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Rafael Soares de Oliveira

Imagens Poticas: uma leitura da cidade de So Joo del-Rei atravs da fala de seus habitantes

So Joo del-Rei 2009

Rafael Soares de Oliveira

IMAGENS POTICAS:UMA LEITURA DA CIDADE DE SO JOO DEL-REI ATRAVS DA FALA DE SEUS HABITANTES

Dissertao

apresentada

ao

Programa

de

Mestrado em Letras da Universidade Federal de So Joo del-Rei como requisito final para obteno do ttulo de Mestre em Letras.

rea de concentrao: Teoria Literria e Crtica da Cultura. Linha de Pesquisa: Literatura e Memria Cultural Orientador:Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Jr. Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ

So Joo del-Rei 2009

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Universidade Federal de So Joo Del-Rei (UFSJ) Programa de Mestrado Em Letras (PROMEL) rea de Concentrao: Teoria Literria e Crtica da Cultura Linha de Pesquisa: Literatura e Memria Cultural

Dissertao intitulada Imagens Poticas: uma leitura da cidade de So Joo delRei atravs da fala de seus habitantes, de autoria do mestrando Rafael Soares de Oliveira.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Alberto Ferreira da Rocha Jr. PROMEL/UFSJ Orientador

Prof. Dr. Luis Alberto Brando Santos UFMG Titular

Profa. Dra. Maria ngela de Arajo Resende PROMEL/UFSJ Titular

Profa. Dra. Glria Maria Ferreira Ribeiro DFIME/UFSJ Suplente

Profa. Dra. Eliana da Conceio Tolentino Coordenadora do Programa de Mestrado em Letras

So Joo del-Rei, 14 de dezembro de 2009

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Este trabalho dedicado a Wagner e Osmir e a todos os poetas do cotidiano.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Joaquim Soares de Oliveira e Maria das Graas Soares de Oliveira, por me apoiarem ao longo desses vrios anos de estudo, em condies muitas vezes adversas;

minha amada Dayse, por ter me oferecido bem mais do que pude desejar e retribuir nos ltimos meses, voc minha poesia diria;

Ao amigo Alberto (Tibaji), co-autor dessa pesquisa, cuja influncia, tenha certeza, estender-se- a tudo o mais que eu venha a realizar. Seus ensinamentos transcenderam em muito o mbito acadmico. Com o exemplo de seu entusiasmo e comprometimento tico, tornei-me uma pessoa ainda mais confiante na educao e na cultura, enquanto agentes transformadores de nosso mundo. Sou grato ao orientador e, ainda mais, ao amigo;

Agradeo ainda a todos os professores que marcaram a minha trajetria acadmica, especialmente Profa. Dra. Gloria Maria Ribeiro, que foi sempre grande amiga e incentivadora e a quem devo meu interesse pela potica das cidades;

Agradeo tambm aos professores: Dr. Luis Alberto Brando Santos, pela inspirao ao meu trabalho e por ter aceitado, prontamente, participar dessa banca; Dra. Maria ngela de Arajo Resende, pelo incentivo carinhoso ao meu projeto desde o seu incio e Dra. Eliana Tolentino pelo apoio e pelas sugestes bibliogrficas;

Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ), principalmente pela concesso da bolsa. Ao PROMEL, pela confiana e apoio e a todos os seus funcionrios, em especial Fil e ao Odirley pela ateno e carinho;

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A todas as pessoas apaixonadas pela cidade de So Joo del-Rei, representadas aqui por: Sr. Raimundo, Nancy Assis, Helvcio, Ana Lcia, Dod, Paulo Csar e Walerson, que atravs de seus depoimentos fizeram esse trabalho possvel. E ainda, ao Tlio Tortoriello, Toninho vila e Miranda, trs grandes conhecedores e amantes da cidade, que em muito contriburam para essa pesquisa;

A meus grandes amigos e aos colegas da ps-graduao, aos quais me reservo o direito de trocar a citao individual de seus nomes, por um caloroso abrao de gratido;

Muito obrigado por possibilitarem essa experincia enriquecedora e gratificante, da maior importncia para meu crescimento como ser humano e profissional.

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Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as razes at o ponto mais profundo do seu corao, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples Preciso, ento construa sua vida de acordo com tal necessidade. Rainer Maria Rilke, em Cartas a um Jovem Poeta

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RESUMO

Este trabalho possui o objetivo de compreender como a poesia, enquanto fenmeno instaurador de sentido, se manifesta no espao urbano. Para isso, realizamos uma srie de entrevistas com moradores de So Joo del-Rei visando compreender os diferentes modos como os habitantes dessa cidade se relacionam, de forma potica e afetiva, com seus espaos urbanos. Esse corpus, formado pelas entrevistas, foi problematizado, levando-se em conta o conceito de imagem potica, tal como se encontra na obra de Gaston Bachelard, destacando e desenvolvendo as consideraes desse autor acerca das imagens poticoespaciais. Tambm foi por ns trabalhada a idia de cidade enquanto obra de arte, conforme se encontra na obra de Giulio Carlo Argan. O resultado dessa anlise nos permitiu criar um mapa afetivo e literrio dos espaos urbanos de So Joo del-Rei. Pretendemos que esse mapa contribua para as discusses a respeito das polticas de preservao do patrimnio cultural, j que esse um assunto de grande atualidade e importncia para nossa regio. Nesse sentido, essa pesquisa tambm visa complementar outros trabalhos, desenvolvidos anteriormente nessa universidade, nos quais tambm buscamos compreender a dinmica prpria da cidade.

PALAVRAS-CHAVE: Imagem potica, Espaos urbanos, Mapas afetivos, So Joo del-Rei, Bachelard.

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ABSTRACT

The present work aims at understanding how poetry, as a phenomenon that establishes senses, manifests in urban space. To develop it, we performed series of interviews with So Joo del-Reis residents in order to understand the different ways in which people of this city are related, poetically and emotionally, to their urban spaces. This corpus was made by interviews, was problematized, taking the concept of poetic image into account as the Gaston Bachelards work does, highlighting and developing the considerations about the authors Poetic Images of Space. We also developed the idea of a city as a work of art, according to Giulio Carlo Argans work. The result of this analysis allowed us to create an emotional and literary map of urban areas of So Joo del-Rei. We intend this map to contribute to discussions about the policies of cultural heritage preservation, since it is a subject of great interest and importance to our region. In this sense, this research also claims to complete another work, previously developed at this university, where we also quest to understand the dynamic itself of the city.

KEY-WORDS: Poetic Image, Urban spaces, Emotional maps, So Joo del-Rei, Bachelard.

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SUMRIO

Consideraes Iniciais................................................................................... 11 Captulo I Espao e Poesia: das geografias imaginadas ......................................... ....20 I.1. Espaos Urbanos.................................................................................... 21 I.2. Espaos So-joanenses ......................................................................... 32 I.3. Espaos Bachelardianos ........................................................................ 43 Captulo II Tempo e Poesia: das memrias afetivas ..................................................... 50 II.1. Tempos da Cidade................................................................................. 51 II.2. Temporalidades e Memria ................................................................... 58 II.3. Memrias Afetivas. ................................................................................ 67 Captulo III A Potica dos Espaos So-joanenses........................................................ 75 III.1. A Casa .................................................................................................. 76 III.2. O Poro .......................................................................................... ......90 III.3. O Sto......................................................................................... ......100 Consideraes Finais .................................................................................. 108 Referncias Bibliogrficas .......................................................................... 115 Fontes ........................................................................................................... 118 Anexos .......................................................................................................... 120

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Consideraes Iniciais

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O Espao Urbano

O fim de um trabalho costuma dar origem a uma sensao do dever cumprido de um ciclo que se fecha. Estranhamente, no isso que me ocorre neste momento. Talvez porque j me encontro imaginando os prximos dias, quando estarei trabalhando na edio de um vdeo que, enquanto produto dessa mesma pesquisa, complementa esta dissertao. No entanto, existe sim uma sensao de satisfao por ter em mos a materializao de um sonho que consumiu boa parte desses ltimos dois anos e meio. Este sonho foi o de poder aproximar duas paixes: a Filosofia e a Literatura. Mais do que isso, poder trabalh-las no s do ponto de vista terico, mas em uma relao direta com outra instncia querida: a cidade.

O espao urbano foi sempre, para mim, objeto de grande interesse. Costumo imaginar-me enquanto uma criatura urbana que tem, na cidade, o seu habitat natural. Tendo morado em diferentes cidades grandes e pequenas sempre desejei compreender os seus limites, suas diferenas e, o mais importante, aquilo que as aproxima e as unifica: a substncia de que so feitas as cidades. Claro que a faceta mais bvia dessa substncia pode ser percebida opondo-se a cidade ao mundo natural, permitindo-nos destacar a existncia de todo um aparato urbano, que se apresenta enquanto fruto da construo humana em contraste com um outro mundo, mais antigo e espontneo, ao qual atribumos caractersticas divinas ou inumanas. No entanto, no sentido imaginrio, essa dicotomia no se sustenta por completo. Tendo perdido o controle sobre esse mundo que imaginvamos domesticado, adquirimos o hbito de chamar nossas grandes cidades de selva urbana. Ora, se a selva ocupa em nossa tradio imaginria o lugar do caos e da luta pela sobrevivncia, pensar a cidade enquanto selva nos coloca na posio de animais urbanos. O mais irnico que, atualmente, buscamos resgatar a nossa humanidade perdida, atravs de uma reaproximao do mundo natural: da nossa busca pelos alimentos orgnicos, pelas tentativas de aumentar as reas verdes da cidade ou bela busca de

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filosofias e religies orientais, onde as diferenas entre as instncias humanas e naturais so, pretensamente, menores.

Por outro lado, ao transpormos os mistrios naturais para os laboratrios cientficos, esvaziamos, consideravelmente, a idia de que, dentro da mata, existe um mundo estranho, extico, ameaador. Ao contrrio, temos hoje em mos uma enorme capacidade de transformao e domesticao desses espaos, embora s recentemente estejamos adquirindo a conscincia das consequncias dessa transformao. Assim, fica mais claro que os limites entre cidade e natureza, entre o espao humano e o inumano, so fronteiras que demarcamos conforme o que sabemos, mas, principalmente, conforme o que desejamos. Assim, o espao urbano tambm pode, e deve, ser pesquisado enquanto uma construo imaginria. Ento podemos crer que ocorra, no campo da Filosofia e da Literatura, o mesmo que Maria Izilda Matos nos fala em relao ao domnio da Histria:no Brasil, nos ltimos anos, os estudos sobre a cidade vm passando por mudanas significativas. Pode-se dizer que, anteriormente, a cidade era um elemento de delimitao espacial do objeto de estudo do historiador, era como o palco da histria, no se constitua em si como objeto, questo e/ou problema. As mudanas passaram a ocorrer a partir das prprias transformaes urbanas, quando a cidade passou a se colocar como questo e foi assumida como um desafio a ser enfrentado pelo historiador. (MATOS, 2002, p.33)

A Pesquisa

Tendo participado de outros trabalhos que tambm se direcionavam ao espao urbano e ao patrimnio histrico e cultural, penso que essa pesquisa foi, para mim, fonte de grandes novidades. Talvez no aquela que vive um imigrante, que mesmo sem conhecer a cultura ou a lngua que lhe espera, deixa o conforto de seu pas para se aventurar em terras estrangeiras. Ao invs de dizer que vaguei por territrios desconhecidos, prefiro pensar que, tendo permanecido no quintal de casa, conheci novos mundos caminhei para dentro; para baixo e para o alto como quem l um livro, ou melhor, tentando ler essa cidade, tal como se fosse, ela, um livro um livro de poesia que comeou a ser escrito h mais de 300 anos e cujas pginas finais continuam a ser uma incgnita.

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A maior novidade talvez tenha sido a de trabalhar com o potico a partir de uma abordagem filosfica, o que s foi possvel a partir do pensamento de Gaston Bachelard: esse filsofo da cincia que, um dia, tendo percebido o quanto os sonhos e a imaginao atrapalham o pensamento cientfico, resolveu dedicarse, com afinco, ao tema. O resultado que sua obra ajudou-nos a destruir o mito da pretensa soberania e imparcialidade do pensamento cientfico. Mais do que isso, Bachelard revelou, como poucos, a beleza que habita o recndito universo da imaginao criadora.

A idia para essa pesquisa surgiu a partir da leitura de A Potica do Espao, de Bachelard. Na verdade, da releitura desse livro, j que boa parte de sua obra j me era familiar desde os tempos de graduao. Lembro-me que, por serem to inspiradoras, sempre me despertavam uma vontade de empreg-las, de algum modo, em meus trabalhos e pesquisas acadmicas. Essa vontade finalmente comeou a ganhar consistncia em 2007, quando surgiram as primeiras divagaes e esboos do que hoje vem a ser esta dissertao.

Contudo, a transformao desses esboos em uma pesquisa real, s foi, para mim, possvel, por que tive, desde o incio, o apoio e o incentivo do programa de mestrado ao qual perteno e de vrios (se no todos) os professores que dele fazem parte sobretudo de meu orientador. Sou grato a eles por ouvirem com ateno minhas idias, j que envolviam temticas e conceitos to variados, tais como: cidade, imagem, poesia, oralidade, tempo, espao. Essas pessoas me ofereceram um voto de confiana e me apoiaram cotidianamente, permitindo que eu pudesse chegar at esse momento.

So Joo del-Rei

Minha entrada em um programa de mestrado da UFSJ trouxe a necessidade de voltar a viver em So Joo del-Rei cidade da qual parti aps anos de estudo e

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pesquisa, em busca da to desejada independncia financeira. Voltar para o interior, voltar a estudar, voltar a ser bolsista, enfim, voltar vida da qual penseime livre, foi uma ao necessria, que no foi percebida enquanto uma obrigao, mas como algo de essencial, de preciso. Voltar a habitar, cotidianamente, esses espaos me despertou a sensao de que nunca havia partido completamente.

Pela manifesta alegria de aqui viver, bastante comum tomarem-me como um so-joanense nato. Na verdade, sou juiz-forano. Nasci e fui criado na Manchester Mineira, da qual s vim a me mudar em 1996, aos 20 anos. So Joo foi escolha do acaso, ou quase, j que, na poca pareceu-me apenas como uma boa opo para o ento tcnico em mecnica que, pegando carona nos sonhos dos amigos, resolveu fazer-se engenheiro. Qual o qu! No segundo ano eu j puxava algumas matrias na filosofia, e, no ano seguinte, j era aluno regular desse curso, vindo a me licenciar em 2001. Vir morar em So Joo pode ser descrita como minha primeira grande experincia de adaptao. Contudo, segundo o dicionrio, adaptar , entre outras coisas, fazer acomodar viso. Pensando assim, talvez eu no possa me dizer adaptado a esta cidade, j que a beleza de seus espaos, de to abundante e frgil, nunca permitiu que o meu olhar se acomodasse totalmente. Por outro lado, adaptar-se tambm pode ser sentido enquanto ambientar-se, aclimar-se e, nesse sentido, sinto que sim, que nos adaptamos, eu e ela.

Penso sempre na Igreja de So Francisco de Assis situada ao lado do campus em que estudei e que, em pouco tempo, poderia ter se convertido de uma surpreendente viso num cenrio costumeiro pano de fundo de nossas pressas cotidianas. Mas no; recusava-se! Tal como uma baleia branca, gigantesca e triste, encalhava-se naquela paisagem, pedindo um no-sei-o-qu de socorro. Doa-me v-la assim, sem compreend-la, e despertava-me uma culpa tmida, como a que sentimos quando no conseguimos ajudar um turista, por no compreend-lo em sua lngua.

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E, no entanto, gostava de v-la. Sua magnitude remetia-lhe a outros mundos e eu parecia sinceramente acreditar que um dia ela iria mesmo embora, deixando um imenso buraco na cidade. Se hoje me proponho a compartilhar esses devaneios aqui, porque penso compreend-los melhor, tendo percebido, nos ltimos meses, que esse sentimento de adorao e temor no foi uma experincia vivenciada somente por mim. s vezes, somos tentados a ver os mais belos espaos desse mundo, como criaturas anacrnicas, como peixesfora-dgua. Talvez porque, sendo ainda estrangeiros a esses espaos, pensamo-los a partir de sua beleza esttica e somente dela. Como se, num gesto de puro romantismo, desejssemos que a amada do poeta morresse ao fim do poema, j que nos recusamos a acredit-los casados, burgueses, pueris. Do mesmo modo, achamos que qualquer uso no esttico desses espaos constituise em um perigo e uma afronta sua dignidade.

Em outras palavras, queria-a s minha. No fundo, imaginava aquela igreja minha por direito direito obtido em funo de minha sincera adorao e julgava poder proteg-la de todos esses utilitaristas. Perguntava-me como algum poderia entrar por seus portes, sem contemplar, ao menos por quinze minutos, sua imponente fachada? Que tipo de Deus buscavam l dentro, que j no se encontrava na beleza de seu fronto?

A lembrana desses sentimentos me permite, hoje, compreender um pouco mais o complexo amor aos espaos. Penso que, tendo conhecido alguns rituais que se abrigam na cidade, seria um ato de extremo egosmo imagin-los separados de seus espaos de atuao. A igreja sem a missa, o sino sem o toque que deforma seu corpo, o p do santo sem as mos dos fiis que descascam sua pintura, o altar sem a bem intencionada interveno do restaurador, no so nada. So cascas, simples matrias a digladiar-se em vo contra as incansveis foras do tempo. S quem pode salv-las o uso o uso contnuo e varivel dos rituais com o vigor da tradio e o frescor de suas pequenas e infinitas variaes.

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Eu

Sinceramente no sei dizer de onde vem esse meu amor s coisas antigas. No de meus pais, que chamam de velharias as antiguidades que sempre colecionei: cmeras fotogrficas, discos de vinil, moedas, selos, brinquedos, revistas, fotos. Tudo que antigo produz em mim um fascnio que no pode ser explicado facilmente enquanto fruto de um saudosismo ou conservadorismo. Primeiro, pela minha prpria idade, que no me permite criar uma identificao direta com a maior parte desses objetos, enquanto constituintes do cotidiano do meu tempo. No existe em meu discurso espao para expresses como: no meu tempo, na minha poca. Mesmo porque, esse amor ao antigo, data, ao que me lembro, desde a plena infncia. Meu universo infantil sempre foi povoado,

imaginativamente, por pores empoeirados, repletos de bas e caixas. De cada uma dessas caixas, brotam verdadeiros tesouros: um carto-postal datado de 1924, um par de abotoaduras, um relgio de bolso que ainda funciona aps darmos corda.

Lembro-me ainda que sempre fui apaixonado por runas e que nunca as imaginava enquanto restos ou partes de algo maior ou mais importante, e sim enquanto um ser prprio. Gostava delas assim: desconexas, fragmentadas e misteriosas. Destruir uma runa sempre foi, para mim, o maior dos sacrilgios, desde um tempo em que ainda no percebia o paradoxo que habita essa idia. Querendo preserv-las, eu as fotografava, e, vendo o lento amarelar da fotografia revelada, sentia que as tinha salvado, protegendo o seu direito de continuar envelhecendo, por eternidades. Existe uma dignidade nas coisas antigas uma experincia guardada, uma fora de sobrevivncia escondida por trs de sua fragilidade fsica que me desperta uma admirao que sobrepe, em muito, a admirao que possuo pelas chamadas belezas naturais. Se a caverna um lugar mgico porque, nela, podem abrigar-se ferramentas antigas ou pinturas rupestres; e o vasto oceano, s para mim to grandioso, devido aos inmeros naufrgios que nele ocorreram.

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Quando menino, no sonhava ser astronauta, mas arquelogo. Talvez adivinhasse, j naquela poca, que os mistrios do tempo e do espao encontram-se tanto na imensido das galxias, quanto na humana experincia de se conhecer. Fascinado pelo elemento humano, fui me interessando, com o passar do tempo, pela cincia, histria, tecnologia, arte (especialmente pelo cinema, depois fotografia), filosofia, tica e psicologia. Interesses sempre alimentados pelo prazer da leitura: livros de aventura, literatura fantstica, dirios de viagens, poesia.

A cidade, parecia me, at alguns anos atrs, uma construo recente demais para promover maiores interesses. Com exceo de Atlntida, Roma ou outra cidade perdida no tempo ou no espao, tinha para com nossas cidades um olhar apenas contemporneo, tpico de que vive em um pas comparativamente novo, cuja histria urbana d apenas os primeiros passos. Essa concepo comeou a mudar a partir da leitura de As Cidades Invisveis, de talo Calvino. Comecei a leitura desse livro em busca de cidades antigas e misteriosas, mas acabei reencontrando todas as que j conhecia, como se atravs do relato de Polo, todas as cidades fossem as mesmas enquanto espaos que se abrem s infinitas possibilidades de interao como elemento humano ao mesmo tempo em que so sempre diferentes a partir das escolhas pessoais que fazemos.Tudo isso para que Marco Polo pudesse explicar ou imaginar explicar ou ser imaginado explicando ou finalmente conseguir explicar a si mesmo que aquilo que ele procurava estava diante de si, e, mesmo que se tratasse do passado, era um passado que muda medida que ele prosseguia a sua viagem, porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerrio realizado, no o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado remoto. (CALVINO, 2006, p.28)

Essa leitura me possibilitou trazer para os espaos da cidade a busca pelo elemento humano, no s enquanto habitante passivo (ou, eventualmente, danoso), mas sim enquanto atribuidor de sentidos a esses espaos. O homem explica a cidade e por ela explicado. Pesquisar a cidade tambm , portanto, pesquisar o homem e sua capacidade de conhecer, imaginar e transformar.

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Partes

Esse trabalho se divide em partes: trs captulos principais, cada qual, composto por trs partes menores.

O primeiro captulo o momento em que falaremos da espacialidade e de sua relao com a poesia: primeiro sobre a espacialidade urbana em geral, depois sobre os espaos so-joanenses, sobretudo a partir de um ponto de vista que podemos chamar de tradicionalista e, por ltimo, falaremos sobre as concepes potico-espaciais de Gaston Bachelard.

O segundo captulo o local onde se encontraram nossas reflexes sobre a temporalidade e sua relao com a poesia: primeiro sobre a relao do tempo com as cidades, ressaltando a cidade de So Joo del-Rei, na sequncia, a relao entre tempo e memria pessoal e mais adiante, situa-se uma descrio do processo das entrevistas e uma reflexo sobre a apropriao do tempo da cidade realizada pelos entrevistados.

O terceiro captulo, intitulado A Potica dos Espaos So-Joanenses, assim estruturado: em A Casa, posicionamo-nos sobre os espaos da cidade enquanto elementos poeticamente habitveis, o lugar da famlia, da tradio e das aberturas para o mundo. Em O Poro, percorremos os caminhos dos espaos subterrneos e sua relao com os medos e tesouros que esses espaos podem abrigar. Por fim, em O Sto, alamos os devaneios poticos que preenchem os espaos areos da cidade, em especial o privilegiado espao das torres das igrejas.

Ao fim, consideramos sobre a natureza literria de nossa leitura da cidade e sobre nossa inteno de participar criticamente das discusses e aes polticas sobre a preservao patrimonial de nosso tempo.

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Captulo I

Espao e Poesia: das geografias imaginadas

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I . 1.

Espaos Urbanos

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Essas cidades invisveis ocupam um lugar entre o sonho e a viglia, onde a memria tem parte com a fico. (FREIRE, 1997, p.111)

Habitar Visualmente as Cidades Nada mais natural que pensarmos a cidade a partir de seus espaos. Um nome de cidade, ao ser pronunciado por outra pessoa, encontra em nossa imaginao um apelo imediato de visualizao. Tratando-se de uma cidade que conhecemos bem talvez uma que habitamos na infncia , essa visualizao passa pelos meandros da memria que, conforme a riqueza de nossa experincia e a fora de resistncia das lembranas, opera uma imediata reconstruo de seus espaos fsicos. Uma frentica sucesso de imagens de esquinas, casas, praas, misturase com nomes de ruas e pontos de referncias histricas, tursticas ou meramente espaciais. Quando nos permitimos demorar nessa visualizao possvel sermos surpreendidos pela imagem do rosto de algum que l conhecemos e de quem no nos lembrvamos; ou at mesmo de um simples habitante de quem pouco se sabe, mas que era comumente avistado quando l, um dia, passevamos. Mais um pouco e essas imagens de forte apelo visual vo se misturando a outras imagens, cada vez mais subjetivas e inverificveis a lembrana de um bem-estar que atribumos quelas manhs de inverno junto ao p da serra, o vago gosto de uma quitanda que h tempo no achamos para comprar ou o cheiro gostoso da cozinha de nossa casa. Cheiro, gosto e bemestar que, mesmo j sendo uma forma de imagem, clamam sempre por uma visualizao que a explique. O que cheirava assim to bem na cozinha que to bem cheira a essa minha lembrana tardia? O caf que era colhido, torrado e modo pela minha falecida av? O fogo de lenha em que preparava esse meu caf com broa de todas as manhs? Ou ainda, a fragrncia da colnia de rosas que minha me usou na maior parte de sua vida e que eu acreditei ser o seu cheiro natural at um recente dia, em que reencontrei a mesma fragrncia em uma nova marca de cosmtico? A busca por essa fonte original se mostra frustrante na medida em que revela o carter aleatrio e fragmentrio dessas

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imagens, levando-me suspeita de que j no posso reconstituir o vivido a no ser completando os espaos vazios com elementos especulatrios. Lembrana e criao, ento, j no mais se distinguem e compreendo que me encontro no cerne mesmo do que chamamos imaginao.

Mas, se o nome de cidade pronunciado pertence a um lugar que conhecemos apenas por fotos, informaes ou relatos, respondemos a esse mpeto de visualizao recriando suas ruas e casas, a partir de fontes to parcas e subjetivas, que chega a ser curioso como ainda conseguiremos nos surpreender quando tal cidade se mostrar to diferente do esperado, no dia em que, finalmente, l estivermos pela primeira vez.

para ns um exerccio ainda mais difcil o de conceber uma cidade utpica (sem topos), ou seja, aquela que embora no tenha encontrado seu espao fsico, existe enquanto idia. Por isso, habitamos imaginativamente o espao de todas as cidades das quais sabemos a existncia, mesmo as fictcias; de modo que possvel estimarmos o nmero de habitantes de Macondo a partir da quantidade de leitores de Garcia Mrquez.

Limites da Cidade

Se a cidade sempre se apresenta como detentora de um espao, preciso que se pergunte pelos seus limites. No espao urbano, o centro , em geral, a principal referncia, muito embora o prprio centro seja alvo de constantes movimentos; sejam eles de expanso, deslocamento ou mesmo de substituio. Em nossas cidades antigas comum termos mais de um centro, sendo que o centro antigo, centro velho ou centro histrico possui o importante papel de memria do desenvolvimento urbano. Nesses locais comum encontrarmos a igreja do santo padroeiro da cidade sinal de uma religiosidade marcante para os primeiros habitantes bem como a estao ferroviria e as runas dos antigos cinemas e teatros; cmplices de uma vida social em muitos aspectos diferente da nossa. Os novos centros so, geralmente, o espao de abrigo do comrcio e,

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principalmente, da prestao de servio, tendo nas agncias bancrias um dos seus principais smbolos. Contudo, importante ressaltarmos que:o conceito de centro histrico instrumentalmente til porque permite reduzir, quando no bloquear, a invaso das zonas antigas por parte de organismos administrativos ou de funes residenciais novas que fatalmente conduziriam, mais cedo ou mais tarde, sua destruio. O mesmo conceito, porm, teoricamente absurdo porque, se se quer conservar a cidade como instituio, no se pode admitir que ela conste de uma parte histrica com um valor qualitativo e de uma parte nohistrica, com carter puramente quantitativo. (ARGAN, 2005, p.78-79)

Para alm do(s) centro(s), temos a periferia; e para alm dessa, a zona rural. A menos que os limites de determinada cidade terminem por se fundir com os de outras. Muito comum nas metrpoles ou megalpoles, essa fuso tambm pode ocorrer em pequenas ou mdias cidades. Na vizinha Tiradentes existia um bairro cuja expanso o conduziu ao limite com So Joo del-Rei. Recentemente esse bairro tambm obteve sua emancipao e consequentemente passou categoria de cidade1, provocando uma importante transformao nos limites espaciais dessas cidades.

Mesmo em uma cidade com um baixo ritmo de transformaes urbanas, a tarefa de definir seus limites continua a ser bastante desafiadora. Calvino, ao falar de Pentesilia, uma de suas cidades invisveis, nos diz:voc avana por horas e no sabe com certeza se j est no meio da cidade ou se permanece do lado de fora. Como um lago de margens baixas que se perdem em lodaais, Pentesilia expande-se por diversas milhas ao seu redor numa sopa de cidade diluda no planalto (...). Deste modo, voc prossegue, passando de uma periferia para outra, e chega a hora de partir de Pentesilia. Voc pergunta sobre a estrada para sair da cidade; volta a percorrer a fileira de subrbios espalhados como um pigmento leitoso; vem a noite; iluminam-se as janelas, ora mais ralas, ora mais densas. Se escondida em algum bolso ou ruga dessa circunscrio transbordante existe uma Pentesilia reconhecvel ou recordvel por quem ali esteve,1

Localizado entre So Joo del-Rei e Tiradentes, bem margem direita do Rio das Mortes, Santa Cruz de Minas o menor e um dos mais novos municpios do Brasil. O pequeno distrito emancipado em 1995 possui apenas 3 km2. Seu processo histrico est fortemente ligado ao das Vilas de So Joo del-Rei e So Jos delRei, atual Tiradentes, municpio ao qual pertenceu at sua emancipao em 1995. Seu primeiro nome foi Arraial do Crrego. O nome Santa Cruz de Minas foi inspirado em um cruzeiro colocado em frente Matriz de So Sebastio, em 1937. (informaes retiradas do site http://www.descubraminas.com.br/, acessado em 10/09/2009, s 11:50h)

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ou ento se Pentesilia apenas uma periferia de si mesma e o seu centro est em todos os lugares, voc j desistiu de saber. (CALVINO, 2006, p.142-143)

A cidade viva, dinmica, mas tambm em muitos aspectos, abstrata. Mesmo que consegussemos estabelecer os limites de seus espaos fsicos, no poderamos confin-la a esse espao.Por cidade no se deve entender apenas um traado regular dentro de um espao, uma distribuio ordenada de funes pblicas e privadas, um conjunto de edifcios representativos e utilitrios. Tanto quanto o espao arquitetnico, com o qual de resto se identifica, o espao urbano tem os seus interiores. So espao urbano o prtico da baslica, o ptio e as galerias do palcio pblico, o interior da igreja. Tambm so espaos urbanos o ambiente das casas particulares; e o retbulo sobre o altar da igreja, a decorao do quarto de dormir ou da sala de jantar, at o tipo de roupa e de adornos com que as pessoas andam, representam seu papel na dimenso cnica da cidade. Tambm so espao urbano, e no menos visual por serem mnemnico-imaginrias, as extenses da influncia da cidade alm dos seus limites: a zona rural, de onde chegam os mantimentos para o mercado da praa, e onde o citadino tem suas casas e suas propriedades, os bosques onde ele vai caar, o lago ou os rios onde vai pescar; e onde os religiosos tm seus mosteiros, e os militares suas guarnies. O espao figurativo, como demonstrou muito bem Francastel, no feito apenas daquilo que se v, mas de infinitas coisas que se sabem e se lembram, e notcias. (ARGAN, 2005, p.43)

Mapeando as Cidades

Os antigos mapas eram criados a partir de um fantstico exerccio de projeo, pois, se era com os ps no cho que se percorriam os caminhos, com que asas, que no a da imaginao, poderiam os cartgrafos de outrora projetar seus mapas a partir de uma perspectiva area? A simples viso de um vilarejo a partir do cume de uma montanha prxima j nos permite sentir uma espcie de sensao de privilgio. Mas quem nunca sonhou em poder voar; e, voando, desvendar os segredos dos quintais de muros altos e seguir com o olhar o serpenteio do velho rio? Privilgio do olhar areo que se combina com o da posse. Se em outros tempos, um bom mapa poderia determinar a vitria em uma batalha, muito dos avanos cientficos atuais so devedores de nossa capacidade de mapear o mundo com crescente preciso. Das primeiras fotografias areas at as recentes imagens de satlite, os mapas tornaram-se cada vez mais disponveis, multiplicando seu poder de atuao social. Qualquer pessoa pode hoje se valer de ferramentas como o Google Earth e obter um mapa mais ou

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menos preciso de, praticamente, qualquer rea do planeta, bem como de informaes sobre distncias e formas de acesso a esse local. E, embora o acesso s tecnologias de ponta como hoje o uso do GPS acoplado ao computador de bordo dos veculos ou ao aparelho de telefone mvel ainda possa representar uma situao de status, o mais provvel que, em um futuro prximo, o verdadeiro privilgio ser o de no ser encontrado, o de se tornar invisvel a essas ferramentas.

Se os cartgrafos de hoje so satlites artificiais, pendurados a quilmetros da crosta terrestre, a quantidade de subjetividade contida nos modernos mapas diminui na exata proporo em que aumenta a sua preciso. Contudo, para ns, os leitores de mapas, de nada adiantaria a exatido com que os espaos fsicos encontram-se ali representados, se no tivssemos a capacidade de

relacionarmos essa representao com os espaos reais que habitam nossa memria ou que criamos em nossa imaginao. Ler um mapa sempre um exerccio de transposio: cada espao fsico ali representado pelo desenho de seu contorno, segundo uma perspectiva area, corresponde a um espao socialmente ou individualmente valorado. Giulio Carlo Argan, citando Marsilio Ficino, diz que a cidade no feita de pedras, mas de homens. So os homens que atribuem um valor s pedras e todos os homens, no apenas os arquelogos ou os literatos. Devemos, portanto, levar em conta, no o valor em si, mas a atribuio de valor, no importa quem a faa e a que ttulo seja feita. (ARGAN, 2005, p.228)

Assim, a busca por uma orientao passa pela aproximao do que estamos vendo com o que sabemos, lembramos, sentimos. No mapa de nossa cidade as ruas comunicam os espaos das brincadeiras infantis ou dos grandes (e mesmo dos pequenos) acontecimentos sociais. Em mapas de outras cidades, os pontos de referncias so menos pessoais; como os monumentos histricos, os marcos urbansticos (uma praa, um arranha-cu, um obelisco) ou naturais (uma serra, um rio, o mar).

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No entanto, nem todos os mapas atuais possuem a aparente neutralidade de uma fotografia area. Os mapas tursticos, por exemplo, no so criados com o intuito de representar fielmente o espao urbano, mas sim de direcionar o olhar de seu leitor a partir de escolhas e manipulaes. Seus traados, assim como a indicao de seus pontos mais significativos, mostram os caminhos que unem setores, realam ruas e revelam monumentos da cidade investidos

simbolicamente, ao passo que apagam outros. (FREIRE, 1997, p.71) Mais do que mapas, tornam-se guias de nossos passos e de nosso olhar. Assim como no carto-postal, seu contedo imagtico se apresenta como uma seleo do que vale a pena ser visitado, do que possui um valor socialmente reconhecido e, portanto, de como aquela cidade pretende ser lembrada. Desobedecer tais indicaes pode ser um exerccio saudvel e revelador na medida em que possibilita uma vivncia diferenciada dos espaos urbanos. Deixar-se levar pela intuio e pelo gosto pessoal significa, muitas vezes, demorar-se em um largo cujo charme supera em muito sua importncia histrica, espiar o interior das casas pelas janelas entreabertas ou embrenhar-se por becos cuja significncia social no os fez merecedores de um registro no mapa.

Carto Postal

No carto postal, esse poder de persuaso levado ainda mais adiante. Primeiro, por sua natureza altamente seletiva: de uma cidade comum encontrarmos apenas uma dzia de imagens desse tipo, o que, contrapondo s infinitas possibilidades de registro dos espaos urbanos, revela seu carter eletivo. Essa triagem que pode se realizar a partir de diferentes fatores (da importncia histrica pura beleza esttica) termina por atribuir um status ainda maior a esses locais. bastante comum dizermos que tal lugar merece um carto postal, ou ainda, que tal lugar o carto postal daquela cidade. Percebe-se aqui uma sutil inverso de sensibilidade, afinal, se o carto-postal , a princpio, o registro de um lugar privilegiado, por que lhe atribumos tamanha importncia a ponto de transform-lo em objetivo ltimo ou uma espcie de prmio a ser destinado aos

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espaos mais interessantes? que a imagem eterniza o mundo; principalmente a imagem fotogrfica base da grande maioria dos cartes-postais.

Esse poder atribudo s fotografias encontrado j no prprio nascimento das tcnicas fotogrficas e ocorre, principalmente, em funo de sua grande capacidade de representao da realidade fsica. bastante conhecido o fato de que essas primeiras imagens causaram um grande espanto ao superar enormemente as tcnicas anteriores (como a pintura) na habilidade de registro dos espaos e dos momentos. A fotografia se apresentava como uma tcnica mais rpida (embora ainda no fosse instantnea) e menos subjetiva; o que a aproximou, a princpio, muito mais do campo da tecnologia, ou mesmo da magia, do que do terreno da arte. No nos cabe reproduzir aqui a saga da fotografia desde aquele tempo at os de hoje: suas diversas aplicaes, sua relao com as artes visuais, assim como as mudanas na percepo do papel do fotgrafo. O fato que, ainda hoje, atribumos imagem fotogrfica um carter de reprodutora da realidade (mesmo depois de toda a discusso sobre representao), de documento (apesar de seus mais diferentes usos atuais, inclusive artsticos) e de objeto privilegiado (no obstante a espantosa popularizao de seu uso). Assim, o carto-postal , ainda hoje, smbolo de um privilgio e um guia de orientao dos espaos urbanos que, assim como o mapa turstico, conduz o olhar dos visitantes e o orgulho dos habitantes. Foi pensando nisso que no ano de 2002 desenvolvemos, atravs do Laboratrio de Esttica rtemis da Universidade Federal de So Joo del-Rei, o projeto Tempo e Memria na Obra de Arte. Sob a coordenao da Prof. Dra. Glria Maria Ferreira Ribeiro e financiado pela FAPEMIG, o projeto, que tinha como objetivo pensar a preservao do patrimnio atravs da Arte e da Cultura, gerou uma variedade de produtos dentre os quais a Srie Itinerrios. Essa srie composta por cinco ensaios fotogrficos Cidade Alta, Cidade Baixa, Cidade das Mos, Cidade dos Mortos e Cidade Oculta e impressa no formato de carto-postal, totalizando cinco caixas, com oito postais cada.

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Na verdade, cada postal se pretende um anti-carto-postal na medida em que busca romper ou mesmo subverter, as funes que normalmente atribumos a esse tipo de objeto. De um carto-postal esperamos encontrar a representao de um espao de forma clara, bela e informativa, ou seja, queremos saber de que espao se trata, onde se encontra, alm claro, de qual sua importncia o que, na maioria das vezes, a prpria beleza da imagem se encarrega de responder. Do belo pr-do-sol na Serra do Lenheiro o qu esperar, alm da flagrante beleza? Mas o nosso carto ao revelar uma imagem em preto-e-branco, com reduzido campo focal, alto teor de granulao e um abrupto recorte do objeto em relao ao cenrio em que se encontra termina muito mais por confundir do que orientar, intrigar do que esclarecer. Sim, belo, mas o que ser realmente? Onde se encontra? Existe realmente? So essas questes que permitem aos visitantes da cidade (e para nossa surpresa, tambm os moradores) apresentar um desejo real de conhecer esses espaos, e no to somente reconhec-los como ocorre na maior parte das vezes que visitamos uma cidade em busca de seus cartespostais. Esse desejo, acrescido pelo alto grau de subjetividade contido na imagem, permite que o visitante percorra a cidade em busca desses espaos, munido de um olhar curioso, questionador, crtico. Nesse sentido relevante o fato de que esses espaos foram selecionados e organizados de forma a no privilegiar os locais consagrados, nem os enquadramentos corriqueiros. Para percorrer a Cidade Baixa preciso direcionar o olhar ao nvel do cho (e, s vezes, torna-se necessrio se abaixar, se o que se quer reproduzir o ngulo da imagem e reproduzir o olhar do fotgrafo).

Cada caixa possui alm de oito postais um mapa, uma breve explicao de nossa proposta e um texto potico; que, somados s pequenas indicaes no verso dos postais, permite ao visitante se aventurar pela cidade em busca daqueles espaos munidos de alguma orientao, mas tambm de grande liberdade. Assim, esse trabalho, que possui declarada influncia da obra Cidades Invisveis, de talo Calvino, tem como objetivo despertar o olhar potico para os espaos urbanos, resgatando a subjetividade frente ao direcionamento a que o carto-postal tradicionalmente nos submete.

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Mapas AfetivosQuando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa Um mapa de Berlim com uma legenda Pontos azuis designariam as ruas onde morei Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas Tringulos marrons, os tmulos nos cemitrios de Berlim onde jazem os que foram prximos a mim E linhas pretas redesenhariam os caminhos no Zoolgico ou no Tiergarten que percorri conversando com as garotas E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores onde repensava as semanas berlinenses E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos Do amor da mais baixa espcie ou do amor mais abrigado do vento. (BENJAMIN apud FREIRE, 1997, p.74-75)

Walter Benjamin mostrou que o nosso corpo se mistura cidade permitindo que os mapas permaneam impregnados de contedos afetivos. Segundo seu conceito de memria topogrfica, os lugares passam a importar na medida em que se relacionam com nossas memrias. Assim, os monumentos e obras dispersas na cidade podem conter sentimentos ntimos, lembranas individuais. Nessa perspectiva o mapa da cidade se mistura vida de seus habitantes. (FREIRE, 1997, p.74)

Se os espaos de uma cidade se tornam pessoais na medida em que dialogam com nossa experincia vivida e imaginada, poderamos nos perguntar pelo aspecto de um mapa, que fosse traado a partir das experincias pessoais de cada indivduo. Argan toma para si esse desafio e imagina que:se, por hiptese absurda, pudssemos levantar e traduzir graficamente o sentido da cidade resultante da experincia inconsciente de cada habitante e depois sobrepusssemos por transparncia todos esses grficos, obteramos uma imagem muito semelhante de uma pintura de

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Jackson Pollock, por volta de 1950: uma espcie de mapa imenso, formado por linhas e pontos coloridos, um emaranhado inextricvel de sinais, de traados aparentemente arbitrrios, de filamentos tortuosos, embaraados, que mil vezes se cruzam, se interrompem, recomeam e, depois de estranhas voltas, retornam ao ponto de onde partiram. Mesmo se nos divertssemos traando em um vasto mapa topogrfico da cidade os itinerrios percorridos por todos os seus habitantes e visitantes em um s dia, uma s hora, distinguindo cada itinerrio com uma cor, obteramos um quadro de Pollock ou Tobey, s que infinitamente mais complicado, com mirades de sinais aparentemente privados de qualquer significado. (ARGAN, 2005, p.231)

bem verdade que nossos roteiros dirios seguem, em boa parte, o ritmo de nossos compromissos e necessidades. Mas esse fundo constante se realiza com infinita variao. Pequenas escolhas so realizadas o tempo todo, a partir de nossos desejos e de nosso humor: a vitrine de uma loja pode ser contemplada com especial interesse; j determinada rua pode ser evitada por se encontrar com baixa iluminao. O acaso faz parte dessas mudanas, assim como as transformaes sociais e urbanas, de modo que o espao da rua que percorremos de manh para ir trabalhar diferente do espao da mesma rua percorrido tarde, voltando para a casa, ou do domingo, passeando. E, sobre esse tema inesgotvel, poderamos prosseguir at o infinito. (ARGAN, 2005, p.233)

Um mapa afetivo um mapa dinmico, aberto, vivo. Nele encontram-se registrados diferentes modos de percepo do espao, assim como, diferentes temporalidades.

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I.2.

Espaos So-joanenses

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o humor de quem olha que d a forma cidade de Zemrude. Quem passa assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio, conhece-a de baixo para cima: parapeitos, cortinas ao vento, esguichos. Quem caminha com o queixo no peito, com as unhas fincadas nas palmas das mos, cravar os olhos altura do cho, dos crregos, das fossas, das redes de pesca, da papelada. No se pode dizer que um aspecto da cidade seja mais verdadeiro que o outro. (CALVINO, 2006, p.64)

Passeio por So Joo

Nosso trabalho ao propor uma leitura potica da cidade de So Joo del-Rei ir traar uma espcie de mapa afetivo de seus espaos urbanos. Mas antes, ser preciso que estes espaos sejam apresentados sob uma perspectiva mais tradicional, embora, como veremos, no menos parcial.

Quais os principais espaos urbanos de So Joo del-Rei? Vamos tentar responder a esta questo recorrendo a alguns materiais voltados para a questo. Tomemos ento, o livro Sanjoanidades: um passeio histrico e turstico por So Joo Del-Rey, do professor Antnio Gaio Sobrinho. Gaio, que membro do Instituto Histrico e Geogrfico dessa cidade, dedica-se h anos pesquisa e divulgao da histria e da beleza da regio. No segundo captulo desse livro, intitulado Passeio turstico-histrico nas ruas de So Joo, o autor nos faz um convite para um caminhar pelas ruas da cidade atravs de um roteiro prelaborado. Roteiro que se divide em dez etapas, chamadas por ele de estaes: 1 Estao: Praa Chagas Dria; 2 Estao: Largo do Rosrio; 3 Estao: Adro da Matriz; e assim por diante.

O texto relativo a cada uma dessas estaes precedido por duas citaes, que so, geralmente, retiradas dos dirios de viajantes estrangeiros como Saint Hilaire, Luccock e Richard Burton. Estas citaes falam de uma So Joo de outros tempos e servem de base para comparaes com o atual aspecto dos lugares descritos. Esses lugares so apresentados a partir de pontos de

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referncia reais, de modo que quase possvel imaginar a figura do professor Gaio a nos acompanhar pelas ruas da cidade. como se o narrador fosse mesmo um guia a nos conduzir por essas ruas, ora desviando nosso olhar para o alto, ora nos convidando a nos demorarmos frente a determinada igreja, enquanto descreve calmamente o simbolismo de cada ornamento em sua fachada. Seu tom , de modo geral, enaltecedor; embora no se furte a proferir severas crticas, principalmente s aes que considera contrrias preservao do Patrimnio Histrico. Por exemplo, ao descrever o Bairro de Matosinhos, acusa:em Matosinhos, alm de numerosas chcaras, existia em tempos passados importantes marcos de sua histria que, infelizmente, foram destrudos pela ignorncia administrativa, religiosa e particular. Em primeiro lugar a igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos (1770), destruda pelo Pe. Jacinto Lovato, com anuncia do Bispo Delfim Ribeiro Guedes e apoio de Tancredo Neves, sob inteis protestos do Instituto Histrico local, para dar lugar quela horrorosa construo a que hoje chamam de igreja. (GAIO SOBRINHO, 1996, p.37)

No se limitando mera descrio dos espaos, Gaio os relaciona com a histria oficial, mas tambm com as lendas e os causos locais2. Contudo, existe nele uma grande preocupao em mostrar a legitimidade de suas afirmaes, divulgando inclusive quais so as fontes por ele pesquisadas. Fica clara a crtica que o autor faz a determinada espcie de guias tursticos, muito comum em nossas cidades histricas, que no se inibe em acrescentar informaes inverdicas ou duvidosas em sua narrativa, buscando gerar maior atratividade aos locais visitados.Um exemplo interessante dessa unio entre visita guiada e lendas urbanas o projeto Lendas Sanjoanenses - By Night Tour. Trata-se de um roteiro turstico noturno pelo centro de nossa histrica So Joo del-Re, conduzido pelos guias da Cooperativa de Turismo de nossa cidade (COOPERTUR),entrecortado por apresentaes teatrais, onde assustadoras histrias e lendas dessa cidade so recontadas atravs de encenaes nos prprios locais onde supostamente aconteceram. Histrias essas extradas do livro Contam que... (SOUZA, 1957). (informaes retiradas do site http://www.coopertursaojoaodelrei.com.br/, acessado em 09/09/2009, s 11:11h) Tambm digno de nota o projeto Visita-Espetculo ao Teatro Municipal, realizado pelo grupo Os Anfitries. Misto de visita guiada e encenao teatral, (...) oferece ao visitante um passeio diferenciado pelo belo teatro erguido em 1893. Alternando informaes histricas, visuais e teatrais, a conduo apresenta ao visitante todos os recantos do Teatro, da fachada aos bastidores, da cabine de luz aos camarins, passando pelo palco italiano, com seus "esconderijos" e maquinrio. A Visitao, que tambm inclui breve relato sobre a histria da atividade teatral da cidade e a contao de "causos" ocorridos no Teatro Municipal, culmina com a invaso dos personagens e a apresentao de cenas da pea "A Capital Federal" (Artur Azevedo), por seis atores e um pianista. A interao com os visitantes e o humor das cenas apresentadas trazem para o atrativo um tom ldico e leve raramente encontrado neste tipo de visita. (Informaes retiradas do site http://www.visitaespetaculo.com.br/, acessado em 09/09/2009, s 10:15h)2

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Trs Experincias Distintas

Gaio, o autor-guia, escreve como quem fala, e sua fala conduz o nosso olhar. Mas a natureza desse olhar vai variar de acordo com a experincia a que estamos submetidos. Trs experincias distintas so: a de ler aquelas pginas sem nunca ter ido aos locais indicados, l-las a partir de uma visita anterior a esses espaos, ou ainda, a de ter o livro s mos no mesmo instante em que nos encontramos nesses locais.

Na primeira experincia, olhamos com os olhos da imaginao. E quanto mais rica e minuciosa a descrio dos detalhes, mais acreditamos poder enxergar aqueles espaos. Mais ainda, somos naturalmente pretensiosos, e nossa capacidade de atribuir realidade s criaes faz com que acreditemos ser o nosso olhar idntico ao do autor. E nessa troca ilusria, j nos imaginamos l, parados frente de cada monumento. Contudo, a rigor, as dez estaes de Gaio multiplicam-se nas dez estaes de cada leitor; de modo que, para cada leitor (ou leitura), surgem novos matizes na pintura dos tetos das igrejas e outras nuances no olhar do querubim.

O mesmo ocorre na segunda experincia a mesma pretenso de realidade s que agora com os olhos da memria. Para cada descrio buscamos uma imagem-lembrana. Algumas surgem ntidas, certas, quase palpveis. Outras nos chegam sob forte neblina, incertas, perdidas na fronteira entre o lembrar e o imaginar. No entanto, aquela cidade, aquele espao j l estive outrora portanto conheo-a. Sei do que o autor fala, e suas impresses passam a ser aferidas pelas minhas. De repente, me perturbo com certa afirmao do autor: sem dvida o mais belo lustre do Brasil (GAIO SOBRINHO, 1996, p.37) e lembro-me de no ter julgado deste modo. Que lustre ser esse a que o autor se refere? O mesmo que eu vi anos atrs e do qual me lembro vagamente? Como tamanha beleza poderia ter passado despercebida por minha sensibilidade esttica? Ou teria eu perdido esta jia rara na baguna de minhas

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recordaes? Na busca pela soluo do conflito acabo por duvidar do julgamento do autor e passo a desejar um regresso: preciso l voltar pessoalmente naquela mesma Igreja de So Francisco para saber ao certo qual a fonte de tamanho brilho: os coloridos cristais do antigo lustre ou os orgulhosos olhos do historiador.

Na terceira situao, tambm ocorre esta comparao entre o que lemos e o que vemos, agora in loco. Mas, seja concordando ou discordando da opinio do autor, o fato que, apesar de nossa autonomia, somos tentados a deixar que o nosso olhar seja conduzido nas direes em que o texto nos aponta. Assim, no s nos dito para onde devemos olhar, mas tambm em que ordem e com que nfase. Se um olhar sempre um recorte da realidade, o texto-guia nos fornece referenciais com os quais construmos as margens desse recorte. Claro que existe uma dinmica entre a vontade de seguir o texto e os apelos visuais que brotam do prprio espao e de nossa sensibilidade, e, por vezes, nos perdemos completamente no deslumbre do que se nos apresenta, e ficamos ali, distrados, com o livro pendente na mo.

Selecionando os Espaos

Os espaos escolhidos pelo autor correspondem a uma pequena poro da totalidade espacial da cidade, e esse recorte encontra-se sob o signo da representatividade. Isso implica no fato de que cabe a eles a misso de representar toda a cidade, ao menos (se nos fiarmos ao ttulo), naquilo que ela possui de turstico e histrico. Mas vale a pena nos demorarmos um pouco mais nesses conceitos.

A palavra turstico est ligada idia de atratividade; e sendo assim, um ponto turstico aquele capaz de despertar o interesse do visitante. Mas, se no existe o visitante, e sim visitantes, como podemos atribuir a determinado espao o status de ponto turstico? comum o uso de estudos e pesquisas que visam realizar um ranking dos locais que so, na prtica, mais visitados. Porm, as

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escolhas que levam o turista a determinado ponto turstico ultrapassam essa pretensa atratividade natural e so, muitas vezes, definidas por fatores como disponibilidade de acesso e de informao. O que resulta num estranho crculo de relaes, a saber: definimos um espao como de interesse turstico; produzimos condies de acesso (estradas, visitas guiadas) e de informaes (placas, material de divulgao turstica) sobre esse espao; um determinado nmero de turistas atrado para aquele local, e, por fim; conclumos ser aquele um comprovado local de interesse turstico. Este crculo, que pode se apresentar como virtuoso, torna-se igualmente um crculo vicioso, na medida em que condena determinados espaos ao ostracismo. Vale lembrar que o turismo, do modo como realizado nos dias de hoje, constitui-se de um fenmeno tpico das sociedades modernas onde, na maioria das vezes, o poder de atrao de um ponto turstico est ligado sua capacidade de propiciar diverso, entretenimento.

J o rtulo de histrico pode ser aplicado a um nmero infinito de espaos, se quisermos entender a Histria em sua significao mais abrangente, englobando todo o conjunto de acontecimentos que so relevantes na vida de um povo, comunidade, ou mesmo, de uma pessoa. Na prtica, vemos uma tendncia na valorizao dos espaos que se encontram ligados Grande Histria, ou seja, ao conjunto dos grandes feitos e das grandes personagens. Isso pode ajudar a compreender no caso das selees realizadas pelo professor Gaio a presena de referncias ao Memorial Tancredo Neves (uma casa-museu que conta a histria do estadista), e, por outro lado, a ausncia do Mercado Central (de grande importncia na vida cotidiana da populao), e do casario representativo da arquitetura ecltica (de grande beleza e expressividade, embora considerado por muitos como pouco antigo, principalmente quando comparado com os representantes da arquitetura colonial).

Cada uma das estaes contidas no roteiro do professor Gaio , portanto, o resultado de uma seleo do espao urbano, assim como tambm so frutos de uma seleo, os mapas tursticos, os cartes-postais e os livros de histria.

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Importa-nos compreender os critrios usados e os motivos que orientam estes critrios.

Um destes critrios o da originalidade. De uma cidade visitada sempre esperamos algo de original, de indito, de singular. Somos atrados pelo que s existe naquele local e o contato com tal singularidade faz valer nossa viagem. o apelo da raridade essa espcie de fetiche pelo objeto raro e possui ao menos trs variaes, trs tipos de interesse prximos, porm distintos: o interesse pelo nico, o interesse pelo primeiro e o interesse pelo ltimo (o sobrevivente). Suas torres arredondadas (da Igreja de So Francisco), nicas do Brasil com balastres na cpula, tm os maiores sinos da cidade (GAIO SOBRINHO, 1996, p.34). Em frente prefeitura est atualmente o edifcio da Cmara Municipal (1927), que foi construdo para a agncia do Banco Almeida Magalhes, aqui fundado como a primeira casa bancria, ou casa de guardar dinheiro, de Minas, por Custdio de Almeida Magalhes, em 1860 (GAIO SOBRINHO, 1996, p.31). Felizmente, aqui em So Joo, as antigas irmandades e suas igrejas continuam ainda ativas e atuantes (GAIO SOBRINHO, 1996, p.31).

Alm disso, So Joo del-Rei, no que se refere aos destinos tursticos no Brasil, enquadra-se em uma categoria chamada de Cidades Histricas Mineiras. Junto a Ouro Preto, Mariana, Diamantina, Congonhas do Campo, entre outras compartilha um passado colonial e escravocrata, ligado principalmente explorao de suas riquezas minerais e com a presena de edificaes que representam o chamado Barroco Mineiro. A associao dessas cidades em uma s categoria satisfaz a certa lgica e possui um vis estratgico no planejamento do turismo no estado. Por outro lado, mais um fator que ir direcionar a importncia que determinados espaos urbanos vo assumir no contexto nacional, ou mesmo, no contexto local.

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Igrejas, Pontes e Casares

Mas o que vemos nas estaes do livro do professor Gaio? Em maior ou menor grau, encontramos aqui os mesmos espaos que habitam a grande maioria das publicaes que tm como objetivo descrever ou enaltecer a cidade de So Joo sejam elas voltadas para o pblico externo ou interno. Esses espaos so, prioritariamente, o das igrejas, pontes e casares.

Das dez estaes, quatro possuem o ttulo referente a igrejas da cidade; so elas: 2 Estao Largo do Rosrio, 3 Estao Largo da Matriz, 5 Estao Largo do Carmo e 8 Estao Adro da Igreja de So Francisco. Outras duas se referem a pontes: Ponte do Teatro e da Cadeia (6 estao) e Ponte do Rosrio (9 estao). Alm disso, na 1 estao (intitulada Praa Chagas Dria), existe uma referncia Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos (demolida, conforme citado anteriormente); assim como na 4 estao (Largo da Cmara), que menciona outras duas igrejas (Igreja das Mercs e do Senhor dos Montes). A 7 estao tem como principal referncia o Chafariz da Legalidade, no entanto, descreve ainda a Igreja de So Gonalo Garcia, duas capelas (do Bonfim e de Nossa Senhora das Dores), alm de uma outra ponte, a ponte da Misericrdia, soterrada h mais de cem anos.

Os casares tambm se destacam por quase todo o roteiro: a primeira estao lamenta aquele velho casaro da esquina atrs da igreja, jogado no cho criminosamente para dar lugar a um estacionamento de veculos automotores (GAIO SOBRINHO, 1996, p.14). A segunda estao destaca dois solares do sculo XIX, o Solar dos Neves e o Solar dos Lustosa, alm do casario do Largo do Rosrio e da Rua Santo Antnio. Na terceira, temos a descrio do casario defronte a Matriz; na quarta o Casaro do Baro de Itamb, bem como a casa que considerada a mais antiga da cidade, ainda de p. A quinta estao traz o casaro conhecido como Solar da Baronesa. Na sexta estao, vemos o belo casaro construdo em 1849 para a sede da Cmara e da Cadeia que hoje a Prefeitura Municipal (GAIO SOBRINHO, 1996, p.30) e o casaro da esquina

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oposta, Hotel Colonial (GAIO SOBRINHO, 1996, p.30), alm do edifcio da Cmara Municipal, da Estao Ferroviria, do Teatro Municipal e do Crculo Militar. A stima estao lamenta a ausncia de dois solares (onde funcionaram a antiga Aula Rgia de Latim e uma escola de Farmcia), e nos faz refletir sobre a capacidade que as construes demolidas possuem de co-ocupar, mesmo que de forma diferenciada, os mesmos espaos que as edificaes que as sucederam. A prxima estao, a de nmero oito, traz a casa em que viveu Barbara Heliodora, e os casares coloniais que abrigam, nos dias de hoje, a Delegacia de Ensino, a Biblioteca Municipal e o Mosteiro de So Jos. Por ltimo, a nona estao e sua meno antiga casa do Comendador Jos Antnio da Silva Mouro, hoje Museu Regional.

evidente que vrios outros espaos tambm so mencionados, como praas e monumentos, tais como esttuas e obeliscos. Tambm fazem parte de sua indicao alguns espaos perifricos tais como a Serra do Lenheiro, poos, cascatas e grutas. Contudo, na dcima estao que o Professor Gaio promove uma interessante inovao ao incluir, neste passeio turstico-histrico os toques dos sinos; assim mesmo, quase como se eles fossem um espao possvel de ser percorrido. Intitulada: Ouvindo e Entendendo Nossos Sinos, esta estao descreve os toques ainda usados, bem como os que j se encontram em desuso, explicando a significncia de cada um. A importncia de se destacar este elemento do Patrimnio Imaterial assim justificado pelo autor:muito se fala da linguagem dos sinos so-joanenses: A cidade onde os sinos falam alma da gente. Entretanto, hoje, devido ao barulho e pressa da vida moderna, bem como existncia de outros veculos de comunicao, essa curiosa linguagem vai caindo em desuso e a quase totalidade da populao j no a entende mais. (...) E para no perd-los da memria, achei conveniente transcrev-los aqui (GAIO SOBRINHO, 1996, p.42).

Embora, enquanto sugesto de roteiro, a linguagem dos sinos seja uma atrao que pode ser apreciada em praticamente qualquer ponto da regio central da cidade, o fato que natural que o nosso interesse se volte para os lugares imediatamente ligados a esse espetculo, a saber: os sinos e as torres que os

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abrigam. Talvez por saber disso, que Gaio termina o seu roteiro com a seguinte informao:os sinos, antes de serem colocados nas janelas sineiras, no alto das torres, so benzidos ou sagrados e costumam, ento, receber um nome prprio. A esta cerimnia o povo chama de batizado do sino. Algumas vezes aconteceu de o badalo do sino se soltar, caindo embaixo, com perigo para os circunstantes. Tambm j ocorreu de o sino ao ser empinado ou dobrado, jogar pela torre abaixo o seu ousado sineiro. Como castigo, o sino fica algum tempo sem ser usado. Da o povo dizer que o sino, por ter sido batizado e portanto se tornado cristo, fica responsvel pelo crime e ento feito prisioneiro (GAIO SOBRINHO, 1996, p.46).

O fato de que, em nossa cidade, essas histrias de crimes realizados pelos sinos sejam constantemente relatadas pelos guias tursticos e apreciadas pelos visitantes uma curiosidade que nos convida reflexo sobre a capacidade e a necessidade que temos de antropomorfizar alguns objetos.

Espaos Afetivos de So Joo

So Joo del-Rei , portanto, uma cidade mineira, histrica e barroca; ou pelo menos assim que ela usualmente retratada. Se levarmos em conta que o texto do Professor Gaio, acima trabalhado, pode ser considerado, para alm de suas singularidades, como uma espcie de sntese do que normalmente encontramos em termos de descrio dos espaos urbanos de So Joo, podemos afirmar que essa cidade tem em suas igrejas, suas pontes e no seu casario as principais referncias espaciais. Esses trs espaos possuem em comum uma natureza arquitetnica, relacionada principalmente ao Colonial e ao Barroco Mineiro. So, portanto, espaos fixos, rgidos, palpveis. So tambm construes humanas, criadas para responder a determinadas funes (de culto, de acesso, de guarida). So ainda elementos sobreviventes, cmplices de outras pocas, abrigos de memrias. No entanto, preciso termos sempre em mente a idia de que a materialidade das formas da arquitetura ou a aparente fixidez do espao que do o contorno morfolgico e visual da cidade implicam uma relao complexa entre forma fsica e relaes sociais de fora, que, por sua vez, se expressam por representaes imaginrias (PESAVENTO, 2002, p.15-16).

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Uma entre milhares de outras cidades, So Joo del-Rei no se faz particular apenas por possuir muitas e belas igrejas, pontes de pedras e antigos casares. No est na simples soma desses elementos o segredo de sua singularidade. Concordamos com Cristina Freire quando esta afirma que:dentro dessa perspectiva, as cidades no podem ser diferenciadas por suas pontes, viadutos, praas ou museus, mas sim, pela maneira com que essas construes se reapresentam no imaginrio de seus habitantes. (FREIRE, 1997, p.111)

Assim, ao invs de investir numa anlise que se proponha a dissecar a materialidade desses monumentos, partimos em busca das imagens suscitadas nas relaes que so travadas com esses elementos arquitetnicos:, pois, na capacidade mobilizadora das imagens que se ancora a dimenso simblica da arquitetura. Um monumento, em si, tem uma materialidade e uma historicidade de produo, sendo passvel, portanto, de datao e de classificao. Mas o que interessa a ns, quando pensamos o monumento como um trao de uma cidade, sua capacidade de evocar sentidos, vivncias e valores. (PESAVENTO, 2002, p.16)

Mas quais seriam os sentidos, vivncias e valores evocados pelos espaos urbanos so-joanenses? Como compreender melhor essa capacidade

mobilizadora da imagem?

A busca de respostas para a primeira questo nos levou na direo dos habitantes da cidade. Ouvi-los significou para ns o mesmo que fazer falar os monumentos. Foi atravs da sensibilidade dessas pessoas que a pedra, o ouro e o barro puderam se expressar intimamente. Mas, se essa expresso ntima, essa fala afetiva, se d sob a gide da imagem, torna-se, portanto, fundamental compreendermos a natureza da imagem. Foi essa compreenso, que fomos buscar no pensamento do filsofo francs Gaston Bachelard (1884-1962), que nos permitiu a realizao de uma leitura da cidade atravs da fala de seus habitantes.

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I . 3.

Espaos Bachelardianos

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Seria fcil e extremamente interessante estender cidade o estudo feito por Gaston Bachelard sobre a casa, em especial sobre a casa da infncia, como modelo sobre o qual se constri grande parte da psicologia individual, ao menos no que diz respeito s idias, ou antes, s imagens profundas de espao e de tempo. Emergiria de imediato a infinita variedade dos valores simblicos que os dados visuais do contexto urbano podem assumir em cada indivduo, dos significados que a cidade assume para cada um de seus habitantes. (ARGAN, 2005, p.231)

Topofilia

Quando nos deparamos com a declarao que vemos acima, a nossa pesquisa j se encontrava em pleno desenvolvimento. A idia de nos servirmos dos estudos bachelardianos sobre a imagem para trabalharmos a cidade, que a princpio nos passou a impresso de uma ideia to original quanto desafiadora, surge aqui, proposta por Argan, como uma tarefa cujo grau de interesse superaria em muito o de dificuldade. Ainda que no possamos concordar com o grande crtico da arte quanto facilidade da empreitada, fato que a sua sugesto terminou, de certo modo, por avalizar nossa escolha.

Essas imagens potico-espaciais trabalhadas por Bachelard, dentre as quais se encontra a da casa, compem o que o autor ir chamar de Topofilia, ou seja, o estudo das imagens ligadas ao espao feliz. Interessa, pois, determinar o valor humano dos espaos de posse, dos espaos defendidos contra foras adversas, dos espaos amados (BACHELARD, 2003a, p.19). Em sua obra intitulada A Potica do Espao de 1957, Bachelard dedica sua anlise a esses espaos com os quais nos relacionamos cotidianamente: os espaos relacionados casa (o poro, o sto, os cantos); espaos referentes aos objetos (gavetas, cofres, armrios) e tambm alguns espaos ligados ao mundo natural (como os ninhos e as conchas). So espaos aparentemente simples, com os quais diariamente convivemos, algumas vezes, de forma automtica e irrefletida; no entanto, so espaos pelos quais, normalmente, acabamos por nos afeioar espaos que

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nos acolhem e que, em nossa imaginao, tambm acolhemos espaos de convivncia e intimidade; que passam a nos pertencer. O espao percebido pela imaginao no pode ser o espao indiferente entregue mensurao e reflexo do gemetra. um espao vivido. E vivido no em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginao. (BACHELARD, 2003a, p.19)

Fenomenologia da Imaginao

O estudo dessas imagens potico-espaciais, tal como prope Bachelard, requer uma abordagem singular. J na introduo de A Potica do Espao somos advertidos de que:um filsofo que formou todo o seu pensamento atendo-se aos temas fundamentais da filosofia das cincias, que seguiu o mais exatamente possvel a linha do racionalismo ativo, a linha do racionalismo crescente da cincia contempornea, deve esquecer o seu saber, romper com todos os hbitos de pesquisas filosficas, se quiser estudar os problemas propostos pela imaginao potica. Aqui o passado cultural no conta; o longo trabalho de relacionar e construir pensamentos, trabalho de semanas e meses, ineficaz. necessrio estar presente, presente imagem no minuto da imagem. (BACHELARD, 2003a, p.1)

Afinal, a imagem potica no um objeto, nem um substituto do objeto ou metfora. Da que ela no pode ser medida a partir de uma referncia externa e objetiva. Assim, Bachelard afirma que para esclarecer filosoficamente o problema da imagem potica, preciso chegar a uma fenomenologia da imaginao. Esta seria um estudo do fenmeno da imagem potica quando a imagem emerge na conscincia como um produto direto do corao, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade (BACHELARD, 2003a, p.2).A conscincia associada alma mais repousada, menos intencionalizada que a conscincia associada aos fenmenos do esprito. (...) O esprito pode relaxar-se; mas no devaneio potico a alma est de viglia, sem tenso, repousada e ativa. Para fazer um poema completo, bem estruturado, ser preciso que o esprito o prefigure em projetos. Mas para uma simples imagem potica no h projeto, no lhe necessrio mais que um movimento da alma. (BACHELARD, 2003a, p.6)

A dificuldade encontrada no estudo da imaginao potica reside no fato de que, normalmente, pensamos que tudo o que especificamente humano no homem logos. Torna-se preciso meditar numa regio que se encontra antes da imagem.

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O crtico e o psicanalista buscam compreender a imagem; eis a o problema: ao interpretar a imagem eles a traduzem para uma outra linguagem que no o logos potico. Nada prepara uma imagem potica: nem a cultura, no modo literrio, nem a percepo, no modo psicolgico (BACHELARD, 2003a, p.8).A psicologia analtica racionaliza: explica os sonhos, conceptualiza os smbolos. Mata a imagem que refere, seno a condicionamentos instintivos, pelo menos a situaes infantis. Mas preciso distinguir, at opor a racionalizao e o racionalismo. A segunda diligncia consiste em compreender o que, ao universo, a primeira se limita a negar. Ora, a inteligncia viva do homem deve estar em perptua superao de si mesma tanto para acompanhar a cincia no seu crescimento como para seguir o frgil impulso dos sonhos. Se ela reduz, com vista a assimilar, falha o seu trabalho. (DAGOGNET, 1986, p.32-33)

No podemos, igualmente, determinar a origem de uma imagem potica, uma vez que ela no um eco do passado, ou seja, no se relaciona de forma causal com um arqutipo do inconsciente. No a re-conhecemos a partir de uma vivncia anterior, e sim a apreendemos atravs de uma ontologia direta. Em sua novidade, em sua atividade, a imagem potica tem um ser prprio, um dinamismo prprio (BACHELARD, 2003a, p.2). Deste modo, ela no autoriza a pesquisa psicanaltica da individualidade do seu criador. Em outras palavras, no devemos buscar a explicao de uma imagem a partir do passado do indivduo que a imagina, como se os principais acontecimentos desse passado fossem as causas diretas da singularidade dessa imagem. No terreno da imaginao, da criao potica, no somos apenas o que vivemos. Tampouco somos aquilo que sabemos. Bachelard diz que, em poesia, o no-saber uma condio prvia. No-saber que no uma ignorncia, mas um ato difcil de superao do conhecimento (BACHELARD, 2003a, p.16). preciso que o ato criador oferea tanta surpresa quanto a prpria vida. A arte no explicada pela vida; antes, uma duplicao da vida. Bachelard nos fala do exemplo da pintura contempornea, onde a imagem no mais considerada como um simples substituto de uma realidade sensvel. Proust dizia que as rosas pintadas por Elstir eram uma variedade nova com a qual esse pintor, como um engenhoso horticultor, enriquecera a famlia das rosas (BACHELARD, 2003a, p.17).

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Imaginando os Espaos Urbanos

Tendo compreendido a natureza das imagens potico-espaciais, nosso desafio torna-se o de estender, para os espaos da cidade, a anlise que Bachelard realiza sobre os espaos da casa. No entanto, no estamos aqui falando de uma simples transposio, mas de uma nova anlise, que contemple todas as variantes e singularidades que o objeto ir determinar. Ora, sabemos que a cidade abriga uma infinidade de espaos incluindo aqueles que chamamos de internos em oposio aos externos (ruas, praas, fachada dos edifcios). Assim, a cidade e a casa no se opem; antes, correto dizer que esta ltima encontra-se contida na diversidade espacial da primeira. Como portadora de mltiplos espaos, a cidade permite tambm a multiplicao das possibilidades de relaes que so estabelecidas com esses espaos. Claro que podemos vivenciar toda uma gama de situaes no pequeno espao de nossa casa, incluindo as que vivemos imaginativamente mas no espao urbano como um todo que ns, cidados das sociedades modernas, realizamos boa parte de nossas atividades dirias. Na cidade trabalhamos, negociamos, compramos os bens necessrios nossa sobrevivncia; nela nos divertimos, vamos ao cinema, ao teatro e aos bares; na cidade encontramos as outras pessoas, vemos e somos vistos, fazemos amizade, nos apaixonamos. Seja no aperto do metr ou no sossego de um banco da praa; no corre-corre dirio de nossas obrigaes ou na calma do olhar contemplativo de um turista; a cidade abriga nossa vida.

Nossos episdios, dos maiores aos de menor importncia, distribuem-se pelos espaos com tamanha cumplicidade que nos levam a desejar (ou mesmo a temer) que a cidade possua olhos e memria, permitindo uma fuga do fluxo do tempo, eternizando-nos em sua materialidade. Da que estabelecemos uma relao afetiva com esses espaos, construindo um mapa afetivo das cidades. Alguns espaos tornam-se zonas proibidas, e so evitados sempre que possvel. Outros so desejados, e buscados em ocasies especiais: quando queremos recordar algum ou quando ansiamos por nos sentir em paz. Elegemos nossos cantinhos preferidos: Determinado banco, em determinada praa nosso!

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Pertence-nos na medida em que o escolhemos frente a tantos outros, por razes que s ns mesmos (e muitas vezes, nem ns) sabemos explicar. Estabelecer esses lugares de afeto no espao fsico da cidade parece nos ajudar a encontrar nosso lugar no mundo, existencialmente falando. E no raramente respondemos pergunta: Quem voc? Com a seguinte expresso: Sou um Paulistano; Sou um So-joanense; ou ainda: Sou nascido e criado no bairro tal, na rua tal. Como se quisssemos afirmar que os lugares possuem uma personalidade, e que essa personalidade influencia, molda a minha identidade.Ora, sabemos que a cidade no se d queles que a ocupam como uma entidade abstrata ou como instrumentos destinados apenas a certos usos tcnicos (circular, trabalhar, morar, etc.). Ela possui uma realidade espessa de sentidos particulares relacionados s pulses mais profundas do prprio sujeito. Neste caso, a cidade cor ou ausncia de cor, luz ou ausncia dela e assim por diante, alm de uma dimenso biogrfica da cidade, que confere minha cidade o sentido de meu lugar de vida. (FREIRE, 1997, p.25)

Literatura x Depoimento Oral

Capturar essa identidade de So Joo del-Rei; traar uma mapa afetivo de seus principais espaos; ou ainda, realizar uma leitura dos espaos a partir das imagens potico-espaciais de seus habitantes, uma tarefa que demanda uma outra particularidade em relao anlise que Bachelard realiza em A Potica do Espao. que nessa obra, o filsofo recorre literatura (em prosa e poesia) como corpus de onde extrai as imagens referentes a cada espao por ele nomeado. Em nosso caso, torna-se necessrio criar este corpus, no a partir da literatura, mas da fala dos seus habitantes. Fala que, no sendo pronunciada atravs de um discurso planejado de um especialista, mas pelo depoimento direto e carregado de afetividade de pessoas comuns, nos traz a possibilidade de apresentar essas imagens poticas em todo o seu frescor. Da nossa escolha pelos depoimentos orais sobre os quais falaremos mais adiante enquanto mtodo que nos permitiu, inclusive, selecionar os espaos mais representativos da cidade, no a partir de uma lgica ligada a fatores objetivos (como pontos tursticos, histricos ou econmicos), mas a partir de uma experincia interna, potica e afetiva, onde cada um dos entrevistados relata seus espaos preferidos, aqueles que lhes tocam diretamente a alma.

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Mas para que possamos melhor compreender essa ntima relao entre os espaos urbanos e a sensibilidade potica de seus habitantes, torna-se preciso perguntar pela questo temporal. Assim, iremos abordar as temporalidades de uma cidade: de como diferentes passados se encontram no presente urbano; de como Argan relaciona o tempo da cidade com o da obra de arte; de uma viso saudosista que se mescla a uma cultura progressista em So Joo del-Rei. Alm disso, buscaremos compreender como as pessoas trabalham a temporalidade em relao lembrana pessoal. Para isso, discutiremos a concepo bachelardiana de Memria e como essa se relaciona com a imaginao e o devaneio.

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Captulo II

Tempo e Poesia: das memrias afetivas

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II . 1.

Tempos da Cidade

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Os Progressistas Saudosos

A busca pelos espaos da cidade nos conduziu, tambm, a uma viagem pelos tempos da cidade. que os relatos colhidos ao mesmo tempo em que revelam imagens, o imaginrio urbano, acabam por se transformar tambm em uma crnica da cidade e da vida dessas pessoas.Nessa medida, o tempo deve ser entendido como uma categoria ampla que ultrapassa os seus sentidos usuais de durao, permanncia ou as habituais cronologias. Envolve os tempos da experincia, atravs da memria individual e coletiva. (FREIRE, 1997, p.120)

Podemos observar claramente em nossa pesquisa que essa memria revivida a partir dos relatos se contrape, em muitos aspectos, memria oficial da cidade. Esta ltima possui um aspecto interessante, que havamos observado nos livros que tratam da histria da cidade. a convivncia, aparentemente pacfica, de duas vises, que a rigor, seriam conflituosas: o enaltecimento do progresso e o saudosismo. Escrita pelos chamados memorialistas, essas obras narram, em tom confessadamente apaixonado e parcial, boa parte da histria da cidade, principalmente no que se refere aos grandes acontecimentos e personalidades. So Joo mostrada enquanto uma cidade de alma progressista e revolucionria. Bero da Inconfidncia Mineira; Terra de Tancredo Neves; Princesinha do Oeste; so ttulos que falam de uma terra de grandes homens, de inovadores e de uma cidade que se vangloria de ter prosperado, atravs de seu forte comrcio, mesmo aps o declnio da explorao aurfera. No entanto esse mesmo progresso que permitiu que So Joo del-Rei se transformasse em uma cidade moderna, com expressiva melhora na qualidade de vida de seus habitantes constantemente repudiado por esses mesmos autores.

Essa aparente contradio revela o carter saudosista de sua historiografia que, de algum modo, contagia as relaes com os espaos urbanos. Nesse sentido, a preservao do chamado patrimnio histrico , na maioria das vezes, permeada por um desejo de imobilidade, de interrupo do ritmo do tempo desejo que desgua em outro: o da volta no tempo do retorno a um momento de ouro, aos bons tempos de outrora tempos que, a rigor, nunca existiram e nem poderiam

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ter existido, seno na criativa lembrana de uma imaginao desejosa. Revela-se, dentre outras coisas, uma viso tradicionalista de patrimnio cultural, fortemente ligada questo arquitetnica, e onde o elemento humano s aparece enquanto agente potencialmente destruidor. Esse tipo de viso, embora seja uma clara demonstrao de amor cidade, pouco pode contribuir para sua preservao, na medida em que nega sua temporalidade prpria e a dinmica vital de seus espaos.

A ttulo de ilustrao, cito trechos da obra Notcia de So Joo del-Rei, publicada por Augusto Viegas em 1942 e que conta a histria da cidade, alm de possuir rica descrio dos principais monumentos so-joanenses. Como podemos perceber, seu tom emotivo e saudosista:a vertiginosa evoluo que sacode as sociedades, modificando-lhes profundamente os hbitos, lhe desfigura inteiramente as tradies. Por isso que no seio das velhas populaes que o fenmeno se verifica, S. Joo del-Rei a ele incorrivelmente se submete. (VIEGAS, 1942, p.149) Os encantos de sua vida social passada, com efeito, se vo deixando facilmente substituir pela agitao tumulturia, febril e enervante da vida moderna. (VIEGAS, 1942, p.149) Assim tambm relativamente msica. (...) certo sabor clssico e sentimental por trechos de peras, que ainda se dedilham no piano e por serenatas, que ainda choram ao luar, vem resistindo ao barulhento jazz, em que indivduos trepidantes agitadamente tamborilam os mveis a seu alcance e em que malandros convencidos, em lnguidos requebros, repinicam na copa do chapu os sambas com que fazem a prpria delcia. (VIEGAS, 1942, p.151)

Tudo isso dito depois de inmeros elogios s tradies da cidade, como se essas tradies tivessem suas origens em eras imemoriais, enquanto que, como sabemos, elas so frutos de pequenas transformaes dirias que ao longo do tempo produzem suas singularidades. O mesmo se d em relao s conquistas e feitos histricos, pois sem a coragem de romper com a tradio e sem a crena em dias melhores nossa regio nunca teria podido abrigar um movimento como a Inconfidncia Mineira ou produzir um grande homem como Tiradentes. Ouvir o cronista criticar o Jazz, chega a soar pitoresco em nossos dias (marcados por verdadeiras jias do Funk e do Ax) e nos lembra um pouco as crticas de Adorno ao cinema de Chaplin. E, apesar de se tratar de uma obra escrita nos

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anos 40, mostra-se bastante reveladora dessa verdadeira tradio so-joanense de celebrar as transformaes histricas ao mesmo tempo em que teme as mudanas cotidianas.

O Tempo da Obra de Arte

Em franca oposio a essa viso bipolar onde a cidade vista ora como Arauto do Futuro ora como Tesouro do Passado encontra-se o pensamento de Giulio Carlo Argan. Ele que alm de historiador da arte tambm exerceu o cargo de Prefeito de Roma (entre os anos de 1976 e 1979) manifesta em sua obra Histria da Arte como Histria da Cidade a compreenso de que a cidade pode ser pensada enquanto obra de arte:como atividade ligada desde as mais remotas origens burguesia, a arte aparece como uma atividade tipicamente urbana. E no apenas inerente, mas constitutiva da cidade, que, de fato, foi considerada durante muito tempo a obra de arte por antonomsia. (ARGAN, 2005, p.43)

Ao longo de seus ensaios, Argan trabalha as relaes espaciais e temporais que regem a obra de arte e, portanto, tambm a cidade, criando uma compreenso que em vrios aspectos concorda com o pensamento de Gaston Bachelard (conforme atesta Bruno Contardi, prefaciador de Argan na obra citada). Encontramos ali uma clara diferenciao em relao concepo linear do tempo (marcada por uma clara separao entre passado, presente e futuro) que, embora cotidianamente usada em referncia s narrativas histricas tradicionais3, no possui a mesma validade quando se trata da Histria da Arte (nem, portanto, quando se trata da cidade, uma vez compreendida enquanto obra de arte). Isso porque a obra de arte encontra-se em uma relao de eterna presentificao com os sujeitos com os quais se relaciona. A percepo assinala sempre e apenas o tempo do presente absoluto. A arte, cujo valor se d na percepo, torna presentes os valores da cultura no prprio ato em que os traduz e reduz a seus prprios valores. (ARGAN, 2005, p.26).

Essa temporalidade dita linear foi amplamente questionada pela chamada Histria Nova. Ver A Histria Nova, de Jacques LeGoff (LEGOFF, 1983).

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O mais importante da compreenso arganiana de cidade enquanto produo artstica, que vai permitir o resgate do elemento humano. O homem deixa de ser visto apenas como ameaa preservao da cidade; e passa a ser visto tambm como o seu criador, sem o qual esta no pode existir. Enquanto criao coletiva, a cidade diz respeito a todos; enquanto obra sempre inacabada, a cidade no se permite saudosismos; enquanto espao de transformao, no se conforma a uma redoma de vidro. Em outras palavras, o tempo de uma obra de arte no se confunde simplesmente com a data de sua feitura, e sim com todos os momentos em que sua existncia permite comunicar algo de original humanidade. Neste sentido, importa menos o fato de que a Igreja de So Francisco de Assis tenha sido construda em 1774, e sim o fato de que, ainda hoje, ela nos brinda com a imponncia de sua fachada e que seu interior continue a abrigar as manifestaes de cultura e f do povo so-joanense.Objetar-se- que mesmo o historiador da cincia e o da filosofia, como o historiador da arte, trabalham sobre textos originais; e, certamente, a posio deles muito mais prxima da do historiador da arte que da do historiador poltico. S que eles tm a convico de que a cincia e a filosofia percorreram um caminho progressivo e irreversvel. O pensamento de So Toms e as descobertas de Galileu continuam sendo os documentos de uma velha filosofia e de uma velha cincia, ainda que possam conter antecipaes surpreendentes e que constituam uma premissa necessria da filosofia e da cincia atuais. O mesmo no se d com as obras de arte, que representam, decerto, da forma mais eloquente, a cultura de seu tempo, mas que tambm tm, para a cultura do nosso, uma fora de incidncia imediata, de forma alguma mitigada pelo fato de que seus contedos culturais so, por vezes, to remotos que no se consegue decifr-los. (ARGAN, 2005, p.24)

Tempos Urbanos

Assim como o de Argan, o nosso problema justamente o do valor esttico da cidade, da cidade como espao visual. No colocarei em termos absolutos: o que a arte e se uma cidade pode ser considerada uma obra de arte ou um conjunto de obras de arte. (ARGAN, 2005, p.228). No nos interessa pensar apenas a temporalidade que se relaciona com a realidade fsica dos espaos urbanos, e sim toda a gama de temporalidades que sua presena imagtica suscita:as imagens urbanas trazidas pela arquitetura ou pelo traado da cidade, ou pela publicidade, pela fotografia, pelo cartaz, pelo selo, pela pintura, pelo desenho e pela caricatura tm, pois, o potencial de remeter tambm, tal como a literatura, a um outro tempo. o caso de um

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monumento que se edifica no passado, mas que pensado e sentido a partir do presente. O espao urbano, na sua materialidade imagtica, torna-se, assim, um dos suportes da memria social da cidade. (PESAVENTO, 2002, p.16)

Essa materialidade imagtica dos espaos urbanos mais bem captada quando aderimos proposta e ao olhar do flneur. Esse personagem que rompe com o ritmo apressado das cidades modernas ditado pelas urgncias cotidianas e se prope a contemplar seus espaos, assim como fazemos com as obras de arte, com serenidade e reflexo. com este olhar que o escritor Luis Alberto Brando Santos e o fotgrafo Ronaldo Guimares Gouva vo percorrer as ruas de Belo Horizonte em busca da sabedoria das esttuas. Suas percepes encontram-se registradas no livro Saber de Pedra composto por ensaios que tratam de temas tais como: do deslocamento das esttuas, do sono das esttuas, da dana das esttuas, da transcendncia das esttuas. Questes inusitadas e que s revelam sua razo de ser se estivermos afinados com este olhar potico sobre os espaos. Olhar que, no se limitando ao encadeamento lgico do conhecimento cientfico, brinca com este mesmo conhecimento, permitindo uma anlise qumico-potica ou fsico-potica dessas esttuas. E, assim fazendo, humanizaas; ressalta sua vivacidade que subsiste em sua natureza ptrea. Ao citarmos o seguinte trecho, temos claramente que, o que aqui se diz sobre as esttuas, se estende para os vrios espaos urbanos, desde que o nosso olhar assim o queira:a esttua n