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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARAN - UNIOESTE CENTRO DE EDUCAO, COMUNICAO E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM EDUCAO NVEL DE MESTRADO/PPGE REA DE CONCENTRAO: SOCIEDADE, ESTADO E EDUCAO

O PBLICO E O PRIVADO NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: DO REGIME MILITAR (1964-1984) AO GOVERNO FHC (1995-2002)

CLAUDIO AFONSO PERES

CASCAVEL, PR 2009

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CLAUDIO AFONSO PERES

O PBLICO E O PRIVADO NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: DO REGIME MILITAR (1964-1984) AO GOVERNO FHC (1995-2002)

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Educao, Curso de Ps-Graduao em Educao, do Centro de Educao, Comunicao e Artes da Universidade Estadual do Oeste do Paran. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Felipe Fiuza

Cascavel 2009

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Ficha Catalogrfica Elaborada pela Biblioteca Central do Campus de Cascavel Unioeste

P51p

Peres, Claudio Afonso O pblico e o privado no ensino superior brasileiro: do regime militar (1964 1984) ao Governo FHC (1995 2002) / Claudio Afonso Peres. Cascavel, PR: UNIOESTE, 2009. 239 f. ; 30 cm Orientador: Prof. Dr. Alexandre Felipe Fiuza Dissertao (Mestrado) Universidade Estadual do Oeste do Paran. Bibliografia. 1. Ensino Superior - Brasil. 2. Pblico. 3. Privado. 4. Estado. 5. Sociedade. I. Fiuza, Alexandre Felipe. II. Universidade Estadual do Oeste do Paran. III. Ttulo. CDD 21ed. 379.81 Bibliotecria: Jeanine da Silva Barros CRB-9/1362

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DEDICATRIA

A todos os que poderiam ser Reis de si prprios, mas so servos dos outros em virtude do que o sistema lhes impe.

Aos que acreditam na educao pblica como legtima transmissora do conhecimento necessrio emancipao poltica e econmica que pode colaborar com a emancipao humana e com a real transformao da sociedade, antes que ela chegue Barbrie ou ao Extermnio.1

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Na acepo de Stvn Mszros, no conjunto de suas obras.

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AGRADECIMENTOS

A todos os professores, funcionrios e colegas do Programa de Mestrado em Educao da UNIOESTE, em especial ao Professor Dr. Alexandre, meu orientador, que sempre esteve disposto a contribuir, de maneira dedicada e paciente, mesmo quando a distncia e os afazeres lhe impunham outras responsabilidades. Aos Professores Dr. Paulino, Andr e Joo Carlos, do Grupo de Pesquisa em Histria, Sociedade e Educao no Brasil (HISTEDBR) GT - Cascavel, por acreditarem desde o princpio e pelo incansvel apoio. Ao Professor Dr. Gilmar, Professora Dra. Geni e Professora Dra. Gladys, por se disporem a colaborar com a leitura dedicada e com as preciosas sugestes. Aos amigos e camaradas de todas as horas Celso Hotz, Luiz Carlos, Auri Santo, Joo da Luz e Jos Aparecido (Cido) pelas ideias, pelo apoio incondicional e pelo incentivo. A meu amigo e companheiro de estudo Edison Martin, que, l de Cuiab, esteve presente em todos os momentos, pelas ideias, pelo incentivo e pela colaborao desde a preparao para a seleo do mestrado, quando foi merecidamente aprovado e teve de desistir por circunstncias da vida. A meus no menos importantes amigos, que me chamaram sempre razo quando eu pensava que tudo se resumia a estudos nesses dois anos, pois me faziam ver o valor da descontrao e da amizade nas vezes em que nos confraternizamos nesse perodo. A meus familiares, que, mesmo distantes, estiveram torcendo por mim em todos os momentos, vivenciando meus dramas e minhas ansiedades e contribuindo para alivi-las. Por fim, a minha companheira, Yone, que, a seu modo, contribuiu sobremaneira para que eu percebesse a importncia de minha pesquisa e a importncia que tm todas as injustias sociais, que precisam ser questionadas. Pela companhia e pelo carinho, obrigado.

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SUMRIO LISTA DE TABELAS .................................................................................................... vii LISTA DE SIGLAS ....................................................................................................... viii RESUMO ...................................................................................................................... xi ABSTRACT .................................................................................................................. xii INTRODUO .............................................................................................................. 1 CAPTULO 1 - O PBLICO E O PRIVADO NA EDUCAO SUPERIOR E O 28 ESTADO BRASILEIRO A HISTRIA E A LEGISLAO ....................................... 1.1 O pblico, o Privado e suas Relaes com a Economia, a Sociedade e a 28 Educao ..................................................................................................................... 1.2 Consideraes sobre o Estado Capitalista, Sociedade e Educao ............... 36 1.3 O Carter Privatista da Educao Superior Brasileira ...................................... 49 1.3.1 Colnia, Imprio, educao superior e universidade .......................................... 49 1.3.2 A Primeira Repblica e a educao superior ...................................................... 53 1.3.3 A questo do financiamento e a legislao educacional brasileira ..................... 57 1.3.4 Os planos, as leis e a reforma do ensino superior nos governos militares ......... 71 1.3.5 O Plano de Reforma do Estado de FHC e o reflexo para as polticas 85 educacionais ................................................................................................................. CAPTULO 2 - ECONOMIA, POLTICA, INFLUNCIA INTERNACIONAL E 102 EDUCAO: ASPECTOS COMPARATIVOS ............................................................. 2.1 Os Aspectos Econmicos: do desenvolvimentismo liberal ao liberalismo 103 gerencial conservador................................................................................................. 2.1.1 Regime Militar - desenvolvimentismo e liberalismo em um Estado autoritrio.... 105 2.1.2 Governo FHC - A Reforma Gerencial como soluo para a crise ...................... 113 2.2 Os Aspectos Polticos: da ditadura liberal ao ultraliberalismo conservador.. 121 2.2.1 Regime Militar - o autoritarismo a servio do liberalismo .................................... 121 2.2.2 Governo FHC - o carter ultraliberal do social liberalismo .................................. 138 2.3 Os Movimentos Sociais: as possibilidades e desafios em governos 147 autoritrios e democrticos.................................................................................... 2.3.1 Regime Militar - A represso e as possibilidades de subverso da ordem ......... 147

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2.3.2 Governo FHC - o enfraquecimento dos movimentos e a crena no sistema ......

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2.4 A Influncia Internacional - o retrato de uma nao dependente .................... 162 2.4.1 Regime Militar - o combate ao comunismo como justificativa para a 163 interferncia................................................................................................................... . 2.4.2 Governo FHC - a globalizao e a subordinao consentida ............................. 168 CAPTULO 3 - A EDUCAO SUPERIOR BRASILEIRA E SUAS RELAES 174 COM O MERCADO ...................................................................................................... 3.1 Caracterizao da Educao Superior no Regime Militar ................................ 175 3.1.1 O Estado Nacional, o financiamento e a pesquisa ............................................. 3.1.2 O atendimento da demanda via privatizao ..................................................... 175 184

3.1.3 O Estado civil-militar e a real militarizao da burocracia .............................. 194 3.2 A Transio Prolongada ....................................................................................... 202 3.3 Caracterizao da Educao Superior no Governo FHC ................................. 208 3.3.1 A privatizao do ensino superior como exigncia do mercado ......................... 208 3.3.2 A reforma gerencial do Estado e a precarizao das relaes humanas ........... 215 CONSIDERAES FINAIS ......................................................................................... 221 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................ 228 LEGISLAO .............................................................................................................. 238

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 -

Demonstrativo do crescimento do nmero de IES por forma de administrao (1960-1976) .................................................. 187 Nmero de instituies de educao superior no Brasil, com cursos e matrculas e n de docentes (19651985).......................................................................................... 188 Alunos matriculados na UNICAMP (1990) ................................ 193

Tabela 2 -

Tabela 3 Tabela 4 -

Nmero de IES, cursos, matrculas e docentes durante o Governo FHC (1995-2002) ........................................................ 211

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LISTA DE SIGLAS AEC AI ALN ANC ANDE ANDES-SN ANL ARENA BID Bird/BM BRADESCO CAPES CCC CEDES CEPAL CF CFE CIA CLT CMN CNC CNEC CNI CNPq COBRA CPI CREDUC CUT DCE DIEESE EAPES - Associao de Educadores Catlicos - Ato Institucional - Aliana Libertadora Nacional - Assembleia Nacional Constituinte - Associao Nacional de Educao - Sindicato Nacional dos Docentes das Instituies de Ensino Superior - Aliana Nacional Libertadora - Aliana Renovadora Nacional - Banco Interamericano de Desenvolvimento - Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento/Banco Mundial - Banco Brasileiro de Descontos - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - Comando de Caa aos Comunistas - Centro de Estudos Educao e Sociedade - Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe - Constituio Federal - Conselho Federal de Educao - Company Intelligence Agency - Consolidao das Leis do Trabalho - Conselho Monetrio Nacional - Confederao Nacional do Comrcio - Campanha Nacional de Escolas Comunitrias - Confederao Nacional da Indstria - Conselho Nacional de Pesquisa - Computadores e Sistemas Brasileiros - Comisso Parlamentar de Inqurito - Crdito Educativo - Central nica dos Trabalhadores - Diretrio Central dos Estudantes - Departamento Intersindical de Estatstica e Estudos ScioEconmicos - Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior

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EMBRAER EMC ESG EUA FA FAT FCSAC FENEN FHC FIES FINEP FMI GRTU IBAD IBGE IES INEP IPEA IPES ITA LDB MARE MDB MEC MP NUCLEBRS ONGs OSPB PETROBRS PFL PLANFOR PNAD PNB

- Empresa Brasileira de Aeronutica - Educao Moral e Cvica - Escola Superior de Guerra - Estados Unidos da Amrica - Foras Armadas - Fundo de Amparo ao Trabalhador - Faculdade de Cincias Sociais Aplicadas de Cascavel UNIVEL - Federao Nacional dos Estabelecimentos de Ensino - Fernando Henrique Cardoso - Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior - Financiadora de Estudos e Projetos - Fundo Monetrio Internacional - Grupo de Trabalho da Reforma Universitria - Instituto Brasileiro de Ao Democrtica - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - Instituies de Ensino Superior - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais "Ansio Teixeira" - Instituto de Pesquisa Econmica e Aplicada - Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - Instituto Tecnolgico da Aeronutica - Lei de Diretrizes e Bases da Educao - Ministrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado - Movimento Democrtico Brasileiro - Ministrio da Educao - Medida Provisria - Centrais Nucleares Brasileiras - Organizaes No-Governamentais - Organizao Scio-Poltica Brasileira - Petrleo Brasileiro S.A. - Partido da Frente Liberal - Plano Nacional de Requalificao do Trabalhador - Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar - Produto Nacional Bruto

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PND PROEDUC PROUNI PSDB PT REUNI SEBRAE SENAC SENAI SENAR SENAT SESI SEST SISNI TELEBRAS UDN UEE UnB UNE UNESCO UNICAMP UNIOESTE USAID USARSA USP

- Plano Nacional de Desenvolvimento - Programa de Educao para a Competitividade - Programa Universidade para Todos - Partido da Social Democracia Brasileira - Partido dos Trabalhadores - Planos de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais - Servio Brasileiro de Apoio Micro e Pequena Empresa - Servio Nacional de Aprendizagem Comercial - Servio Nacional de Aprendizagem Industrial - Servio Nacional de Aprendizagem Rural - Servio Nacional de Aprendizagem do Transporte - Servio Social da Indstria - Servio Social do Transporte - Sistema Nacional de Informaes - Telecomunicaes Brasileiras - Unio Democrtica Nacional - Unio Estadual dos Estudantes - Universidade de Braslia - Unio Nacional dos Estudantes - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura - Universidade de Campinas - Universidade Estadual do Oeste do Paran - United States Agency for International Development - U.S. Army School of the Americans - Universidade de So Paulo

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RESUMO

Este estudo trata das relaes entre o pblico e o privado no ensino superior brasileiro no contexto das reformas implementadas a partir da segunda metade do sculo XX, que levaram ampliao da rede privada principalmente durante o Regime Militar (1964-1984) e no Governo FHC (1995-2002). Busca-se identificar o papel histrico do Estado brasileiro com relao ao financiamento e manuteno do ensino superior, considerando a conjuntura poltica e econmica nos dois momentos em apreo, assim como as relaes do Estado com a sociedade (burguesia e classe trabalhadora) e com o mercado. A compreenso se d pela anlise das reformas, da legislao, de obras de autores clssicos e contemporneos, de documentos oficiais, alm da anlise da prpria correlao de foras estabelecida em cada momento. Trata tambm de interpretar a influncia estrangeira explicitada na atuao dos organismos internacionais relacionada questo do financiamento e s orientaes para as polticas educacionais no mbito do ensino superior. Considera-se como um grande problema para a classe trabalhadora do pas o fato de que o percentual de instituies privadas de ensino superior tenha chegado ao ndice de 89% no ano de 2006. Com efeito, j no final do Regime Militar, em 1985, esse ndice j era de 73%. A dissertao sistematizada em trs captulos, onde se estuda, no primeiro, alguns conceitos tericos, o contexto histrico e as legislaes que reformam o Estado e o ensino superior e que demonstram o carter privatista da educao; no segundo, realiza-se a comparao dos eixos temticos escolhidos (poltica, economia, movimentos sociais e as influncias internacionais), relacionando-os com o aspecto educacional; e, no terceiro, estuda-se o pblico e o privado na educao superior e as relaes com o mercado, como consequncia dos aspectos histricos e tericos analisados, tecendo consideraes ainda sobre o carter civil-militar do Regime e o perodo de transio entre o Regime Militar e o Governo FHC. A exposio se realiza em uma sequncia que traz a necessidade de recorrer ao que j foi tratado, pois, no decorrer do trabalho, se recuperam conceitos que complementam as informaes e aperfeioam a compreenso do objeto. Os argumentos apresentados consistem em teses e antteses que se contrapem, formando snteses que so relacionadas a acontecimentos futuros, mas que mantm ligaes com o passado histrico. Assim, alm de analisar e comparar dois perodos histricos distintos, que possuem contrastes e elementos de continuidade objetivos, faz-se isso buscando no perder a perspectiva de totalidade, considerando fatores exgenos e endgenos que influenciaram na formao do quadro privatizante do ensino superior brasileiro.2

PALAVRAS-CHAVE: Educao superior. Pblico. Privado. Estado. Sociedade

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A presente dissertao foi redigida com base na reviso ortogrfica em vigor a partir de 01 de janeiro de 2009, pela qual houve a padronizao do idioma, promovendo uma maior integrao entre os pases que falam a lngua portuguesa (pases lusfonos).

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ABSTRACT

This study addresses the relationship between the public and the private in the context of the reforms implemented in the Brazilian higher education from the second half of the 20th century on, which resulted in the expansion of the private education sector, mainly during the Brazilian Military Regime (1964-1984) and the Fernando Henrique Cardoso administration (1995-2002). The study aims at examining the historical role of the Brazilian State in funding and maintaining the higher education, considering the political and economic context in both moments, as well as the relationship between State and society (bourgeoisie and working class) and the market. This understanding is achieved by the analysis of the reforms, legislation, works of classic and contemporary authors, official documents, in addition to the analysis of the correlation of forces established in each moment. The study also seeks to interpret the foreign influence that can be identified in the performance of the international organizations related to the issue of funding and to the guidelines for the educational policies in the context of higher education. It is considered a major problem for the Brazilian working class the fact that the percentage of private institutions of higher education has reached the rate of 89% in 2006. In fact, at the end of the Military Regime, in 1985, this rate had already reached 73%. The dissertation is organized in three chapters: the first one is dedicated to some theoretical concepts, the historical context and the laws that reform the State and the higher education and that demonstrate the private nature of education; in the second chapter, relevant topics (politics, economy, social movements and the foreign influence) are discussed and related to education; and, finally, the third chapter addresses the public and the private in the higher education and the relations with the market as a consequence of the historical and theoretical aspects previously analyzed, and considerations are also made on the civil-military nature of the Regime and the transition period between the Military Regime and the Fernando Henrique Cardoso administration. The text is presented in a sequence that enables the resource to topics previously addressed, since along the study several concepts that complete the information and improve the understanding of the object are recovered. The arguments presented in this study consist of theses and antitheses, which form summaries that can be related to future events, but that are still linked to the past. Thus, in addition to analyzing and comparing two different historical periods, which present contrasts and elements of continuity, the study seeks to maintain the view of the totality, considering the endogenous and exogenous factors that influenced the privatization process of Brazilian higher education.

KEY-WORDS: Higher education. The public. The private. State. Society.

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INTRODUO

O presente trabalho tem o propsito de contribuir para o entendimento das relaes entre pblico e privado no ensino superior brasileiro no contexto das reformas implementadas a partir da segunda metade do sculo XX, que levaram ampliao da rede privada principalmente durante o Regime Militar (1964-1984) e no Governo FHC (1995-2002).3 Para esse estudo julgamos necessrio identificar o papel histrico do Estado brasileiro com relao ao financiamento e manuteno do ensino superior, considerando a conjuntura poltica e econmica nos dois momentos em apreo, assim como as relaes do Estado com a sociedade (burguesia e classe trabalhadora)4 e com o mercado. Essas relaes podem ser compreendidas pelas reformas, pela legislao, pela conduo da educao e pela prpria correlao de foras que possvel estabelecer em cada momento. Igualmente ser importante interpretar as influncias estrangeiras explicitadas na atuao dos organismos internacionais relacionadas questo do financiamento e das orientaes para as polticas educacionais no mbito do ensino superior. O problema que investigamos est inserido no contexto histrico do que foi chamado de globalizao, perodo marcado pela mundializao,

transnacionalizao e financeirizao dos capitais (ANTUNES, 2004, p. 14), em que os pases economicamente hegemnicos (principalmente Estados Unidos da Amrica EUA e Inglaterra), utilizando-se dos organismos multilaterais, orientaram e

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Utilizaremos a expresso Regime Militar para caracterizar o perodo dos governos militares e Governo FHC para o perodo dos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso. O Dicionrio de Anlise Poltica (1972), de Geoffrey K Roberts, nos autoriza a considerar Regime toda forma de governo dotada de Constituio poltica, seja parlamentar, totalitria ou republicana (ROBERTS, p. 218). De igual maneira, o Dicionrio de Poltica (1992), de Norberto Bobbio, trata de Governo como conjunto de pessoas que exercem o poder poltico, podendo, no Estado moderno, compor-se de chefe de Estado (monarca ou presidente da repblica) e do conselho de ministros, dirigido pelo chefe de governo (BOBBIO; PASQUINO; MATTEUCI, p. 553-554). Embora no existam diferenas estruturais na composio dos poderes polticos nos perodos em apreo, consideramos que essa conveno facilitar nossa compreenso. Embora utilizemos o conceito clssico marxista de classe trabalhadora, reconhecemos a validade e a importncia de se discutir as possibilidades e limitaes de se utilizar para a anlise das sociedades industriais modernas o conceito de classe advindo das determinaes econmicas do marxismo (MARKERT, 2002, p. 19), em face da complexidade das novas relaes no campo do trabalho. A ampliao de setores como o de servios, por exemplo, torna os conceitos clssicos insuficientes para entender a nova realidade, carecendo de novas anlises sobre categorias como classe social, conscincia de classe e ao poltica, das quais no daremos conta neste trabalho. Classe trabalhadora aqui ser entendida como a classe dominada economicamente.

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coordenaram as reformas (inclusive educacionais) dos pases considerados perifricos, condio em que se encontravam os pases latino-americanos em razo de suas formas de participao na economia mundial.5 O caso brasileiro, no que tange aos ndices do ensino privado, emblemtico, pois, conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais "Ansio Teixeira" (INEP), no ano de 2003, o pas conseguiu se destacar mundialmente, sendo considerado como o que tinha a maior participao da iniciativa privada na conduo do ensino superior6, considerando-se o percentual de instituies privadas, que, no ano de 2006, chegou ao ndice de 89%. Esse processo de privatizao7 ocorreu especificamente, com maior nfase, nos dois perodos que estudamos: o perodo dos governos militares8 e os dois mandatos do presidente FHC. No primeiro, o percentual de Instituies de Ensino Superior (IES) privadas atingiu 73% (1985) e, no segundo, chegou marca de 88% (2002) (INEP, 2006). O modo como se deu o crescimento da educao superior privada em detrimento da estatal durante os perodos supramencionados envolve vrias condicionantes que um estudo desvinculado da totalidade no poderia compreender. A comparao das especificidades e das similitudes entre os dois perodos estudados uma das opes metodolgicas que julgamos contribuir para a anlise e a compreenso do tema. Por isto, no segundo captulo, esse um dos caminhos que nos propomos percorrer e que julgamos ser capaz de contribuir no

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Diante da crise do Estado e da globalizao, os novos conservadores neoliberais, que se haviam tornado poltica e intelectualmente dominantes nos Estados Unidos e no Reino Unido nos anos 1980, comeam ento a influenciar no Brasil (PEREIRA, 1998, p. 44). 6 No ano de 1998, quando o Brasil contava com 62% dos alunos matriculados nas IES privadas, os ndices eram de 10% na Bolvia, 16% na Argentina e 17% no Mxico (LEHER, 2001, p. 152). Nesta poca, o Brasil ocupava ainda a 7 posio no ranking da privatizao do ensino superior. 7 Embora durante o trabalho faamos uso do termo privatizao, ou processo de privatizao, importante pontuar que privatizao no caso da educao no significa a venda de Instituies de Ensino Estatais para empresas privadas, o que, de fato, no ocorreu. O que chamamos de privatizao da educao, a fim de facilitar a compreenso, trata-se da ampliao da rede privada por intermdio de incentivos a sua implantao atravs de parcerias, convnios, financiamentos, doaes, subvenes, modelos de co-gesto e inclusive na forma de atuao do capital privado no interior das Instituies Estatais, por meio de financiamento de projetos, que, para as IES, significam captao de recursos, o que consideramos uma privatizao por dentro, ou ainda uma mercadorizao do ensino. 8 No estudaremos a questo da privatizao em cada governo especificamente, pois, apesar de haver diferenas dos dados estatsticos em cada um deles, eles fazem parte de um contexto em que as polticas e as reformas adotadas por um se refletem nos prximos. Durante o Regime Militar estiveram frente do Poder Executivo os seguintes presidentes da Repblica: Paschoal Ranieri Mazzilli (civil), de 1/4/1964 a 15/4/1964; General Humberto de Alencar Castelo Branco (eleito indiretamente), de 15/4/1964 a 15/3/1967; General Arthur da Costa e Silva (eleito indiretamente), de 15/3/1967 a 31/8/1969; Junta Militar (composta pelos Brigadeiro Mrcio de Souza e Mello, Almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald e General Aurlio Lyra Tavares), de 31/8/1969 a 30/10/1969; General Emlio Garrastazu Mdici (eleito indiretamente), de 30/10/1969 a 15/3/1974; General Ernesto Geisel (eleito indiretamente), de 15/3/1974 a 15/3/1979 e General Joo Baptista de Oliveira Figueiredo (eleito indiretamente), de 15/3/1979 a 15/3/1985.

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desvelamento do conhecimento sobre o objeto, que, embora bastante estudado, ainda passvel e carente de compreenso. Consideramos a anlise do tema pblico e privado no ensino superior pertinente e necessria, pois ela poder explicitar as caractersticas do Estado capitalista moderno, que, a partir de suas contradies e crises9, trata de realizar reformas que servem para garantir a sobrevida da acumulao e reproduo do sistema. Nesse sentido, as reformas educacionais fazem parte dessa estratgia. Mesmo que o ensino superior esteja majoritariamente sendo fornecido pela iniciativa privada, este no deixa de ser uma preocupao do Estado, pois ele segue sendo entendido como um fator social importante para a formao da mo-de-obra e como transmissor de conhecimento aos indivduos, em diferentes escalas, considerando-se as distines entre a classe trabalhadora e a burguesia.10 Ademais, de acordo com Hlgio Trindade, no ano de 2005, apenas 10% dos jovens de 18 a 24 anos estavam inseridos na educao superior brasileira (TRINDADE, 2005, p. 35), o que se traduzia em fator de preocupao, ao se comparar com outros pases.11 Desta forma, ento, entende-se que educao superior uma forma de poltica social12 em meio s outras, que sofre influncias dos dirigentes do Estado e da prpria sociedade, entendendo-a como dividida em classes sociais distintas.9

Segundo o Dicionrio de Poltica, Chama-se de crise um momento de ruptura no funcionamento de um sistema, a uma mudana qualitativa em sentido positivo ou em sentido negativo, a uma virada de improviso, algumas vezes at violenta e no prevista no mdulo normal segundo o qual se desenvolvem as interaes dentro do sistema em exame (BOBBIO; PASQUINO; MATTEUCI, 1992, p. 303). preciso considerar aqui as distines entre crise de governo, crise poltica, crise econmica e crise do prprio sistema capitalista, alm de analisar ainda a intensidade e alcance dessas crises. Durante o trabalho, ao nos referirmos s crises e s reformas, pretendemos priorizar as relaes das reformas educacionais no contexto das crises econmicas, sem, contudo, nos aprofundarmos no contexto das crises em si. 10 A educao que proporcionada classe trabalhadora destinada a formar para o trabalho apenas e no consegue captar a centralidade do trabalho nas relaes sociais, no permite entender que o trabalho a forma pela qual a humanidade produzida historicamente e que a educao deve se dar por ele, sendo a escola complementar neste papel. Saviani problematiza o fato da existncia de uma rede escolar secundria superior e uma primria profissional, considerando que a primeira para a classe dominante e a segunda para a dominada. Os primeiros continuam a educar-se no prprio processo de trabalho, fora da escola. Os segundos tero uma educao diferenciada, desenvolvida nas escolas, fora do trabalho (...) (SAVIANI, 2007, p. 11). assim desde a gnese da propriedade, do trabalho e da prpria educao. 11 Dados apresentados por Gladys B. Barreyro do conta de que, na atualidade, 21% dos jovens com idade entre 18 a 24 anos esto matriculados em cursos superiores (BARREYRO, 2008, p. 27). Esse crescimento talvez se explique pela incluso por intermdio de bolsas e financiamentos, e ainda em face da recente criao de IES federais pelo atual governo. O Plano Nacional de Educao prev a incluso de 30% desta faixa at o ano de 2010. 12 Embora no pretendamos nos aprofundar no estudo terico sobre polticas sociais ou servios sociais (apesar de estar implcito durante o estudo), importante pontuar que nossa viso de polticas sociais est relacionada concepo de Evaldo Vieira (1992), para o qual poltica social consiste em estratgia governamental e normalmente se exibe em forma de relaes jurdicas e polticas, no podendo ser compreendida em si mesma. No se definindo a si, nem resultando apenas do desabrochar do esprito humano, a poltica social uma maneira de expressar as relaes sociais, cujas razes se localizam no mundo da produo (VIEIRA, 1992, p. 21-22). As polticas sociais dependem das relaes de trabalho, da economia e da poltica, inclusive internacional. Assim, no possvel pensarmos poltica educacional sem a anlise do Estado e do modo de produo capitalista, assim como da correlao de foras que a classe trabalhadora capaz de estabelecer.

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Partindo do princpio de que o Estado capitalista, para se manter enquanto tal, deve atuar como administrador das tenses sociais geradas em seu interior, observa-se que a implementao das polticas educacionais depende, em grande escala, da oposio que os diversos movimentos sociais sejam capazes de estabelecer no mbito da sociedade. Da mesma forma, o fim ltimo da educao, ou os efeitos que ela produz, de manuteno ou de possibilidade de transformao, depende tambm de como a classe trabalhadora participa do processo poltico que a envolve. Neste trabalho, com base no pensamento de autores/educadores como Florestan Fernandes, Emir Sader, Paolo Nosella, Dermeval Saviani, Gaudncio Frigotto, Stvn Mszros, dentre outros, buscamos apontar uma perspectiva em que a educao seja compreendida como colaboradora do processo de transformao da sociedade. Com efeito, em qualquer proposta para a educao superior em que ela seja instrumento de transformao, cabe a crtica ao ensino privado, posto que este segue a lgica do mercado e no oferece espao s manifestaes contraditrias ao sistema e ali o ensino tratado como um produto que precisa ser comercializado dentro das regras mercadolgicas. O aluno o cliente que no pode ter suas expectativas de colar grau e de estar apto para o mercado de trabalho frustradas, posto que est pagando para isto. Essa proposta de estudo remete aos autores considerados clssicos, os quais sero referenciados medida que a anlise do tema proposto reivindique a compreenso histrica para que no nos percamos na particularidade temporal dos momentos histricos estudados. Por exemplo, ao se pensar em reforma do Estado e em suas relaes com o pblico, o privado, a burguesia e a classe trabalhadora, importante conhecer a concepo de Estado e a compreenso histrica de sua gnese com base nos estudos de Friedrich Engels (1820-1895) contidos na obra A Origem da Famlia, da Propriedade e do Estado (2002). Igualmente, ao tratarmos de polticas sociais em um estado democrtico de direito, pertinente nos remetermos composio do Estado moderno a partir dos filsofos contratualistas Tomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704), autores de Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil (1979) e Segundo Tratado Sobre o Governo (1998), respectivamente. Estas obras e autores contriburam para a fundamentao terica da gnese do Estado capitalista e a nova configurao da

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sociedade a partir do sculo XVIII.13 Do mesmo modo, ao se abordar o ensino superior privado no Brasil na segunda metade do sculo XX, necessrio que compreendamos o problema tanto em seus aspectos histricos como no contexto global atual, tendo em vista que o debate entre pblico e privado intrnseco ao prprio capitalismo e remonta gnese da propriedade privada, mas latente e apresenta novas perspectivas na atualidade. Na obra A Riqueza das Naes Investigando sobre sua Natureza e suas Causas (1983), ao defender que a riqueza dos pases se faria com a liberao da economia para que os nascentes burgueses pudessem enriquecer sem a participao do Estado - ento representado pela Monarquia, Adam Smith (17231790) faz uma veemente defesa da privatizao da economia e, com ela, dos servios sociais, dos quais, educao ele dedica uma ateno especial,14 argumentando que o Estado deve proporcionar a educao apenas em doses homeopticas, sendo que a prioridade para sua implementao deve ser dada iniciativa privada.15 Dentre os crticos do Estado moderno surgido a partir da Revoluo Industrial Inglesa16 e da Revoluo Francesa17, destaca-se Karl Marx (1818-1883), que, juntamente com Engels, combateu essa forma de organizao, tendo demonstrado, com profundo rigor, que ele conduzido pelos interesses da classe

economicamente dominante, com vistas a garantir a propriedade e a diviso social (desigual) do trabalho. De acordo com esses autores, a existncia do Estado se justifica para servir de comit para tratar dos assuntos comuns burguesia (MARX, 1998, p. 7), pois no interior dele, no mbito dos governos oriundos da classe13

Naquele momento necessitava-se de argumentos que justificassem a extino da monarquia e que fossem criadas novas regras, a partir da revoluo industrial e da necessidade de expanso e de fragmentao do capital, em prol da nascente burguesia. Ademais, no estado de natureza, o homem no seria til ao capital. 14 Tambm as instituies para a educao da juventude podem propiciar um rendimento suficiente para cobrir seus prprios gastos. Os honorrios ou remunerao que o estudante paga ao mestre constituem um rendimento deste gnero (SMITH, 1983, p. 199). 15 Em alguns casos, o estado da sociedade necessariamente leva a maior parte dos indivduos a situaes que naturalmente lhes do, independentemente de qualquer ateno por parte do governo, quase todas as capacidades e virtudes exigidas por aquele estado e que talvez ele possa admitir. Em outros casos, o estado da sociedade no oferece a maioria dos indivduos em tais situaes, sendo necessria certa ateno [grifo nosso] do Governo para impedir a corrupo e degenerao quase total da maioria da populao (idem , p. 213). 16 A Revoluo Industrial se caracterizou por vrias mudanas tecnolgicas com profundo impacto no processo produtivo em nvel econmico e social. Iniciada na Inglaterra em meados do sculo XVIII, expandiu-se pelo mundo a partir do sculo XIX. 17 Revoluo Francesa o nome dado aos fatos ocorridos entre 5 de maio de 1789 e 9 de novembro de 1799, que transformaram o quadro poltico e social da Frana. Trata-se um acontecimento ao final do Antigo Regime (Ancien Rgime) em que a autoridade do clero e da nobreza foi confrontada pela nascente burguesia, naquele momento aliada ao proletariado. Essa burguesia sofreu influncia dos ideais do Iluminismo e da Independncia americana.

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dominante, que so planejadas as reformas que fazem garantir a existncia da dominao e da explorao de uma classe pela outra. Essa relao entre Estado e burguesia ser aqui tratada com ateno especial, por considerarmos que existem interesses distintos no interior da classe burguesa e que a correlao de foras que pode ser estabelecida pela classe trabalhadora pode frustrar algumas expectativas da classe dominante. O fato que a anlise da histria do Brasil demonstra a influncia que a burguesia sempre exerceu junto ao Estado, pois sempre foi comum a presso sobre os governos, a compra de opinies e de ideias, assim como aproveitar-se da riqueza para ascender na poltica, para depois transformar a autoridade inerente ao cargo em proveito prprio ou de grupos especficos. Essas relaes, que so marcas de toda a histria brasileira, no so diferentes nos perodos estudados, seja no regime autoritrio, seja no democrtico. Sobre essa influncia que a burguesia nacional exerceu e exerce sobre o Estado brasileiro, muito se tem especulado entre os historiadores, contudo, neste trabalho, ao tratarmos da educao superior, optamos por apresentar fatos que demonstrem essa participao e que evidenciem o grau de influncia exercido sobre os governos e sobre as respectivas decises polticas e econmicas. O que temos claro, de acordo com o Dicionrio do Pensamento Marxista (2001), de Tom Bottomore, que o Estado realmente um agente ou instrumento cuja dinmica e impulso vm de fora dele, o que deixa de levar em conta muito da concepo marxista do Estado tal como foi formulada por Marx e Engels. (BOTTOMORE, 2001, p. 134) Se, para Marx, o Estado detinha considervel autonomia, consideramos que, no caso brasileiro, sua autonomia relativa em virtude da influncia burguesa que discutiremos neste trabalho. Se isto vale para o Regime Militar, esta validade potencializada no governo FHC, pois a a burguesia que realmente detm o capital financeiro internacional passa a dominar o Estado, pois no h mais o nacionalismo e a viso nacional estratgica que tinham os militares. Em que pesem as contradies e os interesses da burguesia, as crticas de Marx e Engels e os movimentos que tentaram derrubar o Estado capitalista, como a Comuna de Paris de 187118, o capitalismo seguiu seu rumo, marcado por crises,18

Momento em que as massas populares proletrias assumiram o controle do Estado francs e tentaram transformar a sociedade no sentido de garantir o fim da explorao e a formao de uma sociedade baseada

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mas se recuperando e cada vez mais fortalecendo a lgica da acumulao por parte da classe dominante. Por outro lado, enquanto aumentava a acumulao por parte de uma minoria e se multiplicava a pobreza entre a maioria, aquilo que era crescimento passou a ser um problema inadministrvel e que poderia ser responsvel pelo ocaso do prprio capitalismo. A acumulao desmedida transformou-se em sua possvel destruio.19 A grande crise do capitalismo de 1929, embora tenha causado a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, com enormes prejuzos a pequenos investidores e classe trabalhadora em geral, trouxe consigo reestruturaes e reformas que modificaram sobremaneira as relaes capital x trabalho. Estas reformas trouxeram novas formas de explorao da classe trabalhadora com a mediao necessria para que essa classe no encontrasse foras para buscar sua emancipao. A crise e as medidas tomadas provocaram tambm novas configuraes para os conceitos de pblico e privado. O fato que o Estado veio em socorro da alta burguesia, que no alterou seu modo de vida, mesmo com os prejuzos sofridos. No contexto dessa crise, destacamos as proposies de John Maynard Keynes (1883-1946), autor de A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1982), que contribuiu para a implementao do chamado Estado de Bem-Estar Social ou Estado providencial. Analisando os aspectos econmicos do contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Grande Depresso (1929), momento em que o capitalismo conhecia uma crise sem precedentes,20 Keynes interpreta a realidade da poca a

na real igualdade. Os operrios e o povo da Comuna foram dizimados, tendo durado 72 dias e sucumbido diante da superioridade de recursos de seus inimigos de classe. 19 De acordo com Istvn Mszars, a novidade histrica de nossa crise estrutural manifesta-se em quatro temas principais: 1. mais do que restringido a uma esfera particular (por exemplo, financeira, comercial ou de um ou outro ramo da produo, ou de um ou outro sector particular de trabalho, com sua gama especfica de capacidades e grau de produtividade, etc.), seu carcter universal; 2. mais do que limitado a uma srie particular de pases (como foram todas as mais importantes crises do passado, incluindo a grande crise mundial de 1929-1933), seu alcance realmente global (no sentido mais extremadamente literal do termo); 3. mais do que restrita e cclica, como foram todas as crises anteriores do capitalismo, sua escala temporal alargada, contnua permanente, e 4, no que respeita a sua modalidade de desenvolvimento, defini-la como sub-reptcia poderia ser uma descrio adequada em contraste com as erupes e os desmoronamentos mais espetaculares do passado , com a advertncia de que no se excluem para o futuro nem mesmo as mais veementes e violentas convulses, uma vez quebrada aquela complexa mquina hoje ativamente empenhada na gesto da crise e na transferncia mais ou menos provisria das crescentes contradies (MSZROS, 2004, p. 11). 20 A economia autorregulada e a aplicao da poltica do livre mercado chegaram ao ponto em que o capitalismo no mais se sustentava daquela maneira. A filosofia do mercado livre tornou-se dominante nos Estados Unidos e nos pases ricos da Europa durante o final do sculo XIX at o incio do sculo XX. Questes como juros, moeda, poupana, investimento e emprego eram implementadas em uma lgica que no conseguia mais garantir desenvolvimento. O Estado precisava regular as atividades. A ganncia e a explorao capitalista provocavam a acumulao exagerada de capital, formando um capitalismo de monoplio. A crise advm da extrema aplicao dos conceitos do capitalismo, chamado de capitalismo selvagem, ou seja, do exagero na acumulao e na explorao da classe dominada. As revoltas dessa classe trabalhadora em face do

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partir da realidade norte-americana, trazendo ideias bastante consideradas no mbito da economia clssica. Ele considerava a questo do emprego como ponto vital para anlise das aes que deveriam ser implementadas pelo Estado. A participao do Estado em funes bem especficas nas esferas econmica e social passou tambm a ser considerada condio sine qua non para a sada da crise. Keynes argumenta que o Governo deveria suplementar a insuficincia de demanda do setor privado. Podemos considerar que, com Keynes, tem incio um novo modelo de economia, que pretendia ser capaz de diagnosticar e evitar as flutuaes nos preos, produto e emprego (KEYNES, 1982, p. 15-11), considerando o mbito global. Em sntese, Keynes prope a interveno estatal, a administrao e o gerenciamento do mercado como o nico meio para evitar a destruio das instituies econmicas, [...] e evitar o socialismo (ORSO, 2007, p. 169).21 Como as medidas precisavam ter abrangncia global, a partir da influncia de suas ideias, foram criados organismos financeiros multilaterais como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetrio Internacional (FMI). Embora no Brasil no tenha havido um efetivo Estado de Bem-Estar social, o estudo do tema interessante, pois aponta as circunstncias internacionais que, de certa forma, produziram influncias no pas. A Consolidao das Leis Trabalhistas22 e a queima do caf, em 1931, para regular o preo do produto, ambas no governo de Getlio Vargas, so exemplos da influncia dessas orientaes. O Estado detentor dos meios de produo e garantidor da infraestrutura para a indstria nacional outro exemplo bastante marcante no pas e que perdurou at o Regime Militar. Esse Estado providncia keynesiano, a partir do momento em que cumpriu a misso de salvar o capitalismo e que durou at a proximidade dos anos 1950, passa a ser duramente criticado por alguns liberais radicais, como Friedrich V. Hayek (1899-1992), autor de O Caminho da Servido (1987), sendo ele conhecido por ter orientado o advento do que foi chamado de neoliberalismo23 com caractersticasdesemprego e da explorao e o fantasma do comunismo/socialismo passaram a ser considerados as maiores preocupaes da classe burguesa americana e europeia. 21 Cabe destaque neste sculo as revolues russa, chinesa e cubana. 22 Por intermdio do Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1943. 23 Paulino Jos Orso, na obra Liberalismo e Educao em Debate, esclarece que no h motivos que justifiquem chamar o perodo que se passa a partir do ltimo quartel do sculo XX de neoliberalismo. Trata-se do ultraliberalismo, definio que sintetiza e articula o liberalismo clssico (tese) com o liberal-intervencionismo (anttese). "Se existe algo no liberalismo que se pode denominar de 'neoliberalismo', no so as polticas liberais atuais, mas sim as polticas keynesianas ou intervencionistas" (ORSO, 2007, p. 175). Embora se trate de um breve estudo, nele o autor faz um resgate histrico que demonstra claramente que no tem sentido falar

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prximas do pensamento de Smith, com destaque para a presena do Estado mnimo. Hayek defendeu acirradamente a necessidade do fim do Estado providncia keynesiano, o qual foi acusado por ele de favorecer o socialismo e o totalitarismo, em que o segundo seria o corolrio inevitvel do primeiro, de acordo com esse autor. Embora defenda os princpios do liberalismo, ele no totalmente contrrio participao do Estado na economia, concorda em alguns casos, como o da preveno da fraude ou do estelionato (HAYEK, 1987, p. 60) e, at certo ponto, no planejamento da economia, desde que ele seja realizado em prol da eficcia da concorrncia. Entende, contudo, que jamais o Estado pode dirigir uma grande parte da atividade econmica de acordo com um plano nico, pois isso suscitaria diversas opinies, o que dependeria de um cdigo de tica que, na realidade, no existe (Idem, p. 62-76) Em que pesem as teorias de Hayek, que, embora significativas, no so mais do que anlises de conjuntura (pois teorias no produzem a realidade), o recrudescimento do liberalismo na segunda metade do sculo XX se enquadra nas inovaes histricas necessrias reproduo do capital e na explorao da classe trabalhadora, em consonncia com a reestruturao produtiva do capitalismo, quando, a partir dos anos 1970, o modo de produo e acumulao fordista comea a ceder lugar ao modo flexvel, precarizando as relaes de trabalho, permitindo a continuidade e o aperfeioamento da explorao da classe trabalhadora. Quanto ao to propalado estado mnimo liberal, este historicamente teve foras para organizar a poltica para o interesse da classe dominante, para restringir a importncia dos poderes constitudos e preparar o terreno para que a mo invisvel do mercado atuasse. Por isto, Gaudncio Frigotto considera que a idia de Estado Mnimo significa o Estado Mximo a servio dos interesses do capital (FRIGOTTO, 1994, p. 59). O democrata Hayek adverte para o perigo de ideias como justia social, pois, dentro de sua concepo, essas ideias esto disfaradas de mecanismos para a participao do Estado, o que, em ltima instncia, leva interveno exagerada, diminuindo a liberdade e a igualdade perante as leis, caractersticas vitais do

em neoliberalismo para designar a ideologia de justificao do capitalismo no perodo em apreo, posto que "tanto Keynes, quanto Hayek, e Friedman afirmam que a virada do liberalismo ocorreu a partir das polticas keynesianas" (Idem, 176).

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liberalismo. 24 Para ele, essa ameaa interna pode ser introduzida aos poucos nas democracias liberais, trazendo ideias utpicas de coletividade, que podem conduzir os cidados a uma absoluta condio de servido.25 Fazendo uma espcie de manifesto capitalista, Hayek conclama que Urge reaprendermos a encarar o fato de que a liberdade tem o seu preo e de que, como indivduos, devemos estar prontos a fazer grandes sacrifcios materiais a fim de conserv-la (1987, p. 133). Hoje em dia observamos que o sacrifcio feito em todos os nveis: o detentor do capital sacrifica (ou investe) parcela de seu lucro na propaganda liberal e na filantropia e o trabalhador sacrifica sua fora de trabalho para o enriquecimento do patro, uma vez que, na acepo de Locke, a capacidade de trabalhar o bem material que o cidado possui.26 Em Financiamento da Educao Superior (2003), Nelson Cardoso Amaral considera que O colapso do sistema poltico-econmico, denominado, por Harvey, de Fordista-Keynesiano, deu-se a partir de 1973, quando a sociedade capitalista incorporou novas e mais flexveis formas de produo (AMARAL, 2003, p. 42). No Brasil, um pouco mais tarde (dcada de 1990) que na Europa, este modo de produo mais flexvel provoca a forma de acumulao tambm mais flexvel, contudo mais prejudicial classe trabalhadora, pois o mercado no reconhece necessidades sociais, ele explora o trabalhador e privilegia o detentor do capital. Os investimentos na rea social decrescem, a fome e a misria aumentam e a educao estatal, principalmente a superior, sofre cortes oramentrios desastrosos, como veremos adiante. Entre as causas que provocaram a destruio do Estado do Bem-Estar Social esto ainda a assuno ao poder, em 1979, de Margareth Tatcher, na Inglaterra; um

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Segundo Fiori (1997), se considerarmos o papel do Estado e das polticas pblicas, do ponto de vista rigorosamente essencial, no h diferena entre o novo e o velho liberalismo. Ressalta, portanto, que de Adam Smith a qualquer dos contemporneos, a ideia motora, as teses e as propostas centrais do liberalismo seguem sendo as mesmas. Primeiramente, porque se busca antes de tudo: o menos de Estado e poltica possvel. Isto , desde os pioneiros do liberalismo, a proposta foi, e segue sendo, a busca da despolitizao total dos mercados e a liberdade absoluta de circulao dos indivduos e dos capitais privados. Em segundo lugar, antes como agora, segue sendo feita pelos liberais a mesma defesa intransigente do individualismo. Em terceiro lugar, antes como agora, o tema da igualdade social apareceu no discurso dos liberais do passado, assim como nos de hoje, apenas enquanto igualao de oportunidades ou condies iniciais igualizadas para todos (FIORI, 1997, p. 212). 25 Hayek defende o fim do intervencionismo do Estado e a volta do mercado livre, com as caractersticas do liberalismo clssico, ideias com as quais Keynes passa a concordar, demonstrando que sua preocupao com o Bem-Estar Social, na verdade, tratava-se do bem-estar do capitalismo. 26 Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua prpria pessoa. A esta ningum tem direito algum alm dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mos, pode-se dizer, so propriedade dele (Locke, 1998, p. 407 e 408).

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ano depois, Ronald Reagan, nos Estados Unidos; e, em 1982, Khol, na Alemanha. Neste sentido, governos liberais foram assumindo o poder em vrios pases importantes, provocando a consolidao do ultraliberalismo.27

Os governos Tatcher contraram a emisso monetria, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre rendimentos altos, aboliram controles sobre fluxos financeiros, criaram nveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislao antisindical e cortaram gastos sociais (SADER & GENTILI, 1995, p. 12).

Essas caractersticas do liberalismo implementadas a nvel global na dcada de 1970 j esto presentes no Regime Militar brasileiro e so ampliadas no Governo FHC, pois nos governos militares,28 embora a burguesia comandasse de fato a economia, o Estado assumia para si as decises e a implementao das polticas para dentro da estrutura do governo, causando a impresso de que os militares tinham a autonomia na conduo das polticas. J no Governo FHC, embora o Estado prossiga como regulador e financiador das polticas pblicas, a execuo de grande parte delas passa para empresas terceirizadas ou para a prpria sociedade civil,29 sob a forma de Organizaes No-Governamentais (ONGs), enquadras no Terceiro Setor da economia, passando a receber incentivos e recursos diversos, para o cumprimento do papel que seria do Estado. Assim, a burguesia tem duas possibilidades de se beneficiar, seja na influncia para a destinao dos recursos, seja no recebimento desses recursos para gerir a atividade que seria estatal.

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Com base nos estudos de Orso (2007), citado anteriormente, utilizaremos a expresso ultraliberalismo para designar a expresso ideolgica do capitalismo que representa a superao e o aperfeioamento do liberalismo clssico e do intervencionismo keynesiano, posto que o capitalismo na passagem do sculo XX para o XXI preserva caractersticas da ortodoxia liberal do Estado-mnimo e, ao mesmo tempo, defende a presena do Estado como regulador das atividades do mercado, no justificando, portanto, cham-lo de neoliberalismo. Concordamos com o autor de que a interpretao equivocada desses conceitos causa prejuzos luta contra o prprio liberalismo, bem como contra a expresso material que o sustenta, o capitalismo. 28 Conforme j adiantamos, embora durante o Regime Militar 6 (seis) presidentes e uma Junta Militar estivessem frente do Poder Executivo do pas, no nos aprofundaremos nas especificidades dos mesmos com relao a nosso objeto de pesquisa, no entanto, durante o trabalho, citaremos caractersticas que os diferenciam, particularmente com relao ao carter autoritrio e democrtico de cada um deles, que teve momentos de intensificao e retrao. 29 Embora sociedade civil seja uma expresso de cunho liberal atribuda a John Locke, neste trabalho a compreendemos como todo o conjunto da sociedade, que, como sabemos, dividida em duas classes sociais antagnicas: uma burguesa dominante que detm a propriedade dos meios de produo e outra trabalhadora, dominada, que no possui propriedades e que vende sua fora de trabalho para garantir a sobrevivncia diria. Quando argumentamos que a sociedade civil passa a administrar servios pblicos ou empresas educacionais, nos referimos parcela da sociedade civil que participar dessa administrao e que obter lucros com isso, que jamais ser a classe dominada, mas a burguesia dominante. Procuramos evidenciar sempre essa dicotomia no decorrer do trabalho.

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No que tange ao ensino superior, as reformas sempre foram implementadas com vistas aos interesses do capital, pois, em linhas gerais, esse ensino superior reformado pelos militares para atender demanda da economia, que necessitava de mo-de-obra especializada em face do momento histrico em que vivia o capitalismo, dado o aumento da produo e da industrializao. Em relao ao Governo FHC, em geral, a reforma se d para atender s regras flexveis da reestruturao produtiva do capital em curso na poca, momento em que as alteraes na produo levam necessidade de profissionais tambm cada vez mais flexveis. Em face do exposto acima, julgamos que nosso estudo sobre a segunda metade do sculo XX ser melhor compreendido se nos utilizarmos do recurso da comparao entre os perodos histricos, Governo FHC e Regime Militar. Consideramos que, a partir do momento em que pensamos na histria, tendemos a comparar. Comparamos nmeros, fatos, ideias, pocas, polticas, leis, etc. Esse procedimento, inicialmente instintivo, pode ser levado aplicao metodolgica para que produza conhecimento, podendo, assim, ser enquadrado como um

procedimento cientfico. Ao iniciarmos um estudo, necessrio que apontemos uma direo metodolgica, pois, conforme lvaro Vieira Pinto, em Cincia e Existncia (1979), [...] os diversos tipos de mtodo se originam sempre em funo dos objetos e das situaes que o homem tem interesse em investigar, e de acordo com o desenvolvimento das foras produtivas que permitem levar a cabo essa investigao (PINTO, 1979, p. 39). Para que nossa pesquisa tenha xito, elegemos a comparao e a crtica como o caminho a ser perseguido, considerando que os objetos em estudo so comparveis, por se tratarem de momentos em que se evidenciou a problemtica que estamos estudando, a saber, o aumento do nmero de IES privadas, em detrimento das estatais. A lgica formal esttica, (...) no aceita a contradio e o conflito (PIRES, 1997, p. 84), no entanto, se, em determinado momento, isolamos

microconfiguraes para compararmos, estaremos atentos para no confundirmos as analogias superficiais com as similitudes profundas (CARDOSO, BRIGNOLI, 2002, p. 413) e para comparar o realmente comparvel (DETIENNE, 2000, p. 42), buscando captar, detalhadamente, as articulaes dos problemas em estudo, analisar as evolues, rastrear as conexes sobre os fenmenos que os envolvem

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(PIRES, 1997, p. 85), pois a natureza dialtica da sociedade pressupe que ela se movimenta e contraditria, e, por isto, temos que apreender o que dela essencial (Idem, p. 87). o que pretendemos, ao ampararmos nossa pesquisa em aspectos econmicos sobre os perodos estudados. Ao invs de to-somente interpretar a histria estudada, de forma tautolgica, nosso propsito , atravs da pesquisa crtica e rigorosa, contribuir, ainda que minimamente, para a transformao da ordem, conforme Marx props na tese onze sobre Paul Johann Anselm von Feuerbach, ao acusar os filsofos do passado de no serem capazes de transformar o mundo (MARX, 1988, p. 29). Ao apresentarmos crticas excessiva privatizao do ensino superior, buscaremos apresentar possveis solues ou sadas, ainda que seja a demonstrao da inviabilidade dessas solues ou sadas no mbito desta forma de Estado. A pesquisa comparativa citada por vrios autores como algo que se evidencia no sculo XX, ou seja, algo novo, no entanto, autores como Demtrio Castro Alfin, na obra Compreender Comparando, Jalones de una Bsqueda en Histria y Ciencias Sociales (1992-1993), remonta a comparao ao esquema historiogrfico de Herdoto, na contraposio entre brbaros e helenos, persas e gregos, autocracia e liberdade (ALFIN, 1992-1993, p. 77). O autor cita diversos aspectos histricos at chegar a mile Durkheim, o qual considera ter feito da sociologia uma cincia da comparao e ter colocado nela (na comparao) a possibilidade de uma histria cientfica. O autor Charles S. Maier, em La Historia Comparada (1992-1993), trata do mtodo comparativo em Tocqueville e em Marx. Ele exemplifica que, quando Marx e Engels analisam o fracasso da revoluo de 1848, em relao de 1789, isso j implicava, ao menos, implicitamente, um contraste histrico (MAIER, 1992-1993, p. 13). A estaria a razo para se comparar. O autor cita tambm Montesquieu, Hume, Saint-Simon, Comte, Spencer, Max Weber, autores que, embora no venhamos a estud-los neste trabalho, no podemos desconsiderar a hiptese de que eles interpretaram as fases do desenvolvimento da humanidade, e assim, acabavam, na maioria das vezes, comparando. A historiadora Anita Leocdia Prestes, em O Mtodo Comparativo no Estudo da Histria do Partido Comunista do Brasil (2003), destaca que, qualquer que seja a opo do historiador, no que se refere ao entendimento da histria comparada, considera importante ter como pressuposto que o mtodo comparativo conduz, pela

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sua prpria natureza, ruptura da singularidade dos casos e dos processos. Permite tambm, eventualmente, uma volta ao caso singular ou especfico, muito enriquecida pela ampliao terica resultante da comparao (PRESTES, 2003, p. 157). Ainda no sentido de comprovar a validade do mtodo da comparao, Marcel Detienne (2000), na obra Comparar lo Incomparable (2000), esclarece qual deve ser o trabalho do comparatista: o comparatista realiza uma desmontagem lgica que lhe permite descobrir as articulaes existentes entre dois ou trs elementos, isolar microconfiguraes que permitem ver diferenas cada vez mais afinadas e contguas (DETIENNE, 2000, p. 52). [traduo nossa] Na apresentao da revista Estudos Ibero-Americanos (2003), Ren E. Gertz comenta apropriadamente que a compreenso do que seja e a prtica da comparao so bastante diferentes de autor para autor (GERTZ, 2003, p. 6). Em nosso caso, pretendemos conduzir este trabalho do ponto de vista comparativo crtico, negando as interpretaes positivistas e meramente quantitativas30, por isto no se trata aqui de comparar no sentido de contrapor simplesmente, buscando apontar semelhanas e diferenas, mas trata-se de identificar assuntos relacionados aos dois momentos histricos e que sejam importantes de serem estudados como eixos de compreenso, no simplesmente como microconfiguraes que no apresentam vnculos ou relaes de continuidade. Nesse sentido, importante esclarecer que estamos realizando o estudo de um mesmo fenmeno em momentos diferentes e que, para tal, consideramos que preciso estabelecer eixos temticos que se relacionam nos dois momentos, mesmo que no se manifestem de forma linear e, por vezes, sejam at contraditrios. Cada um dos eixos escolhidos merece um estudo e um tratamento especfico, estudo que pretendemos fazer no segundo captulo, para que, ao tratar da privatizao especificamente no ltimo captulo, tenhamos mais clareza de como se localiza nosso objeto no mbito do Estado e da sociedade que pretendemos investigar. No se trata, porm, de validar quaisquer ideias, mas aquelas que derivaram da prtica,30

[...] a quantificao dos fenmenos sociais apoia-se no positivismo e, naturalmente, tambm no empiricismo. As posies qualitativas baseiam-se especialmente na fenomenologia e no marxismo [...] surgiu uma dicotomia no campo da pesquisa da educao que alguns procuram manter. Essa dicotomia, j o indicamos, no tem razo de existir, analisada da perspectiva marxista e da prpria experincia dos pesquisadores [...] Toda pesquisa pode ser, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa (TRIVIOS, 1987, p. 117-118).

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que se constituram em teorias fundamentadas e que se relacionem ao pblico e ao privado no ensino superior no Brasil, em suas conexes com os fenmenos que as circunscrevem. Com efeito, apesar de serem fenmenos comparveis, o contexto histrico e a explorao dos dados por historiadores recentes so ainda bastante diferenciados e deficitrios, por isto estamos cientes de que a comparao entre o Regime Militar e o Governo FHC conduzir a resultados possivelmente inditos, pois, como adverte Marcela Pronko, no artigo intitulado A Comparao Histrica e a Histria do que no foi: desafios para a pesquisa histrica em Amrica Latina (2003), A riqueza da comparao est mais no processo de pesquisa do que na forma de redao, est nas perguntas que nos permitem colocar e nas relaes que nos permitem enxergar, antes que na enumerao tediosa de semelhanas e diferenas (PRONKO, 2003, p. 3). A autora trabalha com a ideia de ncleos temticos que envolvem duas realidades distintas mesmo que as realidades no apresentem relaes diretas o que aqui, neste trabalho, reiteramos, chamamos de eixos temticos. Esses eixos sero apresentados e explorados no segundo captulo, no entanto, durante todo o trabalho estaremos apresentando questes que podem ser comparadas e que, embora a comparao no se explicite formalmente em todos os momentos, ela ser compreendida como tal. Sobre a tica com que se observa o objeto no Regime Militar e no Governo FHC, podemos adiantar que a crtica atinge profundamente o Estado capitalista, no sentido de que as reformas de cunho liberal influenciam na educao superior, que, ao se tornar privada, causa prejuzos classe trabalhadora, prejuzos que, possivelmente, seriam menos observados em uma educao estatal. Essa assertiva precisa, contudo, ser relativizada, pois, mesmo no interior da educao estatal, existem diferenas que se relacionam s classes sociais, havendo instituies com cursos de elite para alunos oriundos da classe dominante e cursos sem garantia de emancipao financeira futura, estes para a classe subordinada.31 Na realidade, o que define se a educao emancipa ou no economicamente no o tipo de IES, nem o curso que o aluno frequenta. Em geral, os cursos e as instituies frequentados pela classe trabalhadora no emancipam, porque as condies31

Sabemos que a educao gratuita, pblica e universal tem sido uma bandeira liberal que d a noo da garantia de direitos de igualdade, justificando, em ltima instncia, a desigualdade justa porque natural (XAVIER, 1990, p. 61). Como comentamos, baseados nos autores citados, seguimos, no entanto, defendendo a escola estatal como espao de contradio e possibilidade de oposio ao capital.

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materiais dos prprios indivduos j esto dadas. Aps a formao existem as boas relaes que a elite tem com a burguesia, a possibilidade de criar seu prprio espao abrindo um negcio, sem nenhuma urgncia, ao passo que o trabalhador recm-formado necessita com urgncia se empregar e acaba aceitando ser explorado em troca da garantia de estar empregado. Por isto, o estudo dos aspectos educacionais em si no pode se fechar diante da totalidade. A necessidade que se impe ao estudarmos a privatizao do ensino superior no Brasil que a compreendamos luz da histria do capitalismo global, bem como de sua manifestao ideolgica, que o liberalismo.32 Para tal, nossa pesquisa remonta Europa do sculo XVII e XVIII, para que, embora de maneira breve, verifiquemos que as prticas liberais implementadas na segunda metade do sculo XX, no Brasil, tem suas razes na gnese do Estado liberal surgido a partir do processo de industrializao, desde aquela poca. Igualmente importante recorrermos compreenso de como se deu a insero do Brasil no capitalismo (ou vice-versa), os embates polticos e econmicos e o aspecto tardio (ou mesmo hipertardio), que no lhe permitiu vivenciar a transio do feudalismo ao capitalismo (CHASIN, 2000, p. 54), tendo o desenvolvimento da cincia e da tecnologia ocorrido de modo internacionalizado, baseado na importao de tecnologia. Isto explica o carter perifrico da produo cientfica e uma possvel causa da influncia de outros pases para as polticas educacionais.33 A burguesia e os polticos brasileiros parecem no ter conseguido pressupor que seria preciso investir em educao no sentido de formar pesquisadores nacionais, como garantia da soberania nacional e independncia intelectual. Trocam-se os governos civis, militares, liberais, democratas, pseudossocialistas trocam-se as ideologias no poder e a elite brasileira parece estar cada vez mais preocupada com seu prprio umbigo, deixando o pas de ccoras diante do cosmopolitismo, parafraseando Jos Luis Fiori, na obra O Cosmopolitismo de Ccoras (2001).

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O liberalismo nasceu com o capitalismo, justificando-o e dirigindo sua plena consolidao. [...] o liberalismo surgiu como expresso historicamente necessria do modo de produo capitalista, no s em sua fase de estruturao e consolidao na qual o liberalismo foi imposto como viso de mundo, atravs da qual a burguesia dirigiu o processo de luta contra a antiga ordem e de construo da nova como tambm nas fases seguintes, de crescente expansionismo, nas quais a burguesia precisou da disponibilidade subjetiva para que o capitalismo fosse aceito como natural e necessrio, identificado ao progresso, desenvolvimento, democracia, liberdade, etc. [...] Sob essa perspectiva, o liberalismo no s a primeira ideologia, mas fundante da prpria ideologia como categoria concreta da ordem capitalista (WARDE, 1984, p. 26). 33 Conforme apontamos em estudos anteriores, relacionados a nossa monografia intitulada O Pblico e o Privado no Ensino Superior: o caso de Cascavel (PERES, 2006),

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A presente pesquisa, por tratar de dois momentos diferentes, porm recentes, em que alguns personagens permanecem vivos, trabalhando e produzindo, requer um cuidado especial e valoriza cada vez mais a necessidade de estarmos atentos formalidade dos fatos, das fontes e dos dados estatsticos, pois esses mesmos indivduos que hoje produzem e mesmo os que produziram nas pocas consideradas esto demasiadamente presos a interesses de grupos que, para defender, seja o governo, seja a esquerda, acabam por comprometer a compreenso da realidade. Luclia de Almeida Neves Delgado, no artigo intitulado 1964: Temporalidade e Interpretaes, comenta apropriadamente que as interpretaes reportam histria no mnimo atravs de trs pressupostos, o olhar dos autores que a analisam; os vnculos tericos desses intrpretes e a poca ou perodo nos quais produziram sua interpretao e sua narrativa sobre o acontecido (DELGADO, 2004, p. 16). considerando essa perspectiva que elegemos os autores e fontes a serem utilizadas neste trabalho. Dentro do contexto do fenmeno da globalizao e da mundializao do capital financeiro34, diversas so as mudanas que ocorrem no mbito do aparelho do Estado, colocando em evidncia o valor da comparao. Os perodos estudados nesta investigao fazem parte de contextos internacionais distintos. No Regime Militar, o Estado-Nao relativamente presencial e desenvolvimentista tendia ainda a coexistir com o incio da transnacionalizao das economias e dos mercados. No Governo FHC, com o processo de globalizao em pleno andamento, o Estado redefinido ultraliberal35 e atuante, sem a referncia do nacionalismo e do desenvolvimentismo. Nesse momento, na acepo de Luiz Carlos Bresser Pereira, o Estado social-liberal36 e no neoliberal como aponta a grande maioria dos autores brasileiros.37 H nesse governo um perfeito alinhamento com a

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Na acepo de Franois Chesnais, em A Mundializao Financeira: gnese, custos e riscos (1998). De acordo com a acepo atribuda por Paulino Jos Orso, no artigo intitulado Neoliberalismo: equvocos e conseqncias, na obra j citada anteriormente. 36 Na perspectiva de Bresser Pereira, o Estado proposto social porque continuar a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econmico. liberal porque continuar usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizar seus servios sociais e cientficos principalmente por intermdio de organizaes pblicas no-estatais competitivas (PEREIRA, 1998, p. 40). Ou seja, utilizando os controles do mercado. 37 Durante o trabalho nos apoiaremos em autores que utilizam o termo neoliberalismo para designar a expresso ideolgica do capitalismo no final do sculo XX, em face de que os trabalhos dos mesmos so relevantes e contribuem para nossa compreenso do objeto. Embora faamos citaes deles, ratificamos nossa compreenso de que o termo ultraliberalismo o mais adequado s polticas implementadas no perodo.

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reestruturao econmica do capitalismo38 a nvel mundial, com todas as caractersticas e problemas da flexibilizao e da precarizao do trabalho e da educao. Em qualquer desses momentos, a globalizao pode ser caracterizada como uma ameaa autonomia dos Estados menos desenvolvidos na formulao e na implementao de polticas, posto que a orientao passa a ser dos organismos internacionais. No perodo de transio entre os militares e o Governo FHC, e desde o incio do Governo Fernando Collor de Mello (1990), h uma preocupao com a diminuio do Estado para servir apenas como regulador das relaes de mercado, favorecendo as polticas internacionais de insero definitiva do pas no processo de globalizao insero essa criticada com propriedade por Fiori (2001), pois o autor revela a posio subordinada que o Brasil passou a ocupar no contexto do processo de globalizao, com a desintegrao definitiva de qualquer idia de nao (FIORI, 2001, p. 26). Merecem anlise, neste caso, as contradies supranacionais presentes, assim como as demais contradies endgenas ao pas. Diante desta compreenso inicial de nosso objeto de estudo, durante o trabalho nos propomos a apresentar caractersticas especficas de cada momento histrico abordado, dando nfase questo do mtodo, no intuito de, a partir da crtica feita ao mesmo, demonstrar sua necessidade e validade, bem como sua importncia para a pesquisa, a despeito das prticas pedaggicas que so conduzidas por instituies privadas consideradas como verdadeiras empresas fornecedoras de diplomas e certificados, que relegam o mtodo e a teoria a segundo plano, causando uma profunda crise na educao, conforme explicita Maria Clia Marcondes de Moraes, na obra Iluminismo s Avessas (2003), ao tratar do Recuo da Teoria. Com efeito, a historiografia brasileira recente tem dado espao ao estudo das relaes entre o pblico e o privado no ensino superior39. Observamos, contudo, que

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Sobre reestruturao produtiva, recomendamos a leitura da obra O Caracol e sua Concha ensaios sobre a nova morfologia do trabalho (2005), de Ricardo Antunes; Crtica Razo Dualista o ornitorrinco (2003), de Francisco de Oliveira; O Avesso do Trabalho (2004), de Ricardo Antunes e Maria Aparecida Moraes da Silva; Reestruturao Produtiva no Brasil: um balano crtico da produo bibliogrfica (2001), de Paulo Srgio Tumolo; e Para Alm de Marx crtica da teoria do trabalho imaterial (2005), de Srgio Lessa. 39 Podemos destacar vrias obras e autores que tratam deste tema, dentre elas: Novas Faces da Educao Superior no Brasil Reforma do Estado e Mudana na Produo (SILVA JR & SGUISSARDI, 1999), Universidades na Penumbra neoliberalismo e reestruturao universitria (GENTILI, 2001b), Universidade e Cincia na Crise Global (COGGIOLA, 2001), Financiamento da Educao Superior Estado x Mercado (AMARAL, 2003), Neoliberalismo, Qualidade Total e Educao (GENTILI & SILVA Org., 1995), Educao Superior: uma reforma em processo (NEVES & SIQUEIRA, 2006), Reforma do Estado da Educao no Brasil

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nessas obras, geralmente, dada prioridade reforma gerencial do Estado realizada pelo Governo FHC e suas consequncias para o ensino superior, chegando at a reforma universitria em curso, havendo poucas mediaes ou contrapontos com o perodo do Regime Militar. Dentre os trabalhos que analisam a educao superior no Brasil sob a perspectiva tcnica, mas sem fugir do contexto de totalidade, destacamos o recente Mapa do Ensino Superior Privado (2008), da pesquisadora da USP Gladys Beatriz Barreyro, trabalho em que a autora faz uma sntese histrica da educao superior brasileira, com destaque para seu carter privado, buscando elementos para a anlise do momento presente, alm de apresentar e comentar dados atuais sobre o ensino superior privado, proporcionando-nos uma fonte de consulta e instrumento esclarecedor da realidade educacional brasileira. Ainda neste sentido, existem vrias obras (em sua maioria coletneas de artigos) brasileiras escritas na segunda metade do sculo XX que tratam do ensino superior e o fazem numa perspectiva histrica, geralmente considerando o perodo do Regime Militar como um momento de governos autoritrios que sofreu influncias internacionais e que inclusive iniciou a insero do pas no que foi chamado globalizao de cunho liberal.40 Poucas fazem, contudo, uma crtica profunda s polticas privatistas no campo da educao implementadas pelos governos do Regime Militar. Alm disso, no se detm na baixa qualidade do ensino que passou a ser ministrado nas IES isoladas,41 em sua maioria privadas, instituies em que no havia qualquer compromisso com a pesquisa de interesse nacional ou com a formao poltica do indivduo,42 conforme j apontamos, com base em Saviani. Em geral, destacada como positiva a criao de IES estatais pelos governos militares, tendo sido criadas 104 instituies,43 sendo 15 universidades federais. Ao mesmo

de FHC (SILVA JR, 2002), Liberalismo e Educao em Debate (LOMBARDI & SANFELICE, 2007), dentre outras. 40 Dessas obras que tratam (embora no com exclusividade) do pblico e do privado na educao em um contexto mais amplo, destacamos O Banco Mundial e as Polticas Educacionais (TOMMASI, WARDE e HADDAD, 1996), Ensino Pblico e Algumas Falas sobre Universidade (SAVIANI, 1991), Ideologia do Progresso no Ensino Superior (NADAI, 1987), Escritos sobre a Universidade (CHAU, 2001), O Pblico e o Privado na Histria da Educao Brasileira concepes e prticas educativas (LOMBARDI, JACOMELI E SILVA, 2003), A Universidade Brasileira: reforma ou revoluo? (FERNANDES, 1979), O Pensamento Privatista em Educao (FONSECA, 1991) e A Questo da Universidade (PINTO, 1994). 41 Entende-se por estabelecimentos isolados aqueles que no se constituem como universidades. 42 Embora, nas IES pblicas, a formao poltica fosse direcionada para as reas de interesse do Regime, evitando-se o contedo crtico da educao. 43 Algumas instituies foram estatizadas durante o Regime Militar, o caso da UNIOESTE, localizada em CASCAVEL/PR, que foi criada a partir da estatizao de vrias faculdades que funcionavam sob a forma de fundaes em quatro municpios da regio Oeste do Paran ( MARTIN, 2008, p. 111)

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tempo, foram criadas 383 instituies privadas, sendo a grande maioria estabelecimentos isolados. 44 Desta forma, observamos que existe um relativo vazio de produo bibliogrfica em se tratando de obras que trabalhem com nfase a questo do pblico e do privado no ensino superior durante o Regime Militar,45 embora os militares, ao transferirem o poder aos civis em 1985, o fizessem com 73% das instituies sob o comando do setor privado, conforme j apontamos. Alm das obras e dos estudos brasileiros, merecem destaque documentos de organismos multilaterais, como a obra La Enseanza Superior las lecciones derivadas de la experiencia (1995), do Banco Mundial, que traz um fiel retrato do que foi pensado para o ensino superior brasileiro em sintonia com os pressupostos do encontro entre esses organismos e representantes de pases latino-americanos, em 1989, que foi denominado de Consenso de Washington46. A partir dessa poca h tambm uma ampla publicao por parte dos organismos oficiais na rea da economia que refletiu na relao pblico e privado no ensino superior, publicaes, que, na medida do possvel, analisaremos neste trabalho.44

Apesar da criao de universidades, nos governos militares houve uma reduo do percentual do pblico atendido nas universidades federais, que, em 1960, atendia 60% dos alunos matriculados no ensino superior e, em meados dos anos 1970, passou a atender 35% das matrculas (GERMANO, 1994, p. 207). Ademais, foram reduzidas as despesas com pesquisa, extenso e manuteno a patamares impraticveis, ficando as pesquisas dependentes de financiamentos de agentes externos, que, em geral, visavam (e visam) resultados numricos e lucros. 45 Em que pese a escassez ora reclamada, dentre os autores que estudamos, damos destaque a Jos Willington Germano, que, em Estado Militar e Educao no Brasil (1964-1985) (1994), faz um estudo bastante completo da educao brasileira, dando nfase estratgia privatizante da educao durante o Regime Militar. Particularmente, ao tratarmos da questo histrica no primeiro captulo e ao comparamos os aspectos polticos e econmicos no segundo, privilegiaremos a anlise da obra deste autor. Igualmente, a autora Maria Helena Moreira Alves, na obra Estado e Oposio no Brasil (1964-1984) (1984), d uma excelente contribuio anlise histrica do Regime Militar, citando dados inditos e com uma viso crtica extremamente esclarecedora. Do mesmo modo, o professor Dr. Teodoro Rogrio Vahl, na obra A Privatizao do Ensino: causas e conseqncias, escrita em 1980, no calor dos fatos que levaram ao processo de privatizao, apresenta nmeros elucidativos e faz uma denncia veemente sobre a criao das IES isoladas, forma pela qual o Regime Militar atendeu demanda da sociedade e dos movimentos estudantis por maior quantidade de vagas no ensino superior. Em um momento mais recente, obras como A Militarizao da Burocracia (2003), de Suzeley Kalil Mathias, do uma grande contribuio para esse estudo, pois ela denuncia a real participao da burguesia no governo dos militares para atingir seus propsitos. Ainda nos d bastante contribuio, Lalo Watanabe Minto, com a obra As Reformas do Ensino Superior no Brasil o pblico e o privado em questo do golpe de 1964 aos anos 90 (2006), na qual o autor descreve, de maneira bastante completa, a privatizao da educao superior no Brasil, considerando o processo em sua totalidade. Ele contextualiza historicamente a questo do liberalismo sob a perspectiva materialista dialtica e explora a viso de Karl Marx sobre pblico e privado, um trabalho difcil e meticuloso, em vista de que Marx no tratou diretamente deste assunto, embora o tenha feito ao tratar da poltica e da economia. Embora a comparao seja intrnseca qualquer investigao histrica - conforme argumentamos, no , contudo, preocupao de Minto recorrer formalidade do mtodo para comparar os perodos. 46 Neste encontro foram tratados assuntos como disciplina fiscal, priorizao dos gastos pblicos, reforma tributria, liberalizao financeira, regime cambial, liberalizao comercial, investimento direto estrangeiro, privatizao, desregulao e direito propriedade, no tendo sido tratados assuntos como educao, sade, distribuio de renda e pobreza (AMARAL, 2003, p. 47), ou seja, embora no tenha tratado de assuntos especficos sobre educao, refletiu sobremaneira nas polticas educacionais, corroborando a tese da supremacia da esfera econmica nas relaes com a poltica e educao.

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Dentre eles, destacamos, por exemplo, o texto n 23 0 do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), Privatizao no Brasil, Passado, Planos e Perspectivas (1991), que nos faz refletir que o processo de privatizao de empresas no Regime Militar no teve o mesmo ritmo que o processo de privatizao da educao. Enquanto o Regime era acusado pela excessiva presena na economia, o mesmo no ocorria na rea do ensino, o que nos permite analis-lo com outras perspectivas em relao ao processo ultraliberal j em curso naquele perodo. Ainda no propsito de apresentar uma indicao da literatura existente que demonstre a importncia que foi dada ao tema pblico e privado no ensino superior ao longo da recente histria brasileira, bem como os limites desta mesma produo, cumpre-nos ressaltar que existem vrios estudos, explicitados em teses, em dissertaes e em artigos nos bancos de dados eletrnicos da CAPES, da UNICAMP, do HISTEDBR, do SCIELO, em revistas especializadas, entre outros portais. De igual modo, foi extremamente til nossa pesquisa o levantamento e o emprego de fontes primrias, tais como leis, planos, projetos, relatrios, sinopses, entre outros. Evidenciamos alguma documentao pouco explorada, embora muito significativa, como os relatrios das comisses nacionais e internacionais que orientaram a reforma universitria no Regime Militar, declaraes de parlamentares e de ministros que atuaram na rea que demonstram com evidncia a priorizao do compromisso com o ensino voltado para os interesses do mercado, dentre outros documentos. No perodo do Governo FHC, damos nfase ao Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado e a algumas obras de Bresser Pereira, alm da Constituio Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), Lei n 9394/1996. Com relao bibliografia ora estudada, foi verificado que, muitas vezes, a perspectiva externa s universidades foge dos pesquisadores, pois, enquanto enquadrados nas mesmas universidades, compromissados com a produo cientfica, parecem no reconhecer a gama de instituies no universitrias perifricas que carecem serem estudadas. Isto se evidencia, inclusive, nos ttulos das obras, pois geralmente aparece o termo universidade47, que so apenas as instituies pluridisciplinares, de formao de quadros profissionais de nvel47

Mesmo alguns autores que fazem anlise do ensino superior como um todo, mesmo eles se apropriam da expresso universidade para designar o ensino superior, o que no coincide com a realidade.

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superior, que desenvolvem atividades regulares de ensino, pesquisa e extenso (MEC, 2008). O fato que o que predomina no pas so as IES isoladas. No ano de 2006, de um total de 2.270 IES, 2.092 (92,2%) no eram universidades. No mbito da esfera privada, das 2.022 existentes, 1.936 (95,7%) possuam outras organizaes acadmicas, isto , tratava-se de instituies no universitrias, ou isoladas. preciso, ento, um direcionamento e uma preocupao com o que ocorre nessas faculdades isoladas, pensando no ensino superior como um todo. As instituies isoladas, por serem, em sua maioria, privadas, contribuem sobremaneira para a difuso do pragmatismo imediatista do mercado e para o distanciamento do ensino vinculado pesquisa, inviabilizando a absoro e a reproduo do conhecimento produzido e acumulado historicamente. Acreditamos que a existncia de ampla publicao sobre o assunto no desfaz a necessidade de prosseguir neste estudo, haja visto que, apesar da produo, o quadro de incentivo ao setor privado permanece, sendo aperfeioado a cada momento, por programas e por reformas como o Programa Universidade para Todos (PROUNI), Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), o apoio aos Planos de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais (REUNI) e os programas de captao de recursos que causam uma privatizao por dentro das instituies estatais, como a realizada pelas chamadas Fundaes. Ademais, cada estudo possui suas peculiaridades, seu momento histrico, um olhar diferenciado e, da mesma forma, sua contribuio. Neste trabalho pretendemos, apoiados pela estratgia da comparao, explicitar o debate de forma a explorar, em vrios documentos e dados estatsticos, a subordinao das formas de governo e das polticas educacionais ao sistema do capital, ou aos interesses da burguesia. Alm das particularidades do Regime Militar, como a real influncia da burguesia na educao, buscamos investigar essa participao no governo FHC, em que a burguesia nacional defende os interesses internacionais, em perfeito conluio com esses interesses. Buscamos, nos eixos temticos existentes entre o Regime Militar e o Governo FHC, analisar fatores que desmistifiquem a crena de que as prticas que interessam ao capital se alteram ao se modificarem as formas de governo, sejam formas autoritrias ou democrticas.

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Nosso estudo parte da experincia de nos determos na anlise do pblico e privado na educao superior durante a elaborao de nossa monografia de especializao O Pblico e o Privado no Ensino Superior: o caso de Cascavel (2006), momento em que demonstramos alguns artifcios do Estado para transferir ao mercado a funo de conduzir o ensino superior. Naquela oportunidade consideramos a dcada de 1990 como delimitao do perodo histrico.48 Na presente dissertao, ampliamos nossa perspectiva temporal para a segunda metade do sculo XX, momento em que encontramos no perodo do Regime Militar uma forma de relao entre pblico e privado, que conduziu mesma ampliao do ensino superior privado que em FHC, mas que exige estudo diferenciado em face da forma autoritria de governo caracterstico da poca e da relao desse governo com a burguesia que controlava o mercado. O fenmeno do ensino superior a cargo da iniciativa privada no Brasil abarca aspectos polticos e econmicos histricos, os quais, submetidos a um estudo compartimentado, prejudicam a interpretao do processo, por isso, ao

compararmos, estaremos nos reportando teoria, para que a compreenso no seja fragmentada e para que o particular no seja isolado da totalidade que o envolve. Cabe salientar que procuraremos fazer uma anlise objetiva e

compromissada com a realidade, a fim de nos mantermos no compromisso com a prxis que a pesquisa pressupe, em que pese a elaborao de Elisa Pereira Gonsalves, em Iniciao Pesquisa Cientfica (2001), obra na qual a autora afirma que, na elaborao de um projeto de pesquisa, necessrio considerar trs dimenses, que esto interligadas: a dimenso tcnica, [...] a dimenso terica, [...] e a dimenso afetiva (GONSALVES, 2001, p. 13). o que pretendemos considerar neste trabalho, sem deixar, portanto, que a ltima dimenso comprometa a investigao. Estaremos atentos orientao do filsofo lvaro Vieira Pinto, exposta em Cincia e Existncia (1979), obra em que ele afirma que a verdadeira pesquisa cientfica deve fugir das influncias da metafsica, do idealismo, do empirismo, bem como da lgica tradicional e formal. Acrescentamos os cuidados com a influncia (negativa e atrativa) do pensamento ps-moderno, que, ao relativizar a objetividade, abre espao para o descompromisso com a transformao da sociedade.48

A monografia citada composta por um primeiro captulo no qual o objeto contextualizado historicamente, explorando o pensamento de autores clssicos do liberalismo; por um segundo captulo, tratando da questo da privatizao do ensino no Brasil nos anos 1990; e por um terceiro captulo, analisando o Municpio de Cascavel-PR, como consequncia inevitvel das prticas globais e nacionais.

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A transformao da sociedade esbarra na concluso exposta por Michael Lwy, para o qual a burguesia, enquanto classe (no apenas indivduos isolados no seu conjunto), nunca poder chegar ao nvel do ponto de vista do proletariado (LWY, 1999, p. 112), mesmo porque isso seria a confisso da inviabilidade do capitalismo e de outros meios para manter o consenso em torno de sua hegemonia.49 O capitalismo , por sua natureza, contrrio aos reais interesses da classe trabalhadora, necessitando que essa classe construa sua prpria hegemonia a partir da tomada de conscincia de seus interesses histricos. Com relao aos argumentos apresentados neste trabalho, concordamos com Lwy, no sentido de que a pretenso de neutralidade, em certa medida, uma mentira, ou ocultao deliberada (Idem, p. 44). O que pode ocorrer, e ocorre, estar includo na pesquisa o fator sinceridade e objetividade. O autor pode estar sendo sincero ao pretender que sua cincia seja neutra, no entanto a efetivao dessa neutralidade s aceita pelos liberais e pelos positivistas. Buscamos, portanto, fugir do campo do idealismo ou do pragmatismo que nos levam a pensar que estamos sendo neutros. Optamos para uma melhor sistematizao de nossa dissertao por uma diviso em trs captulos, buscando fugir da linearidade usual, que vai do geral ao particular para depois concluir. Estudaremos alguns conceitos tericos, contexto histrico, legislaes; compararemos os eixos temticos escolhidos (poltica, economia, movimentos sociais e as influncias internacionais); e, por fim, o pblico e o privado na educao superior e as relaes com o mercado como consequncia de todos os aspectos estudados. No primeiro captulo, sob o ttulo O Pblico e o Privado na Educao Su