasmas do passado.

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I. Uma nova estrutura do sistema internacional

A Guerra Fria terminou em dezembro de 1991, quando os presidentes da Rússia, da Ucrânia

e da Bielorrússia assinaram um acordo tripartido que dissolvia a União Soviética.

O fim da Guerra Fria e o desaparecimento da estrutura bipolar do sistema internacional e a

concentração sem precedentes de capacidades numa só potência e a sua projeção global,

levaram muitos teóricos das Relações Internacionais a considerarem a nova ordem mundial

como unipolar, com os Estados Unidos à cabeceira.

Autores como William Wohlforth, Michael Cox ou G. John Ikenberry consideram que o fim

a Guerra Fria e a força irrivalizável dos Estados Unidos vieram conferir ao sistema

internacional uma estrutura caracterizada por um único polo de poder. Esta posição de relevo

confere também aos Estados Unidos uma margem de manobra sem quaisquer

constrangimentos externos, considerando que nenhum outro país ou possível coligação de

países teria capacidade para desafiar a preponderância a superpotência.

Mas talvez a unipolaridade não seja propriamente a forma mais precisa de caracterizar a

estrutura do sistema internacional do pós-Guerra Fria.

A Guerra Fria era um modelo relacional de índole conflituante que colocava em posições

adversárias dois países, que, por sua vez, encabeçavam dois blocos ideológicos considerados

mutuamente incompatíveis e que procuravam subverter-se um ao outro. Com a desagregação

da União Soviética – um dos lados do conflito bipolar – a Guerra Fria, enquanto tal, termina,

dando lugar a uma constelação de novos países que recuperavam a sua autonomia e o leme

dos seus destinos.

Durante a quase meio século, o mundo esteve praticamente divido entre comunistas e liberais,

os dois grandes campos opositores que agregavam vários países. Considerando que duas

grandes potências se digladiavam no plano global, não seria de estranhar que as dinâmicas

entre dos demais países fossem eclipsadas ou subjugadas às ações dos líderes dos dois blocos.

Quando a Guerra Fria termina com a dissolução da União Soviética, em dezembro de 1991,

o modelo relacional de conflito que tinha enformado o mundo durante décadas dá lugar à

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criação ou reestabelecimento de dinâmicas regionais e inter-regionais que haviam estado

ocultadas ou de certa forma adormecidas.

Estes complexos regionais podem partilhar laços históricos, afinidades culturais ou

linguísticas e interesses e valores consonantes, criando uma espécie de força centrípeta que

agrega países de uma dada região do globo numa estrutura relacional com vista ao alcance

de objetivos, na sua grande maioria, securitários e/ou económicos.

No seio destes sistemas internacionais regionais, os países integrados desenvolvem

dinâmicas relacionais próprias que podem ser de natureza cooperante ou conflituante. Não

obstante, estes complexos regionais permitem aos países envolvidos adquirirem alguma

independência e autonomia da grande potência que eram os Estados Unidos no final da

Guerra Fria, e poderem traçar o seu próprio caminho e desenvolvimento a par dos seus

parceiros regionais.

Assim, com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos partilhavam o sistema internacional

com uma série de complexos regionais que o rodeavam, criando dinâmicas entre o plano

global e os vários planos regionais, ou seja, entre a superpotência norte-americana e as

entidades regionais que partilhavam os sistema internacional do pós-Guerra Fria e que criam

pequenos ou médios polos de poder (material e/ou ideológico) agregado.

Por isso, a estrutura do sistema internacional do pós-Guerra Fria não é unipolar, mas sim uma

fusão da unipolaridade – a nível global – e da multipolaridade – a nível regional –, dando

origem ao que Samuel Huntington chama de “sistema uni-multipolar” (Huntington, 1999).

De uma forma geral, a unipolaridade pressupõe que um país, ou uma coligação de países,

com uma concentração inigualável de capacidades, domina o sistema internacional e, como

não existe nenhuma outra força possível que possa atuar como contra-peso ou colocar em

risco a sua posição, tem uma margem de manobra considerável para procurar alcançar os

seus objetivos sem receio das consequências. Huntington explica que num sistema

internacional desta natureza não existem «grandes potências significativas», apenas «muitas

potências inferiores».

O que vemos no pós-Guerra Fria não se enquadra na descrição feita. Depois do conflito

bipolar podemos observar que os Estados Unidos gozam de uma posição sem par no sistema

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internacional, mas que estão rodeados de complexos regionais no seio dos quais existem

polos de poder, que embora possam não chegar ao patamar das grandes potências, pesam e

têm o potencial para influenciar as dinâmicas do sistema internacional, das grandes potências

e até da superpotência. Esta influência das potências regionais pode ser verificada, por

exemplo, nas guerras dos Balcãs, em que uma potência regional, a Jugoslávia, conseguiu

puxar para um conflito regional as grandes potências mundiais, incluindo a superpotência

norte-americana, e desafiar não só os princípios que governavam a ordem internacional

liberal como também o próprio poder dos Estados Unidos no sistema internacional.

Em suma, a estrutura do sistema internacional do pós-Guerra Fria é uma que coloca os

Estados Unidos no centro como a superpotência, estando rodeado por uma constelação de

complexos regionais que têm as suas próprias potências, e interagem numa base de influência

recíproca.

É neste contexto de proliferação de dinâmicas regionais que os Estados Unidos e o presidente

Bill Clinton e a sua administração terão de redefinir o leque de interesses e objetivos que dá

corpo à sua estratégia de política externa para a nova era do sistema internacional.

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II. O fim da Guerra Fria: momentos de transformação e o novo sistema internacional

Em 1991, a Guerra Fria havia, definitivamente, chegado ao seu fim, quando os presidentes

da Rússia, da Ucrânia e da Bielorrússia decidiram dissolver a União das Repúblicas

Socialistas Soviéticas (URSS) e adotar a Comunidade de Estados Independentes. O

paradigma relacional de competição ideológica – e também material, sob a forma de “guerras

de proxies” travadas longe dos territórios nacionais de ambas as potências, como por exemplo

no Afeganistão – que durante décadas tinha maculado as dinâmicas internacionais e cindido

o mundo em dois grandes blocos conflituantes, extinguiu-se por entre os escombros da URSS.

Como defende Alexander Wendt (1995), «A Guerra Fria era uma estrutura de conhecimento

partilhado que governou as relações entre as grandes potências durante mais de quarenta anos,

mas assim que [os EUA e a URSS] deixaram de agir nessa base, o conflito “terminou”».

Complementarmente, Thomas Risse-Kappen define o fim da Guerra Fria como uma

«transformação sistémica da política internacional que começou com as mudanças na política

externa soviética do final da década de 1980»(Risse-Kappen, 1994, 185).

Risse-Kappen atribui, lato sensu, o fim da Guerra Fria à permeabilidade da União Soviética,

designadamente da esfera da produção intelectual (institutchiks), às ideias liberais advindas

do pensamento ocidental – ideias que brotaram das esferas académica e intelectual do

ocidente e que eram veiculadas por redes de partilha de conhecimento que abrangiam as

democracias liberais e membros da URSS; ao desejo de aproximação de Mikhail Gorbachev

à aliança das democracias liberais liderada pelos Estados Unidos, enquanto tentativa de

salvamento da organização política soviética comunista por meio do robustecimento

económico; às reações de Washington e dos aliados europeus a estas mudanças. Dito de outra

forma, a Guerra Fria terminou porque a União Soviética deixou-se impregnar pelas ideias

que vinham de Oeste através de contactos e interações entre pensadores, políticos e

académicos ocidentais e soviéticos e de instituições partilhadas por membros de ambos os

lados do Muro de Berlim, que, em bom rigor, se estendia muito para além da futura capital

da Alemanha unificada.

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Independentemente das várias perspetivas que possam existir relativamente ao que causou o

fim da Guerra Fria (quer tenha sido devido à força dos Estados Unidos da América e políticas

externas agressivas ou desconfiadas das intenções da URSS; quer tenha sido devido ao

programa de reformas operacionalizado por Mikhail Gorbachev para aproximar a União

Soviética do Ocidente, para reverter a crise económica interna e salvar o comunismo; quer

tenha sido devido à reivindicações independentistas que ameaçaram o controlo de Moscovo

sobre as repúblicas soviéticas) (Sá, 2014), o modelo de interação bipolar de natureza

competitiva que caracterizou a quase totalidade da segunda metade do século XX terminou

com a dissolução da União Soviética e com o reforço da posição internacional dos Estados

Unidos, que, sem o oponente comunista, assumiu um papel de preponderância inquestionável

no sistema internacional, concentrando em si capacidades materiais que não eram possíveis

de igualar por qualquer outro país no mundo, nem por nenhuma possível coligação

intergovernamental.

É, contudo, importante salientar que o estatuto internacional de relevo que o fim da Guerra

Fria investiu sobre os Estados Unidos era reconhecido pela chamada comunidade das nações

democráticas ocidentais. O não-reconhecimento por parte dos aliados da proeminência dos

Estados Unidos no sistema internacional pós-Guerra Fria era altamente improvável,

considerando que as afinidades e bases comuns de valores e interesses partilhados mitigariam

grandes resistências e que os aliados viam no poder e nas capacidades estratégicas norte-

americanas um escudo protetor contra o que a administração de Bill Clinton veio a chamar

de backlash states, países que rejeitavam ou não se reconheciam na ordem internacional

liberal e os princípios que a enformavam.

Foi a anuência das potências europeias que permitiu aos Estados Unidos manter durante

tantos anos forças militares no “velho continente”, além de que os europeus não tinham

razões para rejeitar a presença norte-americana, ainda para mais num momento de profunda

transformação identitária, política e económica da Europa de Leste, processos que poderiam

ter caído na ruína e feito a Rússia reverter para um regime autocrático que colocava a

segurança europeia, bem como os interesses dos Estados Unidos, em risco.

É importante referir que a Guerra Fria constituiu um modelo de confronto que divergia dos

que enformaram a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, não apenas porque não se tratou

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de um confronto direto entre as forças militares dos contendores, mas também porque a sua

conclusão «não se fez no campo das armas», mas sim pela «concertação diplomática entre

os dois irmãos inimigos» (Gaspar, 2016, 7) . Ademais, ao contrário dos anteriores dois

conflitos mundiais, o final da Guerra Fria não propiciou transformações radicais no tecido

do sistema internacional – a superioridade dos Estados Unidos foi consolidada e o polo

soviético desapareceu, dando lugar a 15 países recém-independentizados – nem levou a uma

quebra com as instituições internacionais do pós-Segunda Guerra Mundial, tendo-se

observado a manutenção e o reforço dessas entidades, de que é exemplo a Organização do

Tratado do Atlântico Norte (NATO) e o papel que irá desempenhar, principalmente às mãos

dos Estados Unidos, na redefinição da segurança europeia e nas relações com a nova Rússia

de Boris Iéltsin.

No entanto, apesar dos traços de continuidade verificados, o final da Guerra Fria constituiu,

per se, um momento de transformações importantes ao nível do sistema internacional que,

embora não sejam de índole radical, não devem ser negligenciadas. Podem ser destacadas

três (Gaspar, 2016). A primeira ocorreu ao nível da distribuição das capacidades. Com o

desaparecimento da União Soviética, os Estados Unidos saíram do conflito bipolar como o

único verdadeiro polo de poder num sistema internacional que agora se caracterizava pela

preponderância excecional de uma superpotência, rodeada de sistemas internacionais

regionais que se formavam um pouco por todo o mundo. Depois da Guerra Fria, os Estados

Unidos detinham capacidades materiais (poderes militar, económico e tecnológico) que não

eram possíveis de igualar, e muito menos superar, por qualquer outro país no mundo, nem

sequer por alguma eventual coligação intergovernamental que se tivesse formado. Por outro

lado, os Estados Unidos estavam na posse de “catapultas ideológicas” que lhes conferiam

uma capacidade sem precedentes para difundir os seus valores liberais – democracia

pluralista, globalização dos mercados e primado do direito – ao nível planetário. É de

sublinhar que a dimensão deste alcance era possível mediante as estruturas internacionais

que marcaram o final da Segunda Guerra Mundial, que se mantiveram mesmo depois de 1991

e que espelhavam claramente os valores defendidos pelos Estados Unidos. Falamos, por

exemplo, de instituições como a ONU, a NATO ou o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e

Comércio).

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A segunda grande transformação foi a substituição de uma estrutura sistémica bipolar

exclusiva por uma estrutura híbrida uni-multipolar (Huntington, 1999, 36), em que

paralelamente à formação de uma superpotência proliferou a formação de múltiplos sistemas

relacionais de âmbito regional nos quais os países interagiam entre si numa determinada

circunscrição regional do globo e, com base em identidades e interesses sintónicos ou

divergentes, constituíam as suas próprias instituições e dinâmicas num sistema internacional

regional, com vista, sobretudo, à conquista de independência política e económica face aos

Estados Unidos.

Tendo em consideração que os Estados Unidos eram o único país que realmente tinha

interesses a nível global (potenciados por inigualáveis capacidades materiais e uma forte

índole ideológica), estes sistemas regionais surgiram um pouco por todo o mundo: América

do Sul, sudeste asiático, África do Sul.

Assim, a concentração excecional de capacidades num só país era acompanhada, no novo

sistema internacional, por vários sistemas internacionais regionais, na sua maioria de

natureza cooperativa ao nível económico e securitário, no seio dos quais era agora possível

o surgimento de potências de âmbito regional, algo que durante o conflito bipolar não foi

possível. Desta feita, o novo sistema internacional era constituído por dinâmicas ao nível

internacional, em que os Estados Unidos mantinham uma posição de relevo face às outras

grandes potências mundiais, e por dinâmicas ao nível regional, em que era possível a

existência de modelos relacionais multipolares. A esta conjugação sistémica Samuel

Huntington apelidou de “sistema uni-multipolar” (Huntington, 1999, 36). Sobre a

constituição dos sistemas internacionais regionais, Carlos Gaspar sustenta que «A

intensidade das interações securitárias, as referências identitárias e as estruturas institucionais

conjugaram-se com a ascensão de novas grandes potências no quadro dos espaços regionais

para definir a nova dinâmica do sistema unipolar» (Gaspar, 2016, 19).

Poderíamos até ir mais longe, caracterizando esta coexistência de dois níveis intercetantes de

sistemas internacionais como um “ecossistema político diádico de influências recíprocas”,

considerando que os sistemas regionais não existiam fora da esfera de ação ou de influência

da superpotência que eram os Estados Unidos, cujas ações eram, por sua vez, influenciadas

pelas dinâmicas idiossincráticas dos sistemas regionais a fim de constranger o surgimento de

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uma potência com capacidades para desafiar o seu próprio estatuto de superpotência ou para

colocar em causa a segurança dos países inscritos na zona geográfica em questão. Interesses

globais e capacidades para projeção a nível planetário permitiam a Washington «arbitrar a

competição e os conflitos entre as potências emergentes ao nível regional e inter-regional»

(Gaspar, 2016, 19).

Embora Carlos Gaspar afirme que os Estados Unidos desempenhavam este papel de

intermediário assegurarem que nenhuma destas potências regionais conseguia adquirir força

material suficiente para tentar subverter a estrutura do sistema internacional e, por

conseguinte, colocar em causa – ainda que em termos práticos isso fosse virtualmente

inconcretizável – o estatuto internacional dos Estados Unidos, as motivações norte-

americanas vão além da pura realpolitk e dos cálculos de poder. Como é comprovado pela

atuação dos Estados Unidos no processo de desnuclearização da Ucrânia e da transferência

de armas nucleares das ex-repúblicas soviéticas para a Rússia, o objetivo de Washington não

era somente impedir que uma grande potência pudesse emergir dos sistemas internacionais

regionais e ameaçar o seu estatuto no sistema internacional. Se assim fosse, os Estados

Unidos ter-se-iam oposto à transferência de armas nucleares para a Rússia e ao seu

reconhecimento internacional como o único legítimo herdeiro da União Soviética e ao seu

reconhecimento regional como única potência nuclear na Europa de Leste.

O papel de intermediário dos Estados Unidos tem como principal objetivo aplacar conflitos

que possam extravasar a esfera regional de origem e desestabilizar outras regiões onde os a

potência norte-americana possa ter interesses a proteger e que ficariam ameaçados.

A terceira grande transformação verificou-se ao nível político-ideológico. A Guerra Fria

ficou marcada por uma vincada divisão ideológica entre os dois blocos competidores que

preconizavam dois modelos de organização internacional díspares: de um lado estava a

aliança das democracias ocidentais liberais liderada pelos Estados Unidos; do outro o bloco

das repúblicas socialistas soviéticas liderado pela URSS. Os dois campos defendiam

conceções universalistas do sistema internacional inconciliáveis, que, aliadas à perceção do

outro lado como um inimigo que procurava subverter a estabilidade internacional, constituiu

um fator indispensável para o prolongamento do conflito bipolar. Contudo, com o final da

Guerra Fria, o polo comunista deixou de ter a preponderância de outrora, desequilibrando a

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balança ideológica a favor dos Estados Unidos, o que fez prevalecer no sistema internacional

os valores liberais defendidos pela aliança ocidental.

O fim deste hiato ideológico tornou possível a harmonia política e ideológica internacional.

Contudo, creio que poderá ser excessivo ver esta transformação enquanto a «homogeneidade

política» (Gaspar, 2016, 20) do sistema internacional, devendo antes ver-se esta mudança

como uma convergência ideológica, visto que a emergência de novos sistemas internacionais

regionais mostra-nos que alguns países exerciam práticas que não se enquadravam nos

valores defendidos pelos Estados Unidos, como a China ou a Rússia. Não obstante o facto

de o modelo liberal democrático ocidental ter passado a ser «a referência indispensável da

legitimidade internacional» (Gaspar, 2016, 20), ainda existiam alguns países que resistiam

em adotar estes princípios e que procuravam as suas próprias fontes de legitimidade no

âmbito dos sistemas internacionais regionais.

Não podemos também subvalorizar o facto de que o fim da Guerra Fria fez com que o modelo

dicotómico “liberalismo-comunismo” deixasse de ser a única forma possível de ver o mundo.

O fim da bipolaridade resultou na concentração sem precedentes de capacidades materiais

num único polo, mas devemos também ter em conta que a transformação da estrutura do

sistema internacional foi acompanhada pelo rompimento dos constrangimentos ideológicos

que haviam agrilhoado tantos países aos valores das potências competidoras, que apenas

apresentavam duas escolhas: liberalismo ou comunismo. Por isso, o final da Guerra Fria abriu

as portas ao surgimento da diversificação cultural, algo que deveremos entender como um

facto corroborado pelo surgimento dos sistemas internacionais regionais que evidenciavam

afinidades culturais e ideológicas específicas, possibilitando a convergência de interesses e

identidades e constituindo «sistemas securitários “cooperativos”, nos quais os Estados se

identificam positivamente uns com os outros de forma a que a segurança de um é entendida

como a responsabilidade de todos» (Wendt, 1992, 391).

Além disso, a quebra do jugo soviético na Europa de Leste deu origem a vários países que,

ao final de décadas de opressão e condicionamento, uma vez mais estavam no comando dos

seus próprios destinos e da construção das suas próprias identidades e interesses. Esta nova

configuração regional esteve na raiz de conflitos étnicos entre países que reclamavam

unidade nacional e reconhecimento internacional no vácuo deixado pela União Soviética.

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Apesar da preponderância dos valores liberais ao nível macro, grande parte dos países da

Europa de Leste não tinha qualquer legado de experiência democrática que os pudesse

orientar no mundo pós-soviético, acabando por degenerar em ditaduras xenófobas que

perpetravam massacres étnicos em nome da defesa da integridade nacional.

Uma vez mais, não devemos olhar o pós-Guerra Fria enquanto um momento de

“homogeneização política”, mas sim como uma “convergência ideológica” entre mundos

antes separados por muros e visões incompatíveis. Devemos ver o pós-Guerra Fria como uma

aproximação, sim, mas nunca como uma identificação absoluta, pois o fim do conflito bipolar

iluminou a diversidade cultural que antes estava oculta pela força dos dois blocos

concorrentes.

Anarquia internacional e a preeminência norte-americana

De um ponto de vista construtivista, a anarquia do sistema internacional é uma estrutura

construída pelas e apenas existindo no âmbito das interações entre os Estados, caracterizadas

pela cooperação ou pela competição, e pressupõe um estado de ausência de uma autoridade

supranacional que tenha capacidade e legitimidade para suprimir a soberania dos Estados e

fazer prevalecer a sua própria vontade. Apesar de a natureza anárquica do sistema

internacional poder ser considerada um ponto de relativo consenso entre as principais escolas

de pensamento teórico das Relações Internacionais, a chegada dos Estados Unidos ao estatuto

de superpotência num sistema multipolarizado convida-nos a uma reflexão: será possível

manter a anarquia num sistema internacional dominado por uma superpotência que pode

intervir globalmente de forma a difundir os seus valores e a aplacar dissensos que possam

colocar em causa o seu estatuto? Esta é uma questão que nos devemos colocar quando

olhamos para o final da Guerra Fria.

Tanto a escola realista como a escola liberal olham o mundo tendo como pano de fundo a

consideração de que o sistema internacional é inerentemente anárquico e que condiciona os

Estados a agirem egoisticamente em conformidade com os seus próprios interesses e

desígnios. Além disso, ambas as escolas afirmam que a anarquia internacional propicia o

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conflito, embora realistas e liberais divirjam relativamente ao grau de influência que a

anarquia tem sobre as ações dos Estados.

No entanto, como se pode verificar, tanto os realistas como os liberais não foram capazes de

prever o fim da Guerra Fria (Walt, 1998, 32), e têm algumas dificuldades em explicá-lo, o

que, por si só, evidencia as fragilidades destas correntes teóricas. Por outro lado, o

construtivismo defende que a Guerra Fria era um modelo de expectativas e conhecimentos

partilhados entre dois agentes – Estados Unidos e União Soviética – e que, tal como todas as

construções sociais, apenas existia no contexto de um processo de interação, ou seja,

enquanto ambos os agentes continuassem a agir em conformidade com esse modelo. A partir

do momento em que os polos conflituantes deixaram de se ver enquanto inimigos mortais

incontornáveis, os conhecimentos e expectativas partilhados entre os dois polos

transformaram-se, fazendo os dois países abandonarem o modelo de interação bipolar de

natureza competitiva, terminando, assim, a Guerra Fria.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos ficaram inequivocamente numa

posição de superioridade estratégica, embora numa escala menor do que a posição que

conseguiram assumir com o fim do conflito bipolar. Uma superioridade não apenas

relativamente ao concorrente comunista mas também relativamente aos seus aliados

europeus. Depois de duas guerras intensas e sangrentas que geraram milhões de vítimas

mortais, converteram a face da Europa num museu de ruínas e foram fatais para as economias

do “Velho Continente”, os Estados Unidos assumiram o papel de liderança das democracias

do Ocidente, ocupando um lugar que em tempos idos estivera nas mãos do Reino Unido.

Com o final da Guerra Fria, com uma nova influência no mundo e apoiados pelas potências

europeias (relativamente refeitas dos impactos das Guerras Mundiais), os Estados Unidos

criaram uma nova ordem internacional à sua imagem e semelhança. Essa nova ordem tinha

o seu foco centrípeto na América do Norte e, de acordo com G. John Ikenberry, era «uma

ordem construída em torno do aprovisionamento americano de segurança e bens públicos

económicos, regras e instituições mutualmente acordadas, e processos políticos interativos

que dão aos Estados uma voz na condução do sistema» (Ikenberry, 2005, 137).

Mas há que perceber a política externa dos Estados Unidos, nos anos imediatamente depois

do fim da Guerra Fria, pautava-se por um “envolvimento seletivo”, ou selective engagement,

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nos assuntos internacionais. Esta postura espelhava uma estratégia de intervencionismo

comedido, que tinha como objetivo principal a contenção de despesas na área da Defesa e

concentrar esforços em geografias e regiões que realmente caiam na esfera dos interesses

vitais dos Estados Unidos. No entanto, é impossível discordar que a ordem firmada com o

fim da Guerra Fria era de natureza multilateral e participativa, embora essa participação

estivesse reservada às democracias estabelecidas da Europa ocidental e aos Estados Unidos.

Essa hermiticidade só foi realmente rompida em 1999, quando a Polónia, a Hungria e a

República Checa passaram a fazer parte da NATO como membros efetivos.

Os Estados Unidos saíram do período da Guerra Fria enquanto um país sem rival em matéria

de força material (militar, económica, tecnológica), o que lhe conferiu várias vantagens,

nomeadamente ao nível da intervenção além-fronteiras, da negociação com outros países e

do cumprimento dos acordos internacionais. Apesar de considerar que a ordem constituída

pelos Estados Unidos tornava impossível a criação de um império norte-americano, devido,

por exemplo, aos constrangimentos ao poder codificados no direito internacional e em

instituições como a ONU ou a NATO, Ikenberry reconhece que «as massivas vantagens de

poder da América realmente dão à ordem um pendor hierárquico» (Ibid.). O autor, partidário

do liberalismo, chega mesmo a afirmar que a hegemonia é um género de ordenamento

internacional hierárquico.

Ademais, o papel de “polícia do mundo” que investiu os Estados Unidos da legitimidade para

intervir no estrangeiro sempre que a ordem internacional liberal – imbuída dos valores que

constituem o material genético dos próprios Estados Unidos – estivesse ameaçada por forças

que a procurassem subverter, é um que mais nenhum outro país tinha capacidade (ou vontade)

para desempenhar e um que poderá ter colocado o sistema internacional no caminho da

hierarquia.

No entanto, há quem considere que o final da Guerra Fria e o desaparecimento da ameaça

soviética veio plantar a semente da desorientação no debate sobre a política externa norte-

americana na nova era.

Em 1992, Alexander Wendt afirma que, sem o modelo relacional de competitividade

estratégica bipolar dado pela Guerra Fria para definir as suas identidades, os Estados Unidos

e a Rússia «parecem incertos acerca de quais devem ser os seus “interesses”» (Wendt, 1992).

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Esta é uma análise partilhada por Stephen Walt, que considera que «os Estados Unidos gozam

de tremenda influência mas têm pouca noção sobre o que fazer com o seu poder ou até saber

que grau de esforço devem empenhar» (Walt, 2000, 65). A isto o autor chama de “o paradoxo

central da unipolaridade”.

Vistas bem as coisas, durante décadas as política externa dos Estados Unidos tinha um único

foco, a União Soviética. Com o desaparecimento desse elemento orientador, e considerando

também que o fim da Guerra Fria chegou como uma surpresa para os norte-americanos e para

os seus aliados ocidentais, não é de estranhar que se instalasse algum grau de confusão nos

corredores da Casa Branca e em Washington em geral.

Porém, afirmar que os Estados Unidos não sabiam o que fazer parece-me uma conclusão um

pouco rebuscada, considerando que existia um objetivo muito claro: cimentar o estatuto de

superpotência e difundir por todo o mundo os princípios liberais. Perante esta constatação

não se deve inferir que os Estados Unidos adotaram um postura internacionalista messiânica.

Deve, sim, interpretar-se que os Estados Unidos queriam ampliar a esfera de países que se

regiam pelos mesmo valores e princípios sobre os quais assentava a ordem internacional

liberal que nasceu do fim da Segunda Guerra Mundial, que passou pela Guerra Fria e que se

consolidou com o fim da União Soviética. Para alcançar esse objetivo e demonstrar a força

do liberalismo sobre o comunismo, os Estados Unidos tinham de, acima de tudo, tentar

converter a Rússia numa democracia que se aproximasse o máximo possível dos modelos

seguidos pelas democracias consolidadas do Oeste europeu.

As dinâmicas de regionalização também são importantes para melhor se perceber que não

existia propriamente uma desorientação dos Estados Unidos, mas antes um intervencionismo

seletivo nos assuntos de além-fronteiras.

Com a dissolução da União Soviética e a consequente conclusão do conflito bipolar,

começaram a surgir complexos regionais de natureza securitária e económica, como na

América do Sul ou na Ásia-Pacífico. Estas estruturas regionais congregavam países de uma

mesma dimensão geográfica e procuravam aprofundar relações económicas e de segurança,

bem como promover a autonomia da região face às instituições do hemisfério ocidental,

dominadas pelos Estados Unidos.

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Estas dinâmicas tornaram-se mais visíveis com o fim da Guerra Fria, que dividiu o mundo

em dois grandes blocos conflituantes, praticamente eclipsando os regionalismos.

Posto isto, no pós-Guerra Fria encontramo-nos perante um sistema internacional liderado

pelos Estados Unidos que é rodeado por múltiplos sistemas internacionais regionais. Os

Estados Unidos, sem o alvo único que haviam tido durante os últimos 50 anos para direcionar

as suas atenções e esforços, define uma política externa multifurcada, ou seja, que tem vários

alvos, e não apenas um. Por isso, o que alguns tomam como sendo confusão ou desorientação

é, na realidade, mera dispersão de atenções, que se focam em questões regionais ao invés de

num só ponto geográfico.

Na Europa ocidental, a sintonia identitária e de interesses entre os Estados Unidos e os países

europeus, complementada pela incapacidade económica e política da Europa para liderar a

constituição de uma nova ordem internacional pós-Guerra Fria e até mesmo para garantir a

sua própria segurança, fizeram com que os aliados europeus dessem a Washington “carta

branca” para orquestrar a nova ordem e para intervir em todos os cenários internacionais em

defesa da ordem internacional liberal, atuando como juiz de disputas regionais e mitigando

conflitos que possam colocar em causa a segurança e a estabilidade da região. Esse papel

pode ser verificado durante o processo de desnuclearização da Ucrânia, em que os Estados

Unidos agiram como intermediário entre Kiev e Moscovo, que não se entendiam

relativamente aos termos da transferência para a Rússia as armas nucleares que a Ucrânia

tinha no seu território.

A conjugação de todos estes fatores fez dos Estados Unidos, no final da Guerra Fria, uma

espécie de entidade supranacional de facto. No final da Guerra Fria, Washington tinha uma

capacidade inigualável de influência nas políticas internas de outros países. Esta capacidade

fica, desde logo, evidenciada na capacidade que os Estados Unidos tiveram para apoiar as

reformas económicas e políticas na Rússia, mesmo quando a oposição a Boris Iéltsin

reclamava o retorno do comunismo imperialista. Outro exemplo, é o papel desempenhado

pelos Estados Unidos nas negociações sobre a desnuclearização da Ucrânia, em que, através

de assistência financeira e pressão políticas, a Administração Clinton conseguiu assegurar

que as armas nucleares ucranianas herdadas da URSS eram desmanteladas ou entregues à

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Rússia, mesmo quando o parlamento da Ucrânia queria manter parte do arsenal como

dissuasor de agressões russas.

Assim, depois da Guerra Fria, os Estados Unidos viram o seu estatuto de grande potência ser

reafirmado e engrandecido, passando a ser a única grande potência do mundo com um

espectro de ação planetário.

Ao longo da presidência de Bill Clinton, entre 1993 e 2001, os Estados Unidos mostraram-

se interessados e capazes – na maior parte das vezes – de liderar o sistema internacional do

pós-Guerra Fria. À exceção de alguns percalços, a atuação além-fronteiras dos Estados

Unidos foi marcada por uma postura diplomática, embora assertiva, determinada e

comprometida com os interesses norte-americanos. Apesar de as instituições internacionais

ocidentais professarem o multilateralismo, os Estados Unidos, talvez imbuídos de espírito de

“potência planetária”, não receavam afirmar que agiriam unilateralmente caso assim o

entendessem. Como o conselheiro de segurança nacional, Samuel Berger, escreveu no final

de 2000, «Usámos diplomacia onde foi possível, força onde absolutamente necessário»

(Berger, 2000, 29).

O fim da Guerra Fria foi um momento de transformação identitária, tanto para os Estados

Unidos como para a Rússia, sendo que a transformação foi mais radical na potência euro-

asiática.

Com esta redefinição de identidades, de interesses, de valores, de medos e de oportunidades,

também as relações entre Washington e Moscovo, outrora os centros de dois blocos que se

viam como adversários, alteraram-se, com avanços e recuos, pontos altos e pontos baixos.

Não obstante, a relação entre os Estados Unidos e a Rússia democrática (ou a caminho da

democracia) no período pós-Guerra Fria é marcadamente cooperativa, nomeadamente em

matérias como o combate à proliferação nuclear. Porém, os Estados Unidos, na qualidade de

gatekeeper das instituições internacionais ocidentais e, por conseguinte, do próprio sistema

internacional liberal, várias vezes, ao longo dos 8 anos de presidência Clinton, adotaram uma

postura que deixava a Rússia sem saber muito bem com o que poder contar do outro lado do

oceano Atlântico. Os Estados Unidos afirmavam-se determinados em apoiar o processo de

democratização do antigo adversário e sublinhavam o papel indispensável que a Rússia teria

no desenvolvimento de uma nova estrutura de segurança europeia pós-União Soviética. Ao

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mesmo tempo, os Estados Unidos não permitiam à Rússia acesso pleno à comunidade de

nações democráticas do ocidente, usando subterfúgios como o programa das Parcerias para

a Paz como forma de aproximar a Rússia do ocidente, mas não demasiado próximo. Apesar

de as reticências e da ambivalência norte-americanas acerca de uma total integração

internacional da Rússia serem facilmente compreendidas olhando para o histórico das

relações entre Washington e Moscovo, a abordagem dos Estados Unidos poderia ter

provocado o afastamento de Boris Iéltsin da mesa das negociações e de iniciativas de

cooperação com o ocidente; poderia ter deixado cair Moscovo nas mãos dos comunistas, cuja

influência renascente ameaçava o primeiro presidente russo democraticamente eleito;

poderia ter levado a uma aproximação entre a Rússia e a China, algo que poderia colocar sob

pressão os aliados europeus e a estabilidade no continente.

No entanto, as relações entre os Estados Unidos e a Rússia mantiveram-se numa base de

cooperação e parceria, cimentada nas relações de companheirismo entre Clinton e Iéltsin,

essenciais para dirimir possíveis conflitos e aprofundar laços cooperativos. Em suma, poder-

se-ia caracterizar a postura dos Estados Unidos para com a Rússia no pós-Guerra Fria como

relutância cautelosa: sem grandes compromissos que pudessem reduzir a margem de

manobra dos Estados Unidos, mas com abertura suficiente para trazer para a mesa das

negociações antigos adversários e suscitar a sua cooperação.

No pós-Guerra Fria, em que grandes inimizades haviam dado lugar a um mundo mais

complexo, mais repleto de identidades e interesses que faziam nascer novas dinâmicas

internacionais, poderíamos colocar-nos a seguinte questão: por que razão haveriam os

Estados Unidos de procurar uma aproximação da Rússia e tentar com que o antigo adversário

fosse, pelo menos, um parceiro do ocidente? Que motivação subjazeria a esta postura para

com um país que fora o centro de bloco que queira subverter a ordem liberal?

A resposta poderá ser encontrada no próprio fim da União Soviética. O colapso do sistema

comunista soviético trouxe para o plano internacional um novo elemento: uma Rússia

comprometida com as reformas económicas e políticas, em fechar o capítulo de um passado

manchado pela ditadura, pela opressão, pela agressão. Esta mudança de identidade trouxe

para a mesa das negociações um país disposto a falar com o ocidente, a sentar-se à mesma

mesa que os líderes das democracias do Oeste, a abrir mão de parte do seu arsenal nuclear

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em sinal de boa-fé, a colaborar em missões militares conjuntas e até a abrir mão da posição

de comando.

Ainda assim, apesar das transformações e das declarações de intenções expressas pela Rússia,

os Estados Unidos mantiveram-se sempre num estado de relutância cautelosa, uma postura

que lhes permitia uma certa abertura negocial e acomodar algumas exigências da Rússia, ao

mesmo tempo que lhe conferia margem suficiente para manter uma posição firme e

irredutível mesmo perante resistência ou oposição de Moscovo.

Esta abordagem cautelosa pode ser observada, por exemplo, no processo de expansão da

NATO para Leste. Apesar de Moscovo afirmar que alargar a Aliança Atlântica às antigas

repúblicas soviéticas seria um ato provocatório, os Estados Unidos mantiveram-se firmes na

sua convicção de empurrar para oriente as fronteiras da NATO, integrando, em 1999, a

Polónia, a Hungria e a República Checa, que não só foram membros do bloco comunista

como fizeram parte do Pacto de Varsóvia, uma estrutura militar integrada concebida durante

a Guerra Fria para ser o equivalente soviético da NATO.

Contudo, a irredutibilidade de Washington em alargar a aliança não implicava uma ampliação

imediata. Sensível às preocupações de Boris Iéltsin e aos riscos que as reformas corriam caso

a expansão abrupta da NATO conferisse mais poder e influência à oposição ultranacionalista

e saudosa de uma Rússia poderosa, Bill Clinton acordou em adiar a integração de novos

membros para depois de 1996, ano de eleições presidenciais na Rússia e nos Estados Unidos,

que resultaram na reeleição de ambos os presidentes.

Uma Rússia ressentida e que se sentisse humilhada não era bom nem para os Estados Unidos,

nem para a Europa e muito menos o seria para os países que emergiram da dissolução da

União Soviética. Uma Rússia isolada do ocidente talvez se sentisse tentada – como forma de

marcar uma posição ou porque simplesmente não tinha um “norte democrático” que a

ajudasse a dar continuidade à vontade reformista – a seguir os passos deixados na areia pelos

líderes soviéticos, caso fosse terminantemente excluída da comunidade internacional e

tratada com desdém (tal como aconteceu com a Alemanha no fim da Primeira Guerra

Mundial), a recuperar algum do território perdido em dezembro de 1991. Uma incursão

militar russa contra uma antiga república soviética despoletaria o caos e muito provavelmente

traria de volta a guerra à Europa e às portas da NATO e, por associação, dos Estados Unidos.

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Desenhado este cenário, os Estados Unidos tinham tudo a ganhar com uma abordagem de

aproximação, com mais “mel” e menos “vinagre”. E, de forma geral, essa foi a linha de

atuação que os Estados Unidos de Clinton seguiram entre 1993 e 2001, embora a forma como

a administração norte-americana geriu o processo de expansão da NATO e o programa das

Parcerias para a Paz, que mais não era do que uma “sala de espera” para potenciais candidatos

à integração efetiva na NATO sem qualquer calendário ou previsão, podia ter gerado uma

reação negativa por parte de Moscovo. Se as relações entre os Estados Unidos e a Rússia

caíssem, é quase certo que caísse também o processo trilateral de desnuclearização da

Ucrânia, ficando o processo na mão de dois países com um historial partilhado de opressão

e animosidade, e o mais provável, tendo a História por bússola, é que a Rússia tivesse

invadido a Ucrânia com o propósito de aliviar o país vizinho das armas nucleares que herdara

da União Soviética e que a Rússia reclamava como suas, sendo o herdeiro legítimo e único

da URSS. Um confronto, ainda que por meio de forças convencionais, seria potencialmente

desastroso, considerando que ambos os países detêm arsenais nucleares e na confusão do

conflito um acidente nuclear poderia propiciar-se, e, como disse o primeiro Secretário de

Estado de Bill Clinton, Warren Christopher, «a proliferação de armas de destruição massiva

multiplica a perigosidade de qualquer conflito» (Christopher, 1993, 49).

Por isso, a abordagem relutante e cautelosa, ainda que sempre na dianteira, empregue pelos

Estados Unidos nas suas relações com a Rússia no pós-Guerra Fria parece ter sido a mais

acertada. Pelo menos, terá sido mais acertada do que uma que tivesse tido somente em

consideração cálculos de poder; do que uma que prezasse mais o “bismarckianismo” e

supérfluos e fugazes ganhos de poder do que a construção de um modelo de interação e de

uma base partilhada de entendimentos que criasse condições para a aproximação entre Oeste

e Leste e tornasse possível o degelo.

Foi essa abordagem que permitiu aos Estados Unidos garantir estabilidade no continente

europeu, mesmo quando se esperava que o caos gerado com a dissolução da União Soviética

pudesse vir a provocar um conflito regional que transbordaria para o hemisfério ocidental.

Como mostra a História, tal não aconteceu e o novo milénio começou com o maior número

de países com regimes democráticos de sempre.

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No final da Guerra Fria, os Estados Unidos estavam numa posição privilegiada de atuação

desconstrangida, podendo, se quisessem, intervir em todas as regiões do mundo e influenciar

efetivamente as decisões políticas de vários países de forma a fazer avançar os seus interesses.

Durante a presidência de Bill Clinton, o que se viu foi um retraimento estratégico dos

assuntos globais e uma intensificação do foco em regiões consideradas tão importantes para

a segurança e interesses dos Estados Unidos como a Europa de Leste, a Jugoslávia, os Balcãs

ou a Ásia. Um retraimento explicado pelo crescente desinteresse do povo norte-americano

pela dimensão internacional e a consequente subtração de apoio popular a iniciativas externas.

Durante os últimos oito anos do milénio, os Estados Unidos procuraram uma aproximação à

Rússia e construir uma relação de cooperação em matérias como o combate à proliferação de

armas de destruição massiva e a promoção da democracia. Nesse período, observou-se um

“degelo” das relações entre Washington e Moscovo, com alguns avanços e recuos, mas que

no fim de contas se refletia em cooperação.

*****

O fim da Guerra Fria, ou, se preferirmos, o fim da interação competitiva entre dois atores –

Estados Unidos da América e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – que,

constrangidos por uma base partilhada de entendimentos e expectativas, se percecionavam

mutuamente como inimigos e como existências incompatíveis, não só se consubstanciou

como um "momento transformador" da estrutura do sistema internacional - transição da

bipolaridade para a uni-multipolaridade de Huntington - como também, e

complementarmente, se pode ver como um "momento definidor" no que toca à identidade

dos Estados Unidos e à identificação dos seus interesses.

Durante quase meio século, a identidade e os interesses externos dos Estados Unidos foram

profundamente influenciados pela União Soviética. Do outro lado da trincheira, a ameaça do

expansionismo soviético e o espectro do comunismo haviam ditado os movimentos e

escolhas de Washington. Desde Harry Truman a George H. W. Bush, os presidentes norte-

americanos que ocuparam a Sala Oval durante o conflito bipolar haviam desenhado as suas

estratégias de política externa tendo como pano de fundo a ameaça vinda de Leste.

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Com o desaparecimento da União Soviética, assistiu-se, simultaneamente, ao

desvanecimento do modelo inter-relacional diádico de natureza competitiva que caracterizou

o período da Guerra Fria. A ausência da ameaça única a que se acostumara ao longo de

décadas obrigava os Estados Unidos a redefinir a sua identidade e os seus interesses no

mundo. Na primavera de 1992, Alexander Wendt escreveu que «sem as atribuições mútuas

de ameaça e hostilidade da Guerra Fria para definirem as suas identidades, estes Estados

[Estados Unidos e União Soviética] parecem incertos acerca de quais devem ser os seus

"interesses".» (Wendt, 1992, 399).

Na última década do milénio, os Estados Unidos encontram-se perante um momento

definidor da sua identidade. Apesar de o seu estatuto de potência hegemónica de poderio

militar inigualável ser, naquele momento da História, um dado adquirido e incontornável,

restava saber qual o seria o seu grau de envolvimento na vida internacional: no virar da página

da Guerra Fria, seriam os Estados Unidos um elemento ativo e diretamente influenciador das

relações internacionais, envolvido nas instituições intergovernamentais e multilaterais que

serviam de pano de fundo à ordem mundial nascida do final d Segunda Guerra Mundial, ou

iriam os Estados Unidos virar as costas às suas novas responsabilidades enquanto ator-chave

na manutenção da ordem liberal, abandonar os seus compromissos internacionais e subtrair-

se dos assuntos além-fronteiras para intensificar o foco em matérias de natureza doméstica?

Durante a Guerra Fria, a ameaça da URSS nunca havia conferido aos Estados Unidos o

espaço de manobra suficiente para que estes pudessem assumir realmente um estatuto de

superpotência indisputável. Mas com a dissolução do império soviético, a conquista desse

estatuto passou a estar à distância de um braço.

No entanto, com o desaparecimento da União Soviética tornava-se cada vez mais difícil

conseguir, quer do Congresso de maioria republicana e com tendências isolacionistas, quer

da opinião pública norte-americana descontente com a crise económica que o país

atravessava, o apoio necessário para manter, e muito menos intensificar, a presença,

designadamente militar, dos Estados Unidos no estrangeiro, quando já não existia uma

ameaça clara e tangível aos interesses do Estado norte-americano.

A estratégia do chamado selective engagement, ou “envolvimento seletivo”, é um dos

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reflexos desse retraimento estratégico norte-americano no estrangeiro, e ao mesmo tempo é

uma forma de os Estados Unidos conseguirem manter a sua influência em regiões cruciais

para os interesses norte-americanos, de cortar despesas com operações e destacamentos em

regiões de menor importância para a sua segurança e de não cair, pelo menos absolutamente,

na desgraça da opinião pública nem dos republicanos do Congresso. «A estratégia de Clinton

é uma de hegemonia a baixo custo, pois essa é a única que o povo americano está mais

inclinado para apoiar» (Walt, 2000, 79).

Comparativamente ao seu antecessor George H. W. Bush, o presidente democrata Bill

Clinton operou reduções não negligenciáveis ao nível dos gastos da Defesa. Durante a sua

presidência, Clinton gastou cerca de menos 75,6 biliões de dólares em Defesa do que o

republicano que o antecedeu no cargo, o que denota um retraimento estratégico da nova

Administração.

Esta tendência de redução da despesa com a área da Defesa está claramente patente nas duas

primeiras estratégias de segurança nacional da Administração Clinton, cuja essência radica

nos conceitos de engagement e enlargement. Nestes documentos estratégicos, a Casa Branca

sublinha que implementou uma série de medidas, como por exemplo as reduções de

armamento previstas nos acordos START, permitem conter os gastos e reduzir o chamado

establishment militar e canalizar os recursos financeiros para dinamizar outras indústrias não

militares.

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III. Bill Clinton: continuidade e liderança no mundo pós-Guerra Fria

A 20 de janeiro de 1993, William Jefferson Clinton, de costas para a fachada oeste do

Capitólio, tomava posse enquanto 42.º Presidente dos Estados Unidos da América e como o

primeiro chefe de Estado norte-americano a ser eleito depois do final da Guerra Fria. Clinton

tinha nas mãos o poder para definir a nova identidade da maior potência mundial e para

definir o seu papel no âmbito da comunidade das nações.

No discurso inaugural do seu primeiro mandato, Bill Clinton declarou que «A nossa

democracia não deve apenas ser a inveja do mundo mas o motor da nossa própria reinvenção»

(Clinton, 1993). O recém-eleito presidente da maior potência mundial do pós-Guerra Fria

reconheceu que o desaparecimento da ameaça soviética pôs fim a «uma velha ordem» e que

«o novo mundo é mais livre». Porém, o Chefe de Estado estava ciente de que o mundo que

resultou do final da Guerra Fria era também «menos estável» e que o término do conflito

bipolar «evidenciou velhas animosidades e novos perigos», algo que, aos olhos do presidente

norte-americano, obrigava a uma só conclusão: «a América deve continuar a liderar o mundo

que em tanto contribuímos para construir» (Ibid.).

Ao longo de todo o discurso pode constatar-se a repetição da palavra renewal (“renovação”

em português, de acordo com o dicionário da Cambridge University Press) ou de variantes,

num total de oito vezes. É possível perceber que os Estados Unidos enfrentavam um

momento de redefinição do seu lugar no sistema internacional e da sua identidade, que já não

era construída tendo a URSS e o bloco comunista como contrapontos. Ao longo de décadas,

a ameaça do expansionismo soviético tinha servido de permissa para a preponderância dos

Estados Unidos no combate ao comunismo e à União Soviética, visto que apenas Washington

tinha capacidades materiais que lhe permitia fazer frente a Moscovo e obstaculizar as suas

ambições imperialistas e expansionistas.

Assim, na madrugada de uma nova estrutura do sistema internacional, Clinton reafirmava a

importância de serem os Estados Unidos a tomar as rédeas da construção do novo mundo,

ficando sempre à cabeça de todas as mesas de negociações, de forma a poder proteger os seus

interesses nacionais e internacionais, bem como para poder aplacar quaisquer tentativas de

subversão da sua posição no sistema internacional do pós-Guerra Fria.

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No que toca à forma como os Estados Unidos iriam intervir no estrangeiro, o discurso não

entrava em pormenores, apenas indicando que «Quando os nossos interesses vitais forem

desafiados ou a vontade e a consciência da comunidade internacional foram ameaçadas, nós

agiremos, através da diplomacia pacífica quando possível, com a força quando necessário»

(Clinton, 1993).

Foram escassas as referências a países estrangeiros. É importante notar que não houve

qualquer referência direta à União Soviética ou à Rússia (apenas ao comunismo, palavra que

é referida duas vezes ao longo de toda a intervenção) nem aos países independentes

resultantes da dissolução do bloco comunista de Leste, tendo Clinton apenas referido o Golfo

Pérsico e a Somália para louvar o trabalho desenvolvido pelas forças militares norte-

americanas nessas regiões do mundo. Talvez tenha sido o objetivo de Clinton focar as

atenções dos norte-americanos e dos aliados no futuro, no pós-Guerra Fria, virando a página

do conflito bipolar.

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IV. “Envolvimento e Alargamento”: a estratégia dos EUA para o pós-Guerra Fria

A mesma escassez de referências à Rússia, a herdeira de facto da União Soviética, não é

observável na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos publicada em julho de

1994 pela Casa Branca. Esta é a primeira Estratégia de Segurança Nacional da presidência

de Bill Clinton, e estabelece o posicionamento dos Estados Unidos no mundo pós-Guerra

Fria.

Para o pós-Guerra Fria, a Administração Clinton desenvolveu uma estratégia de

“Envolvimento e Alargamento”, ou Engagement and Enlargement na língua inglesa original.

Esta é uma estratégia que tem como objetivo cimentar a superioridade estratégica dos Estados

Unidos num sistema internacional que não está mais sob a sombra da ameaça de um conflito

nuclear, em que as ambições e raios de ação dos antigos rivais estão circunscritos a dimensões

regionais e em que não existe mais a necessidade para que os Estados Unidos dispensem

recursos nacionais – cada vez mais parcos – para estender proteção aos aliados e outros

governos companheiros de armas da Guerra Fria.

Ademais, esta estratégia de "Envolvimento e Alargamento" visa criar uma base justificativa

para a continuação da presença de forças militares norte-americanas no estrangeiro, mesmo

depois do desaparecimento da ameaça soviética - algo que exige o robustecimento do

orçamento da Defesa e o acordo de ambos os partidos no Congresso - e para a expansão do

que a Administração Clinton chama de «comunidade das nações democráticas», algo que é

essencial à consolidação da ordem internacional liberal e dos valores norte-americanos no

exterior, bem como ao robustecimento da economia dos Estados Unidos e à criação de

emprego através do acesso a cada vez mais mercados estrangeiros.

Bill Clinton tomou a liderança dos Estados Unidos num momento de relativa invulgaridade

do sistema internacional: a União Soviética havia desaparecido, os Estados Unidos estavam

na posse de capacidades – tanto materiais como ideológicas – que não conseguiam ser

rivalizadas por nenhuma outra grande potência e a sua influência política estendia-se da Ásia-

Pacífico ao continente europeu.

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No entanto, sem a ameaça da URSS para estabelecer o norte da sua bússola de política externa,

Clinton, tal como seria de esperar, reorientou as prioridades da Casa Branca: redução da

presença militar no estrangeiro e concentrando-a em regiões-chave (como a Ásia-Pacífico e

a Europa); maior foco nas questões internas, como a redução do défice norte-americano e a

escassez de empregos; fortalecimento do modelo de ordenamento internacional de natureza

liberal que brotou do final da II Guerra Mundial e que se conseguiu conservar, na sua essência,

depois do final do conflito bipolar entre a União Soviética e os Estados Unidos.

A Estratégia de Segurança Nacional de 1994, a primeira divulgada pela nova Administração

democrata, estipula três grandes objetivos: fortalecimento das forças militares de forma a que

os Estados Unidos possam intervir rápida e facilmente nas regiões de maior interesse

nacional; revitalização da economia e abertura de mercados externos; promoção da

democracia além-fronteiras, com vista ao aumento do número de países democráticos. Para

Clinton, estes três macro-objetivos estão intimamente interligados e são mutuamente

capacitadores, na medida em que «Nações seguras têm maior propensão para apoiar o

comércio livre e manter estruturas democráticas. Nações com economias em crescimento e

fortes laços comerciais têm maior propensão para se sentir seguras e trabalhar em prol da

liberdade. E Estados democráticos têm menor propensão para ameaçar os nossos [dos EUA]

interesses e maior propensão para cooperar com os EUA com vista a dar resposta a ameaças

à segurança e a promover o desenvolvimento sustentável» (The White House, 1994, i-ii).

Clinton sublinha a indispensabilidade sem precedentes da liderança dos Estados Unidos, cuja

vigilância e presença além-fronteiras são consideradas o garante da estabilidade internacional

e a proteção das democracias contra as ameaças que as pretendem subverter e que adquirem

novas formas no pós-Guerra Fria (como o terrorismo, a degradação do meio ambiente,

ambições revisionistas por parte da China e da Rússia e a disseminação de armamento com

capacidades de destruição de massas).

Para conservar a sua pertinência no teatro internacional e para justificar a continuação da

presença das suas forças militares no estrangeiro, os Estados Unidos precisam de declarar a

sua liderança como a única linha de defesa das democracias face às ameaças que, embora já

não tivessem a cara do comunismo, proliferarão sem a intervenção de Washington.

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No Prefácio da Estratégia de Segurança Nacional de 1994, Clinton afirma que, apesar de os

Estados Unidos já não enfrentarem a ameaça soviética do passado, «ainda subsiste um leque

de novos e velhos desafios securitários que a América deve endereçar à medida que nos

aproximamos de um novo século» (The White House, 1994, 1).

Clinton sublinha a necessidade da liderança norte-americana da nova ordem internacional e

o seu papel indispensável enquanto garante da estabilidade internacional. A Administração

norte-americana acredita que o fim da Guerra Fria não exige uma retirada dos Estados Unidos

dos assuntos internacionais.

Os Estados Unidos pretendem exercer uma «diplomacia preventiva» (The White House,

1994, 5), através do apoio às democracias, de assistência económica, da presença de forças

militares norte-americanas no estrangeiro, de contactos entre forças militares e de

negociações multilaterais.

Contudo, a liderança e envolvimento dos Estados Unidos é condicional, devendo Washington

canalizar os seus esforços e recursos para assuntos que digam diretamente respeito aos

interesses norte-americanos e que nos quais a sua atuação possa realmente fazer a diferença.

A promoção da democracia – ou, por outras palavras, o apoio ao desenvolvimento e

consolidação de democracias de mercado – é um dos lados do triângulo que dá corpo à

primeira estratégia de segurança nacional arquitetada pela Administração Clinton. Este apoio

concentra-se, sobretudo, na «preservação de processos democráticos em Estados

democráticos emergentes essenciais, incluindo a Rússia, a Ucrânia e os outros novos Estados

da antiga União Soviética» (Ibid.).

O aumento da esfera dos países com regimes democráticos, esfera essa encabeçada por

Washington, é visto como um elemento indispensável à segurança nacional norte-americana.

Os Estados Unidos afirmam estar empenhados em conceder apoio à transição económica e

política nas antigas repúblicas comunistas, em matéria de constituição de instituições de

democráticas e de abertura de mercados. «Todos os interesses estratégicos da América (...)

são cumpridos através do alargamento da comunidade das nações democráticas e de mercado

livre» (The White House, 1994, 19-20).

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Apesar de assumir a liderança do desenvolvimento da nova ordem pós-Guerra Fria, os

Estados Unidos reconhecem que não conseguem alcançar os seus objetivos unilateralmente,

e sublinham a importância de solução cooperativas e multilaterais e da nutrição de «relações

duradouras com aliados e outras nações amigas» (The White House, 1994, 6).

Mas esta afirmação da indispensabilidade da convergência de esforços intergovernamentais

para assegurar a segurança coletiva contrasta com a declaração de que «para dissuadir a

agressão, prevenir a coerção de aliados ou governos amigos e, em última instância, vencer a

agressão caso ela ocorra, nós [Estados Unidos] precisamos de preparar as nossas forças para

enfrentar este nível de ameaça, preferencialmente em concerto com os nossos aliados, mas

unilateralmente se necessário» (The White House, 1994, 7). O binómio unilateralismo-

multilateralismo é evidente nesta estratégia de segurança nacional, e poderá advir do facto

de os Estados Unidos desejarem conduzir a nova ordem internacional enquanto a única

superpotência mundial, ao mesmo tempo que reconhecem a necessidade de um retraimento

estratégico que deverá dar lugar a um envolvimento mais seletivo e a necessidade de

partilharem essa liderança (bem como os custos associados) com os países aliados e governos

amigos, que, em certas circunstâncias e em certas questões, podem estar melhor capacitados

para atuar.

A intervenção dos Estados Unidos em questões além-fronteiras está, acima de tudo,

dependente dos interesses nacionais. Só quando os «interesses vitais ou de sobrevivência»

estiverem sob ameaça, «o uso da nossa força será decisivo e, se necessário, unilateral» (The

White House, 1994, 10). Nos restantes casos, em que a ameaça aos interesses nacionais não

seja tão premente, os Estados Unidos atuarão cautelosamente, mediante um envolvimento

militar seletivo.

No que toca à ação multilateral, mais especificamente, a Administração Clinton assegura que

os Estados Unidos procurarão, sempre que possível, o apoio dos aliados. Porém, em matérias

que digam respeito diretamente aos interesses dos aliados, os Estados Unidos exigem que os

aliados assumam um papel mais preponderante e mais ativo nas iniciativas conjuntas.

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V. Estados Unidos e a Rússia: avanços, recuos e uma relutância cautelosa

Com o colapso da União Soviética, os Estados Unidos precisam de ajustar os seus

imperativos securitários de forma a acomodarem as repúblicas que resultaram da dissolução

do bloco comunista de Leste.

A Administração Clinton reconhece que «o futuro da Rússia é incerto» e que os novos

Estados independentes «estão a experienciar dolorosas transições económicas e políticas»

(The White House, 1994, 1). Para integrar estes países recentemente independentizados na

teia do sistema internacional liberal ocidental, a Organização do Tratado do Atlântico Norte

(NATO) é uma peça essencial da estratégia de expansão da comunidade das democracias.

Assim, em janeiro de 1994, uma cimeira da NATO convocada por Bill Clinton aprovou as

Parcerias para a Paz (PfP), um mecanismo de cooperação militar e política que visa

aproximar as antigas repúblicas soviéticas e comunistas de Leste das democracias do

Ocidente, sem, contudo, integrá-las completamente na Aliança Atlântica como membros

efetivos. O documento estratégico indica que, entre janeiro e julho de 1994, 21 países

aderiram às PfP, incluindo a Rússia.

Não sendo uma integração propriamente dita na NATO, as PfP são uma forma de

alargamento da comunidade das democracias, através da integração parcial dos antigos

membros do Pacto de Varsóvia na NATO. Clinton afirma que as PfP são meio caminho

andado para a integração efetiva na NATO, cuja expansão é um objetivo claro dos Estados

Unidos. Contudo, não se pretende com as PfP cindir uma vez mais a Europa em dois blocos,

mas sim «alargar a estabilidade, a democracia, a prosperidade e a cooperação securitária a

uma mais ampla Europa» (The White House, 1994, 22).

O objetivo é garantir a estabilidade, a segurança, a liberdade e a democracia do continente

europeu, para que, conjuntamente com os Estados Unidos, seja possível «manter a paz e

promover a prosperidade» (The White House, 1994, 21).

Adicionalmente, os Estados Unidos acreditam que a constituição de instituições

democráticas nas antigas repúblicas comunistas é a melhor forma de dar resposta «ao

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nacionalismo agressivo e aos ódios étnicos despoletados pelo fim da Guerra Fria»(The White

House, 1994, 23). É importante notar que, não surpreendentemente, o apoio dos Estados

Unidos à transição democrática na Rússia e na restante ex-URSS depende da manutenção do

compromisso destes países para com o respeito dos direitos dos seus cidadãos, dos direitos

dos seus países vizinhos, dos direitos das minorias abrangidas pelas suas fronteiras e,

naturalmente, para com o enraizamento da democracia nos seus territórios. «Em mais

nenhum lado é o sucesso da democracia mais importante para nós [Estados Unidos] do que

nestes países» (Ibid.).

Para os Estados Unidos, a democratização da Rússia é uma questão de segurança, nacional e

internacional, considerando que a dissolução da União Soviética despoletou a disseminação

de armamento nuclear na Europa de Leste. A Administração Clinton afirma que as ações

concertadas entre os Estados Unidos, a Rússia, a Ucrânia e os outros Estados da antiga URSS

(nomeadamente a Bielorrússia e o Cazaquistão) são essenciais para mitigar a proliferação de

armamento nuclear e para assegurar o cumprimento dos acordos internacionais que foram

assinados sobre esta matéria.

Os Estados Unidos consideram que as armas de destruição massiva (nucleares, biológicas e

químicas), bem como os meios para o seu lançamento, são a maior ameaça à sua segurança

e à segurança dos seus aliados e governos amigos.

Os Estados Unidos também pretendiam que a Ucrânia entregasse à Rússia as ogivas nucleares

que tinha em sua posse, através da implementação de um Acordo Trilateral, sendo, por isso,

compensada pela Rússia.

A um tempo, Washington defendia a necessidade de redução quantitativa – e eventual

renúncia – das armas de destruição massiva e sublinhava que conservaria um arsenal

suficiente para dissuadir outros de fazerem uso das suas armas de destruição massiva. Por

outras palavras, os Estados Unidos declaravam-se no direito de possuir um dissuasor nuclear

em prol da estabilidade e segurança internacionais, a fim de manter uma superioridade

estratégica face, por exemplo, à Rússia, a segunda maior potência nuclear do pós-Guerra Fria.

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VI. O degelo: Estados Unidos e Rússia, de inimigos a parceiros cooperantes

Com o final da Guerra Fria, os Estados Unidos, agora sob a liderança de Bill Clinton, o

primeiro presidente norte-americano eleito no mundo que emergiu depois do término do

conflito bipolar, assumem como princípio basilar da sua estratégia de política externa, e tendo

como pano de fundo a incerteza do sucesso da transição democrática pós-comunista, a

inviabilização de um potencial conflito civil na Rússia, herdeira da União Soviética e, ao

mesmo tempo, uma potência nuclear.

Com a transformação do antigo adversário soviético em parceiro internacional –

nomeadamente na área da contenção da proliferação de armamento nuclear e de mísseis –,

Clinton sente-se cada vez mais pressionado, tanto pelas elites políticas de Washington como

pela própria população, para mudar o foco da Casa Branca para as questões internas, quer ao

nível económico, quer social, abdicando do empreendedorismo além-fronteiras e de

iniciativas internacionais. Com o desvanecimento do principal mote para o intervencionismo

norte-americano – a contenção do inimigo comunista no Leste da Europa –, a Casa Branca

acaba por colocar o pendor da sua atuação nas questões domésticas, precisamente na altura

em que os Estados Unidos surgem como o principal garante da estabilidade internacional.

Não obstante, é preciso ter presente que Clinton defendia que os Estados Unidos precisavam

de continuar envolvidos no exterior (engagement), embora de forma mais seletiva e

discriminada, e de apostar no fortalecimento das suas forças militares, com o fim de travar

ameaças e, «quando necessário», para intervir e derrotar os inimigos. «Enquanto a América

se reconstrói internamente, nós não fugiremos dos desafios nem falharemos em aproveitar as

oportunidades deste novo mundo» (Clinton, 1993).

A primeira Estratégia de Segurança Nacional que emanou, em 1994, da Casa Branca depois

do fim da Guerra Fria, deixa, no entanto, claras algumas continuidades face à política externa

do anterior presidente, George W. H. Bush. A linha de continuidade é facilmente observável

no que diz respeito ao alargamento e aprofundamento da comunidade de Estados

democráticos e de economia de mercado, não fosse a palavra enlargement, ou alargamento,

um dos lados do binómico escolhido por Clinton para definir em poucas palavras o espírito

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da nova estratégia.

Tal como acima foi explicado, a tendência de regionalização foi também uma das

transformações que marcou a transição pós-Guerra Fria, uma mudança relativamente à qual

que os Estados Unidos foram rápidos a usar em seu benefício, estabelecendo regiões de

especial interesse para o país e atuando como o fiel de uma balança a fim de impedir que

destes sistemas internacionais regionais pudesse emergir uma potência capaz de colocar em

causa a preponderância norte-americana e apresentar uma alternativa viável ao modelo de

organização internacional liberal e democrática do Ocidente.

A preceder os pressupostos plasmados na primeira estratégia de segurança nacional

divulgada pela Casa Branca de Bill Clinton estão as palavras proferidas, a 4 de novembro de

1993, por Warren Christopher, Secretário de Estado durante o primeiro mandato do

presidente democrata, perante o Comité de Assuntos Externos do Senado norte-americano.

Christopher afirma que o apoio à transição democrática da Rússia e a abertura ao mundo dos

mercados do herdeiro da União Soviética são a prioridade da política externa dos Estados

Unidos. O Secretário de Estado defende ainda que o sucesso destes processos é essencial para

salvaguardar os interesses da superpotência, na medida em que, com Moscovo a comandar

um país democrático e sustentado por uma economia de mercado, o risco de uma guerra

nuclear fica significativamente reduzido, Washington pode reduzir as despesas com a Defesa,

abrem-se novos mercados às empresas norte-americanas e os Estados Unidos podem, por fim,

virar a página da História e deixar de ver a Rússia como um inimigo e passar a vê-la como

um parceiro estratégico, nomeadamente ao nível da cooperação com vista à resolução de

problemas globais e regionais.

Logo em 1993, Warren Christopher deixa muito clara a posição da Administração Clinton

face à importância de uma reaproximação entre os dois antigos adversários da Guerra Fria:

«Fazer com que a democracia prevaleça na Rússia continua a ser o mais sensato – e menos

dispendioso – investimento que nós podemos fazer ao nível da segurança da América»

(Christopher, 1993, 51).

Reconhecendo a importância deste degelo das relações entre Moscovo e Washington, ambas

as câmaras do Congresso norte-americano apoiaram uma proposta da Administração Clinton

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para conceder bilateralmente à Rússia, bem como aos restantes países que constituíam a

URSS, um pacote inicial de assistência no valor de 1,6 biliões de dólares. Ademais, os

Estados Unidos conseguiram o apoio dos G-7, os países com as mais fortes economias a nível

mundial, em julho de 1993, para um programa especial de privatização e reestruturação no

valor de 3 biliões de dólares. E ainda foram concedidos uns adicionais 2,5 biliões para ajudar

o governo russo a ultrapassar as dificuldades técnicas e sociais originadas pela tensão

emanada do processo de democratização.

Christopher mostra-se confiante no sucesso do processo de transição democrática da Rússia,

apesar das insurreições de outubro de 1993 na Rússia e dos resultados duvidosos das eleições

parlamentares de dezembro do mesmo ano.

Em finais de outubro de 1993, Warren Christopher viajou até Moscovo para reassegurar a

Boris Yeltsin o apoio da Casa Branca e de Bill Clinton à transformação democrática da

sociedade russa, reiterando que esta evolução só teria sucesso se se tratasse de um processo

transparente e devidamente suportado pela liberdade dos meios de comunicação social. Tanto

Yeltsin como o ministro dos Negócios Estrangeiros russo garantiram a justeza e a liberdade

dos futuros processos eleitorais, bem como a liberdade de imprensa.

O discurso do primeiro Secretário de Estado de Bill Clinton coaduna-se com o desejo de

Washington para ampliar a comunidade de Estados democráticos sustentados por economias

de mercado e com o objetivo de trazer a Rússia para um modelo de ordenamento

internacional no qual os Estados Unidos pudessem ter menos incertezas acerca das intenções

e manobras de Moscovo, podendo, numa aproximação de interesses e de valores, fortalecer

a sua segurança, o seu estatuto como superpotência irrivalizável e garantir a sua influência

política e diplomática num dos principais focos de concentração de armamento nuclear na

Europa de Leste pós-Guerra Fria.

No campo das armas de destruição massiva, designadamente no que toca à proliferação deste

tipo de armamento, os Estados Unidos veem na Rússia um aliado estratégico para a redução

da ameaça nuclear no mundo. Com a queda da URSS, o arsenal nuclear detido pelo regime

comunista ficou vulnerável a roubos e à venda por redes de tráfico, aumentando a ameaça

nuclear. Para travar a proliferação destas armas de destruição massiva, a Rússia, a Ucrânia,

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a Bielorrússia e o Cazaquistão juntaram-se, em 1992, ao tratado de redução de armamento

estratégico START I e declaram-se Estados não nucleares, algo que levou Warren

Christopher a declarar que se havia dado «significativos passos em frente» (Christopher,

1993, 54).

Contudo, o parlamento ucraniano demonstrava alguma resistência em abdicar das suas armas

nucleares, em contra-corrente com a visão do presidente Leonid Kravchuk, que se colocava

ao lado de Washington e que garantiu ao Secretário de Estado norte-americano que iria

exercer pressão sobre o parlamento com vista à ratificação do START I e à afirmação do

compromisso para com a adoção do estatuto de país não-nuclear. Depois da dissolução da

URSS, a Ucrânia passa a ser a terceira maior potência nuclear do mundo.

Em dezembro de 1994, no âmbito de uma cimeira da Conferência para a Segurança e

Cooperação na Europa (CSCE, mais tarde OSCE – Organização para a Segurança e

Cooperação na Europa) os Estados Unidos, a Ucrânia, a Bielorrússia e o Cazaquistão trocam

entre si instrumentos de ratificação do START I, abrindo as portas para a ratificação do

START II, que prevê que a Rússia e os Estados Unidos reduzam ainda mais os seus arsenais

de armamento nuclear, ficando cada um dos lados com um máximo de 3.500 ogivas nucleares.

Depois da ratificação, Bill Clinton e o homólogo russo, Boris Yeltsin, dariam início, nos

respetivos países, à desativação de todos os seus mísseis com capacidade para transporte de

ogivas nucleares.

Apesar de reconhecer que a Ucrânia era uma parte importante da harmonia do espaço pós-

soviético e um contra-peso à Rússia, a Casa Branca – tanto sob a presidência de Bush como

de Clinton – não queria arriscar perder a parceria estratégica com Moscovo, nem frustrar a

integração da Rússia no modelo de organização internacional liberal, por causa de uma

aliança com a Ucrânia.

Não obstante, Clinton não podia negligenciar o abundante arsenal nuclear sob a alçada de

Kiev. Por isso, ao abrigo de um acordo trilateral entre Estados Unidos, Rússia e Ucrânia, esta

última deu início a um programa de transferência para Moscovo de todas as armas nucleares

sob o seu controlo. Em 1995, 75% de todas as armas nucleares que estavam na Ucrânia no

início de 1994 passaram para as mãos da Rússia com o objetivo de serem desmanteladas.

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Clinton desejava trazer a Rússia para a esfera das democracias e para o plano da cooperação

e, como tal, prioriza o restabelecimento das relações entre Washington e Moscovo sobre

quaisquer outras relações (Gaspar, 2016, 209), pelo que uma aliança com a Ucrânia – face à

qual a Rússia mantinha uma relação de animosidade devido a divergências territoriais e de

legitimidade – poderia vir a comprovar-se uma manobra contra-producente. Na Estratégia de

Segurança Nacional de 1995, a Casa Branca sublinha que a transição democrática na Rússia,

bem como a liberalização da sua economia, são elementos essenciais para transformar uma

antiga ameaça «numa região de valiosa parceira diplomática e económica» (The White House,

1995, 32). Para Clinton, a democratização da Rússia é vital para os interesses securitários

dos Estados Unidos e para a estabilidade da Europa.

A transição pós-comunista da Rússia para a democracia começava a ser vista como uma

quimera, mais do que como uma real possibilidade. A corrupção, tal como no passado

soviético, continuava a exercer a sua influência sobre o governo e a boicotar a constituição e

o desenvolvimento de instituições democráticas que aproximariam a Rússia dos princípios

liberais defendidos pelos Estados Unidos, o que colocava as relações entres os dois países e

antigos rivais sob pressão.

Stephen Walt argumenta que as relações entre Washington e Moscovo deterioraram-se

consideravelmente durante a presidência de Bill Clinton e que os «Estados Unidos e os seus

aliados podiam provavelmente ter feito mais para acelerar a transição da Rússia» (Walt, 2000,

70) e que não souberam aproveitar o ímpeto reformista que grassava na Rússia entre 1991 e

1992 – durante a presidência de George W. H. Bush – para operacionalizarem programas de

privatização.

Apesar de sublinhar que Clinton soube cultivar uma boa relação com Boris Iéltsin e que as

políticas da sua Administração foram a linha de defesa contra a ascensão de forças

subversivas e prejudiciais aos interesses dos Estados Unidos na Rússia, o autor chama a

atenção para o facto de ter sido a expansão da NATO para Leste e a resistência dos Estados

Unidos em abandonar o seu programa defensivo de mísseis que erodiram as relações entre

os dois países e geravam sentimentos anti-americanos no coração do povo russo.

Quando confrontado com uma bifurcação no seu caminho, Clinton parece escolher o ganho

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político imediato e o contentamento, ainda que efémero e praticamente inconsequente, do

seu eleitorado e da opinião pública, colocando em segundo plano ganhos estratégicos a

longo-prazo mais significativos para os interesses norte-americanos no estrangeiro.

No pós-Guerra Fria, a relação entres os Estados Unidos e a Rússia, reconhecida como o

herdeiro legítimo da União Soviética a todos os níveis (nuclear, político, no respeitante aos

acordos internacionais de redução de armamento), altera-se claramente, passando da

animosidade declara e firmada, à aproximação estratégica e ao estabelecimento de sinergias,

embora numa base assimétrica a favor de Washington.

A constituição do novo modelo relacional pós-conflito bipolarizado encontra a sua base

institucional na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), a “cara” institucional

das democracias do Ocidente para relações com os países do antigo Pacto de Varsóvia e da

URSS.

Ao nível do armamento nuclear, os Estados Unidos exigem os esvaziamento dos arsenais da

Ucrânia, da Bielorrúsia e do Cazaquistão, sendo que a Rússia deveria ser o único país do

espaço pós-soviético a deter armas de destruição massiva e mísseis, cujos números deveriam

sempre ficar abaixo dos dos Estados Unidos, garantido a Washington uma superioridade

estratégica que tornasse inequívoca a sua posição internacional de maior relevância face à

Rússia.

Para os Estados Unidos, a integração da Rússia na comunidade das democracias ocidentais

depende em maior grau da redução do armamento nuclear do antigo adversário da Guerra

Fria mais do que de eventuais avanços em matéria de respeito pelos direitos humanos ou pela

liberdade de imprensa. Esta postura evidencia que para Washington é mais importante deixar

a Rússia em pé de inferioridade estratégica do que fazer com que o herdeiro da União

Soviética passe a integrar no seu novo ADN os princípios que constituem a essência do

espírito que anima a comunidade democrática ocidental.

A natureza amistosa da relação entre Bill Clinton e Boris Iéltsin fica espelhada no adiamento

da expansão da NATO para o Leste europeu. Só em 1997 é que é colocado em marcha o

plano de integração de países da esfera de influência e interesse da antiga União Soviética e

do regime comunista leninista, como a Hungria, a República Checa e a Polónia. O «apoio

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[de Clinton] à reeleição do presidente russo fica expresso no adiamento do alargamento da

NATO até 1997» (Gaspar, 2016, 266).

Para a Rússia, a “questão nuclear ucraniana” é da maior importância para o estabelecimento

da Rússia no sistema internacional. Com a sua dissolução, a União Soviética viu o seu arsenal

nuclear ficar disperso pela Ucrânia, pela Bielorrúsia e pelo Cazaquistão. No caso dos dois

últimos países, a transição do armamento nuclear para Moscovo ocorre de forma

relativamente célere e sem problemas. Contudo, tal não se verifica no caso na Ucrânia. Este

elemento das relações Estados Unidos-Rússia será analisado mais adiante e em maior

pormenor.

O alargamento da NATO para Leste mantém-se como a pedra-angular das relações russo-

americanas e um fator de irritação na interação entre os dois países. Iéltsin não vê com bons

olhos a expansão da Aliança Atlântica para o antigo território soviético, considerando a

NATO uma ameaça à sua segurança. A Rússia só aceitará o plano de alargamento da NATO

para Oriente se Moscovo for o primeiro país a ser convidado a integrar a instituição, um passo

que desvirtuaria o propósito do plano, que pretende, numa primeira fase, abarcar a República

Checa, a Hungria e a Polónia. Perante a resistência da Casa Branca em aquiescer às suas

exigências, Iéltsin mantém-se à margem do programa das Parcerias para a Paz acusa

Washington de estar a trilhar um caminho em direção àquilo que caracterizou como sendo

uma “Paz Fria” (Gaspar, op. cit. 270). O líder do governo russo quer adiar o alargamento da

NATO para depois das eleições presidenciais, agendadas para 1996.

O processo de alargamento da Aliança Atlântica para Leste pauta-se por avanços e recuos,

derivados da resistência de Moscovo e da hesitação de Washington. No ano seguinte, Iéltsin

já declara que não está contra à expansão da NATO e que até aceitaria iniciar conversações

sobre um novo tratado de redução de armamento, e Clinton, por seu turno, assegura Moscovo

de que não colocará tropas nem mísseis nos novos países que venham a integrar a Aliança.

Numa série de manobras diplomáticas, a Rússia consegue extrair dos Estados Unidos e da

NATO um acordo bilateral que assegura as exigência de Iéltsin, cujo governo,

concomitantemente, estabelece acordos com a Ucrânia para garantir a integridade das

delimitações fronteiriças e a autonomia política do antigo Estado soviético.

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Em julho de 1997, no âmbito do Conselho do Atlântico Norte, em Madrid, a Hungria, a

República Checa e a Polónia são convidadas a integrar a NATO e pela primeira vez reúne-

se o Conselho Permanente Conjunto NATO-Rússia. Contudo, Iéltsin decide ficar de fora do

encontro, considerando que um dos pilares fundamentais da política externa russa é a

consideração de que a NATO é «a principal ameaça à segurança da Rússia» (Gaspar, op. cit.

271).

A guerra na província sérvia do Kosovo serve também para ilustrar que as relações entre a

Rússia e a NATO, e consequentemente os Estados Unidos, não é pacífica nem acontece de

igual para igual. Sem obter um mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a

Aliança Atlântica inicia uma campanha de bombardeamentos aéreos da Sérvia, um regime

socialista aliado da Rússia, uma ação que Moscovo certamente teria inviabilizado caso

tivesse sido deliberada em sede própria e no contexto multilateral do Conselho de Segurança,

onde a Rússia tem assento enquanto membro permanente e poder de veto definitivo.

Iéltsin entende este ataque unilateral da NATO como a quebra do princípio da inviolabilidade

das fronteiras que caracterizava a ordem internacional do pós-Guerra Fria, e não poupou

críticas à Aliança no rescaldo do ataque. Não obstante, a Rússia não vai deixar que este

percalço obstaculize a conquista de uma posição de relevo no teatro internacional, e estará

ao lado das forças militares ocupantes da NATO na província secessionista sérvia.

Porém, o ataque aliado à Sérvia servirá de pretexto para a convergência da Rússia, da Índia

e da China na condenação da ação da NATO e na reiteração do carácter absoluto do princípio

da inviolabilidade da soberania dos Estados. Com a extensão da NATO para Leste, a Rússia

procura firmar uma posição de relevo junto das potências asiáticas e afirmar a sua

preeminência no espaço que outrora fora preenchido pelas repúblicas socialistas leninistas

sob o comando de Moscovo.

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VII. Expansão da NATO para Leste, a questão nuclear e as relações EUA-Rússia

Durante os primeiros anos que seguiram no encalço do final da Guerra Fria, as relações entre

os Estados Unidos e a nova Rússia ficam pautadas por um “degelo”, relativamente àquilo

que tinha sido o relacionamento entre Washington e Moscovo soviética, uma relação na qual

pesavam décadas de rivalidade, confronto ideológico, esgrima retórica e demonstrações de

força.

Num mundo pós-Guerra Fria, os centros dos dois antigos blocos conflituantes parecem

procuram uma aproximação mútua, através, por exemplo, da redução de armas de destruição

massiva e de mísseis ou da cooperação. Deve, no entanto, sublinhar-se que esta relativa, e

bastante relutante, convergência dos Estados Unidos e da Rússia em certas matérias acontece

porque, por um lado, Washington procurava consolidar uma posição de preeminência a nível

internacional e uma projeção global sem obstáculos levantados pelo sucessor da URSS, e

porque, por outro lado, Moscovo pretendia estabelecer, e ver reconhecido internacionalmente,

o seu estatuto como principal potência euroasiática, numa tentativa de não cair na sombra

cada vez maior da China no teatro regional asiático.

Existem dois fatores que, da minha perspectiva, constituem-se como fundamentais na

construção do novo quadro relacional entre os Estados Unidos e a Rússia nos anos que se

seguem ao fim da Guerra Fria a 8 de dezembro de 1991, com a assinatura da declaração

tripartida entre Rússia, Ucrânia e Bielorrússia: a expansão da NATO para Leste e os acordos

de não proliferação e a cooperação no combate ao nuclear. A par destes elementos, é

igualmente importante verificar os “avanços e recuos” na relação entre os dois países, que

advêm dos fatores anteriormente mencionados.

Para os Estados Unidos, o alargamento da Aliança Atlântica às novas democracias do espaço

pós-soviético é, a um tempo, essencial para proteger os interesses do país, para consolidar a

presença do ocidente no leste europeu, para refrear eventuais ímpetos expansionistas da

Rússia e para inviabilizar a emergência de uma potência regional que possa vir a ter

capacidade para colocar em questão as instituições internacionais impulsionadas pelos

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Estados Unidos e que, por conseguinte, auxiliam a potência norte-americana a difundir os

seus valores e a enraizar, à escala planetária, a sua influência, política, militar, económica e

ideológica.

Expansão da NATO para Leste e a difusão da democracia

No dia 4 de abril de 1949, 12 países assinavam o Tratado do Atlântico Norte e formalizavam

a criação uma aliança política e militar que unia duas margens de um oceano para fazer frente

ao expansionismo soviético, que se considerava ser uma ameaça crescente que colocava em

xeque os princípios, o modus vivendi e as instituições que saíram da Segunda Guerra Mundial

e que eram as pedras-angulares da chamada “ordem liberal internacional” orientada pelos

Estados Unidos.

A Organização do Tratado do Atlântico Norte, ou NATO, na sigla inglesa, passa a ser a

principal plataforma de defesa das democracias ocidentais e de combate aos apetites

imperialistas soviéticos. Contudo, o fim da Guerra Fria, radicado na dissolução da União

Soviética, levou académicos e políticos a questionar a validade da continuação da NATO,

considerando que a sua raison d’être se havia desvanecido. Assim, com o fim do conflito

bipolar entre Estados Unidos e Rússia, Washington – a par das suas democracias aliadas do

hemisfério ocidental – tinha de procurar justificar a manutenção de uma instituição que

parecia já não ter propósito. Com vista à realização desse desígnio, surgem, por exemplo, as

Parcerias para a Paz e a missão do presidente Bill Clinton de alargamento da «comunidade

de nações democráticas», ou, por outras palavras, a estratégia de enlargement.

Em setembro de 1993, Anthony Lake, conselheiro de segurança nacional do presidente Bill

Clinton entre 1993 e 1997, fez um discurso na Universidade Johns Hopkins, em Washington

DC, intitulado From Containment to Enlargement (Da Contenção ao Alargamento), durante

o qual apresentou a visão da nova administração democrata para a política externa dos

Estados Unidos no mundo pós-Guerra Fria.

A visão da administração pode ser resumida numa frase proferida por Lake: «O sucessor de

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uma doutrina de contenção tem de ser uma estratégia de alargamento – alargamento da

comunidade mundial de democracias de mercado livres» (Lake, 1993). O conselheiro de

segurança nacional afirmava que a segurança dos Estados Unidos está diretamente

dependente dos regimes de outros países, pelo que o alargamento da comunidade de países

democráticos ia necessariamente aumentar a segurança dos Estados Unidos no mundo.

Lake afirmou também que a NATO precisava de se redefinir e assumir um papel mais

abrangente no novo sistema internacional, correndo o risco de perder apoio público e de cair

na irrelevância.

Quanto à Rússia, Lake mostra-se esperançoso relativamente ao processo de reforma

democrática que o país abraçou, relembrando, contudo, que ainda existiam resistências por

parte da elite burocrática herdada da União Soviética e que ainda detinha alguma influência

em Moscovo.

O discurso de Anthony Lake demonstra que a Administração Clinton quer reconstruir as

relações com a Rússia, trazê-la para o seio do universo das democracias ocidentais e fazer do

país um parceiro em matérias de segurança e de estabilidade europeias.

Cerca de dois meses após o discurso de Lake, o Secretário de Estado Warren Christopher,

também em Washington DC, vai um pouco mais longe no que diz respeito à Rússia, mas

sempre com cautela no que toca a fazer compromissos e ao alcance dos mesmos. O então

chefe da diplomacia norte-americana declara que, para Administração Clinton, «ajudar a

garantir o sucesso» (Christopher, 1993) das reformas na Rússia é a prioridade da política

externa norte-americana. No entanto, transmite a ideia de que esta transformação pós-

comunista em direção à democracia não é uma certeza absoluta, afirmando, em tom

condicional, que «Se o povo da Rússia for bem-sucedido na sua luta heroica para construir

uma sociedade livre e uma economia de mercado» (Ibid.), os Estados Unidos poderão mitigar

uma ameaça nuclear, cortar nas despesas no setor da Defesa, alcançar novos mercados e

conquistar um novo parceiro para cooperação em assuntos de âmbito global e regional.

Sobre a NATO, tal como Anthony Lake, Christopher apela aos aliados para reinventarem a

organização, para lhe darem um novo propósito, agora que a União Soviética já não figurava

como única e grande ameaça à segurança e interesses dos Estados Unidos.

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Um ano após ter tomado posse, Bill Clinton, em janeiro de 1994, convoca uma cimeira da

NATO que aprova a criação das Parcerias para a Paz (PfP), um programa de iniciativa norte-

americana que, embora não tenha sido concebido como uma via rápida de integração de

novos membros na Aliança Atlântica mas sim como uma via facilitadora, visa reforçar a

cooperação política e militar entre as democracias ocidentais e os antigos Estados soviéticos

ou que estavam sob domínio comunista. A Casa Branca considera que as PfP são

instrumentos essenciais «para assegurar que a NATO está preparada para dar resposta aos

desafios desta era à segurança europeia e transatlântica», ao mesmo tempo que visa ser uma

plataforma de aproximação dos novos países do antigo espaço soviético ao resto da Europa

(The White House, 1994, 5). Desta forma, Washington pretendia contornar a possível, mas

altamente provável, obsolescência de uma estrutura de cooperação militar e política que

poderia não mais ter lugar na realidade de um mundo pós-Guerra Fria. No entanto, os Estados

Unidos não se podiam dar ao luxo de deixar cair por terra um instrumento tão valioso de

difusão dos seus princípios, valores e poderio militar como era a NATO, pelo que a sua

preservação era essencial para a manutenção de um estatuto de superpotência e para poder

manter uma capacidade de projeção à escala global.

Também em 1994, Bill Clinton anunciava em Varsóvia, na Polónia, a Iniciativa de Varsóvia,

um programa da Administração norte-americana, gerido pelos departamentos de Estado e de

Defesa, cujo objetivo era prestar assistência às novas democracias que surgiam na Europa

central e de Leste, de forma a colocá-las em conformidade com os requisitos exigidos para

integração na NATO. Por outras palavras, a Iniciativa de Varsóvia permitia aos Estados

Unidos “moldar” os novos Estados democráticos nascidos do fim da Guerra Fria, aos

princípios basilares da ordem internacional liberal, liderada pelos Estados Unidos e pelas

nações do ocidente.

Ainda em 1994, Clinton sublinhava o seu compromisso para com o alargamento da NATO,

afirmando que as PfP são uma boa forma de os aspirantes a novos membros demonstrarem

que partilham dos valores da Aliança e que estão determinados a integrá-la. Contudo, o

presidente norte-americano assegura que a futura expansão da NATO não tem como objetivo

«desenhar uma nova linha na Europa mais para Leste» (The White House, 1994, 22) - algo

que se pode entender como uma referência à “cortina de ferro” e ao Murro de Berlim – mas

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sim garantir que outros países europeus possam partilhar dos valores promovidos e

defendidos pela NATO. Aos olhos do Secretário de Estado Warren Christopher, o programa

da Parcerias para a Paz «Não exclui nações e não forma novos blocos», «iria desempenhar

um papel importante no processo evolutivo de expansão da NATO» e «reflete a nossa [do

governo Clinton] forte crença de que os movimentos reformistas na Europa de Leste devem

ser fortalecidos pela expectativa de cooperação securitária com o ocidente» (Christopher,

1993).

Os Estados Unidos querem reafirmar a centralidade da NATO no mundo do pós-Guerra Fria,

nomeadamente na Europa, onde consideram que a colaboração da Rússia é essencial para

evitar que a guerra e o conflito armado regressem, uma vez mais, ao “velho continente”. As

intervenções das forças militares das principais potências europeias, dos Estados Unidos e da

Rússia (o chamado Grupo de Contacto, criado em abril de 1994) nas guerras dos Balcãs foi

essencial para confirmar a indispensabilidade da organização no que diz respeito à resolução

de conflitos e à prevenção de guerras às portas da Europa, cujos países constituintes não têm

os meios nem a convergência suficiente de interesses e opiniões que lhes permitam tomar um

decisão conjunta e eficaz relativamente à segurança do continente.

Mesmo depois da assinatura do Acordo de Paz de Dayton, a 14 de dezembro de 1995, que

pôs termo ao massacre étnico resultante do conflito entre a Sérvia e a Bósnia, a NATO tomou

a dianteira da Força de Implementação (IFOR) do cessar-fogo.

Os próprios Estados Unidos declaram que, no mundo pós-Guerra Fria, «a missão da NATO

está a evoluir» e que as forças da Aliança Atlântica têm desempenhado «um papel crucial no

auxílio à gestão de conflitos étnicos e nacionais na Europa» (The White House, 1994, 22).

Em 1995, o número de países integrantes das PfP chegava aos 27. Nesse mesmo ano, a NATO

preparava-se para dar início a negociações com os países das PfP sobre a eventual integração

efetiva na Aliança. A Administração Clinton considera que a NATO continuará o pilar-

mestre do envolvimento dos Estados Unidos na Europa e «a pedra-angular da segurança

transatlântica» (The White House, 1995, 37).

Contrariamente ao primeiro documento estratégico de segurança nacional emitido pela Casa

Branca em 1994, o que foi publicado em 1995 deixa abundantemente claro que os Estados

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Unidos estão altamente determinados a conservar a relevância da NATO, afirmando que esta

sempre foi mais do que «uma resposta transitória a uma ameaça temporária» (Ibid.) e

justificando a sua continuidade com o facto de a sobrevivência das democracias europeias –

antigas e recém-formadas – dependerem disso. «É por isso que a sua missão [da NATO]

perdura, mesmo depois da Guerra Fria se ter tornado parte do passado» (Ibid.).

O presidente Clinton está convicto de que o alargamento da NATO não se trata mais de uma

questão de “se” mas sim de uma questão de “quando”. Assim, em setembro de 1995, os

membros da Aliança concluem uma primeira fase do processo de expansão da NATO, com

a finalização de um estudo que pretende definir as condições de integração de novos

membros. Três meses depois, era anunciada a segunda fase do processo, que teria início em

1996 e que teria como objetivo começar conversações bilaterais entre a NATO e membros

das PfP, que desejem integrar efetivamente a Aliança, sobre as condições de integração.

Em maio de 1995, num encontro no Kremlin, os presidentes Clinton e Iéltsin acordavam que

a integração de novos membros na NATO só deveria acontecer depois de 1996, ano de

eleições presidenciais nos Estados Unidos e na Rússia, depois de Boris Iéltsin ter, no início

da conversa, começado por pedir a Clinton para adiar até ao virar do milénio para começar a

expandir a NATO. A este pedido de adiamento, Clinton disse a Iéltsin que o processo de

alargamento não seria acelerado e que seria metódico e ponderado, e

respondeu que se Iéltsin lhe estava a pedir para abrandar o processo de expansão a NATO

teria de «continuar a dizer que não» à entrada da Rússia na Aliança Atlântica. Caso Iéltsin

tivesse aquiescido à expansão da NATO para Leste, poderia ter perdido as eleições para a

sua oposição, algo que deixaria também Washington sem um interlocutor familiar na Rússia

e seria prejudicial para os interesses norte-americanos em matéria de expansão da

comunidade de nações democráticas. Durante a reunião, Iéltsin diz sentir humilhação com os

planos de expansão da NATO para perto das fronteiras russas e mostra-se indignado pelo

facto do Pacto de Varsóvia ter sido dissolvido ao passo que a NATO, que serviu de inspiração

para o Pacto de Varsóvia, continuava ativa e caminhava em direção às delimitações da

Federação Russa. Clinton mostra determinação no alargamento da NATO e diz que não vai

recuar, e insta o homólogo russo a facilitar a construção de relações bilaterais entre a NATO

e a Rússia.

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Em dezembro de 1995, as eleições para a Duma serviram para demostrar que o espírito do

comunismo ainda pairava sobre a Rússia e que as reformas democráticas que haviam sido,

até à altura, realizadas não eram necessariamente irreversíveis.

Os Estados Unidos acreditam que a expansão da NATO para Leste é fundamental para

assegurar a paz numa região do mundo da qual brotaram conflitos de grandes dimensões e

catastrofismo. Washington pretende “empurrar” para Leste as fronteiras da comunidade de

Estados democráticos, procurando impedir não só a ressurgência de autocracias e regimes

ditatoriais que possam desestabilizar o continente europeu e gerar o conflito, mas também

aumentando a sua própria esfera de influência – política, militar e económica – do outro lado

do Atlântico.

Clinton não quer que a expansão para Leste seja vista por Moscovo como uma provocação,

e quer que a NATO e a Rússia desenvolvam uma «relação saudável» (The White House,

1995, 38), criem uma plataforma de partilha mútua de preocupações e que sejam dois

elementos importantes e envolvidos na segurança europeia.

Contudo, o Secretário de Estado Christopher, em janeiro de 1995, na Universidade de

Harvard, deixa um recado a Moscovo e a Boris Iéltsin sobre a atuação da Rússia na Chechénia.

O chefe da diplomacia norte-americana considera que a atuação das forças militares russas

sobre as demonstrações secessionistas tem sido excessiva e pode frustrar o processo de

transformação democrática e colocar em xeque a integração da Rússia no ordem

internacional do pós-Guerra Fria. «O que nós [Estados Unidos] não queremos ver é a Rússia

num conflito militar que erode a reforma e tende a isolá-la [a Rússia] na comunidade

internacional» (The White House, 1995). O Secretário de Estado norte-americano apelou ao

governo russo para dar cessar as hostilidades e dar início a um «processo de reconciliação»,

levando em linha de conta «as visões do povo da Chechénia e a necessidade de lhes

providenciar assistência humanitária», no que pode ser entendido como uma inclinação,

ainda que tentativamente velada, para o respeito pela autodeterminação dos povos, algo que

se fosse, neste caso particular, abertamente proclamado pela Administração Clinton colocaria

em risco as renovadas relações entre Washington e Moscovo.

O conflito na Chechénia gerou alguns dissabores no seio da Administração Clinton e criou

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um sério dilema: deveriam os Estados Unidos continuar a apostar numa aproximação da

Rússia ao ocidente, deixar o país resolver os seus próprios problemas internos, mesmo que

isso signifique flagrantes violações de direitos humanos? Ou deveria Washington apoiar a

secessão chechena e arriscar o progresso das reformas políticas e económicas da Rússia?

William G. Hyland afirma (Hyland, 1999, 100) que, no início, a reação da Casa Branca foi

relativamente branda, procurando escudar-se atrás de uma postura que defendia que os

assuntos internos devem ser resolvidos pelo próprio país. No entanto, à medida que o conflito

recebia uma crescente cobertura por parte dos meios de comunicação social, o presidente

Clinton foi sendo cada vez mais crítico da atuação russa na Chechénia e apelava, com

renovado vigor, à expansão da NATO como garante da estabilidade e segurança europeias,

independentemente da oposição de Moscovo.

Ao longo da sua presidência, Bill Clinton continua a ver a NATO como a coluna vertebral

da defesa e segurança da Europa, e esses imperativos securitários, à lente de Washington, só

podem ser garantidos se a presença e influência da Aliança Atlântica forem expandidos para

Leste, aos países que antes se encontravam sob o domínio do centro comunista soviético de

Moscovo. Ao abrigo da estratégia da Administração norte-americana, plasmada na Estratégia

de Segurança Nacional de 1997, o novo lema da NATO poderia encontrar-se no Prefácio

deste documento estratégico: «Países que outrora foram nossos adversários agora podem

tornar-se nossos aliados» (The White House, 1997, 2).

Em 1997, Bill Clinton reafirmava que era do interesse dos Estados Unidos construir uma

parceria forte entre a NATO e a Rússia que forneça as bases para a partilha de conhecimentos

«e, quando possível, para a ação conjunta sobre desafios securitários comuns e que contribua

para a participação ativa de uma Rússia democrática no sistema de segurança europeu pós-

Guerra Fria» (Ibid.).

Paralelamente, o programa das Parcerias para a Paz continua a ser um instrumento de grande

importância no processo de alargamento da NATO para a Europa de Leste e uma forma de

manter a Rússia envolvida no processo, sem, com isso, deixar que a Rússia – ou mesmo a

Ucrânia, país com o qual também a NATO quer reforçar as suas relações bilaterais – façam

parte da Aliança enquanto membros efetivos.

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A conversão da Rússia num Estado democrático e que se baseie nos princípios da aliança das

nações ocidentais da economia de mercado, do respeito pelos direitos humanos e pela

liberdades de imprensa e de expressão é, para os Estados Unidos, um elemento indispensável

da devida integração do herdeiro da União Soviética na comunidade internacional e para ser

reconhecido pelos membros da NATO e por Washington como um país com o qual seja

possível colaborar em questões tão fulcrais no mundo pós-Guerra Fria, como o combate à

proliferação de armas de destruição massiva e à produção e utilização de armas químicas e

biológicas. Esta visão da Casa Branca radica no conceito de “paz democrática” de Immanuel

Kant, que defende que a guerra entre democracias é altamente improvável, considerando

bases de valores e interesses comuns que não só atuam como dissuasores de conflitos

armados inter pares, como tornam escassas as probabilidades do surgimento de práticas que

possam suscitar a agressão.

A Casa Branca acredita que «É mais provável que os governos democráticos cooperem uns

com os outros contra ameaças comuns e encorajem o comércio livre e aberto e o

desenvolvimento económico – e é menos provável que façam a guerra ou violem os direitos

dos seus povos» (The White House, 1995, 5). Na perspetiva norte-americana, é fundamental

promover a democracia em todo o mundo e que cada vez mais países abandonem regimes

autocráticos e caminhem em direção aos princípios democráticos. Só assim, argumenta a

potência norte-americana, é possível tornar o mundo mais seguro. Ora, considerando que

Moscovo era antes o centro de um país, de uma união – ainda que sob coação militar – de

países, que suprimia as liberdades dos povos que abrangia no seu território e que se pautava

por um regime ditatorial, a aproximação às democracias do ocidente era virtualmente uma

impossibilidade prática. Contudo, com o fim da Guerra Fria, com a dissolução da União

Soviética e com a emergência da Rússia como o novo centro de poder e legitimidade no

espaço pós-soviético, que professava a liberdade política, a abertura da economia, a

transparência governamental e a participação pública na construção do novo país, a

convergência entre os dois antigos polos adversários do conflito bipolar afigura-se possível,

ainda que relativamente pouco provável, mas possível. E essa aproximação acontecerá no

quadro da NATO, a aliança das nações democráticas do ocidente e a vanguarda da

democracia face ao imperialismo do Leste.

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Os Estados Unido creem que a participação da Rússia na vida internacional enquanto um ator

cooperante e ativo é um fator importante para a garantia da segurança europeia e para «a

construção de uma Europa verdadeiramente integrada, democrática e segura» (Ibid.). E a

participação da Rússia neste processo inevitavelmente passa pela cooperação entre Moscovo

e a NATO, o “posto-avançado” dos Estados Unidos no outro lado do Atlântico, onde mantém

cerca de cem mil militares.

Contudo, em março de 1997, no âmbito da cimeira Estados Unidos-Rússia na capital

finlandesa de Helsínquia, a Secretária de Estado Madeleine Albright afirmava que «eles

[russos] teria de perceber que temos um calendário [para expansão da NATO] que vai

avançar» (Dougherty, Blitzer, 1997). A Rússia considerava que o reforço da presença militar

ocidental nas suas fronteiras poderia desestabilizara região da Europa de Leste, mas Clinton

assegurou o homólogo russo de que não seria colocadas forças militares nem armas nucleares

nos novos Estados-Membros da NATO.

O alargamento da NATO está agendado para julho de 1997, data da cimeira da Aliança em

Madrid durante a qual foi dado início às conversações com a Polónia, a República Checa e a

Hungria sobre integração efetiva na organização, que veio a acontecer a 12 de março de 1999.

Contudo, a integração da Rússia, que faz parte do programa das Parcerias para a Paz e que

vê a NATO como a principal ameaça à sua segurança – embora em 1991 Iéltsin tenha

declarado que era do interesse do país juntar-se à Aliança – não é sequer equacionada,

afirmando a Casa Branca que o que se pretende é reforçar as relações bilaterais entre a NATO

e a Rússia, e também com a Ucrânia, enquanto parceiros mas entidades distintas.

Apesar de terem sido avançados por membros da NATO mais países para integrarem a lista

de membros efetivos da organização, os Estados Unidos optaram pelo menor número

possível de novos membros, no que se pode ler como uma tentativa de não provocar o

governo russo (Gaspar, 2016, 246-247), e, ao mesmo tempo, deixar claro que a expansão da

NATO é uma realidade independente da perspetiva russa da organização como uma ameaça

à sua segurança.

É também de grande importância sublinhar que foi no ano de 1997 que foi criado o Conselho

Permanente Conjunto NATO-Rússia, uma estrutura de interação e cooperação bilateral entre

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a NATO e a Rússia e que deriva do Ato Fundador sobre Relações, Cooperação e Segurança

Mútuas entre a NATO e a Rússia. Contudo, apesar das expectativas, o processo de

aproximação entre a NATO e a Rússia é frustrado quando em 1999, em plena guerra na

província sérvia do Kosovo, a NATO dá início a uma campanha de bombardeamentos aéreos

de posições das forças armadas e paramilitares ao serviço de Belgrado (Operação “Força

Aliada”), que travavam um conflito armado contra as milícias albanesas kosovares que

clamavam a independência. A Rússia considerou o ataque aliado uma violação da soberania

da Jugoslávia e uma tentativa de subversão do regime socialista de Slobodan Milosevic. No

entanto, em dezembro de 1999, na nova Estratégia de Segurança Nacional publicada pela

Casa Branca, o governo norte-americano felicitava Moscovo por ter recuperado as interações

com a NATO e a sua participação no Conselho Permanente Conjunto.

No final de 1998, num artigo publicado na revista Foreign Affairs, Madeleine Albright, que

sucedeu a Warren Christopher no cargo de Secretário de Estado para o segundo mandato de

Bill Clinton, reconhece que a dependência dos aliados nos Estados Unidos para garantirem a

sua segurança já não era a mesma que se observara no tempos de Dean Acheson, Secretário

de Estado de Harry Truman entre 1949 e 1953.

A antiga embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas elencava o que considerava

serem as quatro categorias de países existentes no mundo à altura: «membros totalmente

integrados no sistema internacional»; «aqueles em transição, que procuram participar mais

intensamente»; «aqueles demasiado fracos, pobres ou envolvidos em conflitos para

participarem de forma significativa»; e «aqueles que rejeitam as regras e preceitos nas quais

se baseia o sistema» (Albright, 1998). Considerando a perspetiva geral da Administração

Clinton, pode depreender-se que a Rússia se encontra na segunda categoria. A Secretária de

Estado Albright sublinha, tal como todos os outros membros de topo do governo norte-

americano, que as reformas na Rússia são de grande importância para a segurança dos

Estados Unidos, sendo que a cooperação da Rússia é tida como fundamental em matérias

como o combate à proliferação de armamento nuclear. Mas a governante coloca a questão de

uma forma que Lake e Christopher parecem não querer colocar. Ela diz que a Casa Branca

está determinada em aprofundar as relações com a Rússia, «desde que a Rússia esteja

preparada para se ajudar a si própria» (Ibid.).

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A Estratégia de Segurança Nacional de 1999 indicava que se preparava a tão referida e

necessária reinvenção da NATO: mais ampla, mais adaptável aos novos desafios,

«comprometida com a defesa coletiva e capaz de realizar novas missões» (The White House,

1999, 29). Com a entrada de três novos membros em abril, a Aliança Atlântica queria agora

aumentar a capacidade de articulação de recursos militares entre os seus membros, tornando

a sua atuação mais eficaz em missões que requeiram a participação de forças de vários países.

Nesse mesmo ano, uns meses antes, consumava-se a integração da Polónia, da República

Checa e da Hungria enquanto membros efetivos da NATO, arrastando para Leste as

delimitações fronteiriças da Aliança Atlântica na Europa, deixando a Alemanha de ser o

“posto avançado” da organização na Europa e reduzindo o hiato geográfico entre a NATO e

a Rússia.

No último ano do segundo e último mandato do presidente Bill Clinton, a Administração

norte-americana frisava que, ao longo dos oito anos de governo, que tinha sido possível trazer

para o plano da cooperação, e por vezes até da parceria, antigos adversários da Guerra Fria,

como a Rússia e outros antigos membros do Pacto de Varsóvia, através de medidas como as

Parcerias para a Paz ou da sua efetiva integração na Aliança Atlântica. Ademais, a

Administração dava como encerrado o processo de admissão de novos membros, algo que

deveria tranquilizar a Rússia. Com isto, os Estados Unidos uma vez mais procuravam

cimentar a pertinência de uma organização com cariz mais militar do que político como a

NATO, numa altura em que a ameaça existencial da União Soviética à democracia ocidental,

como era entendida e promovida por Washington, havia desaparecido e era premente

justificar a manutenção desta instituição transatlântica. Pois a NATO, não obstante a retórica

norte-americana que a apelida de “pedra-angular da defesa e segurança europeias” e como

garante da inexistência de guerra no continente, permanecia como a estrutura que

concretizava a influência – política e militar – dos Estados Unidos na Europa e nas

proximidades das fronteiras da Federação Russa, um aspecto que não era negligenciado por

Washington.

Na última Estratégia de Segurança Nacional, publicada pela Casa Branca em dezembro de

2000, a Administração Clinton felicita os seus parceiros europeus pelas iniciativas tomadas

pela União Europeia no sentido de desenvolver políticas de defesa e de segurança próprias.

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Contudo, o governo norte-americano deixa claro que não concebe esses esforços enquanto

tentativas de substituição da NATO, afirmando que essas capacidade devem ser exercidas

excecionalmente e não como regra, «quando a NATO, como um todo, não estiver envolvida»

(The White House, 2000).

Em 2000, Samuel R. Berger, conselheiro de segurança nacional de Clinton e sucessor de

Lake, reconhecia que o governo norte-americano, a par dos seus aliados, haviam sido bem-

sucedidos na sua missão de dar uma nova vida à NATO, que deixou de ser «uma aliança

estática» para ser «um íman para novas democracias, com novos parceiros, membros e

missões» (Berger, 2000, 25). Berger insta os Estados Unidos e a nova administração a

manterem o apoio ao desenvolvimento de uma União Europeia forte com as suas próprias

políticas de defesa. Mas advertiu que essas políticas europeias de defesa devem ser

complementares à Aliança Atlântica, e nunca o seu substituto, reiterando que a presença

militar norte-americana é crucial para a manutenção da estabilidade e da segurança do “velho

continente”.

Berger deixa ainda claro que, em defesa dos interesses do povo norte-americano, os Estados

Unidos devem sempre pesar no processo de tomada de decisões internas de países como a

Rússia e a China, que têm capacidade para desestabilizar significativamente as respetivas

regiões em que se inserem. « A ameaça que nós [Estados Unidos] enfrentamos dos nossos

antigos adversários reside tanto na sua fraqueza ou retrocesso internos como na sua força

externa» (Ibid.). Para lidar com estes perigos, o conselheiro de segurança nacional defende

uma abordagem institucionalista, com a integração destes países em organismos de foro

global que os vinculem a regras e obrigações que refreiem tentativas de subversão da ordem

internacional liberal.

No que concerne à ajuda prestada pelos Estados Unidos à transformação da Rússia, Berger

afirma que nunca poderão acusar os Estados Unidos de ter incorrido em excessos, mas podem,

isso sim, acusá-los de terem feito pouco. Com esta nota, Berger frisa a importância para os

Estados Unidos da transição democrática da Rússia, e parece dar a entender que, dentro da

Administração Clinton, algumas vozes soaram contra o investimento na democracia russa.

Anthony Lake advogava que o presidente deveria conservar e fortalecer as alianças

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tradicionais e focar-se da expansão para leste da NATO, como forma de gerir a transformação

democrática dos países do antigo espaço soviético (Ibid.), em detrimento do foco sobre a

recuperação das relações bilaterais com a nova Rússia.

Através da análise do lugar que a NATO ocupa nas Estratégias de Segurança Nacional da

Administração Clinton, com relativa facilidade se depreende que o governo norte-americano,

ao longo dos oito anos da presidência do democrata, é irredutível na sua determinação em

fazer com que a NATO seja a primeira e única instância de defesa e segurança da Europa,

atirando para o plano da excecionalidade a atuação autónoma e independente de organismos

europeus, como a União Europeia ou a Organização para a Segurança e Cooperação na

Europa (OSCE).

Bill Clinton e a sua Casa Branca insistiam que o alargamento da NATO para Leste, e,

consequentemente, o aumento quantitativo das democracias europeias, era essencial no

mundo pós-Guerra Fria para garantir que a Europa não era novamente assolada pela guerra,

visto que, aos olhos kantianos da Administração norte-americana, a probabilidade de as

democracias travarem guerras entre si é consideravelmente reduzida. Washington sublinhava

também que a expansão da NATO não era intencionalmente provocatória das sensibilidades

russas, mas mantinha-se firme, sem recuar perante as frequentes reclamações de Moscovo,

que alegava que a integração de novos membros na Aliança Atlântica era uma afronta à

integridade territorial da Rússia e uma tentativa dos EUA para instituírem uma “paz fria”

entre os dois países e entre o ocidente e o espaço regional pós-soviético. O presidente russo

nacionalista Boris Iéltsin chegou mesmo a dizer a Clinton, durante um encontro com o

homólogo norte-americano em Moscovo, que se sentia humilhado com o processo de

expansão da NATO para Leste.

A Rússia queria fazer parte da ordem internacional do pós-Guerra Fria, e queria fazê-lo em

pé de igualdade com os Estados Unidos, algo que estes não estavam dispostos a deixar a

acontecer e não abdicariam voluntariamente da sua superioridade estratégica e da sua

preeminência global a fim de conceder à Rússia o espaço no teatro internacional pelo qual o

país tanto ansiava. O facto de a Rússia ter liderado o Pacto de Varsóvia, que foi criado para

ser a força de contrabalanço da NATO, e de não fazer parte da lista de membros efetivos da

Aliança Atlântica, sendo-lhe apenas concedida a oportunidade para integrar estruturas de

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cooperação e consulta como as Parcerias para a Paz ou o Conselho Permanente Conjunto,

faz com que Moscovo continue a olhar para a NATO e para os seus membros como ameaças

existenciais. A abono da verdade, a NATO derivou das vontades convergentes dos países da

Europa ocidental e dos Estados Unidos para fazer frente e frustrar as inclinações e ímpetos

imperialistas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Apesar de Iéltsin, a certa altura,

ter afirmado que gostaria que a Rússia integrasse a NATO como membro efetivo, facto é que

essa realidade é um paradoxo, considerando que a postura da NATO (escreve-se NATO mas,

em muitos casos, talvez se devesse escrever Estados Unidos) para com a Rússia varia entre

condescendência, na melhor das hipóteses, e, na pior das hipóteses, a provocação aliada a um

sentimento de superioridade e impunidade face ao outro.

Pode defender-se que os Estados Unidos e a NATO se mostraram abertos à Rússia logo desde

o fim da Guerra Fria, a 8 de dezembro de 1991, com as conversações bilaterais, com as

Parcerias para a Paz, com as negociações sobre armamento nuclear, com os apoios norte-

americanos à transição democrática pós-comunismo, com os conselhos conjuntos. Contudo,

é preciso ver das coisas de um prisma mais abrangente e que viaje para além da superfície.

Estas medidas aproximavam a Rússia da NATO, sim, mas não faziam do país um par das

democracias do ocidente, faziam-na par de países como a Ucrânia ou a Bielorrúsia, países

que antes haviam estado sob o jugo de Moscovo e que agora se encontravam lado a lado

perante a comunidade internacional. A Rússia era mantida no “átrio do edifício”, mas era-

lhe vedada a entrada.

Durante a Guerra Fria, Washington e Moscovo soviética enfrentavam-se, apesar das

assimetrias estratégicas, em pé de relativa igualdade: dois blocos representativos de duas

formas de ver o mundo que se apresentavam como incompatíveis uma face à outra; dois

blocos que viam as ideologias que personificavam como os verdadeiros e únicos modelos de

ordenamento internacional capazes de garantir a paz entre as nações e a participação de todos

na vida internacional. Com a dissolução do bloco soviético, Washington assume, ou melhor,

consolida uma posição de liderança legitimada pelas instituições multilaterais internacionais

que atravessaram a Guerra Fria e surgem na viragem do milénio como os bastiões da ordem

internacional. Do outro lado do que em tempos fora a “cortina de ferro”, o governo de uma

nova Rússia nacionalista, que tenta fechar o capítulo soviético e estalinista da sua História e

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virar a página, anseia por conquistar uma posição de relevo no sistema internacional, à

semelhança da posição ocupada pela antecessora URSS. No entanto, a braços com uma

transição democrática pós-comunista, sem precedentes ou exemplos passados a servirem de

Norte, marcada por avanços e recuos, com a formulação de uma nova arquitetura económica

mais aberta aos mercados e investimentos estrangeiros e à iniciativa privada, com a

institucionalização de liberdades individuais e políticas antes fortemente reprimidas e

condenadas, a Rússia de Boris Iéltsin queria sentar-se “à mesa dos grandes”, de fazer parte

das grandes decisões e ações empreendidas pelas grandes potências ocidentais e ser vista

como um par, ser reconhecida como o legítimo herdeiro da União Soviética em todos aspetos.

Contudo, os espíritos da corrupção e da opacidade política que caracterizavam o aparelho

comunista soviético continuam a assombrar Moscovo, mesmo depois da dissolução da

URSS; a transição do modelo de centralização económica para um mais aberto e flexível cria

sérias fissuras na capacidade de subsistência da nova Rússia e torna o processo de

transformação mais turbulento.

Em súmula, o final pacífico e diplomático da Guerra Fria não fez, per se, quaisquer vitoriosos

ou quaisquer vencidos. Contudo, as circunstâncias que advieram da conclusão do conflito

bipolar permitiram criar um quadro de condições que fizeram dos Estados Unidos uma

superpotência de aspirações e projeção à escala global, e da Rússia uma potência de segundo

nível e ressentida dessa posição, à margem das grandes instituições internacionais

multilaterais que definem a ordem internacional liberal do mundo do pós-Guerra Fria.

O alargamento da NATO para Leste, designadamente a integração da Polónia, da Hungria e

da República Checa (todos membros do antigo Pacto de Varsóvia) em 1999, manteve-se,

durante toda a presidência de Bill Clinton, como um fator de crispação nas relações entre os

Estados Unidos e a Rússia.

Os Estados Unidos faziam depender a segurança e defesa da Europa da presença da NATO

e, por associação, da presença militar norte-americana no continente. William G. Hyland,

que serviu no conselho de segurança nacional do presidente Gerald Ford e especialista em

questões relacionadas com a Rússia, afirma (Hyland, 1999, 94) que os países que emergiram

da dissolução da União Soviética não confiavam que a Rússia respeitasse a sua autonomia e

independência e viam na integração na NATO um escudo contra eventuais incursões vindas

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de Moscovo.

Hyland explica que os Estados-Membros da União Europeia mais a ocidente não estavam

dispostos a abrir a organização aos novos países de Leste, o que fazia da NATO o único

quadro institucional de integração e desenvolvimento das novas democracias. Neste sentido,

o autor critica a insistência da Administração Clinton em aplicar o programa das Parcerias

para a Paz, que acusa de ser um “limbo”: os países não estavam nem fora nem dentro da

NATO e não existia qualquer previsão para uma total integração na organização, o que

causava grande ansiedade aos aspirantes a membros efetivos.

Vale a pena relembrar que Clinton não fazia quaisquer tenções de construir um novo muro

na Europa, arrastando-o de Berlim para as portas da Rússia, podendo, em reação de Moscovo

e das elites políticas e nacionalistas, colocar em risco as reformas que eram empreendidas

pelo governo de Iéltsin. O ruir do processo de transição democrática não estava nos planos

de Washington, que queria, pelo contrário, o sucesso da transformação, de forma a

estabelecer uma relação de bases comuns com a nova Rússia, uma na qual os Estados Unidos

pudessem saber com o que contar, em vez de estarem constantemente a meditar sobre as

intenções do outro lado.

Segundo Hyland, foi Strobe Talbott, que trabalhou na Secretaria de Estado de Warren

Christopher e era especialista nas relações entre os Estados Unidos e os novos Estados

independentes de Leste, quem esteve por detrás desta abordagem de não provocação da

Rússia, com o desenho de uma nova divisão na Europa. A admissão da Polónia, da Hungria

e da República Checa poderia fazer isso mesmo. Aos olhos de Moscovo, a integração destes

países, antigos aliados próximos do antigo governo comunista soviético, enquanto membros

efetivos poderias ser considerada um ato de provocação e fazer cair por terra o processo

transformacional da Rússia e ainda ter repercussões ao nível das novas democracias nas

imediações do país, que detinha capacidades nucleares e via a NATO como uma ameaça aos

seus interesses e até à sua sobrevivência.

Ao contrário de Anthony Lake, Talbott era uma das vozes dentro da administração norte-

americana que rejeitava a expansão imediata da Aliança Atlântica, argumentando que se os

Estados Unidos levassem avante o plano de expansão da NATO arriscavam um confronto

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com a Rússia. Por isso, as Parcerias para a Paz surgem como um estágio intermédio, entre a

exclusão e a integração, permitindo aos países do antigo espaço soviético uma aproximação

ao ocidente, onde procuravam garantias de segurança e estabilidade, adiando, assim, para

futuro incerto a expansão da Aliança Atlântica e, quem sabe, a fúria de Moscovo.

Considerando a postura relativamente favorável da Rússia sobre as Parcerias para a Paz –

programa a que se juntou em 1994 – Hyland defende que os Estados Unidos deveriam ter

insistido com a expansão propriamente dita, «em vez de arrastar o assunto com o estranho

caso das PfP» (Hyland, 1999, 98). Facto era, contudo, que as Parcerias para a Paz permitiam

aos Estados Unidos aliciar para a comunidade das democracias ocidentais países que antes

eram aliados próximos da Moscovo soviética, fechar o hiato entre a esfera da democracia e

o antigo espaço soviético, deixar claro que a expansão da NATO estava em cima da mesa e

não sairia de lá, mesmo perante as ansiedades de Iéltsin, que receava que a aproximação da

NATO das fronteiras da Rússia energizasse a oposição e colocasse em risco a sua posição.

Mas há que aceitar que o prolongamento do estatuto de “Parceiros para Paz” lançava algumas

suspeitas e reticências acerca do vigor do compromisso dos Estados Unidos para com o

reforço da Aliança Atlântica com a admissão de novos membros. Além disso, a hesitação em

admitir imediatamente a Polónia, a República Checa e a Hungria era vista por alguns como

uma forma clara de não antagonizar a Rússia e de, de alguma forma, respeitar os pedidos de

adiamento feitos a Clinton por Iéltsin (Ibid.).

Apesar da versão oficial da Administração Clinton ser uma que indica que a Rússia se

posicionou favoravelmente face às Parcerias para a Paz e a integração de antigos aliados de

Moscovo na comunidade das nações democráticas do ocidente, a verdade é que Boris Iéltsin

sentiu esta tentativa velada de expansão para Leste como reacender das chamas de velhas

inimizades. O presidente russo receava que o alargamento da NATO, através das PfP ou de

integração efetiva, podia isolar a Rússia e fazer descer sobre a Europa uma “paz fria”,

acrescentando que «É uma ilusão perigosa supor que os destinos de continentes e da

comunidade mundial em geral podem, de alguma forma, ser geridos a partir de uma única

capital» (Williams, 1994).

Na visão de Bill Clinton, a era do pós-Guerra Fria seria pautada pelo aumento do número de

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países sob regimes democráticos. Contudo, Clinton parecia alienado do facto de a História,

tal como a experiência, eram instrumentais na construção de Estados democráticos. Os

Estados Unidos queriam enraizar os princípios que norteiam a ordem internacional liberal

saída do conflito bipolar, ignorando que a democracia nunca havia encontrado expressão na

Rússia, que as liberdades que as nações do ocidente quase que tomavam por garantidas eram

não mais do que princípios estranhos e muita vezes contraditórios daquilo que havia sido a

experiência do país e das suas elites governantes, quase que geneticamente codificados para

recearem estes novos valores que lhes chegavam do Oeste. E valores que não mais eram do

que a expressão planetária e ilimitada de um rival de décadas. Ora, colocado este cenário,

não seria surpreendente que as reformas políticas e económicas apoiadas por Washington

fossem recebidas em Moscovo com ceticismo e até rancor – talvez não tanto pelo Kremlin,

mas pelas reminiscências da classe burocrática que havia dominado no centro soviético.

Em retrospetiva, não deixa de ser evidente a ambiguidade dos Estados Unidos relativamente

à real integração da Rússia na vida internacional, não apenas na esfera regional euro-asiática.

Os Estados Unidos queriam uma Rússia democrática, que se regesse pelos mesmos princípios

que os seus aliados, que fosse integrada nas instituições internacionais multilaterais que

constrangessem os seus lampejos expansionistas e muito possivelmente saudosos do império

de outrora, que fosse mais previsível e facilmente antecipável. Uma Rússia democrática

confirmava a irresistibilidade dos valores e princípios ocidentais e sublinhava o caráter

ilimitado do alcance dos Estados Unidos. Era aqui que residia o real interesse dos Estados

Unidos na transição democrática pós-comunista da Rússia. Mas a relutância da

Administração Clinton em executar esse desígnio pode ter estado na origem dos avanços e

recuos da democratização da Rússia. Ao hesitar em fazer da Rússia um verdadeiro parceiro

regional, para não falar de um parceiro à escala global, Washington retirava vigor à marcha

democrática do antigo adversário, deixava o presidente Boris Iéltsin numa posição

comprometedora face à oposição nacionalista que ganhava cada vez mais força no país e

abria mão de uma cooperação que podia não só reforçar a Aliança Atlântica – e aqui não

entro na discussão acerca da viabilidade de uma NATO com a Rússia como membro efetivo,

embora a Polónia, a República Checa e a Hungria tenham sido admitidos e a aliança

permaneceu – mas também fazer chegar a democracia às portas da China e da Coreia do

Norte. «O alargamento da NATO seria provavelmente o feito geopolítico mais significativo

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de Clinton. Não obstante, construir a segurança europeia sem, ou contra, a Rússia não

resultou em quatro séculos» (Hyland, 1999, 106).

A expansão da NATO para Leste foi um processo que deveria ter sido, desde o primeiro

instante, acompanhado de perto por e participado pela Rússia. As diferenças entre estes dois

blocos eram ainda bastante grandes e profundas demais para serem negligenciáveis no

processo de aproximação entre ocidente e Rússia, isso é irrefutável. Mas a transformação

democrática russa tinha o potencial para fazer do país um parceiro indispensável em matérias

de segurança e integração europeias.

Mas o processo de expansão da Aliança Atlântica foi conduzido como uma operação

provocatória da Rússia, que foi sempre deixada à margem dos processos de tomada de

decisão que realmente teriam impacto na Europa de Leste e no espaço pós-soviético. Não

podemos ser, tal como a administração norte-americana o não foi, naïfs ao ponto de achar

que a marcha da NATO para Leste não iria suscitar oposição por parte de Moscovo. Os

Estados Unidos estavam cientes disso, mas decidiram – tal como foi dito por vários membros

do governo – avançar com o processo de alargamento independentemente das reclamações

da Rússia, pois os Estados Unidos, com o final da Guerra Fria, beneficiavam de um

sentimento de virtual omnipotência e omnipresença, e não consideravam estar de modo

algum constrangidos pela Rússia, apesar do país ser uma potência nuclear.

A expansão da NATO foi amplamente debatida nos derradeiros anos do milénio passado.

Naturalmente, soavam vozes contra e vozes a favor da expansão (Reiter, 2001). Do lado a

favor, era defendido que a admissão de novos membros, designadamente de países do antigo

espaço de influência soviética e comunista, iria trazer maior estabilidade ao leste europeu,

pois dissuadiria a Rússia de atentar contra a integridade territorial e autonomia política dos

seus antigos satélites; que a probabilidade da existência de conflitos entre membros da NATO

era reduzida, considerando que os países integrantes respeitavam as mesmas regras; e que o

alargamento da NATO iria difundir os princípios democráticos e reduzir a probabilidade da

eclosão de conflitos na Europa de Leste, tendo em conta que é improvável que as democracias

travem guerras entre si. Do lado oposto, os que defendiam que a NATO não deveria admitir

novos membros vindos de Leste argumentavam que a expansão da Aliança Atlântica poderia

colocar em risco as relações entre a Rússia e o Ocidente, inviabilizar a cooperação com a

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Rússia em matérias críticas como o combate à proliferação nuclear e a gestão de conflitos

nos Balcãs, e fazer recuar a Rússia para uma posição de auto-defesa perante a perceção da

expansão como um ato de agressão e fazê-la mergulhar no ultranacionalismo.

Dan Reiter argumenta que a expansão da NATO sob a premissa da difusão da democracia

não foi ainda devidamente analisada e que é preciso perceber se realmente a expansão da

NATO e a difusão dos princípios democráticos sobre os quais foi construída a ordem

internacional liberal podem, ou não, ser duas faces de uma mesma moeda. O autor posiciona-

se do lado dos críticos do alargamento da NATO para a Europa de Leste enquanto elemento

fundamental e condição sine qua non para a promoção da democratização dos novos Estados

e para a estabilidade regional. Reiter afirma que a integração da Polónia, da Hungria e da

República Checa na NATO não teve qualquer impacto na democracia nestes países e que os

aliados deveriam, isso sim, focar os seus esforços em apoiar a União Europeia como

promotora da democracia, «uma abordagem com maior probabilidade de fomentar a

democratização e menos probabilidade de alienar a Rússia» (Reiter, 2001, 42).

Ademais, Reiter crê que, depois da Guerra Fria, a Rússia não demonstrou quaisquer intenções

de reconstruir o velho império soviético, embora tenham existido algumas vozes

ultranacionalistas que expressaram esse desejo. O autor afirma que a Rússia não deu sinais

de agressão contra países que se tenham candidatado a lugar de membro efetivo da Aliança

Atlântica, acrescentando que as ofensivas militares e as ameaças da Rússia foram dirigidas a

países ou regiões fora da NATO, como a Ucrânia, a Chechénia ou o Kosovo. No entanto,

esta afirmação parece não coadunar-se com a tese que o mesmo Reiter defende de que o

alargamento da NATO enquanto meio de dissuasão de possíveis agressões russas é uma

vantagem «dúbia» (Reiter, 2001, 46). Não obstante, a essência do argumento de Reiter

mantém-se firme, de que apesar dos receios iniciais, a democracia na Rússia conseguiu

aguentar-se, talvez não com tanta força e solidez como as democracias ocidentais, mas

impediu a ascensão ao poder de nacionalismos extremistas que teriam feito da Rússia um

verdadeiro inimigo dos Estados Unidos e o ocidente. Ainda, uma tentativa de restauração do

império soviético seria algo impensável para no momento de transição da Rússia para a

democracia, tendo em conta que a descentralização da economia e as políticas de

liberalização tinham deixado o país num estado de vulnerabilidade que tornava inexequível

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a recuperação de território além fronteiras internacionais.

Complementarmente, a expansão da NATO para Leste não era sinónimo de difusão e

enraizamento da democracia na Europa oriental. Apesar de ser um Estado democrático ser

pré-requisito obrigatório para integrar a NATO – algo que, deve recordar-se, só passou a

acontecer a partir de 1995 –, nada garantia a impossibilidade de retrocesso ou conversão em

autocracia nem tão pouco a expulsão do país da aliança caso essa transformação ocorresse,

tal como aconteceu com Portugal ou a Turquia.

Dito isto, o alargamento da NATO, ao contrário do que defendiam os membros do governo

de Clinton, poderia ter provocado mais danos do que remendos, sendo que poderá provocar

a agressão por parte de Moscovo a uma percecionada ameaça existencial e inviabilizar as

relações de cooperação entre o ocidente e a Rússia, em questões como o combate à

proliferação de armamento nuclear.

A NATO, sob orientação dos Estados Unidos, optou por integrar apenas três novos membros

na aliança em 1999, na primeira fase de alargamento da NATO no pós-Guerra Fria. É também

preciso notar que a escolha dos países a integrar na aliança dependeu não apenas de fatores-

chave, como a construção de instituições democráticas, a liberalização política e económica,

o primado da Lei e o respeito pelos direitos humanos. Nesta escolha pesaram bastante

questões geopolíticas, considerando que os Estados Unidos não queriam cair no erro de

instigar uma reação beligerante da Rússia com o processo de expansão da NATO, embora

quisessem marcar uma posição de superioridade face ao antigo adversário da Guerra Fria.

Por isso, é que, por exemplo, os países bálticos não passaram a integrar a Aliança Atlântica

logo em 1999, juntamente com a Polónia, a Hungria e a República Checa. O receio de

provocar a Rússia pesou mais do que o fator democrático, o que desvirtua um pouco o

objetivo da expansão da NATO como meio de difundir a democracia e aumentar o número

de Estados democráticos no mundo (Reiter, 2001, 66). «É provável que a UE [União

Europeia] seja igualmente, senão mesmo mais, eficaz do que a NATO na democratização da

Europa de Leste, sem os custos ou os riscos geopolíticos associados ao alargamento da

aliança», explica Dan Reiter (Reiter, 2001, 67).

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A questão nuclear: cooperação entre Estados Unidos e Rússia pela não-proliferação

Na relação pós-Guerra Fria entre os Estados Unidos e a Rússia, a questão do armamento

nuclear é de extrema importância e influência, designadamente no concernente à redução

quantitativa destas armas pelo mundo fora, à centralização em países com estruturas de

controlo minimamente robustas e relativamente verificáveis e ao combate para impedir que

estes engenhos destruição massiva cheguem às mãos de organizações terroristas e de redes

criminosas.

Nos anos que imediatamente seguiram o final da Guerra Fria em 1991, os Estados Unidos,

consideravam a redução dos arsenais nucleares dos dois antigos polos conflituantes da Guerra

Fria uma das grandes prioridades da política externa norte-americana no mundo pós-

soviético. A Administração Clinton acreditava que «As iniciativas de controlo de armas e de

não-proliferação são um elemento essencial da nossa estratégia de segurança nacional para

aumentar a segurança em casa e além-fronteiras» (The White House, 2000).

As negociações entre Washington e Moscovo para a redução de armas nucleares começaram

mesmo antes das duas grandes potências terem conhecido o fim do conflito bipolar. Em 1963,

os Estados Unidos e a União Soviética, juntamente com o Reino Unido, já haviam chegado

a um acordo relativamente à proibição de teste nucleares na atmosfera, no Espaço e debaixo

de água, convergindo também na necessidade de estabelecer restrições para os testes

nucleares subterrâneos. Destes consensos saiu o Limited Test Ban Treaty, que também previa

que Washington e Moscovo estabelecessem uma linha de comunicação direta entre si para

evitarem conflitos acidentais resultantes de testes. Cinco anos depois, em 1965, é assinado o

Tratado de Não-Proliferação (TNP), que uma vez mais junta Moscovo e Washington, bem

como a França, o Reino Unido e a China, aos quais é atribuído o estatuto de Estados nucleares,

sendo vedada a possibilidade de outros possíveis signatários adquirirem capacidades

nucleares. Com o começar da nova década e com a détente entre Estados Unidos e União

Soviética, surge os acordos SALT – Strategic Arms Limitation Treaty – dois acordos entre

Estados Unidos e União Soviética que tem como propósito reduzir os arsenais estratégicos

dos dois países. No entanto, as negociações no âmbito dos SALT não revelaram ser muito

eficazes, pois o presidente norte-americano Jimmy Carter inviabilizou a ratificação do SALT

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II como retaliação pelo papel desempenhado pela URSS na guerra do Afeganistão, que opôs

os afegãos apoiados por Moscovo aos mujahideen apoiados por Washington.

Com a queda dos SALT, chegam o primeiro START – Strategic Arms Reduction Treaty,

apresentado pelo presidente norte-americano Ronald Reagan em junho de 1982. Os Estados

Unidos pretendem reduzir os seus stocks de ogivas nucleares para 6.000 e para 1.600 os

mísseis de entrega.

Na cimeira de Reiquiavique, em outubro de 1986, os presidentes Reagan e Mikhail

Gorbachev chegam quase a um acordo para eliminar as suas capacidades nucleares ofensivas

num espaço de 10 anos, mas os dois líderes não conseguem chegar a um consenso sobre as

limitações que deviam ser aplicadas ao desenvolvimento e teste de sistemas antimísseis.

É no dia 8 de dezembro de 1987, por fim, que os Estados Unidos e a União Soviética

conseguem alcançar um acordo no que diz respeito à efetiva redução de armamento nuclear.

Assim, Reagan e Gorbachev assinam o Tratado sobre Forças Nucleares de Médio Alcance,

que estipula a eliminação de mísseis nucleares terra-terra de médio alcance, o que abrange

os norte-americanos Pershing II e os soviéticos SS-20. O acordo estabelece ainda medidas

de verificação do cumprimento dos termos acordados.

O START I é assinado em julho de 1991 pelo presidente George H. W. Bush e por Gorbachev,

estando estipulada a sua entrada em vigor no dia 5 de dezembro de 1994.

À luz dos novos compromissos assumidos em matéria de redução de armamento e de não-

proliferação nuclear, o Senado norte-americano aprova a lei Nunn-Lugar, em 1991, que prevê

a criação de um programa de Redução Cooperativa de Ameaças e a atribuição de apoio

financeiro e técnico aos antigos países soviéticos, de forma a que estes possam, da forma

mais segura e eficaz, gerirem e desmantelarem os seus arsenais nucleares, herdados da URSS.

A cooperação bilateral entre Estados Unidos e Rússia continua a desenvolver-se e a

fortalecer-se ao longo da última década do milénio. Em maio de 1992, a Ucrânia, a

Bielorrússia e o Cazaquistão assinam o Protocolo de Lisboa, passando a fazer parte do

START I e comprometendo-se a destruir as armas nucleares que detêm nos seus territórios

ou a entregá-las à Rússia.

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Em janeiro de 1993, as negociações entre Washington e Moscovo sobre redução de

armamento nuclear dão mais um passo em frente, com os dois antigos adversários da Guerra

Fria a assinarem o START II, que previa a redução dos respetivos arsenais para entre 3.000

a 3.500 ogivas. O START II foi ratificado pelo Senado norte-americano em janeiro de 1996

e pela Rússia em abril de 2000, mas nunca entrou em vigor, pois em 2002 a Rússia retirava-

se do acordo como medida retaliatória contra a saída dos Estados Unidos, em junho e pela

mão de George W. Bush, do acordo sobre Mísseis Anti-Balísticos.

Em janeiro de 1995, o Secretário de Estado Christopher afirma que a Administração Clinton

está empenhada para com a «extensão indefinida e incondicional do Tratado de Não-

Proliferação», que caracteriza como «um dos mais importantes tratados de todos os tempos»

(Christopher, 1995, 84).

Na cimeira de Helsínquia, em março de 1997, Clinton e Iéltsin concordam com as linhas

gerais do START III, reduzindo para 2.000 o número de ogivas nucleares estratégicas

operacionais, o que equivaleria a um corte de 80% dos arsenais da Rússia e dos Estado

Unidos, comparativamente aos máximos atingidos durante a Guerra Fria.

Na Estratégia de Segurança Nacional de 2000, a Administração Clinton afirma que, para

garantir que estas reduções não seriam revertidas, o START III preveria mecanismo de

transparência dos inventários de armas nucleares de ambas as partes e a eliminação desses

mesmos armamentos. Do encontro saiu também um entendimento entre os presidentes

Clinton e Iéltsin acerca da necessidade de se operacionalizarem medidas de transparência e

de criação de fortalecimento de confiança entre os dois países no que diz respeito a mísseis

de cruzeiro nucleares de longo alcance lançados por mar e a sistemas nucleares táticos.

A Administração Clinton vem dar continuidade aos esforços empreendidos pelo governo

anterior de George H. W. Bush no que diz respeito às negociações com a Rússia para a

redução dos arsenais nucleares dos dois países e à desnuclearização da Ucrânia, aspecto que

se afigura como fundamental na definição dos novos estatuto e identidade da Rússia no

sistema internacional pós-Guerra Fria.

Dados do Natural Resources Defense Council, utilizados num relatório (Woolf, 2018)

endereçado aos membros do Congresso norte-americano e realizado pelo Congressional

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Research Service, demonstram que entre 1960 e finais da década de 1980, o número de ogivas

nucleares dos Estados Unidos foi aumentando gradualmente, com algumas quedas pontuais

que rapidamente eram corrigidas. Os autores do relatório afirmam que durante os anos 90 do

século XX, a evolução do arsenal dos Estados Unidos tomou o sentido inverso e foi

diminuindo, resultado de processos de modernização de equipamentos e das limitações

impostas pelo START I.

A diminuição do e gastos com o arsenal nuclear dos Estados Unidos no pós-Guerra Fria acaba

por não ser uma grande surpresa, considerando que Bill Clinton queria, talvez mais do que

qualquer outra coisa, revitalizar a economia norte-americana – o que passava também pela

contenção de despesas em iniciativas supérfluas – e reduzir a taxa de desemprego.

O corte nas despesas da Defesa num período de acalmia internacional em que a perceção da

grande ameaça das últimas décadas havia desaparecido era algo lógico, ainda para mais

quando a cooperação nuclear com a Rússia e a demonstração do sentido de compromisso

norte-americano para com a redução quantitativa dos armamentos nucleares e pela promoção

da não-proliferação eram elementos-chave da recuperação de relações de parceria e amizade

ente dois antigos adversários.

Hans Kristensen, diretor do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas

Americanos, avança que Clinton conseguiu reduzir o arsenal nuclear dos Estados Unidos em

cerca de 23% durante os 8 anos em que ocupou a Sala Oval da Casa Branca (Kiely, 2016).

Os cortes nos arsenais nucleares podem ser vistos como a demonstração do

comprometimento da administração norte-americana para com o combate à não-proliferação

e para com a redução do número de ogivas nucleares operacionais. Mas esses cortes também

podem ser entendidos como uma tentativa de Washington para mostrar a Moscovo que a

Guerra Fria terminou, que já não são precisos dissuasores nucleares como os do último meio

século e que os dois países podiam recuperar relações cordiais de parceria e cooperação,

agora que o modelo relacional diádico de interação conflituante tinha terminado com a

dissolução da União Soviética. Os esforços empreendidos pelos Estados Unidos para redução

de armas nucleares podem ser encarados como o hastear de um bandeira da paz, de cessação

de hostilidades. Devemos também perceber que esta intenção de redefinição identitária – de

adversários para parceiros – era acompanhada de um interesse norte-americano em reduzir

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as despesas com a área da Defesa, visto que, existindo, até aos dias de hoje, alguma

desconfiança residual entre os dois países, se a Rússia acordasse em reduzir o seu arsenal

nuclear, também os Estados Unidos poderiam estar dispostos a fazê-lo, sem se sentirem

ameaçados ou vulneráveis por abdicar de parte da sua força estratégica. Poderíamos chamar

a este processo de “caminhada para o desarmamento”, num paralelismo com a “corrida ao

desarmamento”, considerando que o processo inverso da aquisição de armas é mais moroso.

A 12 de dezembro de 1991, ainda Governador do estado norte-americano do Arkansas mas

já na corrida para se tornar o quadragésimo segundo Presidente dos Estados Unidos da

América, Bill Clinton declarava, na Universidade de Georgetown, que eram precisos cortes

no orçamento da Defesa, «porque a ameaça soviética está a diminuir e os nossos aliados têm

capacidade para, e devem suportar mais os encargos com a defesa» (Clinton, 1992). O futuro

presidente dos Estados Unidos acreditava que durante a Guerra Fria era amplamente

consensual que o país precisava de uma força nuclear robusta para dissuadir eventuais

ofensivas por parte de Moscovo soviética, mas a dissolução do bloco comunista de Leste fez

dissipar, pelo menos em parte, essas necessidades.

A negociação nuclear trilateral: Estados Unidos, Rússia e Ucrânia

Um outro aspecto de inegável importância na cooperação nuclear entre Estados Unidos e

Rússia prende-se com os armamento nucleares da Ucrânia. Carlos Gaspar aponta a questão

nuclear ucraniana como uma primeira crise da política externa da Rússia pós-soviética. O

autor aponta os Estados Unidos como «o parceiro indispensável» (Gaspar, 2016, 267) da

Rússia no que toca à garantia da integração do país nas instituições internacionais na

qualidade de legítimo herdeiro do estatuto institucional, das responsabilidades e

prerrogativas nucleares e dos compromissos assumidos pela União Soviética.

Para a Rússia é crucial assegurar a sua predominância nuclear no espaço pós-soviético, o que

implica impedir que a Ucrânia se possa afirmar como segunda potência nuclear na região.

Para esse fim, a cooperação entre Moscovo e Washington é a pedra-angular do processo de

concentração dos arsenais nucleares na Rússia.

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A situação propicia-se no dia 30 de dezembro de 1991, dias após dos presidentes eleitos da

Rússia, da Bielorrússia e da Ucrânia terem assinado um acordo tripartido de dissolução

definitiva da URSS. Nesse dia, a Ucrânia declara a sua intenção de criar as suas próprias

forças militares, o que diverge do compromisso que Kiev tinha assumido para com a

Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e o comando militar centralizado subjacente

a esta estrutura.

A Rússia não vê com bons olhos a decisão da Ucrânia, que detém o segundo maior arsenal

nuclear, e as centrais de produção, do espaço pós-soviético, atrás da Rússia. A manobra de

Kiev é compreensível, considerando que durante décadas esteve sob o jugo de Moscovo

soviética e que agora, com a dissolução do bloco comunista de Leste, receava que a Rússia

atentasse contra a sua integridade territorial e autonomia política, preferindo conservar na

sua posse os arsenais nucleares que atuariam como dissuasor. Será fácil perceber que, do

outro lado do oceano Atlântico, Washington não gostaria particularmente de ter que lidar

com a dispersão dos arsenais da União Soviética pela Europa de Leste, nem de ter de gerir

duas ou mais potenciais ameaças nucleares à segurança e aos interesses norte-americanos na

região.

Para prevenir o cenário de uma Europa de Leste nuclearmente multicéfala, os Estados Unidos

e a Rússia juntaram-se para criar o Protocolo de Lisboa, que integrava a Ucrânia, a

Bielorrússia e o Cazaquistão no START I. As três antigas repúblicas soviéticas juntaram-se

também ao Tratado de Não-Proliferação com o estatuto de Estados não-nucleares.

O processo de transferência das armas nucleares estacionadas nos territórios da Ucrânia, da

Bielorrússia e do Cazaquistão arranca logo após a assinatura do acordo tripartido que pôs fim

à União Soviética. Porém, a Ucrânia demonstra uma significativa e evidente relutância em

entregar à Rússia o armamento nuclear estacionado no seu território, pois considera ser a sua

única defesa contra a ingerência russa e a violação das suas fronteiras.

O governo de Kiev teme que ao abrir mão do seu poderio nuclear – é de sublinhar que na

Ucrânia concentra-se grande parte do arsenal nuclear da antiga URSS e grande parte da

centrais de produção destes armamentos – a sua integridade territorial e a sua independência

política ficarão ameaçadas por Moscovo. Como tal, a Ucrânia hesita em passar para as mãos

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da Rússia as armas nucleares soviéticas que detém e a Rússia receia, caso a posição do país

vizinho se mantenha, que a Ucrânia se torne a terceira maior potência nuclear do mundo e

inviabilize a primazia regional da Rússia no espaço pós-soviético.

Como tal, para Moscovo, Washington afigura-se como um parceira indispensável para tornar

possível a desnuclearização da Ucrânia, que exige que a potência norte-americana garanta

cabalmente a inviolabilidade das fronteiras do país e a não-agressão por parte de Moscovo.

Este impasse é ultrapassado em 1994, quando Clinton, Iéltsin e o presidente ucraniano Leonid

Kravchuk assinam uma declaração tripartida na qual asseguram as exigências de Kiev para

que possa ser completado o processo de transferência das armas nucleares para a Rússia. A

Ucrânia passa finalmente a integrar o Tratado de Não-Proliferação em outubro desse ano.

Neste conjunto de circunstâncias, em abril de 1993, o parlamento ucraniano decide prorrogar

a ratificação dos acordos de Lisboa, bem como a integração da Ucrânia no Tratado de Não-

Proliferação. A resistência de Kiev ameaça colocar em risco a estabilidade e a segurança

regionais, tal como põe em xeque o alcance do estatuto da Rússia enquanto única potência

nuclear no espaço pós-soviético. Além disso, confronta os Estados Unidos com a

possibilidade de ter de lidar com dois Estados nucleares na Europa de Leste, ao invés de um

só, a Rússia.

A postura da Ucrânia consegue trazer Iéltsin para a mesa das negociações com o homólogo

ucraniano, Leonid Kravchuk. Em setembro de 1993, no âmbito de uma cimeira entre a Rússia

e a Ucrânia em Massandra, na Crimeia, os dois Chefes de Estado negoceiam bilateralmente,

entre outras coisas, as exigências de Kiev para garantir a segurança, integridade territorial e

autonomia política da antiga república socialista soviética (Gaspar, 2016, 269). Mas os dois

países não conseguiram chegar a um entendimento concreto e exequível.

Para os Estados Unidos, a questão nuclear ucraniana é de extrema importância, acima de tudo

para garantir que a dissolução da União Soviética não seja acompanhada pela multiplicação

dos número de países que possuem armas nucleares.

Para Bill Clinton, a desnuclearização da Ucrânia era uma das prioridades da política externa

norte-americana para a antiga região ocupada pela URSS. Após a dissolução do bloco

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comunista soviético, o governo ucraniano tinha assegurado múltiplas vezes Washington de

que o país tinha intenções de se tornar um país não-nuclear. Para esse fim, a administração

norte-americana, ainda sob a liderança de George H. W. Bush, entre 1992 e 1993, traçou três

objetivos (Pifer, 2011) que tinham de ser alcançados para garantir a redução do armamento

nuclear no espaço pós-soviético e a transferência das capacidade nucleares da Ucrânia para

a Rússia:

1. Alargar o START I às três ex-repúblicas socialistas soviéticas com capacidades

nucleares: Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão;

2. Garantir que as reduções no âmbito do START I eliminariam as armas nucleares

estacionadas nos territórios as três repúblicas, fazendo a Rússia a única potência

nuclear na Europa de Leste;

3. Fazer com que a Ucrânia, a Bielorrússia e o Cazaquistão passem a integrar o Tratado

de Não-Proliferação.

A realização destes objetivos adquiria uma importância ainda maior quando se considera que

a Rússia só faria vigorar o START I se as três repúblicas ratificassem o acordo nos seus

respetivos órgãos legislativos nacionais e integrassem o Tratado de Não-Proliferação como

Estados não-nucleares.

«O desejo de começar a implementar a reduções do START I deu a Washington interesse

adicional na resolução rápida da questão das armas nucleares na Ucrânia» (Ibid.), escreve

Steven Pifer. O autor afirma que os Estados Unidos queriam fazer com o que START I

entrasse o mais rapidamente em vigor para que o START II, que aplicava reduções ainda

maiores nos arsenais nucleares da Rússia dos Estados Unidos, pudesse passar à fase de

ratificação.

A centralização dos arsenais nucleares das antigas repúblicas na Rússia não fazia dos planos

iniciais de Moscovo. Depois da dissolução da União Soviética, a Rússia contava gerir e

manter as armas nucleares soviética sob um comando conjunto da Comunidade de Estados

Independentes (CEI). No entanto, esta configuração organizacional do espaço pós-soviético,

que era vista como nada mais do que uma continuação da URSS mas com um nome diferente,

não durou muito tempo, pelo que a Rússia mudou os planos, passando a querer que os

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arsenais das outras três repúblicas nucleares passassem para a alçada de Moscovo.

Os acordos de transferência de armamento da Bielorrússia e do Cazaquistão para a Rússia

foram alcançados sem grande turbulência. Já as negociações com a Ucrânia revelaram-se

mais desafiadoras, algo que não deveria surpreender, dado o historial entre os dois países ao

longo dos últimos séculos, que se pautou por tudo menos por tranquilidade e paz.

Pifer considera que a demora da Rússia em delinear as suas fronteiras com a Ucrânia era vista

por muitos ucranianos como um sinal flagrante de que Moscovo não se conformava com a

independência recém-reconquistada da Ucrânia. As questões emocionais de pertença também

não facilitavam as negociações entre os dois países. Os nacionalistas russos manifestavam-

se contra a independência da Ucrânia, principalmente porque isso obrigava a Rússia a abdicar

do porto marítimo de Sevastopol na península da Crimeia (que, todos agora sabemos, será

depois recuperada pela Rússia através da força militar), que a Rússia precisava para

estacionar a sua Armada do Mar Negro, visto quer os seus portos nacionais não eram

suficientes.

Apesar de muitas vozes no parlamento russo defenderem que a Ucrânia deveria manter-se

como parte da nação russa, o governo de Iéltsin adotava uma postura mais moderada,

procurando dar resposta a algumas das inquietações expressas pelo país vizinho.

Em fevereiro de 1993, os Estados Unidos e a Rússia chegam a um acordo relativamente às

compensações financeiras devidas à Ucrânia pela passagem das suas armas nucleares para

Moscovo.

Ainda no mês anterior, mesmo depois de ter tomado posse, Bill Clinton havia telefonado ao

homólogo ucraniano para assegurar que os Estados Unidos prestariam assistência à Ucrânia

no desmantelamento das armas nucleares no seu território, aliá, um compromisso que tinha

sido já assumido por George H. W. Bush no último ano da presidência.

Enquanto se instalava, a Administração Clinton, no seus primeiros dias de governo, deixou

que a Rússia e a Ucrânia negociassem bilateralmente a transferência das armas nucleares.

Mas depois de as negociações terem chegado a um beco sem saída na primavera de 1993, os

Estados Unidos perceberam que tinham que tomar uma posição e intervir num processo cujos

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resultados eram de considerável relevância para o país.

O sentimento geral da administração norte-americana era de que a Ucrânia tinha de ser

desnuclearizada. Nesse sentido, os Estados Unidos estavam dispostos a assumir um papel de

intermediário entre a Rússia e a Ucrânia durante as negociações. Para “adoçar” as

conversações, a Administração Clinton estava disposta a atribuir assistência financeira à

Ucrânia – através do programa Nunn-Lugar – assim que os país começasse a desmantelar as

suas armas nucleares.

No começo do processo de desmantelamento das armas, o Ministro da Defesa ucraniano,

Kostyantyn Morozov, sugeriu aos Estados Unidos que a Ucrânia reteria uma parte do arsenal,

os mísseis balísticos intercontinentais SS-24. O Secretário da Defesa Les Aspin avisou o

homólogo ucraniano que isso seria bastante arriscado e que poderia afetar negativamente as

relações com a Rússia, além de que iria inviabilizar a assistência financeira dos Estados

Unidos à Ucrânia para realização do desmantelamento.

Em julho de 1993, enquanto estavam em Tóquio para uma cimeira do G-7, Clinton e Iéltsin

reúnem-se e acordam, por sugestão do presidente russo, que a presença dos Estados Unidos

no processo de desnuclearização da Ucrânia seria bastante vantajoso, pelo que deveria ser

um processo tripartido (Talbott, 2002).

Observando de perto o desenrolar das negociações bilaterais entre a Rússia e a Ucrânia, os

Estados Unidos hesitavam em envolver-se demasiado no processo, aguardando expectantes

que resultasse numa Ucrânia não-nuclear.

No entanto, o bilateralismo russo-ucraniano parecia não estar a surtir grandes efeitos, a fazer

ressurgir alguns incómodos históricos e a colocar em risco o processo de desnuclearização.

Considerando que o objetivo era reduzir ao máximo o número de Estados nucleares no antigo

espaço soviético, a Administração Clinton decidiu assumir um papel mais participativo nas

negociações, que passaram a ter partes interessadas.

Em outubro de 1993, o Secretário de Estado Warren Christopher viaja até Kiev, onde recebe

garantias do presidente Kravchuk de que a Ucrânia está empenhada na desnuclearização e no

cumprimento dos termos estipulados no Protocolo de Lisboa de 1992, que ainda não tinha

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sido ratificado pelo parlamento ucraniano, a Rada. Os representantes eleitos da população

ucraniana, na altura em que o START I e o Protocolo de Lisboa eram discutidos no

parlamento, exigiam alterações aos documentos, alterações essas que deixaram os Estados

Unidos de pé atrás. Isto porque os ucranianos queriam que, ao contrário da absoluta

desnuclerarização, a Ucrânia mantivesse 48% das ogivas nucleares e 64% dos mísseis (Pifer,

2011). Ora, estas exigências deitavam por terra o objetivo dos próprios acordos e das

negociações que estavam em curso. Contudo, Kravchuk assegura a Clinton preocupado que

o governo ucraniano continua fiel aos compromissos assumidos.

À luz das reivindicações dos elementos da Rada ucraniana, os Estados Unidos procuravam

assegurar os russos de que Kiev continuava empenhada em seguir com o processo e

desmantelamento e de transferência de armas nucleares soviéticas para a Rússia.

A 14 de janeiro de 1994, os presidentes Clinton, Iéltsin e Kravchuk assinam, em Moscovo, a

Declaração Trilateral, em que a Ucrânia se comprometia com a total desnuclearização – quer

através da desativação de armas nucleares, quer através da sua transferência para a Moscovo

– e em integrar o Tratado de não-Proliferação o mais rapidamente possível, em troca de

assistência financeira e garantias de segurança por parte dos Estados Unidos e da Rússia.

As garantias securitárias oferecidas ao governo ucraniano no âmbito da Declaração Trilateral

são reiteradas pelo Memorandum de Budapeste, assinado a 5 de dezembro de 1994 pelo trio

em conjunto com o Reino Unido. Com este documento, os signatários reconheciam e

comprometiam-se a respeitar a soberania e as fronteiras territoriais da Ucrânia (Arms Control

Association, 2017).

O processo de transferência nuclear da Ucrânia para a Rússia arrancou, ainda que não

linearmente, logo em 1992, e só se deu por concluído quatro anos depois, em junho de 1996,

quando os últimos dois comboios com ogivas nucleares chegaram à Rússia vindas de Kiev

(Pifer, 2011).

Na “questão nuclear ucraniana”, os Estados Unidos desempenharam um papel de

significativa importância para garantir que a Ucrânia abria mão do seu arsenal nuclear e

aceitasse uma solução de compromisso com a Rússia a fim de serem salvaguardadas as

garantias securitárias e políticas por parte de Washington e Moscovo, que Kiev considerava

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serem absolutamente necessárias para assegurar a sua independência e autonomia.

A atuação dos Estados Unidos passou por exercer pressão sobre o governo ucraniano para

fazer vigorar o START I e o Protocolo de Lisboa, bem como por assegurar a Rússia de que

Kiev estava empenhada no processo de desnuclearização, impedindo, desta forma, uma

possível (ainda que não muito provável) saída da Rússia das conversações trilaterais e

bilaterais.

O evidente interesse dos Estados Unidos em fazer chegar a bom porto as negociações está

radicado no objetivo de Washington querer garantir a estabilidade da Europa de Leste e dos

aliados no continente, bem como os seus interesses na região. Caso a Ucrânia tivesse

conseguido levar avante as reivindicações expressas pela Rada de manter parte do arsenal

nuclear que herdou da União Soviética e de atirar para data incerta a integração no Tratado

de Não-Proliferação, os Estados Unidos poderiam ter ficado perante uma situação de alto

risco no Leste europeu. Uma Ucrânia nuclear não permitiria à Rússia alcançar o relevo

regional pelo qual ansiava e teria de ser obrigada a partilhar o estatuto de potência nuclear

regional. Ora, aqui as questões históricas não podem ser colocadas de lado. Durante séculos

a Ucrânia viu a sua autonomia oprimida pela Rússia e, mais tarde, pela União Soviética. Seria

de esperar que a recuperação da sua independência despoletasse na Ucrânia uma postura

defensiva e a colocasse em “modo de sobrevivência”, perante uma vizinha Rússia que ainda

considerava ser uma ameaça à sua autonomia e soberania.

Por sua vez, a Rússia, descontente com o facto de a Ucrânia se ter recusado a honrar os

compromissos assumidos em matéria de desnuclearização e transferência de armamento para

Moscovo, sentir-se-ia ameaça por partilhar fronteiras com um Estado nuclear que lhe

guardava rancor histórico e relativamente ao qual muitos russos sentiam descontentamento

por acreditarem que a Ucrânia é parte integrante da Federação Russa.

Num clima de alta tensão, em que ambos os lados se percecionam mutuamente como

inimigos e ameaças existenciais, erros catastróficos podem facilmente ser cometidos, fruto

de interpretações erróneas de ações e movimentos. Para que os riscos de uma guerra nuclear

na Europa de Leste pudessem ser minimizados numa realidade em que existissem duas

potências nucleares na região, teria que existir entre a Ucrânia e a Rússia uma base partilhada

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de expectativas, interesses e valores, que norteasse as suas ações e as suas interpretações das

ações e reações do outro. Mas tal não se verificava nos anos que imediatamente seguiram o

fim da Guerra Fria, em que a confusão, a desorganização e a desconfiança grassavam no

espaço pó-soviético. A Rússia procurava conquistar o estatuto de única legítima herdeira da

União Soviética e do seu arsenal nuclear, algo que considerava ser essencial para ser

reconhecida pelas grandes nações mundiais como um par, ainda que de projeção regional. Se

a Ucrânia insistisse em manter uma força estratégica, o desejo da Rússia seria obliterado, o

que poderia desencadear uma série de conflitos e confrontos entre os dois países que

desestabilizaria toda a região da Europa de Leste, difundir-se-ia para os países do ocidente e

afetaria os interesses dos Estados Unidos.

Do ponto de vista de Washington, era essencial garantir que a Rússia era o único país dotado

de poder nuclear na Europa de Leste, considerando que seria um exercício de fantasia esperar

a total desnuclearização da zona. Até porque exigir que a Rússia abdicasse da sua força

estratégica certamente geraria sentimentos de humilhação e poderíamos ficar perante o

mesmo conjunto de circunstâncias que levaram à Segunda Guerra Mundial.

A pressão exercida pelos Estados Unidos sobre a Ucrânia foi mais do que uma mera questão

de justiça para com a Rússia. Ao defenderem que a Rússia era o único herdeiro legítimo dos

arsenais nucleares da União Soviética, os Estados Unidos estavam também – senão mais do

que qualquer outra coisa – a estender uma mão aberta à Rússia, em sinal de abertura e

cooperação, agora que Moscovo demonstrava partilhar dos valores liberais defendidos pela

comunidade das nações democráticas do Oeste.

Na Europa de Leste, a Administração Clinton priorizava as relações com a Rússia acima das

relações com qualquer outra ex-república soviética, o que era compreensível do ponto de

vista estratégico. A Rússia, mais do que a Ucrânia, tinha capacidade, se assim quisesse, para

semear o caos na região e até mesmo no continente, pelo que era a Rússia que figurava no

topo da lista de prioridades de política externa da região, e não a Ucrânia, embora alguns

membros do governo norte-americano defendam que os Estados Unidos devem desenvolver

boas relações bilaterais com a Ucrânia a fim de servir de contra-peso para a Rússia. Enfim,

esta abordagem não é propriamente infalível nem brilhante, considerando os pesos relativos

da Rússia e da Ucrânia. O fomento da democracia em ambos os países seria a abordagem

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mais eficaz, considerando que se se aumentar e cimentar a base de valores e interesses

partilhados bem como o diálogo e a cooperação entre a Ucrânia e a Rússia a probabilidade

de um conflito deflagrar entre os dois países será menor.

Devemos também ter em consideração que, paralelamente às negociações de

desnuclearização, era debatida também a expansão da NATO para Leste. Ao exercer pressão

sobre a Ucrânia para abdicar do arsenal nuclear e, por conseguinte, reconhecendo a Rússia

como a única legítima potência nuclear na região da Europa de Leste, os Estados Unidos

enviam um sinal claro à Rússia: “a Guerra Fria terminou e, com ela, também a nossa

inimizade. É tempo de sermos parceiros próximos”. Além disso, não nos esqueçamos que a

expansão da NATO para Leste deixava a Rússia bastante desconfortável, embora

Washington tenha assegurado, uma e outra vez, que o objetivo da expansão era garantir a

estabilidade e segurança europeias e não era antagonizar a Rússia. O apoio norte-americano

à transferência das armas nucleares para a Rússia procurava reiterar essa postura de

cooperação e de não-provocação. Mas, tal como em todos os processos comunicativos e

relacionais, a perceção, ainda que incorreta, das intenções do outro é essencial para o

entendimento e aceitação da mensagem. Considerando que a expansão da NATO para Leste

acabou por acontecer sem que tenha sido acompanhada de um novo conflito entre os Estados

Unidos e a Rússia, podemos inferir que o sinal dos Estados Unidos foi bem interpretado e

devidamente aceite pelo antigo adversário.

Em 1993, o teórico John Mearsheimer criticava (Mearsheimer, 1993) o presidente Bill

Clinton por insistir na desnuclearização da Ucrânia, afirmando que a Ucrânia precisa de um

dissuasor nuclear para impedir que a Rússia se apodere do território do país vizinho. Além

disso, Mearsheimer dizia ainda que a Ucrânia nunca iria transferir as suas armas nucleares

para a Rússia e que os Estados Unidos e os seus aliados nada poderiam fazer para contornar

esse facto. O tempo acabou por provar que a teoria de Mearsheimer estava errada e que se

baseava puramente em cálculos de política de poder, algo que não teve em conta o nível de

empenhamento dos Estados Unidos nem os esforços diplomáticos envidados pela

Administração Clinton, nem a vontade da Ucrânia em estreitar laços com os Estados Unidos,

e receber contrapartidas financeiras, que foi o que em última instância, levou a Kiev a aceitar

as condições do START I e do Protocolo de Lisboa.

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Para Mearsheimer, a segurança europeia seria fortalecida no momento em que todas as

grandes potências da região – incluindo a Alemanha e a Ucrânia – tivessem os seus próprios

arsenais nucleares para efeitos de dissuasão e todos os outros países fossem não-nucleares.

Um cenário que deixaria o mundo à beira da catástrofe, considerando que o risco de um

ataque e até mesmo de uma guerra nuclear acidental seria aumentado exponencialmente,

independentemente do nível de segurança dos arsenais. Acidentes acontecem e a História

está repleta de exemplos. Não era uma solução viável.

Na outra ponta da mesa está Steven Miller (Miller, 1993), que defende exatamente o oposto

de Mearsheimer: a Ucrânia deve abandonar as suas armas nucleares. O autor considera que

as armas nucleares não são necessariamente sinónimo de estabilidade e de paz, mesmo

perante argumentos que defendem que a ausência de conflito entre os Estados Unidos e a

União Soviética na Guerra Fria comprovam que a dissuasão nuclear funciona. Miller

argumenta que as condições que possibilitavam a inexistência de conflito durante a Guerra

Fria são amplamente diferentes das condições do pós-conflito bipolar e da questão nuclear

ucraniana.

Para Steven Miller, o dissuasor nuclear ucraniano nunca seria um mecanismo viável, nem

que seja pelo simples facto de que a dissuasão só funciona se os lados potencialmente

conflituantes considerarem que os adversários têm capacidade para desferir golpes de

significativa força e não têm capacidade suficiente para responder em conformidade. Ora, as

armas nucleares da Ucrânia nunca funcionariam como um dissuasor credível e eficaz, na

medida em que o impacto que teriam sobre a Rússia é bastante inferior ao impacto que a

Rússia teria sobre a população e o território ucranianos. «As armas nucleares podem ter

contribuído para a paz durante a Guerra Fria, mas isso não é garantia de que elas terão o

mesmo efeito em condições dramaticamente diferentes» (Miller, 1993, 70).

Voltemos ao envolvimento dos Estados Unidos na questão nuclear ucraniana. Existe ainda

um outro elemento que deve ser tido em consideração na análise das motivações norte-

americanas. O alargamento da NATO – ou as expectativas de expansão, na altura em que o

processo de desnuclearização estava em desenvolvimento – arrastaria as fronteiras da

organização para a Polónia, a Hungria e a República Checa, três países muito próximos da

Ucrânia, principalmente no caso da Polónia, visto que partilham fronteiras.

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Se a Ucrânia tivesse conseguido, tal como era vontade de muitos no país e fora dele, manter

uma força nuclear estratégica, a NATO passaria a fazer fronteira com um Estado nuclear que

não fazia parte da aliança e que, do outro lado, partilhava fronteiras com a Rússia. Este

cenário seria pautado por uma grande instabilidade e uma enorme tensão na região e colocaria

a Ucrânia numa posição ainda mais precária do que se não possuísse quaisquer armas

nucleares, “entalada” entre a Rússia e a NATO.

Considerando as afinidades culturais, linguísticas e históricas entre a Ucrânia e a Rússia, a

possibilidade de Moscovo tentar recuperar o que muitos consideram ser um território

legitimamente russo podia ter consequências drásticas no contexto de uma Ucrânia não

nuclear. Com uma Ucrânia nuclear, a possibilidade de um evento de proporções dantescas

ficaria à distância de um braço. Em resposta a uma invasão e tentativa de anexação, o governo

de Kiev talvez se sentisse inclinado em pressionar o proverbial “botão nuclear”,

desencadeando um série de eventos que levariam ao desastre à escala planetária.

Por isso, a intervenção dos Estados Unidos e dos aliados foi fundamental para evitar os

cenários acima descritos, que são apenas alguns entre muitos que poderiam ser imaginados,

mas não menos possíveis com a combinação certa de fatores. Imagine-se uma anexação da

península da Crimeia pela Rússia no contexto de uma Ucrânia nuclear.

Apesar de John Mearsheimer acusar Bill Clinton de seguir uma política errada face à questão

da desnuclearização da Ucrânia, facto é que a concertação diplomática e os contactos ao mais

alto nível entre os Estados Unidos, a Rússia e a Ucrânia tornaram possível o resultado obtido.

A resistência da Ucrânia em manter armar nucleares teria sido drástica, a saída de Moscovo

do processo negocial não teria sido melhor. Mas a atuação dos Estados Unidos foi

instrumental para manter a coesão do trio negocial e para se conseguir alcançar o acordo

desejado, pelo menos, por duas das partes envolvidas.

Podemos também sugerir que os Estados Unidos tinham todo o interesse em fazer avançar a

causa da Rússia no caso da desnuclearização ucraniana, considerando que uma Rússia

satisfeita com os resultados do processo de transferência de armas nucleares e, por

conseguinte, com a confirmação do seu estatuto enquanto única potência nuclear na região

da Europa de Leste, poderia sentir-se mais disposta a aceitar, ainda que com reclamações, a

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expansão da NATO para Leste sem que disso resultasse o estilhaçar das relações entre a

Rússia e o ocidente e o eventual retrocesso da inimizade que caracterizou as últimas décadas.

Esta decisão da Administração Clinton baseou-se em cálculo estratégico. Se ficasse do lado

da Ucrânia – cuja reforma política e económica poderia ser bastante mais facilmente

alcançável do que no caso da Rússia – arriscava incorrer na ira de Moscovo, o que poderia

irromper num conflito na Europa de Leste e deitar por terra os avanços que tinham sido

alcançados em matéria de redução de arsenais nucleares.

No entanto, se durante o processo negocial os Estados Unidos tivessem tomado a iniciativa

de criação de um quadro multilateral que realmente criasse as condições necessárias para

fechar o hiato que continuava a existir entre Leste e Oeste e que promovesse uma estrutura

de expectativas e entendimentos dos quais ambos os lados pudessem verdadeiramente

partilhar, o risco de conflito na Europa de Leste poderia ser consideravelmente reduzido.

Dessa forma, dar-se-ia resposta à necessidade de diálogo e de participação da Rússia na

comunidade internacional, e não se procurava uma aproximação com a Rússia através dos

conselhos de cooperação da NATO, ou seja, através de uma organização que foi criada como

braço armado das democracias ocidentais contra Moscovo.

Em 1998, praticamente a meio do segundo e último mandato do presidente Bill Clinton, a

sucessora de Warren Christopher na liderança da diplomacia norte-americana, Madeleine

Albright, afirma que os Estados Unidos continuam empenhados na cooperação com a Rússia

em matéria de combate à proliferação de armas nucleares, apontando como prioridade dos

Estados Unidos a redução dos arsenais nucleares, a eliminação de plutónio para utilização

em bombas e a obstaculização da difusão de tecnologias que sejam utilizadas no

desenvolvimento de armas nucleares e de mísseis. Mas ao mesmo tempo a Secretária

Albright avança que os Estados Unidos estão a desenvolver sistemas de defesa anti-mísseis,

o que indica a relutância da potência norte-americana em cair na tentação de pensar que todas

as ameaças à sua segurança podem ser aplacadas por acordos bi- ou multilaterais de redução

de armas de destruição massiva.

No que toca à redução deste tipo de armamento, os Estados Unidos exigem mais da Rússia

do que deles próprios. Quer isto dizer, que, apesar de os acordos START preverem reduções

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iguais para ambos os lados, existe «um processo de redução assimétrica dos arsenais

estratégicos das duas grandes potências» (Gaspar, 2016, 268).

Paralelamente aos processos de redução de armamento, os Estados Unidos, no papel que

assumiram – e reconhecido pelos aliados – de garante da estabilidade internacional, insistem

em manter uma força estratégica que atue como dissuasor de agressões por parte de países

que não se revejam na ordem internacional liberal do pós-Guerra Fria. Uma vez mais, os

Estados Unidos adotam uma postura de superioridade – moral, talvez mais do que

exclusivamente estratégica – e uma relutância estratégica relativamente à Rússia, à qual

exigem esforços mais profundos de diminuição da sua força nuclear, porventura numa

tentativa de, aos olhos de Washington, garantir maior estabilidade e um mais forte sentimento

de segurança na Europa, visto que as armas nucleares de um país que há poucos anos

representava uma ameaça existencial aos princípios e valores impressos nas sociedades

ocidentais serão sempre mais ameaçadoras do que as armas nucleares de um país que se

posiciona como aliado e comandante de ordem internacional. As grandes potências do pós-

Guerra Fria estão mais dispostas a aceitar que o arsenal norte-americano seja maior do que o

da Rússia, e menos inclinadas a aceitar o inverso, considerando que as afinidades culturais,

de valores e de interesses, bem como as bases de expectativas partilhadas, são maiores entre

os Estados Unidos e os restantes países da esfera democrática ocidental, do que entre estes

últimos e a Rússia ou qualquer outro país do antigo espaço soviético.

Observando a História é fácil apontar os erros e avançar alternativas. Mas o passado serve

para iluminar o futuro e talvez dos erros se possam extrair aprendizagens essenciais para que

possamos evitar conflitos e até mesmo mitigar ao máximo a sua probabilidade de ocorrência.

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Conclusão

A presidência de Bill Clinton ficou marcada pelo degelo das relações entre dos dois antigos

adversários da Guerra Fria e criou várias oportunidades de fomento da cooperação entre

Washington e Moscovo. A Administração Clinton era marcadamente partidária da

priorização da Rússia na política externa norte-americana e considerava que o sucesso da

transição democrática pós-comunista da Rússia era do interesse dos Estados Unidos e até

uma questão de segurança nacional e de estabilidade europeia.

Porém, nem tudo foram rosas. A abordagem norte-americana à expansão da NATO poderia

ter sido desastrosa para as relações entre os dois países, que ainda saravam feridas há não

muito tempo feitas pelo outro lado. A insistência dos Estados Unidos alargar as fronteiras da

Aliança Atlântica a três antigos membros do Pacto de Varsóvia (Polónia, Hungria e

República Checa) e para as portas da Federação Russa podia ter recebido uma resposta dura

por parte de Moscovo. Num encontro entre dos dois presidentes na capital da Rússia, Boris

Iéltsin havia dito a Bill Clinton que a expansão da NATO para Leste poderia ser encarada

pelo povo russo como uma provocação e que deveria ser adiada para o virar do milénio. Mas

o líder norte-americana mostrava-se irredutível nas suas intenções, apenas concedendo que

o início da expansão da NATO fosse adiada para depois de 1996.

Apesar de os Estados Unidos considerarem que o programa das Parcerias para a Paz foi um

sucesso e que permitia uma cooperação mais estreita entre os países do antigo espaço

soviético e a comunidade das democracias ocidentais, facto é que esta era uma “meia-

medida”, uma espécie de limbo em que os países aspirantes a membros efetivos da aliança

permaneciam, indefinidamente, pois os Estados Unidos afirmavam que as Parcerias para a

Paz não eram uma via rápida de admissão de novos membros, mas antes de uma forma de os

candidatos reunirem as condições necessárias para serem considerados potenciais novos

membros.

A Rússia era um destes “parceiros para a paz”. Apesar de a NATO ter sido criada sobre o

desejo das democracias do ocidente terem uma linha de defesa e combate ativo da ameaça

comunista soviética de Leste, Iéltsin não se coibia de afirmar que gostaria que a Rússia

fizesse parte da aliança, algo que poderá parecer um paradoxo aos olhos de muitos. Mas até

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que a integração da Rússia na NATO podia não ser assim tão inimaginável como se poderia

pensar.

Enquanto foi presidente, Clinton promoveu a revisão da identidade da Aliança Atlântica, que

deveria deixar de lado a sua natureza míope da Guerra Fria – o combate à expansão soviética

– que já não tinha lugar num mundo sem União Soviética, e passar a alicerçar-se em pilares

mais robustos que lhe permitissem adquirir uma identidade renovada de promotora da

democracia pelo mundo.

Através desta revisão identitária, teria sido possível uma melhor integração da Rússia no

sistema internacional e um melhor desenvolvimento das reformas políticas e económicas

pelas quais o país e que eram essenciais para os objetivos norte-americanos de difusão da

democracia. Talvez se as democracias ocidentais, mas principalmente os Estados Unidos,

tivessem investido mais e melhor na transição democrática pós-comunista da Rússia, com a

constituição de instituições democráticas, com o estabelecimento das bases essenciais a um

sistema político verdadeiramente plural e democrático, com a revisão das bases do sistema

judicial de forma a melhor proteger os direitos e liberdades dos cidadãos. Muito mais poderia

ter sido feito, mas o principal foco dos Estados Unidos era impedir que a Rússia se tornasse

num elemento desestabilizador na região da Europa de Leste e que caísse nas mãos de

ultranacionalistas que poderiam, por exemplo, procurar anexar a Ucrânia e despoletar um

conflito continental que poderia muito bem chegar às portas dos Estados Unidos e interferir

com interesses norte-americanos.

Por outro lado, temos a questão nuclear ucraniana. Este processo colocou lado a lado as três

maiores potências nucleares do mundo. Contudo, os Estados Unidos tinham mostrado

relutância em participar no processo de transferência de armas nucleares da Ucrânia para a

Rússia, mas quando perceberam que a dificuldade de diálogo entre os dois países de Leste,

com um longo histórico de conflitos, podia vir a multiplicar o número de países detentores

de arsenais nucleares – comparativamente à Guerra Fria – e potencialmente desestabilizar a

região da Europa de Leste – era possível que a Rússia tentasse retirar as armas nucleares as

Ucrânia pela força, caso esta última mantivesse a intenção de ficar com parte do arsenal

herdade da URSS – os Estados Unidos sentaram a Rússia e a Ucrânia à mesa de negociações

e agiram como intermediário de um acordo que levaria não só à desnuclearização da Ucrânia,

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mas também à integração do país no Tratado de Não-Proliferação na qualidade de Estado

não-nuclear.

Os exemplos da expansão da Leste da NATO e do processo de desnuclearização da Ucrânia

servem para ilustrar as novas dinâmicas relacionais existentes entre os Estados Unidos e a

Rússia. Com o final da Guerra Fria, os dois países encontram-se mais próximos e cooperantes

do que em qualquer outra altura dos 40 anos anteriores, dispostos a abdicar de parte

significativa dos seus arsenais em prol da segurança internacional e da construção de uma

relação de relativa confiança, ou pelo menos de menor grau de desconfiança, embora os

Estados Unidos tivessem sempre demonstrado alguma relutância em estabelecer grandes

compromissos com o antigo adversário.

É preciso sublinhar que os Estados Unidos assumiram bem o seu papel de superpotência

intermediadora de conflitos e de líder da ordem internacional e foram instrumentais para

garantir a estabilidade na Europa. Mas é também preciso destacar que os Estados Unidos

cometeram alguns erros que poderiam ter saído caro, erros que certamente resultaram dos

resquícios de desconfiança relativamente à Rússia e talvez também de um qualquer

sentimento de impunidade.

Os Estados Unidos demonstravam uma abertura relutante, ainda assim uma abertura, no que

tocava ao envolvimento com a Rússia e era com cautela que abordavam a integração da

Rússia na esfera democrática do Oeste, o que certamente esteve na origem do atraso e

deficiência das reformas democráticas do antigo centro do poder soviético. Por outro lado,

os Estados Unidos também exibiam uma certa assertividade face à Rússia, tal como ficou

expresso na insistência de Clinton em alargar para Leste a NATO, uma expansão que não

tinha qualquer urgência e que fragilizava a posição de liderança de Boris Iéltsin aos olhos do

seu povo.

O pós-Guerra Fria investiu os Estados Unidos de um papel de crucial importância na

condução das dinâmicas internacionais, partilhando o palco com regiões do mundo que

pesavam também fortemente nos processos de tomada de decisão das grandes potências. E

os Estados Unidos souberam desempenhar um papel que era também uma nova identidade,

mas um desempenho que espelhava alguns resquícios dos tempos do conflito bipolar, de uma

certa relutância em abrir completamente os braços a uma Rússia que se dizia determinada em

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alcançar a democracia e em reger-se pelos princípios das democracias do ocidente. E essa

relutância não surpreende, pois apesar de se relacionarem de outra forma, com maior

propensão para a cooperação, até há bem pouco tempo os Estados Unidos e a Rússia (na

altura abrangida pela União Soviética) se defrontavam, retórica e ideologicamente, e a

perceção que se tem do outro, apesar das demonstrações de intenções e dos esforços

empreendidos, demora a mudar. Por exemplo, o facto de a Rússia ter contestado a intervenção

da NATO no guerra do Kosovo e ter ficado do lado da Sérvia e de Slobodan Milosevic ou

quando utilizou a força militar para oprimir as reinvindicações sessecionistas da Chechénia,

apenas foi alimentando a relutância dos Estados Unidos relativamente ao grau de

comprometimento da Rússia para com os princípios liberais.

Mas enquanto auto-denominado líder do sistema internacional e da ordem liberal, os Estados

Unidos deveriam ter procurado formas mais construtivas de criar estruturas que permitissem

uma maior integração da Rússia na comunidade internacional e apostando na

institucionalização da democracia, procurando evitar que o país se voltasse a fechar sobre si

próprio e cultivasse um sentimento de rancor e isolamento que seriam prejudiciais para a

segurança internacional.

E esse objetivo poderia ser alcançado com os Estados Unidos a promoverem um modelo de

integração regional na Europa de Leste, tendo por interlocutores a Rússia, a Ucrânia e a

Bielorrússia, capitalizando sobre as afinidades linguísticas, culturais e históricas entre os três

países a fim de se poder formar um quadro de ação multilateral que realmente promovesse a

democracia no espaço da antiga União Soviética e criasse as bases para um complexo

democrático na região.

Claro que os Estados Unidos deveriam estar significativamente envolvidos e empenhados

nesta rede de promoção e aprofundamento democrático de forma a garantir que a Rússia não

converteria o complexo regional num novo império russo nem atentaria contra a integridade

territorial das antigas repúblicas soviéticas.

O objetivo desta construção de um maior envolvimento dos Estados Unidos na

democratização não apenas da Rússia mas do espaço pós-soviético teria como desígnio

promover a integração regional da Europa de Leste, criar condições para uma aproximação

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das antigas repúblicas e da comunidade de democracias ocidentais. Isto poderia acontecer

através do triângulo Estados Unidos-União Europeia-Complexo regional do Leste europeu.

Neste processo, União Europeia deveria substituir a NATO enquanto entidade promotora da

democracia pelo mundo e na Europa de Leste, principalmente porque a NATO é uma aliança

com uma forte índole militar (talvez mais do que política), não propriamente um instância de

promoção democrática. Já o mesmo não se poderá dizer da União Europeia, cuja natureza é,

com efeito, a promoção dos princípios da democracia, o respeito pelos direitos humanos, pela

liberdade de imprensa, pelo primado do Direito.

Assim, o triângulo Estados Unidos-União Europeia-Complexo regional do Leste europeu –

uma espécie de “conselho para a integração democrática regional”, seria uma forma muito

mais eficiente de promover a democracia no espaço pós-soviético, de garantir uma maior

probabilidade de sucesso da transição pós-soviética da Rússia e de assegurar uma maior

estabilidade na Europa através de mais e melhor diálogo entre Leste e Oeste.

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