Dissertação de Mestrado em Teoria Literáriarepositorio.unb.br/bitstream/10482/6617/1/2005_Milena...

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Universidade de Brasília Dissertação de Mestrado em Teoria Literária A morte em Homero Milena Ambrosio Telles Brasília, novembro de 2005.

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  • Universidade de Braslia

    Dissertao de Mestrado em Teoria Literria

    A morte em Homero

    Milena Ambrosio Telles

    Braslia, novembro de 2005.

  • Universidade de Braslia Instituto de Letras Departamento de Teoria Literria e Literatura Ps-graduao em Literatura Professor-orientador: Henryk Siewierski Mestranda: Milena Ambrosio Telles

    A morte em Homero

    Braslia, novembro de 2005.

  • Sumrio

    Resumo...........................................................................................................................1

    Abstract...........................................................................................................................2

    Introduo........................................................................................................................3

    Captulo I Literatura e religio......................................................................................6

    1) Do mito razo.....................................................................................................7

    2) O mundo olmpico e o mundo ctnico.................................................................14

    3) Apropriao esttica do mito pelos poetas................................................................20

    Captulo II O tema da morte.......................................................................................25

    1) A morte no regime noturno da conscincia.........................................................26

    2) A morte no regime diurno da conscincia...........................................................30

    3) O Hades homrico e a condio da morte..........................................................34

    Captulo III A morte em Homero.................................................................................40

    1) A homrica................................................................................................41

    2) O destino e o culto das almas em Homero.........................................................44

    3) A de Odisseu ().....................................................................47

    Captulo IV Os rumos do tema da morte....................................................................54

    1) O culto aos heris................................................................................................56

    2) Os mistrios de Eleusis.......................................................................................58

    3) O valor moral e a justia divina Hesodo..........................................................60

    4) Cultos a Dioniso Orfismo..................................................................................62

    5) Plato..................................................................................................................64

    Consideraes Finais....................................................................................................67

    Bibliografia.....................................................................................................................70

  • Resumo

    O presente trabalho pretende demonstrar, por meio do estudo de duas concepes de

    mundo a mtica e a racional , as caractersticas da crena homrica acerca da morte e

    dos temas a ela relacionados, como a questo da alma e da vida post mortem. Para isso,

    julgou-se necessrio observar como essa crena era vivida no perodo pr-homrico,

    ressaltando tanto as reminiscncias desta como as novidades encontradas nas epopias

    homricas. Alm disso, so delineados os rumos tomados pelo tema da morte no perodo

    posterior a Homero, ainda na Grcia antiga.

    1

  • Abstract

    This work intends to demonstrate, through studies of two different world conceptions

    mythic and rational the characteristics of the Homeric belief around death and related

    themes, as the soul matter and life post mortem. To do so, it was necessary to observe

    how this belief worked in pre-Homeric times, by giving special attention to its

    reminiscences, as well as to the new elements found in Homeric epic poems. In addition, it

    is shown what paths the theme of death has taken in the post Homeric period, in Ancient

    Greece yet.

    2

  • Introduo

    O interesse pelas Letras Clssicas surgiu durante o curso de graduao, durante

    as aulas de Fundamentos de Histria Literria, j no primeiro contato com a Cultura

    Clssica, em especial com a religio grega.

    O fascnio gerado pelo mundo grego, pelas narrativas grandiosas e fabulosas e

    pela grande herana deixada por esse povo a ns, ocidentais, logo se tornou curiosidade

    e vontade de ir mais alm. Da se seguiram os estudos das obras, a discusso sobre a

    filosofia e sobre como os homens daquela poca descobriram uma maneira de pensar o

    mundo em todos os seus aspectos.

    Porm, a lio nmero um quando se estuda os clssicos tentar afastar-se ao

    mximo da condio de homem moderno e se aproximar tanto quanto possvel do

    pensamento de cada poca estudada, buscando entender a origem de cada idia,

    observando como um hbito era entendido no mbito daquela cultura, como agia o

    homem na sociedade a que pertencia etc.

    Tarefa que no fcil, e para utilizar um termo ilustrativo pode ser chamada

    homrica, na maioria das vezes. Simplesmente porque so mais de vinte e cinco

    sculos de afastamento das primeiras obras de que se tem conhecimento dessa cultura: a

    Ilada e a Odissia, epopias em torno das quais giram inmeros estudos; elas so,

    certamente, muito mais que obras literrias fictcias, por estarem situadas

    historicamente, e por registrarem boa parte da bagagem cultural de uma poca

    determinante para um povo, no s descrevendo seus costumes e algumas de suas

    caractersticas, como tambm resgatando indcios de culturas arcaicas, sem registro

    escrito, remetendo s origens dessa riqueza cultural, que, mesmo com o pouco dela que

    restou, continua influenciando outros povos tanto consciente para aqueles que a

    3

  • estudam quanto inconscientemente, por meio das marcas deixadas nas crenas

    populares, na religio e na lngua.

    O tema da morte surge ento dos estudos acerca da religio grega

    considerando-se que impossvel desvincular um de outro, ou seja, toda discusso

    religiosa passa, em algum momento, pelo tema da morte, j que ela motiva o ser humano

    a pensar sua existncia, a desenvolver crenas e a buscar respostas sobre uma possvel

    vida post mortem.

    Das reflexes sobre as influncias que tal religio poderia ter sofrido e daquelas

    que ela pode ter exercido na formao do pensamento religioso a partir de ento, surge a

    necessidade de uma pesquisa em torno da religio arcaica, anterior a qualquer registro,

    impossvel, portanto, de ser discutida, determinada e documentada, no fossem os

    estudos da Antropologia e da Arqueologia.

    Dessa maneira, sentida a afinidade com as idias de alguns tericos, percebeu-se

    que era possvel ilustrar, a partir do tema da morte, duas concepes de mundo distintas:

    a mtica e a racional. Na verdade, o tema da morte um dos que deixam mais evidente tal

    processo, por ser, como j foi dito, uma das mais importantes (seno a mais) vertentes no

    estudo da religio, principalmente a antiga.

    Com a sada do homem do fascnio dos deuses e a entrada no mundo dos

    homens (trajeto que no estanque, como ser discutido no trabalho), os temas

    religiosos passam a ser sentidos e vividos de maneira diferente, alm de se tornarem

    matria de poesia.

    Considera-se que o homem grego homrico cujas caractersticas supomos a

    partir das epopias e de trabalhos de estudiosos do assunto encontra-se no limiar dessa

    nova concepo de mundo (a racional), que formar, posteriormente, juntamente com as

    demais influncias, todo o pensamento ocidental.

    4

  • Pretende-se tratar, portanto, da concepo da morte no mbito dos pensamentos

    pr-homrico e homrico, buscando entender o incio do processo de racionalizao no

    mundo grego antigo e indicando, posteriormente, os rumos que o tema tomou no mundo

    ocidental.

    Para tanto, sero utilizadas as epopias Ilada e Odissia, cujas citaes de

    versos remetem ao texto traduzido das edies bilnges (grego-francs) da Les Belles

    Lettres (Paris: 1946). O texto grego foi consultado nos trechos citados, para a confirmao

    dos vocbulos utilizados.

    H exceo de um nico trecho (pg. 37), cuja consulta ao original grego no foi

    possvel por no se ter encontrado, no acervo de obras raras da Universidade de Braslia,

    o volume que contm o trecho citado.

    A dificuldade de acesso a obras originais (ou a boas edies) tanto dos textos

    literrios quando dos tericos sobre o assunto , alis, uma constante nessa rea, o que

    mostra o quanto os Estudos Clssicos necessitam de mais apoio e incentivo em nosso

    pas.

    5

  • Captulo I Literatura e religio

    Quando se trata das epopias gregas, as primeiras obras da literatura ocidental de

    que se tem conhecimento, preciso procurar entender a atmosfera religiosa em que estas

    se inserem. Desconsiderar a ntima ligao da epopia grega com a religio seria uma

    atitude, no mnimo, ingnua e superficial.

    Para melhor apreender o esprito da religio grega antiga e quais os laos que

    unem literatura e religio no mundo grego, necessrio compreender que o povo grego

    viveu, em algum momento, em um mundo essencialmente mtico, onde deuses e homens

    dividiam o mesmo espao, um mundo onde, como expressa a conhecida frase do filsofo

    Tales de Mileto, tudo est repleto de deuses.

    Esse mundo co-habitado por homens e deuses encontra-se artisticamente

    representado na Ilada e na Odissia, obras que norteiam o presente estudo. Torna-se,

    assim, necessrio investigar como foi possvel que essa viso mtica do mundo se

    tornasse matria de poesia e fosse artstica e esteticamente representada por Homero.

    6

  • 1) Do mito razo

    Quando se imagina uma trajetria do pensamento mtico ao pensamento racional,

    precisa-se primeiramente determinar o que se entende por essas duas maneiras de se

    conceber o mundo, para, ento, analisar como uma gradativamente cedeu espao outra

    e em que etapa dessa transio se encontrava o homem grego da poca homrica.

    Ao se falar em mito, provavelmente a primeira coisa a ser lembrada so as

    fantsticas histrias, smbolos da literatura grega, em que deuses e deusas se

    relacionavam com os mortais, muitas vezes narradas nas obras que restaram da literatura

    grega ou apenas nas lendas e suas diversas referncias na literatura.

    Porm, preciso lembrar que essa viso do mito j uma viso do homem

    moderno, que no mais a entende, pois est to afastado dessa realidade que j a

    considera fantasiosa demais para crer que ela um dia constituiu a mais absoluta

    realidade.

    Para se compreender um pouco mais sobre a origem de todas essas narrativas e,

    conseqentemente, do pensamento do homem que as narrava, torna-se necessrio

    lanar mo de estudos antropolgicos e arqueolgicos, que visam ao entendimento da

    maneira de pensar dos povos ditos primitivos1, que ainda no faziam uso da escrita como

    forma de expressar seus pensamentos. Somente por meio desse retorno, pode-se tentar

    compreender a diferena entre a verdadeira conscincia mtica e a viso do mito como

    uma fbula ou lenda, de carter meramente fantasioso.

    1 O uso do termo primitivo no ser utilizado de maneira pejorativa, indicando inferioridade, ingenuidade ou incapacidade de raciocnio, como ficar claro no decorrer do texto.

    7

  • O pensamento mtico aquele em que o homem no est afastado do mthos

    () e sim inserido nele. O homem que v o mito do lado de fora, v-o como uma

    fantasia, interpreta-o, isto , j utiliza o logos (), o pensamento racional.

    Para o homem que est inserido no mundo regido pelo mito, a divindade no est

    afastada de sua vida, em um local especificamente designado a ela, com poderes,

    desejos, punies e graas. A divindade a prpria realidade.

    O homem regido pela conscincia mtica extrovertido, ou seja, no se reconhece

    como um indivduo afastado da natureza que o cerca, mas parte integrante dela. Por essa

    razo, no se diferencia dos outros animais que o cercam, j que todos esto inseridos na

    mesma realidade.

    J o homem regido pela conscincia racional introvertido, isto , v-se afastado

    dessa natureza da qual fizera parte e, por isso, diferencia-se de outros animais e muda

    sua relao com o divino, que agora tambm est afastado. Tornam-se ento necessrios

    ritos que resgatam o mito primordial para se restabelecer o contato com a divindade.

    O filsofo George Gusdorf utiliza os termos pr-categorial e categorial para

    caracterizar o homem e seu pensamento em diversas culturas primitivas. O homem pr-

    categorial aquele que se encontra indissociado da realidade em que vive, atuando

    sempre em funo de uma totalidade.

    Para esse homem, o mito no um mito, mas a prpria verdade. A conscincia

    mtica um jogo entre o homem e o mundo, isto , no h uma postura contemplativa

    (afastamento) do homem em relao ao seu mundo. O homem se compreende na

    paisagem mtica:

    8

  • No se trata, alm do mais, de uma simples leitura da paisagem, de uma atitude

    contemplativa. O homem se compreende a si mesmo nessa paisagem mtica. Ele

    desempenha seu papel. Forma da representao, o mito tambm regime da ao.2

    Para Gusdorf, como se o homem, agindo dessa maneira participativa,

    restabelecesse o equilbrio com o universo, j que a vida humana implica uma

    transgresso da ordem natural. O mito, ento, afirma-se como a volta a essa ordem.

    O homem categorial, por sua vez, encontra-se dissociado da realidade e, a partir

    de seu afastamento, passa a ver o mito como um smbolo, uma forma fantasiosa de se

    expressar o entendimento do mundo em que vive.

    Entender o mito como smbolo ou alegoria s possvel para o homem categorial,

    visto que smbolo e alegoria pressupem uma realidade dissociada: significam uma coisa

    numa determinada categoria do real e outra coisa diferente em outra categoria do real.

    Para o helenista Eudoro de Sousa, a conscincia mtica o regime noturno da

    conscincia, em oposio ao regime diurno da conscincia,3 ou seja, a conscincia

    racional.

    No regime noturno da conscincia, o homem no o centro do mundo. O mito a

    instaurao de um regime de fascinao pelo qual o homem se guia, com a conscincia

    repleta de diversidade e alteridade, isto , no reconhecendo no outro a diferena, mas

    sua identidade. A natureza est, portanto, aberta para a sensibilidade do homem, o lado

    de fora ou o lado de dentro de um deus, e a linguagem desse mundo o mthos ().

    2 Il ne sagit dailleurs pas dune simple lecture du paysage, dune attitude contemplative. Lhomme se comprend lui-mme dans ce paysage mytique. Il joue son rle. Forme de la reprsentation, le mythe est aussi rgime de laction. GUSDORF, Georges. Mythe et mtaphysique: introduction a la philosophie. Paris: Flammarion, 1953, p. 24. 3 SOUSA, Eudoro de. Origem da poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos. Lisboa: Imprensa nacional-Casa da Moeda, 2000, p. 76.

    9

  • No regime diurno da conscincia, o homem j se reconhece como o centro do

    mundo e, para tal, precisou afastar-se da natureza da qual antes fazia parte. O nico

    mundo possvel no aquele que lhe foi dado gratuitamente, mas aquele que ele mesmo

    constri e destri. A natureza perde, ento, sua potncia divina. Os deuses so afastados

    desse mundo, cuja linguagem passa a ser o logos ().

    Em relao sua teoria, acima mencionada, Eudoro de Sousa resume:

    A exegese alegrica de um mito um apressado refugiar-se na inteligibilidade, na razo

    discursiva, rede por cujas malhas escorre e de todo se perde a ambincia do mtico que

    pura sensibilidade, ou antes, o sem fundo da sensibilidade.4

    Ainda para ilustrar esses dois regimes de conscincia, pode-se citar o antroplogo

    francs Lvy-Bruhl, que utiliza os termos pensamento pr-lgico ou mentalidade

    primitiva e pensamento lgico5, para designar o pensamento mtico e o racional,

    respectivamente.

    O autor no se dedica especificamente ao estudo da cultura grega, mas de vrias

    culturas ditas primitivas. Procura enfatizar as diferenas entre os dois tipos de

    mentalidade, mostrando que o pensamento do homem moderno (civilizado) logicamente

    orientado, isto , o homem busca causas de todos os fenmenos na natureza.

    J o pensamento pr-lgico (primitivo) no um pensamento sem lgica, mas

    sim um pensamento cuja lgica est firmada em bases diferentes das do pensamento

    4 SOUSA, Eudoro de. Mitologia II: Histria e mito. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1995, p. 48. 5 LVY-BRUHL, Lucien. La mentalit primitive. 15 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1960.

    10

  • lgico; uma lgica no-cientfica, que exclui o pensamento abstrato e o raciocnio

    propriamente dito.

    Alm disso, o pensamento pr-lgico regido pela lei da participao. As

    representaes coletivas formam uma rede de participaes, em que seres, objetos e

    fenmenos da natureza se encontram conectados e o que afeta um afeta a todos. O

    homem primitivo est mais atento s relaes msticas entre as coisas do que s relaes

    objetivas. Essas participaes formam uma estrutura das categorias nas quais o homem

    primitivo se move e fora das quais sua personalidade social quebrada. Em vez de ser,

    ele participa.6

    Vale lembrar que Lvy-Bruhl foi pioneiro e inovador em suas investigaes ao

    perceber e postular as diferenas entre o pensamento dos povos primitivos e de seus

    contemporneos, diferenas estas fundamentais para um melhor entendimento e uma

    maior valorao da cultura das sociedades primitivas. O pensamento do antroplogo

    francs foi certamente superado no que diz respeito aos termos escolhidos por ele para

    caracterizar os dois padres comportamentais que compara primitivo x civilizado e

    rigidez que imps a essa dicotomia.

    Tal dicotomia pode sugerir uma evoluo da espcie humana, o que no se

    pretende mostrar no presente trabalho. Mesmo quando se utilizam os termos conscincia

    mtica e conscincia racional, no h inteno alguma de agregar valores a tais

    comportamentos, e sim de compreender melhor como se deu a formao do pensamento

    humano, sem ignorar o fato de que, nos dois regimes de conscincia analisados, o que

    existe a predominncia de uma maneira de pensar em relao outra em cada

    momento da vida humana.

    6 LVY-BRUHL, Lucien. Les functions mentales dans les socits infrieures. 9 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1951.

    11

  • Para Adolf Jensen, por exemplo, no se pode medir o valor de uma cultura pela

    quantidade de conhecimento que esta possui. A essncia de uma cultura no pode ser

    medida nem comparada. O antroplogo afirma que o homem primitivo o mesmo homem

    de hoje, a diferena est nas plasmaes culturais. A maneira de apreender a realidade

    pelo pensamento lgico-cientfico apenas mais valorizada pelo homem moderno. Os

    povos ditos primitivos no a desconhecem, mas no a valorizam.

    Jensen tambm tratou da religio dos povos primitivos, definindo o mito como

    plasmador de culturas. Para ele, o deicdio primordial o ponto central para se entender

    a concepo de mundo desses povos. A morte de um deus d origem ao universo idia

    qual Eudoro de Souza denomina diacosmese ( [ + ]) e

    relembrada pelo sacrifcio sangrento, ritual que deve ser repetido para que a ordem seja

    restabelecida. Porm, o mito (deicdio primordial) e o rito (sacrifcio sangrento) no se

    encontram dissociados na mentalidade primitiva, e s assim formam o conhecimento

    figurado do mundo:

    A ntima conexo entre o mito e o culto constitui uma caracterstica essencial da maioria

    das formas primitivas da religio. O conhecimento mtico influenciou de modo decisivo

    todas as formas de vida do homem.7

    A partir do momento em que esses dois elementos se dissociam, o mito primordial

    passa a ser mito etiolgico, com um carter explicativo; e o rito, antes ato sacrificial, torna-

    se uma repetio vazia de contedo mtico, um culto simblico.

    7 La ntima conexin entre el mito y el culto constituye una caracterstica esencial de la mayora de las formas primitivas de la religin. El conocimiento mtico del mundo ha influido de modo decisivo sobre todas las formas de vida del hombre. JENSEN, Adolf Ellegard. Mito y culto entre pueblos primitivos. Mxico: Fondo de Cultura Enconmica, 1998, p. 54.

    12

  • nessa separao que o que antes era realidade para o homem cuja conscincia

    mtica, transforma-se em alegoria para o homem racional, tornando-se, ento, matria

    de poesia.

    13

  • 2) O mundo olmpico e o mundo ctnico

    At o momento, pretendeu-se esclarecer quais eram os mecanismos de

    pensamento e ao presentes em uma poca anterior quela em que se formou a religio

    grega propriamente dita. Como se pde observar, essa religio que foi passada ao

    homem moderno por meio dos resqucios das obras literrias e filosficas j sofrera uma

    modificao, que pode ser notada pela comparao da viso de mundo mtica, pr-

    homrica, com a viso homrica, que j apresenta caractersticas relevantes rumo ao

    pensamento racional.

    Como j foi dito, o homem dito primitivo ou pr-categorial no se via

    individualmente diante do universo que habitava. Por isso, vivia dentro do mthos

    (), num universo que era a prpria divindade.

    Segundo o helenista alemo Walter F. Otto, os deuses anteriores aos olmpicos

    eram imaginados como plantas, animais e demais elementos da natureza, justamente

    pela idia j comentada de que no havia diferena entre eles e o homem, que,

    antigamente, como diz a cano popular: falava com a cobra, o jabuti e o leo.8 Essa

    metfora moderna, comum at mesmo na cultura popular, de que o homem falava com

    os animais mais uma evidncia de que, em algum momento, o pensamento mtico

    prevaleceu ao racional.

    A partir do momento em que o homem se v separado desse universo, v-se

    tambm afastado da divindade, que passa agora a ser nomeada e caracterizada segundo

    8 O homem antigamente falava com a cobra, o jabuti e o leo;/ Olha o macaco na selva. Aonde? Ali, no coqueiro; / No macaco baby! o meu irmo!; / Porm durou pouqussimo tempo esta incrvel curtio / Pois o homem rei do planeta logo fez sua careta; / E comeou a sua civilizao. Trecho do Samba dos animais, de Jorge Mautner.

    14

  • um pensamento que j no mtico. O mundo vai sendo gradativamente dessacralizado,

    para que o homem possa domin-lo.

    Essa mudana j pode ser observada nas primeiras obras gregas, visto que elas

    apenas se tornam possveis de serem escritas por que o mito como narrao no-

    cerimonial (portanto, passvel de apropriao por qualquer um) j o cadver da vida que

    foi.9

    Nelas, a separao homem-divindade fica clara, j que existe toda uma

    genealogia de deuses e deusas, com nomes, caractersticas e moradas especficas. Por

    isso, Homero e Hesodo so considerados os pais no s da literatura grega, mas

    tambm da religio helnica que chegou at ns por meio de suas obras, como afirma

    Herdoto:

    Foram eles [Homero e Hesodo] que em seus poemas deram aos helenos a genealogia

    dos deuses e lhes atriburam seus diferentes eptetos e suas atribuies, honrarias e

    funes, e descreveram sua figura.10

    As divindades da religio grega primitiva, ou seja, pr-homrica e pr-hesidica,

    eram princpios primordiais no-individualizados, inominados, de carter eminentemente

    ctnico e feminino. Com o avano da preponderncia da conscincia racional sobre a

    mtica, a divindade, que antes era a prpria natureza, transforma-se em um conjunto de

    deuses individualizados, nomeados e cognominados, com caractersticas e funes

    9 SOBRAL, Gilson. Mito e logos. Braslia: Thesaurus & Crculo de Estudos Clssicos de Braslia, 2001, p. 12. 10 HERDOTOS. Histria. Traduo do grego, introduo e notas de Mrio da Gama Kury. 2 ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998, pargrafo 53, p. 106.

    15

  • prprias e com locais de culto especficos separados em duas categorias distintas:

    olmpicos e ctnicos.

    Nessa nova religio helnica, cunhada pelos versos de Homero e de Hesodo,

    diferentemente da religio anterior, h um predomnio dos deuses olmpicos, como explica

    Walter F. Otto:

    Tal como a prpria existncia, a f primeva se liga terra e aos elementos. Terra, sangue

    e morte so as grandes realidades que as dominam. (...) Constituem uma multiplicidade,

    mas pertencem ao mesmo reino; no so apenas aparentadas entre si, confluem todas em

    uma nica e mxima essncia, que vemos nas divindades em que elas so representadas:

    todas essas divindades se ligam terra, todas esto relacionadas com a vida e com a

    morte; conquanto possam distinguir-se por suas caractersticas particulares; pode-se

    design-las a todas como divindades telricas ou divindades da morte. Isso as distingue

    rigorosamente dos novos deuses, que nada tm a ver com a terra, com os elementos em

    geral ou com a morte.11

    Segundo Otto, o antigo mundo dos deuses, onde habitava o homem comandado

    pelo regime noturno da conscincia, no foi esquecido com o tempo, mas foi deslocado

    do primeiro plano para subsistir ao fundo da f olmpica, isto , foi dividido e cada ser

    recebeu uma morada especfica.

    Agora, os homens ficam na terra, iluminados e regidos pelos deuses olmpicos

    habitantes do monte Olimpo, ponto mais alto da Grcia. O que antes era obscuro e

    inominado, indissociado da natureza, fica aprisionado nas profundezas da terra, no

    Hades, onde habitam agora os deuses chamados ctnicos.

    11 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, p. 13.

    16

  • Os deuses olmpicos caracterizam-se principalmente pela beleza e pela

    imortalidade, esto ligados ao dia, ao alto, ao ter, ao masculino; so o reflexo da

    racionalidade que comea a imperar no mundo grego. Zeus o ajuntador de nuvens

    (epteto homrico) e expressa sua ira jogando raios na terra. Apolo o mais belo dos

    deuses, o arqueiro. Atena possui olhos verdes e brilhantes, e assim por diante. Por serem

    eternos, a morte lhes estranha e at mesmo vedada. Em Hiplito, de Eurpides, por

    exemplo, rtemis, apesar da proximidade que sempre teve com Hiplito, retira-se na hora

    de sua morte, dizendo: Adeus, ento! No posso, como deusa, ver defuntos, nem

    macular meus ouvidos divinos com os ltimos suspiros de mortais.12

    No entanto, para os deuses ctnicos, que outrora reinavam, a morte no

    representa de forma alguma trmino de vida; apenas uma outra forma de vida, um

    momento e uma parte imprescindvel dela. Os deuses ctnicos, ao morrerem e

    renascerem, desempenham, assim, um papel fundamental na criao e na manuteno

    da vida e do mundo, visto que:

    (...) Um deus um mundo e outro deus outro mundo, em suma, cada deus munda, faz

    seu mundo, do que ainda o no era diacosmiza, numa palavra s. Um deus imerge no

    mundo que ele emerge, morre a vida do mundo que vive a sua morte, encobre-se no

    mundo que descoberta sua, oculta-se no mundo que desocultou.13

    Os elementos ctnicos, porm, no foram totalmente excludos do mundo grego;

    figuram naqueles deuses ligados noite, ao subterrneo, terra, magia, ao feminino e

    morte. Demter, por exemplo, est relacionada agricultura, Cibele a deusa da

    12 EURPIDES. Media, Hiplito, As troianas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 152. 13 SOUSA, Eudoro de. Mitologia I: Mistrio e Surgimento do mundo. 2 ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1995, p. 16.

    17

  • abundncia no mundo selvagem, Persfone a rainha da morada dos mortos ao lado de

    Hades, o senhor dos infernos.

    Porm, muitas dessas divindades ctnicas, com o predomnio dos deuses

    olmpicos, passaram a ser vistas como monstruosas. o caso, por exemplo, das

    Grgonas, das Harpias, da serpente gigante Pton e das Ernies, a quem Eurpides, em

    Orestes, descreve como virgens manchadas de sangue e semelhantes a serpentes14 e

    ainda como mastins de olhar feroz, essas sacerdotisas dos mortos, deusas terrveis.15

    Tambm squilo, na Orestia, descreve-as como negras e inteiramente repugnantes,16

    dizendo que roncam com hlitos repelentes e dos seus olhos escorre um lquido

    nojento17 e que so virgens execrveis, velhas filhas do mundo primitivo, de quem no

    se aproximam deuses, homens ou feras18.

    Geralmente, essas figuras monstruosas esto associadas ao mal, violncia, aos

    crimes e sua punio. Habitam em cavernas, nas profundezas mais obscuras da terra.

    So divindades temidas pelos mortais e muitas devem ser eliminadas, como Medusa,

    umas das Grgonas, decapitada por Perseu.

    Os mitos relacionados aos deuses ctnicos relembram o mito primordial, pois eles

    morrem e renascem, como Dioniso, originariamente uma divindade ctnica que foi

    transplantada para o panteo olmpico dos gregos e, por isso, um deus estranho e de

    difcil apreenso.

    Nessa nova religio helnica, organizada, cujos deuses dominantes so

    luminosos e possuem, cada um, um carter especfico e um campo de ao determinado,

    14 EURPIDES. Orestes. Introduo, verso do grego e notas de Augusta Fernanda de Oliveira e Silva. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1999, p. 42. 15 Idem, ibidem. 16 SQUILO. Oresteia: Agammnon, Coforas, Eumnides. Traduo de Manuel de Oliveira Pulqurio. Lisboa: Edies 70, 1992, p. 187. 17 Idem, ibidem. 18 Idem, ibidem, p. 188.

    18

  • o mito est definitivamente separado do rito. Assim, o sacrifcio, cujo sentido primeiro era

    a repetio do mito primordial, em que a divindade morre para dar origem ao universo,

    perde seu significado profundo e torna-se um meio para se chegar a um fim, isto , a

    morte do touro (ou de outro animal) visa obteno de algo. Passa, assim, segundo

    Jensen, de uma fase de expresso para uma fase de aplicao.

    Nesta fase, o culto , primeiramente, uma forma de se entrar em contato com o

    divino, j que os deuses foram afastados do homem e, posteriormente, uma maneira de

    no desagradar aos deuses e de lhes requisitar proteo ou alguma graa.

    19

  • 3) Apropriao esttica do mito pelos poetas

    Se os deuses no so mais a prpria natureza, mas sim figuras distintas, com

    caractersticas e moradas prprias, porque o mito perdeu sua fora e j no plasma a

    realidade. O homem, aps se ver isolado do mundo em que vive, sentiu a necessidade de

    criar seus prprios deuses e de narrar histrias a respeito deles.

    A partir da o mthos (), j dessacralizado, passa a ser matria de poesia,

    ou seja, torna-se uma alegoria termo bem ilustrativo, cuja origem provm do verbo

    grego allegoro () (outro) + (falar)19 , ou seja, dizer outra

    coisa, falar de outra maneira.

    As narrativas contadas pelos poetas e trgicos so apenas a carcaa do mito.

    Sendo assim, surge a possibilidade de preench-los como se desejar. Os poetas

    descrevem os mitos incutindo neles traos individuais, isto , elementos provenientes de

    sua maneira de pensar o mundo que o cerca e no qual ele agora age individualmente.

    A conscincia mtica, antes coletiva, na qual o mito era a nica forma dada na

    existncia, d lugar produo individual: Ela d luz a literatura, que, em seu

    desenvolvimento progressivo, consagra a humanizao, a profanao do mito.20

    Como j foi mencionado, isso no quer dizer que o pensamento do homem

    centrado em si mesmo surgiu de repente e, como se com apenas um passo, a

    mentalidade centrada no coletivo e na divindade/realidade tenha desaparecido. Ao

    contrrio, o fim da era mtica gerado pela mutao do esprito humano ocorreu,

    19 BAILLY, Anatole. Le Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Franais. 27 ed. Paris: Hachette, 2000, p. 83. 20Il donne naissance la littrature, qui, dans son developpemment progressif, consacre lhumanisation, la profanation du mythe. GUSDORF, Georges. Mythe et mtaphysique: introduction a la philosophie. Paris: Flammarion, 1953, p.132.

    20

  • segundo Gusdorf, durante os vinte e cinco sculos que separam o nascimento dos

    imprios orientais (3.000 a.C) e a morte de Scrates (399 a.C).21

    Por volta do sc. VI a.C., os cantos picos chamados pr-homricos que

    narravam as proezas dos heris nacionais e suas lendas e eram transmitidos oralmente

    pelos aedos , originaram as epopias, consideradas as primeiras obras da literatura

    ocidental.

    Portanto, deve-se sempre ter em mente que o homem homrico encontra-se entre

    as duas conscincias, testemunha da agonia do mito em favor da ascenso do homem

    racional. Nas epopias de Homero, encontram-se abundantes traos culturais do mundo

    grego, bem como resqucios do que antes foi a era mtica propriamente dita. Por isso,

    influenciam fortemente todo o pensamento grego a partir de ento:

    Os poemas homricos nos mostram, de modo maduro e firme, a nova cosmoviso,

    decisiva para o mundo helnico. Ainda h muitos resqucios e ressonncias em Homero

    mesmo nada insignificantes por meio das quais podemos fazer idia do que se pensava

    e acreditava nas pocas precedentes.22

    Deve-se considerar tambm que o nascimento da literatura marca o incio de uma

    poca histrica, diferente daquela em que a repetio ritual e o ritmo do mito

    conservavam a dinmica da existncia. Essa mudana pode ser mais bem compreendida

    com a anlise da maneira como surgiu o tempo histrico.

    Como j foi dito, o homem extrovertido no se difere dos outros seres da natureza,

    ou seja, no tem conscincia de sua individualidade. Destarte, o tempo para ele, se no

    21 GUSDORF, Georges. Mythe et mtaphysique: introduction a la philosophie. Paris: Flammarion, 1953, p.113. 22 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, p. 12.

    21

  • desconhecido, reduzido ao tempo animal, restrito apenas aos instintos e aos ciclos

    naturais. O surgimento do tempo histrico est intimamente ligado tomada de

    conscincia de si mesmo do homem, que passa da Era pr-categorial, ou pr-histrica,

    Era categorial, histrica:

    ento somente na experincia humana que o tempo se afirma em toda independncia,

    conferindo ao ser que dele dispe um direito de ao sobre o universo. (...) A ascenso do

    tempo humano permite ento a mentalizao da experincia.23

    O homem, antes regido preponderante por seu ser biolgico, ou seja, por uma

    natureza orgnica, com ritmo prprio, d lugar manifestao de seu ser social e cultural.

    Com isso, passa a ser autnomo, deixando de viver no reino da impessoalidade para

    construir seu reino individual: A histria nasce com a passagem do reino do ser ao reino

    do eu, com a entrada em cena do homem no mais como espcie, mas como

    indivduo.24

    Por essas razes, o termo mitologia que hoje se conhece deve ser entendido,

    segundo Gilson Sobral, como simples mitografia, como explica:

    (...) o conjunto de lendas e histrias da Grcia antiga chamado de mitologia no passa de

    simples mitografia, isto , de um acervo de relatos mticos que, se em muitos casos

    conservam traos de mitos estes sim elementos de uma verdadeira mitologia , em

    muitos outros configuram-se como etiologias. Por outro lado, tais relatos mticos possuem

    23 Cest donc seulement dans lexperience humaine que le temp saffirme en toute independence, confrant ltre qui en dispose un droit de reprise sur lunivers. (...) Lavnement du temps humains permet donc la mentalisation de lexprience. GUSDORF, Georges. Mythe et mtaphysique: introduction a la philosophie. Paris: Flammarion, 1953, p. 102. 24 Lhistoire nat avec le passage du rgne de lon au rgne du je, avec lentre en scne de lhomme non plus comme espce, mais comme individu. Idem, ibidem, p. 106.

    22

  • duas caractersticas bem marcadas: 1 tratam de aes e acontecimentos em que

    intervm deuses, semideuses e heris; 2 esses eventos situam-se na encruzilhada de

    duas fases distintas, uma pr-histrica e outra histrica.25

    Essa trajetria do homem grego rumo individualidade fica mais clara quando se

    observa a mudana da tragdia grega desde sua origem. No mito dos deuses quando

    estes no se encontravam afastados da natureza , o ritual era a maneira de se relembrar

    o deicdio primordial, ou seja, a morte do deus que deu origem ao universo. Aps as

    separaes mito x rito e homem x divindade, o ritual, j vazio de contedo mtico, deu

    origem ao ditirambo, um coro dramtico de stiros, donde se acredita ter se originado a

    tragdia grega. Tspis o primeiro representante do gnero, com a tragdia chamada

    primitiva, que possua um coro e um ator. At aqui a tragdia ainda era um drama

    representativo do ritual que relembrava a morte e o renascimento de Dioniso.

    squilo, que o primeiro dos autores da chamada tragdia clssica, adicionou

    tragdia mais um ator e a transformou em um drama religioso, afastando-a um pouco

    mais do ritual.

    A tragdia de Sfocles possui trs atores e um coro, e j no trata mais

    exclusivamente de questes religiosas, como o caso da Antgona, que um drama

    poltico.

    O ltimo e mais afastado do sentido primeiro da tragdia Eurpides, cujos textos

    envolvem questes religiosas em que os deuses possuem o desejo de se vingar

    daqueles que desprezam os seus mistrios, como Dioniso em As Bacantes , polticas e

    psicolgicas, como na Media.

    25 SOBRAL, Gilson. Sacrifcio e diacosmese. Braslia: Crculo de Estudos Clssicos de Braslia, 2003, p. 16.

    23

  • Portanto, observa-se que a mudana de pensamento do homem grego comea a

    ser percebida a partir do surgimento das epopias, mas vai sendo confirmada com o

    passar dos sculos, pelas tragdias, comdias e, posteriormente, pelos filsofos.

    24

  • Captulo II O tema da morte

    Observa-se que houve uma mudana de concepo de mundo na transio entre

    o pensamento mtico, dos povos pr-homricos, e o pensamento racional, cujas

    caractersticas podem ser notadas a partir do surgimento das epopias.

    Estas, no s pela extenso, mas tambm pela riqueza de detalhes acerca do

    mundo que narravam, possuem diversos traos culturais da poca homrica, desde

    indumentrias utilizadas at a descrio de prticas comuns durante a guerra, como os

    jogos fnebres, que representavam uma pausa na guerra para que os mortos fossem

    devidamente sepultados e suas almas () encaminhadas ao Hades.

    O tema da morte um dos principais traos presentes em determinada cultura e

    sua transposio obra literria, quando do surgimento desta, seria natural. Porm,

    justamente por ser um trao to caracterstico em uma cultura que o tema se torna muito

    ilustrativo da mudana que se quer mostrar na passagem da concepo mtica do mundo

    para a racional.

    Como ilustra Walter F. Otto:

    O imprio dos antigos deuses tangencia em todos os pontos o culto dos mortos: a, melhor

    dizendo, toda vida est irmanada com a morte. Para o esprito desse reino vetusto, nada

    h de mais caracterstico e no h nada que o separe mais nitidamente dos novos

    deuses.26

    26 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 122.

    25

  • 1) A morte no regime noturno da conscincia

    Como j foi dito, o regime noturno da conscincia aquele em que o homem ainda

    no possui conscincia de sua individualidade, isto , v-se sob o regime de fascinao

    do mito, inserido na natureza.

    Dentro desse regime, este homem no diferencia sua espcie humana das demais

    espcies presentes na natureza, j que no se encontra separado dela. O homem, neste

    perodo, consegue entender a linguagem da natureza. Visto isso, no h como negar

    que a relao desse homem pr-categorial com a morte ser diferente daquela do homem

    j tomado pelo mito da razo.

    Segundo Georges Gusdorf, como o homem no se v como um indivduo perante

    a natureza, no possui nem mesmo conscincia de seu prprio corpo, ou seja, no mundo

    primitivo no h uma representao particular da alma distinta do corpo e da matria em

    geral. Em conseqncia, a morte no vista como um trmino da vida, mas apenas como

    uma continuao desta em outra esfera.

    No mundo criado pela divindade, a morte apenas um momento da vida, no est

    fora dela e funciona como uma fonte de transformao. A passagem da vida para a morte

    a mudana de uma modalidade de ser para outra.

    Os mortos no deixam de fazer parte da comunidade qual pertenciam em vida,

    pois no h nenhuma fronteira que separe o mundo dos vivos do mundo dos mortos,

    como j ocorre em Homero. Alis, essa separao no existe no mundo do homem pr-

    26

  • categorial, como destaca Lvy-Bruhl: o outro mundo e este aqui so uma nica e mesma

    realidade, ao mesmo tempo representada, sentida e vivida.27

    Segundo Gusdorf, a experincia primitiva possui molduras menos rgidas que as

    nossas, o que permite alojar na mesma realidade o visvel e o invisvel, o natural e o

    sobrenatural, este mundo e o outro.

    Em relao ao mundo pr-homrico, Walter F. Otto resgata, a partir de evidncias

    encontradas nas prprias epopias e nos poemas de Hesodo, alguns indcios de como a

    cosmoviso do homem homrico j se distanciava do que ele chama de religio telrica.

    Segundo Otto, o homem da poca pr-homrica pensava diferentemente a

    respeito dos mortos, apesar de se encontrar, em Homero, resqucios de como havia sido

    essa relao entre vivos e mortos anteriormente.

    Um importante indcio destacado pelo autor a cerimnia funerria em honra do

    cadver de Ptroclo, em que, segundo a fala de Aquiles, foram cortados os pescoos de

    doze gloriosos filhos de troianos.

    O sacrifcio humano em honra de um morto nitidamente um resqucio da antiga

    f em relao considerao que se tinha pelo morto, o qual no se separava por

    completo do mundo dos vivos; pelo contrrio, podia ouvir suas splicas e preces e, assim,

    proteg-los com seu poder, que era misteriosamente aumentado.28

    Por isso, era lembrado com gratido e sacrifcios lhes eram oferecidos em sua

    tumba, pois seu rancor demonaco perseguia os ofensores e os indiferentes com terror e

    infortnio.29 Um exemplo disso encontra-se na Hcuba, de Eurpides. Polixena, a virginal

    27 Lautre monde et celui-ci ne font encore quune seule et mme ralit, la fois reprsente, sentie et vcue. LVY-BRUHL, Lucien. Les fonctions mentales dans les socits infrieures. 9 ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1951, p. 354. 28 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 124. 29 Idem, ibidem, p. 125.

    27

  • filha de Hcuba, sacrificada sobre a tumba de Aquiles, cujo rancor pela indiferena de

    seus companheiros impedia que estes partissem de Tria.

    Dessa relao com os mortos, surgem as lendas a respeito da terrvel morada dos

    mortos e de sua horrenda majestade, muito bem caracterizada nas epopias. Porm, para

    Otto, essa crena na duradoura ligao entre vivos e mortos, universalmente difundida,

    como sabido, o mundo homrico perdeu-a totalmente, como ser mais bem observado

    no prximo item.

    No mundo onde impera o regime noturno da conscincia, a relao entre vivos e

    mortos , pois, muito mais intensa. O culto aos ancestrais era essencial para a

    sobrevivncia da sociedade, pelos motivos acima expostos. Eram grandes o poder e a

    influncia dos mortos na comunidade.

    Alm disso, a morte pr-homrica est relacionada ao mito primitivo, ao ciclo em

    que vida e morte no se dissociam, era em que a prpria divindade morria para dar

    origem ao universo. Por isso, todo o ritual relacionado aos mortos que, nessa poca,

    ainda no se desvinculava do mito primordial relembrava a morte da divindade.

    Como explica Gilson Sobral:

    No sistema cosmobiolgico, nada est separado, e todas as formas participam de uma

    alma comum que se manifesta continuamente em todas elas. Nesse mundo, vida e morte

    no esto totalmente separadas entre si e como que estranhas uma outra: toda vida est

    fundada na morte, e a gerao s possvel porque a morte existe.30

    A partir da afirmao acima, fica fcil entender por que os mortos do mundo

    primitivo eram enterrados e no cremados, como no mundo homrico. Os mortos eram 30 SOBRAL, Gilson. Sacrifcio e diacosmese. Braslia: Crculo de Estudos Clssicos de Braslia, 2002, p. 25.

    28

  • devolvidos Me Terra/ Gaia/ Phsis/ Natureza, pois, assim, retornariam novamente

    como elemento dela (planta, mineral ou animal), dando continuidade ao ciclo da vida. Se

    a morte da divindade o que constitui a vida dos homens, ento, a morte destes torna-se

    vida para a divindade.31

    Essa caracterstica, apesar de ter desaparecido no perodo homrico, retornou

    posteriormente e influenciou at mesmo a crena crist, apesar de j carecer de sentido,

    visto que o homem cristo, j atuante no mundo racional, no compreende o mito em sua

    essncia. Por isso, ao jogar flores no tmulo de algum, o homem dominado pelo regime

    diurno da conscincia no sabe que est relembrando a a prtica primitiva de se plantar

    flores sobre o local onde foi enterrado o morto, para que ele retorne como elemento da

    natureza.

    31 SOBRAL, Gilson. Sacrifcio e diacosmese. Braslia: Crculo de Estudos Clssicos de Braslia, 2002, p. 26.

    29

  • 2) A morte no regime diurno da conscincia

    De acordo com as teorias observadas a respeito da passagem de uma viso

    mtica do mundo para uma viso mais racional, em que o homem comea a se posicionar

    como indivduo diante da natureza que o cerca, pode-se observar, como j foi dito, que as

    epopias Ilada e Odissia retratam o incio dessa transio.

    Por isso, pode-se considerar que, a partir de ento, o regime diurno da

    conscincia ir comear a prevalecer. Com relao ao tema de interesse do presente

    trabalho a concepo da morte no mundo homrico , mudanas significativas entre

    aquilo que se acredita ter sido o comportamento do homem pr-homrico e os relatos

    presentes nas obras escritas podem ser encontradas.

    O sinal mais importante de que o homem da poca homrica j no v a morte

    como uma etapa da vida uma outra forma de ser de determinado membro da

    comunidade , so as referncias morte como algo tenebroso. A morte representa, na

    Ilada e na Odissia, a privao da luz do sol, a apartao da vida no mundo iluminado,

    regido pelos deuses olmpicos, para um isolamento na companhia das monstruosas

    divindades ctnicas.

    Para Walter F. Otto:

    O culto dos mortos incompatvel com os olmpicos. Com efeito, ligou-se nova crena o

    sentimento de que os mortos j no tm qualquer importncia para o mundo dos vivos, e

    mais ainda: os defuntos, de cujo poder se estava, outrora, profundamente compenetrado,

    se reduziram a dbeis sombras numa inacessvel lonjura.32

    32 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 122.

    30

  • Segundo o mesmo autor, o novo esprito que surgia dirigia-se para a luz e para a

    vida com tanta intensidade, que j no podia relacionar-se com a morte como antes. Por

    isso o horror aniquilao do corpo e sobrevida no reino da morte.

    J nos primeiros versos da Ilada, essa idia fica evidente:

    Canta, deusa, a ira de Aquiles, filho de Peleu; detestvel clera que incontveis males

    trouxe aos aqueus e enviou tantas almas de corajosos heris casa de Hades e fez de

    seus corpos presas dos ces e de todas as aves do cu, para se fazer o desejo de Zeus. A

    partir do dia em que uma querela dividiu o filho de Atreu, protetor de seu povo, e o divino

    Aquiles.33

    Um dos principais males a que se referem esses versos certamente a descida

    das almas de heris gregos terrvel morada de Hades, como muitas vezes chamada.

    A partir dessa observao de que a morte nos poemas homricos algo temido pelos

    guerreiros, Erwin Rohde, autor de um dos estudos pioneiros sobre o culto das almas e a

    crena na imortalidade no mundo grego34, conclui que, a essa altura, o homem grego j

    sentia a necessidade de explicar o fenmeno da vida, j que enxerga a morte como uma

    abreviao da vida, o que, a partir das conjecturas a respeito do que foi a crena pr-

    homrica j que dela no se tem acesso a no ser pelo estudo comparativo feito por

    antroplogos a respeito da mentalidade dita primitiva no acontecia antes dessa poca.

    A religio homrica conhece, portanto, um reino da morte, os defuntos que nele

    habitam no lhe so indiferentes, porm, nessa poca, j no se admitia nenhuma

    relao entre vivos e mortos e nas epopias homricas que se pode encontrar uma

    33 Ilada, I, v. 1-9. 34 ROHDE, Erwin. Psyqu: le culte des mes chez les grecs et leur croyance limmortalit. Paris: Payot, 1952.

    31

  • representao muito clara e singular da natureza e da condio dos mortos. Essa

    representao mostra ao mundo moderno no apenas o sentido da morte para os

    homens daquela poca, mas uma noo de morte e existncia pretrita profundamente

    significativa para se entender o pensamento do homem a partir de ento.

    importante lembrar que os mortos no foram banidos do mundo, na poca

    homrica, mas sim ocuparam a um novo lugar. Como se pode observar na Ilada e na

    Odissia anlise que ser mais aprofundada no prximo captulo , a relao dos

    mortos e seus deuses j carece de um sentido profundo para a cosmoviso homrica.

    Como j foi dito, com base na leitura das duas vises de mundo diferentes (mtica

    e racional), o homem da poca homrica encontra-se na transio entre esses dois

    pensamentos, presenciando, mesmo que inconscientemente, a agonia do mito

    propriamente dito, para a ascenso do que posteriormente ser uma viso

    antropocntrica do mundo, na qual o homem j no se sente parte, mas sim dono da

    natureza que o cerca.

    As epopias homricas ilustram essa transio, que obviamente no ocorreu de

    forma brusca, pelo contrrio, como diz o Rohde: a religio grega se formou pouco a

    pouco; ela no foi fundada em um momento determinado.35

    Portanto, quando se diz que, em Homero, j existe a necessidade de explicao

    do fenmeno da vida a partir do comportamento do homem diante da morte, vale ressaltar

    que essas so observaes posteriores, de quem pretende no impor um pensamento

    moderno a uma cultura antiga, mas apenas tentar aproximar o olhar, na medida do

    possvel, de como o mundo era visto pelos homens dessa remota poca.

    35 La religion grecque sest forme peu peu; elle na pas t fonde un moment donn. ROHDE, Erwin. Psyqu: le culte des mes chez les grecs et leur croyance limmortalit. Paris: Payot, 1952.

    32

  • Como belamente ilustra Jaa Torrano em seu Discurso sobre uma cano

    numinosa, no estudo que antecede sua traduo da Teogonia, de Hesodo:

    O trabalho aqui apresentado (con)centra-se num problema metodolgico insolvel, j que

    este trabalho prope executar o inexeqvel, ou seja: se prope como um discurso sobre a

    experincia do Sagrado. Se essa experincia for apreendida e compreendida (talvez fosse

    mais adequado dizer no com-preendida, mas con-vivida) em seu mais prprio sentido e

    vigor, ento este discurso que se prope apresent-la deve necessariamente frustrar-se

    enquanto discurso36.

    Esta observao esclarece a preocupao de alguns estudiosos que escolhem

    falar sobre a experincia religiosa grega sem us-la como um instrumento para se

    entender ou ilustrar alguma teoria moderna, ou seja, tentam, de certa forma, negar o

    olhar do homem moderno, j completamente afastado dessa realidade. O desafio ,

    portanto, recuperar a mirada do homem que viveu essa transio, ainda em contato com

    o divino, mas afastando-se dele cada vez mais, rumando ao que hoje chamamos de

    (ps-)modernidade.

    Erwin Rohde indica, portanto, os sinais de que o homem homrico j se

    encaminhava a essa racionalidade; quando teme a morte, isto , reconhece-se como ser

    falvel diante dela, teme o aniquilamento de seu prprio corpo (no se pode ignorar o vigor

    com que so narrados os golpes das lanas trocados entre aqueus e troianos) e

    preocupa-se com o destino de sua alma.

    36 HESODO. Teogonia. Estudo e traduo de Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras, 1995, p. 13.

    33

  • 3) O Hades homrico e a condio da morte

    No existe dvida sobre o fato de que, no mundo homrico, a vida preferida

    morte, no s pela exaltao das aes, pela descrio minuciosa das vestimentas, do

    vigor dos heris, da capacidade das armas, dos feitos hbeis e fortes, mas tambm pela

    maneira como descrevem a morte, que no lhes , de modo algum, atrativa, como se

    pode observar tambm numa clebre passagem da Odissia que ser posteriormente

    analisada , em que Odisseu deve invocar o espectro de Tirsias, na entrada do Hades,

    para saber o caminho de volta para casa.

    Nessa ocasio, o heri tem tambm a oportunidade de conversar com os

    fantasmas37 de algumas figuras, como a do heri maior dos aqueus, Aquiles, que faz o

    seguinte comentrio sobre sua situao:

    No trate com ludbrio minha morte, nobre Odisseu!... Eu preferia trabalhar, como servo de

    gleba, s ordens de outrem, de um homem sem patrimnio e de parcos recursos, do que

    reinar sobre esses mortos, sobre esse povo plido!38

    Os mortos que j nada so, como diz Aquiles, so as psykha () homricas,

    que no so nada alm de sombras vagantes nas profundezas da morada de Hades, para

    onde so levadas e de onde no podem sair, a no ser quando invocadas, em ocasies

    especiais, como foi o caso do fantasma do rei Dario, em Os Persas, de squilo39, que,

    37 As palavras utilizadas para designar os mortos da poca homrica sero discutidas mais adiante, para que fique clara qual era a idia presente nesse perodo. 38 Odissia, XI, v. 489-492. 39 A invocao do rei Dario na tragdia Os Persas uma prtica da necromancia, conhecida dos gregos, porm, tambm j carente de sentido a essa poca, como explica a colega Beatriz de Paoli, no trabalho defendido nesta universidade: Adivinhao em Os Persas, de squilo. Braslia:

    34

  • apesar de estar ali, ressalta: no fcil sair dos infernos: os deuses subterrneos sabem

    melhor tomar do que largar. Foi preciso usar do meu prestgio e aqui estou,40 e do

    prprio adivinho Tirsias que, como tal, ainda desfrutava de seus dons de adivinho na

    vida alm da morte.

    A partir de uma leitura e de uma interpretao superficiais das epopias

    homricas, por meio das quais se conheceu a chamada mitologia grega, poder-se-ia

    argumentar, a partir das lendas sobre o deus das profundezas, Hades, e sua

    companheira, Persfone, que essas figuras e sua funo de guardar o reino dos mortos

    faziam parte da mentalidade religiosa da poca homrica.

    Porm, ao se observar mais de perto, pode-se notar que, afora as lendas antigas e

    as denominaes estereotipadas comumente utilizadas, como o senhor dos infernos, o

    terrvel Hades, entre outras, no resta muita coisa em relao ao casal reinante nos

    infernos. Eles tm pouca importncia para os viventes, deles nada se espera e a eles

    no se presta culto.41 Da mesma forma, aqueles que se encontram subjugados ao seu

    reinado tambm esto alheios vida dos vivos:

    A eles no pode chegar prece ou sacrifcio, nem h caminho que os traga de volta. E, l

    embaixo, no lugar de seu destino eterno, que so eles? Quando o olho moribundo se

    fecha, e o deixa a alma, ela desce da terra formosa para a slida manso, onde no a

    espera a continuao da vida, mas sim uma existncia espectral, onrica ou inconsciente.

    A nica coisa que o vivente podia dedicar-lhe o preito da recordao.42

    UnB, 2004. Tal passagem pode at mesmo ser considerada, neste caso especfico, como um recurso esttico, o que prova mais uma vez o afastamento do homem do mito primordial e de sua relao com a natureza. 40 SQUILO. Persas. Introduo, traduo do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqurio. Lisboa: Edies 70, 1998, p. 46. 41 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 124. 42 Idem, ibidem.

    35

  • Em Homero, portanto, os ritos funerrios tinham a funo apenas de encaminhar

    as almas sua morada, onde ficariam isoladas ad ternum do mundo dos vivos. Quando

    o homem chega ao termo de sua vida, sua existncia na terra realmente acabou. Ele no

    se engrandece na morte, nem mais digno de honras divinas. Os sobreviventes no tm

    o que deles esperar ou temer no futuro, pois, l embaixo, silenciosamente, eles no so

    nada alm de sombras.

    Mais um sinal de que o sentimento da morte j no o mesmo em Homero a

    forma de sepultamento. Como foi dito antes, na religio antiga, a prtica mais comum era

    enterrar os defuntos, para que fosse completado o ciclo vital, voltando o morto como um

    outro elemento qualquer da natureza.

    A crena homrica difere dessa idia por preferir a cremao ao enterro. Esta

    poderia ser entendida, primeira vista, apenas como um temor aos mortos, um desejo de

    banir os mortos da viso dos vivos o quanto antes, por precauo, isto , para que no

    atormentem os vivos.

    No entanto, segundo Walter F. Otto, pensar dessa maneira seria uma leviandade,

    quando se observa a crena nos mortos desde a poca pr-homrica:

    Se uma cultura que enterra os seus mortos recorre ao expediente da cremao em um

    caso desesperado em que do morto s se tem medo e repugnncia, no por a que

    chegamos a compreender minimamente o sentido da cremao solene.43

    Segundo o mesmo autor, a cremao era praticada como homenagem ao morto.

    No se pode imaginar que os mortos outrora venerados pelos antepassados pudessem

    43 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 126.

    36

  • de repente despertar apenas temor e outros sentimentos lgubres associados morte.

    Portanto, para Otto, a cremao continua sendo uma manifestao de afeto aos que

    desceram casa de Hades.

    Porm, a necessidade de cremao do corpo no mundo homrico pode ser um

    pouco mais aprofundada. Ela sim uma homenagem ao morto, j que tanto nas culturas

    ditas mais primitivas, quanto naquelas em que o homem j se encontra afastado do mito

    primordial os mortos so dignos de homenagens. Mas, com uma anlise um pouco mais

    incisiva, pode-se observar que essa mudana de hbito pode significar um pouco mais.

    Para Erwin Rohde, o aniquilamento do corpo, em Homero, a nica forma de

    separao definitiva da psykh (), que no mais poder retornar ao mundo dos

    vivos. Alis, apenas o fato de agora haver um local especfico para aqueles que morreram

    j justifica a necessidade de uma prtica diferente de enterro, para que a alma possa ficar

    devidamente isolada do mundo ao qual j no pertence mais.

    Essa crena homrica fica evidente na passagem em que Ptroclo aparece, em

    sonho, a Aquiles, solicitando urgncia em seu funeral, enfatizando a necessidade da

    queima de seu corpo para que ele possa entrar na casa de Hades, de onde nunca mais

    retornar:

    Dormes e esqueceste-me, Aquiles. No foi em vida que me negligenciaste, mas na morte.

    Enterra-me sem demora, para que eu possa passar das portas de Hades. As almas me

    expulsam, os espectros daqueles que j deixaram de sofrer no me permitem juntar-me a

    eles do outro lado do rio, e vago, sem destino, atravs da casa de Hades de grandes

    37

  • portes. D-me tua mo: o sofrimento pesa sobre mim. No tornarei a voltar casa de

    Hades, depois que me tiveres dado o galardo do fogo.44

    Esta passagem deixa clara a importncia da cremao no mundo homrico:

    apenas depois dela a psykh () pode ficar definitivamente separada do mundo dos

    vivos; antes disso, ela permanece errante, podendo ainda aparecer para e se comunicar

    com os amigos ou entes queridos. Isso ilustra uma nova concepo na crena morturia

    do esprito homrico.

    Com tais observaes, confirma-se mais uma vez a diferena fundamental que

    vem se instaurando no mundo homrico para, posteriormente, tornar-se por completo a

    maneira de pensar do homem racional. Como esclarece Walter F. Otto, na cosmoviso

    homrica, ser e ter sido pela primeira vez se confrontam como coisas de ordem muito

    distinta.45

    Com a percepo de que um ser, o homem passa a se diferenciar dos demais

    elementos da natureza. Por isso, o morto j no participa mais da sociedade, no retorna

    como no mito primordial, para continuar compondo o harmonioso ciclo vital:

    O claro olhar com que o grego contemplou o mundo de forma inovadora um pensamento

    humano primordial que recobrou vida. Esse pensamento se exprime na convico de que o

    homem sobrevive sua morte, mas no como fora vital permanente, e sim por uma

    espcie de converso da existncia viva em um ser de sopro e sombra.46

    44 HOMERO. Ilada. Traduo de Fernando C. de Arajo Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, p. 379. 45 OTTO, Walter F. Os deuses da Grcia. So Paulo: Odysseus Editora, 2005, p. 127. 46 Idem, ibidem.

    38

  • Portanto, os funerais so uma reminiscncia do rito antes obrigatoriamente

    vinculado ao mito em que a morte da divindade era lembrada a cada vez que um

    membro da comunidade morria. Agora, o sentido do ritual j dessacralizado outro: a

    necessidade de enviar o morto ao seu devido lugar, de onde no poder participar em

    absoluto da sociedade que acaba de deixar.

    39

  • Captulo III A morte em Homero

    Aps a exposio acerca das condies em que se encontrava o homem homrico

    em seu mundo, bem como das bagagens que ele trouxe de uma concepo de mundo

    anterior dele, torna-se necessrio aprofundar um pouco mais no que diz respeito s

    crenas relacionadas morte, alma e ao outro mundo nas epopias homricas.

    40

  • 1) A homrica

    Com as discusses acerca da concepo da morte nas epopias homricas, surge

    a discusso sobre a psykh () mostrada nesses textos, que tambm pode ser

    chamada de idolon () imagem , e que depois se tornou o conceito de alma,

    amplamente discutido pelos filsofos.

    Na evocao feita por Odisseu, no livro XI da Odissia, as imagens dos

    mortos aparecem como fumaa ou sombra, e reproduzem os traos do defunto. Como,

    ento, caracterizar essa psykh () presente nas epopias homricas? Pode ela ser

    considerada o esprito daqueles que partem desse mundo?

    A fonte mais completa e rica de informaes a respeito da psykh ()

    homrica o livro de Erwin Rohde47, cujas idias sero resumidas aqui. Segundo o autor,

    a psykh () homrica no corresponde em nenhum momento quilo que, por

    oposio ao corpo, chamado de esprito. Este s existe em vida para os poetas,

    garantindo ao homem conscincia dele mesmo, atividade intelectual, vontade,

    conhecimento e a prpria presena da psykh ().

    Na morte, o homem perde todo o conhecimento, uma vez que o esprito e seus

    rgos o abandonam e o pensamento desaparece quando ele retorna aos elementos de

    que era composto. Porm, no se pode atribuir psykh () e s suas prprias

    energias a garantia de vida ao homem, j que:

    47 ROHDE, Erwin. Psyqu: le culte des mes chez les grecs et leur croyance limmortalit. Paris: Payot, 1952, p. 3.

    41

  • A morte se produz, o homem deixou de ser completo: o corpo, isto , o cadver, torna-se

    terra insensvel, desagrega-se; a alma permanece intacta. Mas (...) ela no contm o

    esprito e suas faculdades.48

    Ainda assim, fica a dvida a respeito dessa enigmtica e contraditria unio entre

    um corpo vivo e sua imagem ou psykh (). O elemento corporal e visvel do homem

    o que considerado o prprio homem em Homero; em oposio est a psykh (),

    que no pode ser nenhum rgo e nenhuma parte do corpo. Porm, aquele que chega

    manso dos mortos continua sendo chamado pelo nome que tinha em vida, ou melhor,

    considerado o prprio homem que era em vida. A psykh () que precipita no Hades

    possui o mesmo valor da personalidade do eu humano.

    Apesar de parecer contraditrio que a psykh () seja ao mesmo tempo

    oposta ao homem vivo, mas a ele se assemelhe quando est no Hades, isso explicado

    pelo fato de que, na concepo homrica, o homem tem uma dupla existncia: uma forma

    visvel e sua imagem invisvel, que se torna livre no momento da morte. A psykh ()

    , ento, um segundo eu.

    Segundo Rohde, esta concluso de que h uma vida dupla no homem no surge

    da sensibilidade, nem da vontade do pensamento, mas no sonho, no xtase:

    O reino da alma o pas dos sonhos; quando o outro-eu, tendo perdido conscincia de si

    mesmo, est imerso no sono, o duplo vela e age. Na realidade, enquanto o corpo daquele

    que dorme descansa imvel, ele mesmo v e faz, em sonho, uma quantidade de coisas

    maravilhosas. Sem dvida, ele mesmo, e portanto no o seu eu visvel, bem conhecido 48 La mort se produit-elle, lhomme a cess dtre complet: le corps, cest--dire le cadavre, devenu terre insensivle, se dsagrge; la psyqu demeure intacte. Mais (...) elle ne recle lesprit et ses facults. ROHDE, Ervin. Psyqu: le culte des mes chez les grecs et leur croyance limmortalit. Paris: Payot, 1952.

    42

  • dos outros e dele mesmo, porque jazia como morto, inacessvel a todas as impresses.

    Assim, um segundo eu vive nele, e no age somente durante o sono. Homero acredita

    ainda firmemente que as aes feitas em sonho sejam aes reais e no puras

    imaginaes.49

    Dessa forma, a viso de uma pessoa que j morreu no apenas uma viso, mas

    a prpria pessoa. E, se ela pode se mostrar, porque ainda existe, sobreviveu morte

    sob a forma de uma imagem sutil, parecida imagem que vemos com os olhos. Sonhar

    com pessoas que ainda esto vivas tambm uma prova de que a psykh () pode

    se afastar do corpo; a diferena que, em vida, esse trnsito momentneo durante o

    sono e, na morte, a separao definitiva.

    49 Le royaumme de lme est le pays des songes; lorsque lautre moi, ayant perdu conscience de lui-mme, est plong dans le sommeil, le double veille et agit. En ralit, tandis que le corps de celui qui dort repose immobile, lui-mme voit et accomplit en rve quantit de choses merveilleuses. Lui-mme il non saurait douter et cependent pas son moi visible, bien connu des autres et de lui-mme, car il gisait alors comme mort, inaccessible toutes les impressions. Ainsi donc, un second moi vit en lui, qui nagit pas que pendant le sommeil. Que les actions accomplies en rve soient des actions relles et non de pures imaginations, cest ce quHomre croit encore fermement. ROHDE, Ervin. Psyqu: le culte des mes chez les grecs et leur croyance limmortalit. Paris: Payot, 1952, pp. 5-6.

    43

  • 2) O destino e o culto das almas em Homero

    Se a psykh () homrica parte de uma dupla existncia do homem e

    sobrevive sua morte, surge ento a discusso sobre seu destino. Para onde vo as

    almas quando se tornam livres? E o que se faz necessrio para que elas partam deste

    mundo para o outro?

    Sabe-se que, nas epopias homricas, o destino das almas a morada de Hades,

    deus guardio do reino dos mortos. Depois de queimado o corpo do morto, a alma desce

    ao Hades, onde permanece isolada do mundo dos vivos. Para entender um pouco mais a

    respeito dessa condio, Erwin Rohde compara as narrativas homricas com o que se

    sabe ter ocorrido anteriormente a elas, no mundo primitivo.

    Geralmente, os primitivos atribuam um poderio imenso s almas. Como j foi dito,

    este poder era na maioria das vezes assustador, j que as almas eram vistas como o

    princpio de todas as foras ocultas. Em Homero, porm, no h essa idia de ao das

    almas no mundo visvel. Por isso, depois que descem ao Hades, perdem a possibilidade

    de retorno, como garante Ptroclo a seu amigo.

    Da, Rohde aborda a questo do culto s almas. Para ele, como os mortos j no

    tinham mais influncia na vida dos vivos, j no existe, em Homero, mais razo para um

    culto s almas como havia no mundo primitivo. Por isso, o autor considera que o que

    movia os funerais e os sacrifcios narrados nas epopias homricas era mais o sofrimento

    pela morte de algum do que o pavor de que aquela alma retornasse ao mundo dos vivos.

    Prticas funerrias encontradas nos textos homricos, tais como: fechar os olhos e

    a boca do cadver, lavar e embalsamar, lamentaes, ossos colocados numa urna e

    enterrados numa colina etc., so vestgios de um culto antigo. O que h em Homero so,

    44

  • portanto, reminiscncias do que antes foi um culto aos ancestrais, mas que na poca

    homrica j haviam perdido seu significado por causa de mudanas nas idias religiosas.

    Referncias de que os mortos podiam, por exemplo, usar os objetos colocados

    junto com eles na tumba existem em Homero, como o caso das armas de Elpenor, na

    Odissia,50 mas so apenas smbolos do que j fora uma crena na necessidade de o

    morto levar consigo todos os seus pertences. Tal costume depois se transformou no

    hbito de colocar um bolo na boca do defunto, para pagar o barqueiro infernal.

    Apesar de se saber o destino e a condio das almas aps a morte, ainda no h

    em Homero a noo de imortalidade, j que elas so como a imagem de um homem no

    espelho e no tm fora sem o corpo.51

    Quando Ptroclo aparece a Aquiles, por exemplo, o heri diz que Ptroclo estava

    sem o diafragma (phrn, phrens [, ]), parte do corpo muitas vezes

    identificada como uma ligao entre corpo e psykh (), ou como a prpria essncia

    dela. Segundo Rohde, tal referncia tambm um resqucio de quando os homens

    acreditavam que os movimentos da vontade e as operaes da inteligncia residiam no

    interior do homem visvel.

    Em Homero, essa idia adquiriu cada vez mais um senso formal e outras palavras

    foram surgindo para substituir phrn (), como nos (), boul (), mnos

    (), entre outras, cujo sentido est mais ligado a uma funo estritamente intelectual

    e no remete a nenhum rgo do corpo.

    desses vrios elementos que composta, portanto, o que se pode chamar parte

    de uma teologia homrica, que est certamente longe de apresentar caractersticas de

    50 XI, v. 74. 51 O que existe apenas uma referncia s crenas ligadas aos mistrios de Eleusis, que ser tratada no prximo captulo e ainda assim no reflete ainda a idia da imortalidade da alma.

    45

  • um sistema coerente, principalmente por se encontrar numa fase de transio entre duas

    concepes de mundo, mas que, no entanto, no deixou de fazer parte da imaginao do

    homem de sua poca.

    46

  • 3) A de Odisseu ()

    Os termos que do nome passagem do livro XI da Odissia, em que Odisseu

    entra em contato com as almas de Tirsias, Aquiles, de sua me, entre outros, so:

    necromancia e sacrifcio para a evocao dos mortos52. Tais

    termos j deixam claras as duas aes motivadoras da ida de Odisseu s portas do

    Hades: evocar os mortos para deles obter um orculo; neste caso especfico, evocar o

    fantasma do adivinho Tirsias.

    O termo kathbasis () significa ao de descer, tambm utilizado para

    quando se quer mencionar uma descida ao Hades (), e tem sua

    origem no verbo , que quer dizer descer em diversas situaes53.

    Escolheu-se utilizar aqui o termo kathbasis () porque, apesar de no

    ser uma descida propriamente dita, o sentido da ao o mesmo, ou seja, um homem

    vivo que tem acesso ao mundo dos mortos, assim como ocorrer posteriormente na

    Eneida, de Virglio, e na Divina Comdia, de Dante Alighieri esta j afastada do esprito

    grego e influenciada pelos princpios cristos , as quais narram descidas dos

    personagens ao Hades e ao Inferno, respectivamente.

    Como se sabe, nesta passagem, Odisseu, que j estava h um ano hospedado na

    ilha da ninfa Circe, decide partir, mas antes orientado por ela a consultar o espectro do

    adivinho Tirsias a respeito de seu caminho () de volta para taca.

    52 BAILLY, Anatole. Le Grand Bailly: Dictionnaire Grec-Franais. 27 ed. Paris: Hachette, 2000, p. 1317. 53 Idem, ibidem, p.1027.

    47

  • Para isso, recebe de Circe algumas recomendaes que deve seguir para obter

    xito nessa tarefa de evocar os mortos:

    (...) cava um fosso quadrado (...) faze trs libaes a todos os mortos, primeiramente com

    leite mesclado de mel, em seguida com o doce vinho, em terceiro lugar com gua pura;

    depois, espalhando uma branca farinha na cavidade, invoca os mortos (...) Sacrifica a este

    nobre povo um cordeiro e uma ovelha negra, voltando as cabeas das vtimas para o

    rebo; mas tu desvia os olhos e olhe apenas para as correntes do rio.54

    Odisseu segue ento as orientaes de Circe, encalhando a nau perto do Oceano

    profundo, na regio onde confluem o rio Piriflegeteonte e o Cocito, que um brao do

    Estige. Nessa regio onde os rios despenham e onde o sol nunca brilha, o heri faz os

    sacrifcios e, ao derramar o sangue das vtimas, os fantasmas comeam a se aproximar

    por todos os lados. Havia imagens de vrias pessoas: jovens, mancebos, ancios,

    donzelas delicadas e muitos guerreiros feridos por lanas, com armaduras ainda

    ensangentadas55.

    Segundo Bremmer, essas primeiras almas avistadas por Odisseu pertencem a um

    grupo que possuiria um destino especial depois da morte por terem morrido antes do

    tempo (ahroi) ou de morte violenta (biaiothnatoi) e que, por isso, foram enterrados sem

    os ritos funerrios. Os ancios entrariam nessa categoria por pertencerem ao grupo dos

    que normalmente no recebem ritos funerrios, muitas vezes por terem provocado a

    prpria morte, uma prtica que, segundo o referido autor, era um costume da poca.

    Dessa forma, esse grupo primeiramente visto por Odisseu seria o grupo das almas

    que no chegam a adentrar a morada Hades, por no terem recebido os ritos necessrios

    54 Odissia, X, v. 517-530. 55 Odissia, XI, v. 38-40.

    48

  • para tanto; por isso, ficam vagando em seus arredores. nesse grupo que est o heri

    Elpenor, amigo de Odisseu.

    Segundo as recomendaes da deusa Circe, Odisseu deveria espantar os

    fantasmas que quisessem se aproximar do sangue antes de o espectro de Tirsias

    aparecer, porm, Elpenor, que havia morrido na morada de Circe antes de sua partida

    quele local, aparece antes para reclamar por uma sepultura: (...) eu te suplico meu rei,

    no me esqueas! Antes de voltar, no me abandones sem lgrimas, sem funerais (...).56

    Assim, conclui-se que Elpenor aparece primeiro, quebrando a ordem que Circe

    havia recomendado, porque o cadver ainda no tinha recebido funerais, isto , ainda

    vagava na regio, impedido de entrar no Hades propriamente dito, e por isso lamentava-

    se e suplicava por ajuda.

    Depois disso, o espectro do adivinho Tirsias se aproxima pedindo para sorver o

    sangue para poder (pre)dizer a verdade j que no precisa dele pra recobrar a

    conscincia, privilgio concedido por Persfone. O adivinho prediz, ento, o futuro de

    Odisseu, narrando todos os infortnios que o heri ainda dever enfrentar antes de

    chegar a taca, quando ir, finalmente, matar os pretendentes que tomam conta de seus

    bens e importunam sua mulher, Penlope; reencontrar o filho Telmaco; e depois morrer

    tomado pela velhice, rodeado de povos afortunados.

    Enquanto fala com Tirsias, o heri avista o espectro de sua me, Anticlia, mas

    ela lhe indiferente. Terminada a consulta ao adivinho, Odisseu, com a orientao deste,

    permite que sua me se aproxime para sorver o sangue, condio para que ela pudesse

    ento reconhec-lo. Anticlia d notcias de taca, falando da situao em que se

    encontravam seus familiares.

    56 Odissia, XI, v. 71-73.

    49

  • O heri emociona-se e tenta abraar a me, mas sua condio espectral no

    permite: trs vezes me lancei para ela, (...) trs vezes ela me escapou das mos, como

    se fosse uma sombra ou um sonho.57 tomado ento de intensa dor e pergunta: Me,

    por que me foges quando quero abra-la?58, indagando se por acaso Persfone

    planejou um ardil para que ele no pudesse desfrutar daquele momento com sua me,

    mandando apenas uma sombra idolon () para engan-lo.

    Anticlia revela, neste momento, quais so as caractersticas das almas no Hades,

    explicando ao filho que, depois da morte, os nervos no mais seguram as carnes e a fora

    dos ossos destruda pelo fogo. Ento: No momento em que a alma () deixa o

    corpo, a sombra () se evola como um sonho ().59

    Depois do dilogo com a me, Odisseu narra o encontro com diversas mulheres,

    entre elas Epicasta, rainha de Tebas e me de dipo, vtima da maldio que assolou a

    famlia e lhe levou a colocar fim na vida quando soube que se casara com o prprio filho.

    O heri grego encontra, ainda, as almas de diversos companheiros de batalha,

    como Agammnon que lhe conta seu assassinato por Egisto e Clitemnestra em sua

    volta para casa , Aquiles, que lamenta sua condio de sombra no Hades, como j foi

    mencionado, entre outros.

    Alm dessas e de outras almas, Odisseu menciona algumas vises que valem

    pena serem destacadas: Minos, que ficava sentado num trono, administrando a justia

    () aos mortos; rion, cuja sombra foi avistada correndo atrs as feras que ele

    prprio havia matado, com sua clava que nunca se quebrara; Tcio, cujo fgado era

    dilacerado por dois abutres porque ele havia violentado Leto, esposa de Zeus; Tntalo,

    57 Odissia, XI, v. 205-206. 58 Odissia, XI, v. 210-211. 59 Odissia, XI, v. 221-222.

    50

  • que ficava num lago com gua at o queixo, mas quando tentava matar sua sede, o lago

    desaparecia e, da mesma maneira, quando olhava para cima, havia frutos sobre sua

    cabea, mas quando os tentava pegar o vento levavam-nos para longe; e Ssifo, que

    sofria de dores violentas para carregar uma pedra enorme at o topo de um morro, mas

    quando chegava l a pedra rolava para baixo, obrigando-o a reiniciar o esforo.

    O destaque para os casos acima deve ser dado por motivos bvios, ou seja, a

    incoerncia dessas informaes com as condies da morte apresentadas em Homero, j

    que no h, em nenhum outro trecho da Ilada ou da Odissia, meno justia divina e

    punio de atos cometidos em vida na vida post mortem.

    Com relao a essa contradio, parece haver uma uniformidade entre os

    tericos ao afirmarem que tal trecho, bem como alguns outros, uma expanso tardia do

    captulo, feita provavelmente por dois ou mais poetas, pelo fato de tal passagem

    apresentar uma narrativa mais breve e simples.

    Segundo Erwin Rohde, o trecho da kathbasis () de Odisseu sofreu,

    com o passar do tempo, diversas incluses de trechos de outros autores, j influenciados

    pelas crenas e hbitos de pocas posteriores de Homero. Por isso, o autor julga o

    trecho dos penitentes uma incluso posterior, por se afastar totalmente das

    caractersticas da psykh () homrica e da relao do homem com a morte nessa

    poca.

    Hack partilha da mesma opinio que Rohde a esse respeito e cita mais alguns

    pontos contraditrios crena homrica presentes nos cantos X e XI da Odissia. Para

    ele, a promessa feita por Odisseu de realizar sacrifcios em honra das almas do Hades

    quando de seu retorno taca, proferida no momento da invocao (segundo a orientao

    de Circe), tambm uma contradio, j que os mortos homricos no necessitavam

    51

  • disso, por no terem chances de retorno nem de mudana de condio no local onde

    esto confinados.

    Com relao aos cultos aos mortos na poca homrica, Rohde discordando de

    Hack nesse aspecto observa que o fato de o sangue dar conscincia s almas e o dom

    da profecia a Tirsias uma evidncia de que, na cultura dos mortos em Homero, havia a

    possibilidade de eles se aproximarem de quem lhes fazia um sacrifcio, mesmo depois de

    terem sido banidos ao reino inacessvel das sombras. A partir da, o autor conclui que,

    mesmo na poca em que dominava a crena homrica, os sacrifcios aos mortos no

    foram totalmente esquecidos e eram praticados em ocasies extraordinrias.

    Com relao necessidade de consulta ao adivinho Tirsias, a opinio dos dois

    tericos a mesma, isto , de que esse trecho, apesar de fazer parte do texto original da

    epopia, no passa de um subterfgio do poeta para que a visita do heri grego ao Hades

    possa acontecer. Alm disso, para Rohde, a preservao dos dons profticos de Tirsias

    , para a crena homrica, uma exceo, o que reforaria a idia de que tal dilogo foi um

    recurso esttico utilizado pelo poeta.

    Outras duas evidncias de que alguns trechos foram includos posteriormente so

    o prprio orculo de Tirsias, no momento em que revela o que Odisseu enfrentaria

    quando chegasse em taca, e a narrativa de Anticlia sobre a situao de seu reino, em

    especial sobre o sofrimento de Penlope. No canto XIII, essas informaes so repetidas

    pela deusa Atena como se no tivessem sido reveladas anteriormente, quando esta

    aconselha o heri a respeito de como proceder quando chegar sua terra.

    Vale dizer que a inteno ao se suscitar tal discusso no invalidar a passagem

    da obra homrica, mas, pelo contrrio, procurar encontrar nela os elementos que se

    afinam com o que se acredita ser, a partir do restante dos poemas picos, a crena

    homrica a respeito da morte e, naquelas que no se incluem nas caractersticas da

    52

  • crena homrica, identificar as mudanas de pensamento que ocorreram nos perodos

    subseqentes.

    Pode-se afirmar com segurana, portanto, que os dois primeiros casos citados (os

    penitentes e o culto aos mortos) so os trechos mais relevantes para corroborar a idia

    de que os poemas homricos se encontram na transio entre duas concepes de

    mundo, j que se pode encontrar, a respeito do tema da morte, tanto resqucios de

    prticas arcaicas, pr-homricas (culto aos mortos), como mudanas posteriores na

    concepo do mesmo tema (punio ps-morte), com a evidncia do afastamento

    gradativo do sentimento do mundo sob o olhar mtico para o olhar racional.

    53

  • Captulo IV Os rumos do tema da morte

    Observou-se, pois, que o homem grego que vivia no mundo homrico e cujas

    crenas acerca da morte eram as descritas neste trabalho, j comeava a olhar o mundo

    de maneira diferente, com uma viso mais racional, que passa gradativamente a

    prevalecer, afetando tambm as concepes acerca da morte e do outro mundo na

    cultura grega.

    Por isso, julgou-se necessrio observar, assim como foi feito com o perodo pr-

    homrico, para onde rumaram as idias a respeito do tema no perodo ps-homrico.

    Para tanto, limitou-se a mencionar algumas crenas e doutrinas posteriores, que

    influenciaram as mudanas do pensamento, alm de ilustrarem, de certo modo, a

    continuidade do trajeto mito-razo, iniciado na mentalidade homrica.

    Como ficou claro, no perodo homrico a idia que prevalece o temor morte e a

    recluso da psykh (), sombra enfraquecida, no Hades. Alm disso, como observa

    Walter Friedrich Otto, os deuses ctnicos no exercem influncia significativa nos

    homens, que vivem sob o domnio do mundo iluminado dos deuses olmpicos.

    Os cultos s almas so, portanto, resqucios de prticas mais antigas e, como

    observa Rohde, permaneceram na cultura popular, mesmo no possuindo o mesmo

    significado de outrora.

    O que se observa posteriormente que, de alguma maneira, esses cultos

    voltaram a ter valor na mentalidade, com valores diferentes. Segundo Rohde, com a

    expanso do Estado grego, isto , com a conquista de novas regies, novas crenas

    foram sendo incorporadas ao pensamento grego. Para ele:

    54

  • Os poemas homricos so, na verdade, o trmino de um processo mais antigo, que

    alcanou sua perfeita maturidade, e o ponto de partida de uma nova ordem de coisas, uma

    srie de inverses de valores. Eles refletem, numa moldura ideal, o passado em vias de

    desaparecer.60

    Para mostrar, de maneira breve, como esse desaparecimento do passado

    ocorreu para dar lugar a novas crenas e idias, destacar-se-o alguns pontos julgados

    importantes nesse processo.

    60 En vrit, les pomes hom