Dissertacao Completa Lcp [Final]

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO Programa de PósGraduação em Comunicação Social Luís Carlos Paravati ASPECTOS COMUNICATIVOS E CULTURAIS NOS HÁBITOS CULINÁRIOS CAIÇARA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA FAZENDA PICINGUABA, DE UBATUBA SP São Bernardo do Campo, 2014

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Dissertação de mestrado

Transcript of Dissertacao Completa Lcp [Final]

  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE COMUNICAO

    Programa de PsGraduao em Comunicao Social

    Lus Carlos Paravati

    ASPECTOS COMUNICATIVOS E CULTURAIS NOS HBITOS

    CULINRIOS CAIARA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA

    FAZENDA PICINGUABA, DE UBATUBA SP

    So Bernardo do Campo, 2014

  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO

    FACULDADE DE COMUNICAO

    Programa de PsGraduao em Comunicao Social

    Lus Carlos Paravati

    ASPECTOS COMUNICATIVOS E CULTURAIS NOS HBITOS

    CULINRIOS CAIARA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA

    FAZENDA PICINGUABA, DE UBATUBA SP

    Dissertao apresentada em

    cumprimento parcial s exigncias

    do Programa de Ps-Graduao em

    Comunicao Social, da

    Universidade Metodista de So

    Paulo (UMESP), para obteno do

    grau de Mestre.

    Orientadora: Prof Dr: Cicilia Maria

    Krohling Peruzzo

    So Bernardo do Campo, 2014

  • FICHA CATALOGRFICA

    P212a

    Paravati, Lus Carlos

    Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios caiara da

    comunidade quilombola da fazenda Picinguaba de Ubatuba - SP / Lus

    Carlos Paravati. 2014.

    146p.

    Dissertao (mestrado em Comunicao Social) --Faculdade de

    Comunicao da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do

    Campo, 2014.

    Orientao : Cicilia Maria Khohling Peruzzo

    1. Comunicao social 2. Folkcomunicao 3. Cultura Brasil

    Ubatuba (SP) 4. Comunidade quilombolas 5. Caiara Brasil So

    Paulo (Estado) Ubatuba 6. Culinria Aspectos comunicativos I.

    Ttulo.

    CDD 302.2

  • FOLHA DE APROVAO

    A dissertao de mestrado sob o ttulo Aspectos comunicativos e culturais nos

    hbitos culinrios caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de

    Ubatuba SP, elaborada por Lus Carlos Paravati, foi defendida e aprovada em 17

    de setembro de 2014, perante banca examinadora composta por Prof Dr Cicilia

    Maria Krohling Peruzzo (Presidente/UMESP), Prof Dr Magali do Nascimento

    Cunha (Titular/UMESP) e Prof Dr Priscila Ferreira Perazzo (Titular/USCS).

    Declaro que o autor incorporou as modificaes sugeridas pela banca examinadora, sob

    a minha anuncia enquanto orientadora, nos termos do Art.34 do Regulamento dos

    Cursos de Ps-Graduao.

    ______________________________________

    Prof. Dr. Cicilia Maria Krohling Peruzzo

    Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

    ______________________________________

    Prof. Dr. Marli dos Santos

    Coordenadora do Programa de Ps-Graduao

    So Bernardo do Campo, 10 de novembro de 2014.

    Programa: Ps-Graduao em Comunicao Social

    rea de Concentrao: Processos Comunicacionais

    Linha de Pesquisa: Comunicao miditica nas interaes sociais

    Projeto temtico: Mdia local e comunitria

  • DEDICATRIA

    Ao Seu Soares (in memoriam), pela pacincia em ouvir minhas histrias sobre o

    andamento da pesquisa;

    Ao Seu Z Pedro, grande mestre, pela sua sabedoria;

    Deborah e ao Daniel, por torcerem pelos meus sonhos;

    Manuela e Julia, que nasceram e me encantaram, no decorrer desta empreitada;

    minha esposa Lucia Helena, pelo incentivo e companheirismo sempre.

  • O povo que planta e pesca,

    canta, dana, faz festa,

    no seu pedao de cho

    Abastece a sua mesa,

    Agradece a natureza

    em qualquer religio.

    Seu lugar seu oratrio,

    Tirar o seu territrio

    calar a tradio.

    (Luis Perequ)

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo Deus pela sade, oportunidade e proteo;

    Prof Dr Cicilia Peruzzo, minha orientadora e professora, que com pacincia e

    sabedoria me conduziu nos caminhos da comunicao;

    Ao Prof Dr Laan Mendes de Barros, pelo acolhimento no programa de Ps-graduao;

    Prof Dr Marli dos Santos, Coordenadora do programa, pela ateno e carinho;

    Ao Prof Dr Jos Marques de Melo, Prof Dr Sonia Jaconi e Prof Dr Rosemeire

    Laurindo, por me guiarem pelos gneros jornalsticos;

    Prof Dr Magali do Nascimento Cunha por me trilhar pelos Estudos Culturais e pela

    Construo do imaginrio e, sobretudo, pela valiosa colaborao na banca de

    qualificao;

    Prof Dr Cristina Schmidt por sua importante contribuio na banca de qualificao;

    Rnia, Prof Andrade e a todo pessoal da Ctedra Unesco/Metodista, e ao Kleber Luiz

    que fez parte dessa equipe;

    Katia, Vanete, Walkiria, Joyce pela retaguarda e orientaes nos trmites

    burocrticos;

    Aos colegas doutorandos e Doutores Iury, Eduardo, Tyciane, Clarissa, Orlando, Vivian,

    Renato, e Renata; aos colegas mestrandos e Mestres, Julio, Lus Erlin, Edvaldo, Aline,

    Catherine, Tereza, Ariadne, Paula, Gilmar, Lira; e aos integrantes dos grupos de

    pesquisa Comuni e Mire pela fora, companheirismo e momentos agradveis;

    Aos queridos familiares Jessica, Rafael, Rodrigo, Debora, Marcos, Dona Luiza pelo

    carinho e incentivo;

    Aos amigos Aydee, Andrea, Antonio F, Frugoli, Pe. Cesar, Wilton e Uyeda, pelo

    estmulo e torcida;

    Aos queridos alunos de Gastronomia da UMESP e Mackenzie por me despertar para

    essa caminhada;

    Universidade Metodista e Capes pelo apoio financeiro;

    Ao Jos Basaglia, do Ncleo Picinguaba, por me receber e apresentar a unidade de

    conservao do Parque Estadual da Serra do Mar;

    Aos novos queridos amigos do Quilombo da Fazenda: Dona Carmem (Fica), Dona

    Maria (Me da Fica), Jaime, Dona Laura, Dona Cida, Dona Lucia, Dona Marcia, Seu

    Dito, Seu Vinturante, Luciano, Ginacil, Claudionor, Luciana, Juliana, Bruna.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura n 1 - Placa de indicao do Ncleo Picinguaba. ................................................ 53

    Figura n 2 - Placa de indicao do Ncleo Picinguaba. ................................................ 53

    Figura n 3 - Sede do Ncleo Picinguaba. ...................................................................... 53

    Figura n 4 - Placa indicativa da Casa da Farinha .......................................................... 59

    Figura n 5 - Placa indicativa do Quilombo da Fazenda. ............................................... 59

    Figura n 6 - Casa de Farinha - Quilombo da Fazenda. .................................................. 59

    Figura n 7 - Casa de Farinha - Quilombo da Fazenda. .................................................. 59

    Figura n 8 - Logomarca do Quilombo da Fazenda Picinguaba desenvolvido pelo

    programa de incluso social e promoo da cidadania, realizado pela Universidade So

    Judas Tadeu, em parceria com o programa luz para todos. ............................................ 61

    Figura n 9 - Reunio na Assembleia Legislativa de So Paulo ..................................... 62

    Figura n 10 - Banana verde para o preparo do azul-marinho. ....................................... 95

    Figura n 11 - Banana verde j em cozimento para o preparo do azul-marinho. ........... 95

    Figura n 12 - Peixe limpo para o preparo do azul-marinho........................................... 95

    Figura n 13 - Peixe em cozimento com a banana verde para o preparo do azul-marinho.

    ........................................................................................................................................ 95

    Figura n 14 - Azul-marinho finalizado. ......................................................................... 95

    Figura n 15 - Salada de corao de banana, ou salada quilombola. .............................. 95

    Figura n 16 - Folha da taioba, muito presente nas preparaes culinrias. ................. 101

    Figura n 17 - Ponto de venda de farinha de mandioca, na casa de farinha do Quilombo

    da Fazenda. ................................................................................................................... 101

    Figura n 18 - Loja de artesanato do Quilombo da Fazenda. ....................................... 105

    Figura n 19 - Artigos de artesanato produzidos no Quilombo da Fazenda. ................ 105

    Figura n 20 - Fruto da palmeira juara. ....................................................................... 113

  • SUMRIO

    RESUMO ..........................................................................................................................9

    ABSTRACT ....................................................................................................................10

    RESUMEN ......................................................................................................................11

    INTRODUO ...............................................................................................................12

    Captulo I COMUNIDADE, CULTURA E IDENTIDADE ........................................18

    1. Comunidade e comunicao comunitria ............................................................... 18

    2. Cultura, identidade e comunicao ......................................................................... 27

    2.1. Cultura e identidade ......................................................................................... 30

    2.2. Cultura popular ................................................................................................. 32

    2.3. Cultura caiara.................................................................................................. 36

    2.4. Cultura quilombola ........................................................................................... 40

    2.5. Cultura alimentar .............................................................................................. 42

    Captulo II CARACTERIZAO DO NCLEO PICINGUABA..............................46

    1. Parque Estadual da Serra do Mar ............................................................................ 46

    1.1. Ncleo Picinguaba............................................................................................ 52

    1.2. Quilombo da Fazenda (Serto da Fazenda)...................................................... 58

    2. Cultura, e tradies na comunidade ........................................................................ 64

    2.1. O cotidiano do Serto da Fazenda antes da construo da BR-101 ................. 65

    2.2. A vida no Quilombo da Fazenda aps a construo da BR-101 ...................... 72

    Captulo III COMUNICAO E CULTURA NO QUILOMBO DA FAZENDA .....77

    1. A cultura alimentar caiara ..................................................................................... 77

    2. A cultura alimentar no Quilombo da Fazenda ........................................................ 80

    3. Aspectos comunicacionais da transmisso dos saberes e fazeres culturais do

    Quilombo da Fazenda ................................................................................................. 88

    3.1. Culinria ......................................................................................................... 100

    3.2. Artesanato....................................................................................................... 105

    4. A cultura alimentar tradicional ressignificada pelas prticas culinrias atuais no

    Quilombo da Fazenda ............................................................................................... 107

    CONCLUSO ...............................................................................................................115

    REFERNCIAS ............................................................................................................119

  • RESUMO

    PARAVATI, Lus Carlos. Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios

    caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de Ubatuba SP, 2014. 146 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social) - Universidade Metodista

    de So Paulo, So Bernardo do Campo.

    Estudo sobre os processos comunicativos envoltos na transformao dos hbitos

    culinrios da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba de Ubatuba, SP. O

    objetivo entender as origens e as causas que provocaram alteraes nos hbitos

    culinrios da comunidade do Quilombo da Fazenda, a partir de uma anlise comparativa

    entre os fazeres primitivos e os praticados hoje. Foi analisado tambm o processo

    comunicacional desenvolvido para a transmisso da cultura alimentar entre as geraes,

    identificando as linguagens utilizadas. Como instrumento para o entendimento desses

    fenmenos, esta pesquisa foi realizada luz das teorias e conceitos dos estudos

    culturais; dos conceitos sobre comunidades e identidades, alm da teoria da

    folkcomunicao desenvolvida por Luiz Beltro. Para tanto, foi realizada pesquisa

    bibliogrfica e estudo de documentos, alm de entrevistas utilizando-se a modalidade

    histria oral com os membros da comunidade. Os resultados obtidos apontam uma

    mudana nos hbitos alimentares da comunidade do Quilombo da Fazenda, devido

    facilidade de acesso ao comrcio de gneros alimentcios, decorrente da construo da

    rodovia Rio-Santos, e a influncia trazida pela televiso, a partir da implantao da rede

    de energia eltrica em 2008. No entanto, observamos que apesar dessa mudana, a base

    da cultura alimentar quilombola vem mantendo muito dos seus aspectos originais. A

    comunicao dentro da comunidade quilombola e a transmisso dos saberes e fazeres

    tradicionais da comunidade ocorrem predominante pela oralidade. Identificamos a

    presena de dana, msica, roda de conversa, culinria, artesanato que correspondem

    aos gneros da folkcomunicao.

    Palavras chave: comunidade.quilombo.caiara.alimentao.folkcomunicao.

  • ABSTRACT

    PARAVATI, Lus Carlos. Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios

    caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de Ubatuba SP, 2014. 146 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social) - Universidade Metodista

    de So Paulo, So Bernardo do Campo.

    Study about the communicative processes involved in the quilombola community from

    Fazenda Picinguaba de Ubatuba, SP culinary habits transformation. Its objective is to

    understand the origins and causes that provoked the Quilombo da Fazenda community

    culinary habits changes, using a comparative analysis between primitive and current

    doings. The communication process developed to transmit the feeding culture between

    generations was also analyzed, identifying the languages used. As an instrument to

    understand these phenomena, this research was carried at the light of cultural studies

    theories and concepts; of concepts about communities and identities, and also the

    folkcommunication theory developed by Luiz Beltro. For such, bibliographic research

    and document studies were performed, and also interviews using the oral history

    method with community members. The results obtained indicate a change in Quilombo

    da Fazenda community feeding habits, due to ease the of access to food commerce

    provided by both the Rio-Santos highway construction and the influence brought by

    television, with the implantation of electric energy in 2008. However, we observe that,

    in spite of these changes, the quilombola feeding culture basis keeps many of its

    original aspects. The communication inside the quilombola community and the

    traditional knowledge and doing transfer occur mostly orally. We identify the presence

    of dancing, music, conversation circle, culinary, craftsmanship that correspond to the

    folkcommunication genre.

    Keywords: community.quilombo.caiara.feeding.folkcommunication

  • RESUMEN

    PARAVATI, Lus Carlos. Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios

    caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de Ubatuba SP, 2014. 146 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social) - Universidade Metodista

    de So Paulo, So Bernardo do Campo.

    Estudio acerca de los procesos comunicativos envueltos en la transformacin de los

    hbitos culinarios de la comunidad quilombola de la Fazenda Picinguaba, Ubatuba - SP.

    El objetivo es entender los orgenes y las causas que provocaron alteraciones en los

    hbitos culinarios de la comunidad el Quilombo da Fazenda, a partir de un anlisis

    comparativo entre los hagas primitivos y los practicados hoy. Fue analizado tambin el

    proceso comunicacional desarrollado para la transmisin de la cultura alimentar entre

    las generaciones, identificando el lenguaje utilizado. Como instrumento para el

    entendimiento de esos fenmenos, este estudio fue realizado guiado por las teoras y

    conceptos de los estudios culturales; de los conceptos sobre comunidades e identidades,

    adems de la teora de la folkcomunicacin desarrollada por Luiz Beltro. Para ello, fue

    realizada investigacin bibliogrfica y estudios de documento, adems de entrevistas

    utilizndose la metodologa de la historia oral con los miembros de la comunidad. Los

    resultados obtenidos apunta un cambio en los hbitos alimenticios de la comunidad del

    Quilombo da Fazenda, debido a la facilidad de acceso al comercio de gneros

    alimenticios, provenientes de la construccin de la carretera Rio-Santos, y la influencia

    de la televisin, desde la implantacin de la red de energa elctrica en 2008. No

    obstante, observamos que a pesar de ese cambio, la base de la cultura alimentar

    quilombola viene manteniendo mucho de sus aspectos originales. La comunicacin

    dentro de la comunidad quilombola y la transmisin de los saberes y hagas tradicionales

    de la comunidad ocurren predominantemente por medio de la oralidad. Identificamos la

    presencia de la danza, la msica, las ruedas de conversacin, la culinaria, la artesana

    que corresponden a los gneros de la folkcomunicacin.

    Palabras clave: comunidad.quilombo.caiara.alimentacin.folkcomunicacin.

  • 12

    INTRODUO

    As mudanas sociais ocorridas, sobretudo, nas ltimas dcadas, provocadas pelo

    acelerado avano tecnolgico; a construo da rodovia Rio-Santos nos anos 1970,

    trazendo uma desconfigurao do entorno da Serra do Mar e da praia com consequente

    explorao imobiliria da regio; a criao do Parque Estadual da Serra do Mar com a

    incorporao da rea onde se localiza a comunidade do Serto da Fazenda, delimitando-

    a como rea de preservao ambiental; as novas prticas gastronmicas adotadas em

    decorrncia das constantes exigncias de adaptao da sociedade brasileira ao mercado

    global compem o cenrio deste estudo.

    A preservao, manuteno e alteraes das tradies culturais, dos costumes,

    dos saberes e fazeres, da comunidade do Serto da Fazenda, hoje reconhecida pela

    Fundao Palmares como remanescente de quilombo e denominada Quilombo da

    Fazenda Picinguaba, vem sofrendo nesses ltimos 40 anos, influncias externas em

    virtude do processo de desenvolvimento turstico aliado preservao ambiental da

    regio.

    Neste contexto, o problema de pesquisa se insere na questo dos aspectos

    comunicacionais utilizados para transmisso e preservao dos hbitos culinrios, dos

    rituais de memria aplicados na preservao do patrimnio imaterial que envolve o

    repertrio de usos, costumes, saberes e fazeres culturais da comunidade do Quilombo da

    Fazenda.

    A comunicao comunitria se caracteriza como popular, pois a cultura, os

    saberes, os modos e os fazeres so transmitidos, de gerao a gerao,

    predominantemente pela oralidade, com o sentido de transferir conhecimentos,

    utilizando-se das manifestaes culturais, na maioria baseadas no folclore, e praticadas

    com esmero pelos membros mais antigos.

    Cria-se sentimento de pertena nos mais jovens, incentivando a manuteno e

    perpetuao da cultura. Os hbitos alimentares do Quilombo da Fazenda sofrem

    influncia da culinria caiara, devido a sua localizao prxima ao litoral. Seu prato

    emblemtico o peixe azul-marinho, preparado a base de peixe e banana verde, alm de

    outros de caractersticas singulares da cultura caiara como a paoca de banana e o

    bolinho de taioba.

  • 13

    Dentro desta perspectiva pergunta-se: Quais transformaes e processos

    comunicacionais esto implicados na preservao das tradies culinrias da

    comunidade do Quilombo da Fazenda?

    Como hiptese acreditvamos que apesar da introduo das prticas alimentares

    contemporneas, sobretudo, aps a implantao da Rodovia Rio-Santos que possibilitou

    uma maior integrao com a vida urbana do municpio, e o acesso aos meios de

    comunicao de massa, a comunidade quilombola preservava seus hbitos culinrios

    tradicionais. H uma estreita ligao entre folclore e comunicao popular no processo

    comunicativo de preservao e disseminao da cultura local, que utiliza como ritual de

    memria a oralidade para a transmisso das prticas culinrias da comunidade.

    O objetivo da pesquisa foi analisar a relao entre os aspectos culturais e

    identitrios, os processos comunicacionais utilizados para transmisso da herana

    culinria entre os habitantes e suas geraes, e a relao da comida caiara e a

    comunidade do Quilombo da Fazenda. Os objetivos especficos foram:

    identificar os hbitos alimentares quando do surgimento do quilombo e os

    presentes hoje na comunidade, e analisar quais os principais fatores que

    influenciaram possveis mudanas;

    comparar os aspectos culturais da cozinha praticada nesses dois perodos,

    bem como as formas de comunicao e a linguagem utilizada para

    transmisso dessa cultura;

    analisar os resultados apontados pelo confronto dos dados obtidos;

    identificar e descrever, a partir dos resultados, o processo comunicacional

    envolto nas alteraes dos hbitos alimentares e o estado atual da cozinha

    caiara praticada pela comunidade quilombola.

    Como justificativa consideramos que a comunidade quilombola da Fazenda

    Picinguaba encontra-se dentro da rea do Parque Estadual da Serra do Mar no

    municpio de Ubatuba, So Paulo. constituda por pouco mais de 40 famlias e, por se

    tratar de uma rea de proteo ambiental, so impossibilitadas de praticar qualquer

    atividade que possa comprometer o meio ambiente. Dentro desse contexto, o

    levantamento e a identificao dos hbitos culinrios praticados no passado, as formas

    de preservao das tradies, e o confronto com os praticados na atualidade se faz

    relevante devido ao risco existente da perda da memria dos costumes e dos fazeres da

    comunidade.

  • 14

    Na metodologia desta dissertao utilizamos como primeiro passo a reviso

    bibliogrfica, buscando assim fundamentao conceitual e terica, com consulta a

    livros, artigos, de peridicos, dissertaes e teses que possibilitaram fornecer subsdios

    no tocante a comunidades, comunicao popular, aspectos folkcomunicacionais,

    identidade, imaginrio, cultura caiara e cultura quilombola.

    A cultura caiara tem suas razes comuns cultura caipira e sertaneja. Sua fonte

    principal de sustento vem da agricultura. Seus saberes esto associados ao tempo da

    natureza, periodicidade das atividades da terra e, principalmente, do mar,

    expressando-se em produtos materiais como moradia, instrumentos de trabalho,

    manifestaes culturais e rituais religiosos.

    Por cultura quilombola entendemos tratar-se de uma cultura muito prxima da

    cultura rural, independente da localizao da comunidade, localizando-se aos arredores

    do litoral ou muito distante dele. O sustento advm da cultura de subsistncia. Tem

    grande sentimento de pertena ao territrio, demonstrando apego s tradies regionais

    e ancestrais, com suas manifestaes culturais fortemente vinculadas ao passado,

    lutando para manter viva a memria social e a valorizao dos saberes tradicionais.

    Para Alda Judith Alves-Mazzotti e Fernando Gewandsznajder (1998, p.181) este

    exame auxilia o pesquisador na construo de um panorama geral que permite

    identificar as pesquisas mais relevantes para as questes de seu interesse. Esta pesquisa

    bibliogrfica, em material j elaborado por outros pesquisadores, permite o

    embasamento de teorias e conceitos j consagrados, de forma a ampliar a nossa viso

    sobre o tema, possibilitando novas compreenses e interpretaes sobre o horizonte

    caiara.

    Sergio Vasconcelos de Luna (1998) nos recomenda saber o que j existe,

    descobrir as lacunas, entraves tericos e/ou metodolgicos. Para ele (1998, p. 102)

    existem fontes secundrias (material j existente), fonte primria, que so os dados

    originais coletados pelos autores.

    Outro recurso que utilizamos nesta pesquisa foi o de entrevistas na modalidade

    histria oral com os membros da comunidade do Quilombo da Fazenda. De acordo com

    Haguette (2005, p.79-81) a histria oral pode ser enfocada dentro de at duas

    perspectivas: como documento e como tcnica de captao de dados. Dentre as funes

    que ela desempenha, interessa-nos a perspectiva documental para a anlise da hiptese

    sobre a preservao da cultura local no processo em movimento de vida da populao

    do Quilombo da Fazenda Picinguaba.

  • 15

    A entrevista, para Haguette (2005, p. 86) como um processo de interao

    social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a

    obteno de informaes por parte do outro. Para este fim, organiza-se um roteiro de

    entrevista de acordo com a problemtica central para obteno das informaes

    pretendidas.

    Ainda de acordo com Haguette (2005, 92-97), tudo que oral, gravado e

    preservado pode ser considerado documento. Diferentemente do aspecto esttico do

    documento escrito, a histria oral tem na memria um fator dinmico de interao entre

    passado e presente, cujas funes so a aquisio de testemunhos relevantes para a

    compreenso da sociedade, o preenchimento de lacunas dos documentos escritos, a

    interdisciplinaridade.

    O primeiro contato para incio da pesquisa e agendamento das entrevistas foi por

    meio do Ncleo Picinguaba, onde de forma muito atenciosa, nos informaram sobre a

    dinmica necessria aos procedimentos de pesquisa, colocando-nos em contato com os

    moradores da comunidade do Quilombo da Fazenda.

    A escolha dos entrevistados no foi aleatria. Escolhemos 9 (nove) pessoas,

    priorizamos o testemunho de 6 (seis) mais idosos, pois conservam na memria as

    prticas e costumes passados. Dentre os mais idosos destacamos 2 (dois) com papel de

    liderana na comunidade, e as outras 4 (quatro) reconhecidamente envolvidas com o

    artesanato e com as prticas alimentares nas ocasies de festas e comemoraes no

    Quilombo. Os 3 (trs) mais jovens, foram escolhidos com o intuito de fazer um

    contraponto das informaes. No decorrer dos captulos faremos uma apresentao dos

    entrevistados.

    Assim como Haguette, Verena Alberti em Manual de Histria Oral (2013, p.

    33) considera que a histria oral individual, particular quele depoente, mas constitui

    tambm elemento indispensvel para a compreenso da histria de seu grupo social, sua

    gerao.

    A histria oral pode ser empregada em diversas disciplinas das cincias humanas

    e tem relao estreita com categorias como biografia, tradio oral, memria, linguagem

    falada, mtodos qualitativos etc. Esse mtodo, (ALBERTI, 2013, p. 20-30) focado na

    realizao de entrevistas luz de depoimentos de pessoas que participaram, ou

    testemunharam acontecimentos, conjunturas, vises de mundo, podendo-se utiliza-la no

    estudo de acontecimentos histricos, grupos sociais, movimentos, etc.

  • 16

    A histria oral possibilita reconstruir a histria atravs de mltiplas verses;

    captar a lgica e o resultado da ao expresso na linguagem do ator; permitindo

    recuperar aquilo que no encontramos em documentos de outra natureza, ou seja,

    acontecimentos pouco esclarecidos, experincias pessoais, impresses particulares; a

    tcnica da entrevista na modalidade histria oral introduz o pesquisador na construo

    da verso conforme dados da prpria fonte (ALBERTI, 2013, p. 20-30).

    Ainda para Alberti (2004, p. 24-27):

    a histria oral pode ser utilizada como metodologia de pesquisa para

    reconstituio de trajetrias de comunidades especficas, como as de

    bairros, as imigrantes, as camponesas etc.[...] transmitem tradies

    culturais, que vo surgindo medida que o entrevistado delas se lembra:

    histrias, canes, poemas, provrbios, modos de falar de um grupo,

    reminiscncias sobre antepassados e sobre territrios, informaes

    transmitidas de gerao em, gerao ou dentro de um mesmo grupo

    profissional etc.[...]

    A metodologia de histria oral bastante adequada para o estudo da

    histria da memria, isto , de representaes do passado. Estudar essa

    histria estudar o trabalho de constituio e de formalizao das

    memrias, continuamente negociadas. A constituio da memria

    importante porque est atrelada construo da Identidade. Como

    assinala Michael Pollak, a memria resiste alteridade e mudana e

    essencial na percepo de si e dos outros. Ela o resultado de um

    trabalho de organizao e de seleo daquilo que importante para o

    sentimento de unidade, de continuidade e de coerncia isto , de identidade. E porque a memria mutante, possvel falar de uma

    histria das memrias de pessoas ou grupos, passvel de ser estudada

    atravs de entrevistas de histria oral.

    Na operacionalizao da pesquisa as entrevistas foram gravadas e transcritas

    literalmente, para posterior anlise do material; foi utilizado o recurso de dirio de

    campo para inventariar as ocorrncias durante as visitas, comunidade.

    Todas as entrevistas transcorreram de forma tranquila, no encontramos

    dificuldades por parte das pessoas em relatar suas trajetrias de vida na comunidade.

    Todos abordaram suas histrias de maneira humorada, mesmo quando falando das

    dificuldades existentes no passado. Em nenhum momento sentimos desconforto por

    parte dos entrevistados quanto ao uso do gravador ou mesmo do dirio de campo, onde

    anotvamos os principais tpicos abordados.

    Os entrevistados ficaram livres para descrever como chegaram comunidade,

    quais eram as dificuldades antes da construo da rodovia Rio-Santos, quais eram os

    alimentos utilizados no passado e de que maneira aconteceram as mudanas e

    transformaes em suas vidas at os dias de hoje.

  • 17

    No sentido de coletar informaes documentais sobre a histria do local e da

    comunidade, desde a antiga Fazenda Picinguaba at o reconhecimento como

    comunidade quilombola; sobre a criao do Parque Estadual da Serra do Mar; sobre a

    implantao do Ncleo Picinguaba; utilizamos os registros dos stios oficiais de

    instituies governamentais e de entidades de comunicao e acadmicas na internet.

    Para as entrevistas com os membros da comunidade quilombola, foi necessria a

    aprovao do Comit de tica da Universidade Metodista de So Paulo, tendo em vista

    tratar-se de pesquisa com seres humanos, pois dizem respeito, neste caso, preservao

    da intimidade e da vida pessoal dos entrevistados.

    Foi necessria, ainda, a aprovao pela COTEC Comisso Tcnico-Cientfica

    do Instituto Florestal, rgo da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de So Paulo,

    em virtude da rea onde se localiza o Quilombo da Fazenda estar inserida em rea de

    proteo ambiental administrada pelo Parque Estadual da Serra do Mar, sob jurisdio

    do Instituto Florestal. Todas as pesquisas em reas administradas pelo Instituto

    Florestal, independente do tema, assumem compromisso de salvaguarda e proteo dos

    recursos naturais.

    O primeiro captulo Comunidade, cultura e identidade tem a inteno de

    fundamentar a compreenso sobre os laos que unem os diferentes tipos de comunidade.

    Os tpicos sero divididos em funo da anlise dos conceitos de vrios autores sobre o

    tema comunidade, cultura e identidade.

    O segundo captulo Caracterizao do Ncleo Picinguaba serve de base para

    contextualizar e situar a comunidade Quilombola da Fazenda, o Ncleo Picinguaba e as

    circunstncias de ser uma comunidade tradicional inserida dentro de um Parque de

    preservao ambiental. Faremos uso das entrevistas no sentido de conhecermos as

    dificuldades existentes antes e depois da construo da Rodovia Rio-Santos.

    No terceiro captulo Comunicao e cultura no Quilombo da Fazenda

    procuramos descrever os saberes e fazeres culturais da comunidade do Quilombo da

    Fazenda, os aspectos comunicacionais das formas de transmisso para a transferncia

    dessa cultura. Este captulo far uso dos conceitos de folkcomunicao para explicar os

    aspectos comunicativos que norteiam a cultura, de ontem e de hoje, do Quilombo da

    Fazenda.

  • 18

    Captulo I COMUNIDADE, CULTURA E IDENTIDADE

    1. Comunidade e comunicao comunitria

    A histria social do Brasil, como colnia portuguesa, no incio do sculo XVI se

    consolidou com a formao de pequenas aglomeraes humanas espalhadas pelo

    territrio ocupado. A iniciativa portuguesa de povoar o territrio e dele tirar proveito

    econmico por meio da explorao das riquezas naturais e do cultivo do acar fez

    surgir pequenos vilarejos, aldeias, feitorias, engenhos e povoados, fazendo uso da

    escravizao do nativo. Essa tentativa de escravizao do indgena no logrou o sucesso

    esperado pelo colonizador no tocante necessidade de mo de obra para obteno dos

    nveis produtivos e econmicos desejados. Portugal dominava o comrcio de especiarias

    adquiridas no oriente comercializando-as na Europa, mantinha colnias na frica e

    ndia (FERNANDES, 1975, p. 46).

    Na frica, os portugueses exerciam o trfico de escravos. Os mercadores

    portugueses negociavam direto com chefes tribais envolvidos no trfico. Esse comrcio

    dava-se por meio de guerras por poder e composies polticas e territoriais entre as

    tribos africanas. No Brasil, essa mo de obra foi comercializada em praticamente todo o

    territrio, principalmente nos engenhos de acar do nordeste (TESKE, 2011, p. 43-44).

    No final do sculo XVI, ndios e africanos trabalhavam juntos como escravos em

    pssimas condies nos engenhos do nordeste colonial.

    Devido s pssimas condies de vida, principalmente dos africanos

    escravizados, iniciam-se os registros de protestos, destacando-se as comunidades de

    fugitivos em toda a Amrica, conforme relata Flvio dos Santos Gomes (2013, p. 449):

    Assim foi na Venezuela com os cumbes, na Colmbia com os

    palenques; no Caribe ingls e EUA com os marrons; no Caribe

    Francs com a marronage em Cuba com os cimaroons. No Brasil, desde

    o perodo colonial, tais comunidades de fugitivos escravos receberam as

    denominaes de quilombos e/ ou mocambos. A palavra quilombo/

    mocambo para a maioria das lnguas bantu da frica Central e Centro-

    Ocidental quer dizer acampamento. Em regies africanas centro-

    ocidentais nos sculos XVII e XVIII, a palavra kilombo significava

    tambm o ritual de iniciao da sociedade militar dos guerreiros dos

    povos imbangalas (tambm conhecidos como jagas). [...] Embora no

    existam pesquisas sistemticas nessa direo, sugere-se a

  • 19

    existncia de uma cultura escrava e a recriao de alguns significados

    desse ritual africano (kilombo), entre os cativos no Brasil, no sentido de

    que, ao fugir para quilombos, escravos reorganizavam-se numa

    comunidade de africanos originrios de regies diversas e tambm de

    crioulos (como eram denominados em termos de classificao racial os

    escravos nascidos no Brasil, portanto descendentes dos africanos).

    possvel, portanto, estabelecer nexos entre os significados do kilombo

    na frica Central e as experincias histricas dos quilombos brasileiros.

    Esse tipo de pequena comunidade preservou seus padres de cultura ou de

    sociabilidade e os mantm, apesar do tempo. um tipo de comunidade embrionria, de

    origem biolgica, cultural e social mestia (FERNANDES, 1975, p. 47).

    Para fundamentao terica desta pesquisa, com o intuito de traar um perfil da

    comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, no estado de So Paulo, nos

    apoiaremos em conceitos de estudiosos sobre o tema comunidade.

    Zygmunt Bauman, em Comunidade - a busca por segurana no mundo atual

    (2003, p.7-8) considera que:

    As palavras tm significado: algumas delas, porm, guardam sensaes.

    A palavra comunidade uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que comunidade signifique, bom ter uma comunidade, estar numa comunidade. [...] como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mos

    nos dias gelados. [...] Aqui, na comunidade, podemos relaxar - estamos

    seguros [...] Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos

    confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e

    raramente ficamos desconcentrados ou somos surpreendidos. Nunca

    somos estranhos entre ns.

    A comunidade onde nos sentimos seguros, com sensao de aconchego exige

    lealdade incondicional podendo-se considerar uma imperdovel traio, quando por

    qualquer motivo essa lealdade no praticada. A comunidade existente exige

    obedincia em troca dos servios que presta (BAUMAN, 2003, p.9).

    H um preo a pagar pelo privilgio de viver em comunidade, preo esse que se

    paga com a perda da liberdade e da autonomia. Abre-se mo da liberdade em favor da

    segurana. De qualquer forma, em comunidade ou fora dela existe um preo que passa

    pela perda da liberdade pela segurana ou perda da segurana pela liberdade

    (BAUMAN, 2003, p.10).

    No seremos humanos se no tivermos segurana ou se no tivermos liberdade.

    Podemos e devemos buscar essas sensaes de aconchego. um sonho que buscamos

    encontrar, porm no ser possvel que a tenhamos na quantidade que desejamos,

  • 20

    contudo no podemos deixar de tentar encontr-las. O melhor pode ser inimigo do

    bom, mas certamente o perfeito um inimigo mortal dos dois (BAUMAN, 2003,

    p.11).

    No entender de Max Weber (1973, p. 140-141), comunidade uma relao

    social quando existe atitude na ao social e esta se inspira no sentimento dos partcipes

    como um todo, podendo se apoiar sobre toda espcie de fundamentos, afetivos,

    emotivos e tradicionais. A comunidade normalmente por seu sentido a contraposio

    radical de luta. O que no impossibilita que possa haver conflitos de opinies dentro

    da comunidade.

    Para o autor, no so todas as participaes comuns que implicam em

    comunidade.

    Comunidade s existe propriamente quando, sobre a base desse

    sentimento, a ao est reciprocamente referida no bastando a ao

    de todos e de cada um deles frente mesma circunstncia e na medida

    em que esta referncia traduz o sentimento de formar um todo. [...] A

    mesma comunidade de linguagem, originada numa tradio homognea

    por parte da famlia e da vizinhana, facilita em alto grau a

    compreenso recproca, ou seja, a formao de relaes sociais

    (WEBER, 1973, p. 142).

    Weber considera ainda que o surgimento de contrastes conscientes em relao a

    terceiros, no caso de participantes de um mesmo idioma, cria um sentimento de

    comunidade e formas de socializao.

    Estes conceitos descritos por Baumam e Weber esto presentes nos antigos

    refgios quilombolas, hoje denominado de remanescentes de quilombo, pois nesse

    tipo de comunidade que seus moradores buscam sensao de conforto, segurana,

    relaes sociais e estabelecem laos afetivos, emotivos e tradicionais.

    De acordo com Ferdinand Tnnies (1995), podemos entender comunidade como

    sendo de sangue, lugar, esprito / parentesco, vizinhana e amizade. A comunidade de

    sangue est ligada possesso comum dos prprios seres humanos. Na comunidade de

    lugar, o vnculo acha-se ao solo e terra. J na comunidade de esprito, essa ligao se

    d com os lugares sagrados e divindades.

    Segundo Tnnies (1995, p. 239) aonde quer que os seres humanos estejam

    ligados de forma orgnica pela vontade e se afirmem reciprocamente, encontra-se

    alguma espcie de comunidade chamando esses gneros de comunidade de parentesco;

    vizinhana e amizade.

  • 21

    O parentesco para Tnnies (1995, p. 239), tem a casa como bero e corpo. A

    vida comum sob o mesmo teto, a posse e fruio comum dos bens, especialmente dos

    alimentos tirados das mesmas provises e repartidos sobre a mesma mesa. A

    vizinhana a vida comum, conjunta, o conhecimento mtuo e confiante, as

    necessidades do trabalho, dos hbitos e dos favores. condicionada essencialmente pela

    proximidade fsica, sendo vulnervel sua manuteno em caso de afastamento. No caso

    da amizade caracterizada a partir do modo de pensar, das condies de trabalho. A

    divindade reconhecida e festejada por espritos comuns presentes na conscincia dos

    que o veneram. Assim, os que compartilham das mesmas condies de trabalho,

    partilham da mesma f, reconhecem-se entre si, pois esto ligados pelos mesmos laos.

    Ainda para Tnnies (1973, p.104) as comunidades humanas se apresentam na

    aproximao espacial e na espiritual, sendo esta ltima, a comunidade de vontade, de

    compreenso.

    Tnnies (1973, p.105) acrescenta:

    Como a generalidade de uma lngua comum aproxima e une os

    sentimentos humanos enquanto possibilidade real de compreenso da

    palavra, da mesma forma existe um esprito comum, e mais ainda, suas

    manifestaes mais altas, costumes e f comuns, que penetram nos

    membros de um povo, smbolos de sua unidade e da concrdia de sua

    vida, embora sem certeza, mas que nele e dele se estendem com

    crescente intensidade e alcanam plenamente todas as divises e ramos

    de uma raa; e, sobretudo, de maneira mais perfeita, as famlias cujo

    parentesco remonta formao primitiva e importante de uma

    associao orgnica dos seres, pelo sangue ou por aliana, que a famlia

    antes de ser a famlia, momento em que ela j possui uma realidade

    semelhante sua.

    Tnnies (1995, p. 240) conclui que no conceito de vizinhana e no de parentesco

    as pessoas estejam sob o mesmo teto, ou muito prximas, enquanto no conceito de

    amizade existe uma espcie de lao invisvel, um imperativo moral, uma reunio

    mstica animada de algum modo por uma intuio e uma vontade criadora.

    No caso de comunidades tradicionais, como os quilombos, esto presentes de

    forma concomitante os aspectos provindos de comunidade territorial de sangue e

    amizade. Essa situao se verifica porque os membros dessas comunidades, formadas

    por poucas famlias, estabelecem unies conjugais, e, por conseguinte de parentesco;

    vivem em habitaes prximas, criando o hbito da vida conjunta, caracterizando

    vizinhana; partilham das mesmas condies de trabalho, modo de pensar e da mesma

    f, constituindo assim laos de amizade.

  • 22

    Entende-se por comunidades tradicionais, conforme definido por Diegues (1999,

    p. 2-3):

    So consideradas populaes tradicionais no-indgenas os grupos:

    caiara, aoriano, caipira, babaueiro, jangadeiro, pantaneiro, pastoreio,

    quilombola, ribeirinho/caboclo amaznico, ribeirinho/caboclo no-

    amaznico (varjeiro), sertanejo/vaqueiro e pescado artesanal.

    Mais recentemente, o governo brasileiro por meio do decreto n 6.040/2007 (ver

    anexo n 1), que institui a poltica nacional de desenvolvimento sustentvel dos povos e

    comunidades tradicionais, em seu artigo 3 (BRASIL, 2007) compreende por:

    I Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas

    prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e

    recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social,

    religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e

    prticas gerados e transmitidos pela tradio;

    Alain Bourdin (2001, p.31) acredita que a comunidade a matriz de toda

    sociabilidade. Considera que o ser social se define pelo pertencimento a um grupo,

    caracterizado por laos familiares, de lngua e territrio, que Peruzzo e Volpato (2009,

    p.146) classificam como a busca pelas razes, por um sentimento de pertena - que todo

    indivduo busca - pelo viver-junto, pela vida em famlia, pelo pertencer a um ns.

    So locais herdados de fatores histricos e de identidade local que

    podem estar manifestados nos bens culturais e no conjunto de regras

    comuns vividas por seus membros e expressos na religio, na cultura,

    na etnia, etc. (Peruzzo; Volpato 2009, p.146)

    E ainda Bourdin (2001, 43) define que:

    O local , pois, um lugar privilegiado de manifestao delas, se

    admitirmos que as estruturas antropolgicas so principalmente um

    conjunto de representaes e de cdigos transmitidos pela prtica, como

    os mitos se exprimem nos ritos.

    Tambm Manuel Castells em A era da informao (1999, p.79) exprime seu

    conceito de comunidade afirmando que:

    Contudo, no creio que seja impreciso afirmar que ambientes locais, per

    se, no induzam um padro especfico de comportamento ou, ainda,

    justamente por isso, uma identidade distintiva. O provvel argumento

    dos autores comunitaristas, coerente com minha prpria observao

    intercultural, que as pessoas resistem ao processo de individualizao

    e atomizao, tendendo a agrupar-se em organizaes comunitrias que,

    ao longo do tempo, geram um sentimento de pertena e, em ltima

    anlise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal.

  • 23

    Louis Wirth (1973, p. 83) conceitua comunidade como Uma base territorial,

    distribuio de homens, instituies e atividades, no espao, uma vida em conjunto

    fundada no parentesco e interdependncia econmica, e uma vida econmica baseada

    em mtua correspondncia de interesses.

    MacIver e Page (1973, p. 122) Definem comunidade como:

    o termo que aplicamos a um povoamento de pioneiros, a uma aldeia,

    uma cidade, uma tribo ou uma nao. Onde quer que os membros de

    qualquer grupo, pequeno ou grande, vivam juntos e de modo tal que

    partilhem, no deste ou daquele interesse, mas das condies bsicas de

    uma vida em comum, chamamos a esse grupo comunidade. O que

    caracteriza comunidade que a vida de algum pode ser vivida dentro

    dela. No se pode viver inteiramente dentro de uma empresa comercial

    ou de uma igreja; pode-se viver inteiramente dentro de uma tribo ou de

    uma cidade. O critrio bsico da comunidade, portanto, est em que

    todas as relaes sociais de algum podem ser encontradas dentro dela.

    Para MacIver e Page (1973, p. 123), em estudo publicado originalmente em

    Londres, no ano de 1955, as bases da comunidade so localidade e sentimento de

    comunidade. Os autores (1973, p. 123) consideram que:

    Em sua grande maioria, as comunidades so fixas e extraem das

    condies de sua localidade um forte lao de solidariedade. At certo

    ponto esse lao local tem-se enfraquecido no mundo moderno em

    virtude de se estenderem os meios de comunicao; isso

    particularmente evidente atravs da penetrao de padres urbanos

    dominantes em reas rurais.

    Embora a localidade seja uma base territorial, normalmente fixa, o mesmo pode

    ocorrer para um agrupamento nmade, sujeito a mudanas frequentes, com o territrio

    escolhido, ou seja, a superfcie da terra ocupada por todos os membros juntos para

    formar sua habitao local, mesmo que somente para determinado perodo. Para

    MacIver e Page (1973, p. 124) ... a localidade, embora seja uma condio necessria,

    no suficiente para criar uma comunidade. Uma comunidade, repetimos, uma rea

    de vida em comum. [...] que se compartilha tanto de um modo de vida quanto da terra

    comum..

    Apesar do tempo e das mudanas transcorridos da poca em que tal conceito foi

    formulado, as caractersticas apontadas ainda so aplicveis e vlidas para a

    Comunidade Quilombola da Fazenda, acrescenta ainda a noo de famlia, que

    principalmente nas sociedades primitivas e nas comunidades tradicionais, possuem

    atributos de comunidade.

  • 24

    Hans Freyer (1973, p. 132) entende que A comunidade s pode ser

    compreendida como um membro da srie temporal concreta das formas sociais

    fundamentais, isto , como uma estrutura determinada, sustentada por uma constelao

    especfica das energias humanas.

    O autor destaca a importncia da existncia de um idioma no grupo social, de

    forma que, a lngua viva em cada membro da comunidade. O idioma um dos mais

    significativos smbolos da vida em comunidade, faz parte de sua estrutura, a lei

    constitutiva de uma realidade social. Toda cultura , na opinio do autor, idioma, no

    qual patrimnio cultural (usos, mitos, instrumentos, tcnicas) possui forma de existncia

    e acham-se mo de qualquer membro pertencente ao grupo (FREYER, 1973, p. 133).

    Freyer concebe comunidade como uma lei estrutural determinada da ordem

    social. Um mundo vital, que essencialmente unidade e que circunda os homens de um

    horizonte comum, rene o grupo inteiro em um grande ns. Todo o acontecer no

    afeta o individuo, afeta a comunidade, afeta o conjunto, o ns(FREYER, 1973, p.

    134).

    Continuando, (FREYER, 1973, p. 135) diz:

    Um povo moderno no , em princpio, comunidade no sentido de que a

    lei constitutiva desta determine completamente sua existncia. Em sua

    estrutura, todavia, acha-se estratificado o princpio de comunidade.

    Como comunidade idiomtica, como comunidade poltica, como

    comunidade de descendncia, o povo traz em si traos que lhe

    emprestam, sem dvida, o carter de comunidade, mesmo quando estes

    traos encontrem-se situados sob outras estruturas sociais.

    Podemos considerar que um indivduo no membro de uma comunidade

    apenas por viver nela, mas por participar da vida comum da comunidade (PARK;

    BURGESS, 1973 p. 149).

    Para definir comunidade Fichter (1973, p. 154) usa a seguinte descrio:

    Uma palavra que rodeada de significados mltiplos e imprecisos

    requer, naturalmente, uma cuidadosa definio tcnica: comunidade

    um grupo territorial de indivduos com relaes recprocas, que se

    servem de meios comuns para lograr fins comuns.

    Uma comunidade essencialmente ligada ao solo, no sentido de que

    os indivduos vivem permanentemente numa dada rea, tm conscincia

    de pertencer tanto ao grupo como ao lugar e funcionam conjuntamente

    nos principais assuntos da vida. A comunidade considerada sempre

    em relao ao meio fsico. A comunidade , essencialmente, uma

    agrupao ou uma rede de pequenos grupos, porm, em sua totalidade,

    pode-se distingui-la em muitos aspectos como um grande grupo social.

  • 25

    Os membros da comunidade tm conscincia das necessidades dos

    indivduos dentro e fora de seu grupo imediato e tendem a cooperar

    estreitamente.

    Cabe ressaltar a importncia do pensamento dos autores citados, para entender

    as comunidades quilombolas. O fator de ligao ao solo (territrio) a caracterstica

    principal. Vemos isso enfatizado pelos autores, fundamentalmente no tocante ao local.

    Porm, deve-se considerar a importncia dos laos de sangue, a lngua e o consequente

    sentimento de pertena classificados por Bourdin (2001); os fundamentos afetivos,

    emotivos e tradicionais classificados por Weber (1973); os sentimentos de conforto to

    bem assinalados por Bauman (2003); sentimento de pertena que consequentemente

    define uma identidade cultural como afirmou Castells (1999); o conjunto de regras

    comuns vividas por seus membros e expressos na religio, na cultura, e na etnia

    identificados por Peruzzo e Volpato (2009) que geram fortes laos de cooperao,

    interao, participao ativa, interesses coletivos acima dos individuais, confiana e

    conjugao de interesses em comum (PERUZZO, 2003 p. 55-56); a base territorial, vida

    em conjunto, interdependncia econmica citados por Wirth (1973); o sentimento de

    comunidade [sentimento de pertena] e de localidade de MacIver e Page (1973); a vida

    estruturada no grupo e no focada s no indivduo, a comunidade pensada como um

    grande ns apontado por Freyer (1973); a necessidade de vida em comum ou o viver a

    comunidade, no bastando apenas ingresso na comunidade para dela ser membro,

    tambm comum nas comunidades remanescentes de quilombo assinalado por Park e

    Burgess (1973); a necessidade de seus membros quanto ligao ao solo, a conscincia

    das necessidades dos indivduos e do grupo reconhecida por Fichter (1973).

    Cicilia Peruzzo em Comunidades em tempo de rede, (2002, p. 280) considera

    que:

    A existncia de uma comunidade, a partir da viso dos clssicos,

    pressupe a existncia de determinadas condies bsicas, tais como: a)

    um processo de vida em comum atravs de relacionamentos e interao

    intenso entre os seus membros; b) auto-suficincia (as relaes sociais

    podem ser satisfeitas dentro da comunidade); c) cultura comum; d)

    objetivos comuns; e) identidade natural e espontnea entre os interesses

    de seus membros; f) conscincia de suas singularidades significativas;

    g) sentimento de pertencimento; h) participao ativa de seus membros

    na vida da comunidade; i) locus territorial especfico; j) linguagem

    comum.

    Peruzzo (2002, p. 280-281) salienta que caso no se encontre todas as

    caractersticas acima, podemos considerar a existncia de comunidade caso algumas

  • 26

    dessas caractersticas sejam encontradas, notadamente as de interao, participao,

    interesses comuns, identidade, carter cooperativo, so imprescindveis para sua

    existncia, e para que essas condies se satisfaam e seus membros se relacionem entre

    si necessrio que essas caractersticas de comunidade se faam atravs da

    comunicao entre os membros da comunidade.

    Dentre as caractersticas apontadas por Peruzzo (2002, p. 280-281) identificamos

    na comunidade do Quilombo da Fazenda a predominncia das caractersticas de

    processo de vida em comum; cultura e objetivos comuns; identidade natural entre seus

    membros; interesse e carter cooperativo; entre outras.

    Juan E. Diaz Bordenave em O que comunicao, (2006, p. 36) acredita que a

    comunicao serve para que as pessoas se relacionem entre si, transformando a

    realidade que as cerca, e conceitua que:

    Sem a comunicao cada pessoa seria um mundo fechado em si mesmo.

    Pela comunicao as pessoas compartilham experincias, ideias e

    sentimentos. Ao se relacionarem como seres interdependentes,

    influenciam-se mutuamente e, juntas, modificam a realidade onde esto

    inseridas.

    Para Bordenave (2006, p.17) a comunicao o canal pelo qual os padres de

    vida so transmitidos, muito antes da idade escolar, pela comunicao que se aprende

    a ser membro de uma comunidade ou sociedade. por meio da comunicao que se

    obtm as crenas, valores, hbitos e tabus, no ocorrendo por instruo formal e sim

    indiretamente, por pequenos eventos, s vezes insignificantes em si mesmos, atravs das

    relaes com outras pessoas, aprendendo-se naturalmente e assimilando-se a cultura.

    Bordenave (2006, p.19) salienta ainda: A comunicao confunde-se, assim, com a

    prpria vida. Temos tanta conscincia de que comunicamos como de que respiramos e

    andamos.

    Dominique Wolton em preciso salvar a comunicao (2006, p. 14-15)

    salienta que a comunicao um direito de pessoal, ligada a relao entre eu e o outro, e

    entre eu e o mundo. Sendo o ideal da comunicao: informar, dialogar, compartilhar,

    compreender-se.

    Wolton (2006, p. 15) destaca que:

    A comunicao uma espcie de servio pblico da vida, com duas

    dimenses complementares. Comunicar antes de tudo expressar-se:

    tenho algo a dizer, tenho o direito de diz-lo.... Todo mundo tem algo a dizer e o direito de se expressar. Mas expressar-se no basta para

    garantir a comunicao, pois deixa de lado a segunda condio da

  • 27

    comunicao: saber se o outro est ouvindo e se est interessado no que

    digo. (grifos do autor)

    Pelos conceitos de comunidade discutidos observamos que, para validao da

    vida em comunidade, ressalta-se a importncia da comunicao para que possam existir

    relaes humanas, interaes das praticas cotidianas, dos valores, das crenas,

    manuteno dos direitos e deveres individuais e coletivos de seus moradores. Cabe

    salientar ainda que a comunicao na comunidade a propulsora da sedimentao da

    cultura prpria do povo que nela reside e se identifica e que a comunidade existe

    essencialmente em funo se seu povo (QUESADA, 1980, p. 14).

    Para os autores referenciados acima, sobretudo, para Peruzzo (2002), Bordenave

    (2006), Wolton (2006) e Quesada (1980), a comunicao uma necessidade bsica da

    vida em comunidade; pelos processos comunicativos que se estabelecem as trocas de

    experincias, saberes, fazeres e aes culturais com os membros da comunidade.

    Na comunidade do Quilombo da Fazenda Picinguaba identificamos nitidamente

    que as trocas de experincias, as transmisses dos saberes e dos fazeres, a manuteno

    da cultura e das tradies se baseiam na comunicao oral, por meio das aes

    familiares cotidianas e tambm por intermdio de pequenos eventos, conforme descritos

    pelos autores acima.

    2. Cultura, identidade e comunicao

    No incio da segunda metade do sculo XX, surge na Inglaterra o CCCS

    Centre for Contemporary Cultural Studies tendo como pais fundadores Richard

    Hoggart, Raymond Williams e E. P. Thompson. Ligado ao English Departament da

    Universidade de Birmingham, o foco de observao do CCCS a relao entre a cultura

    contempornea e a sociedade, suas formas culturais, instituies e prticas culturais,

    bem como suas relaes com a sociedade e as mudanas sociais (ESCOSTEGUY, 2002,

    p. 152).

    A autora (2002, p.152) considera os seguintes textos como fontes dos Estudos

    Culturais Britnicos:

    Richard Hoggart com The Uses of Literacy (1957), Raymond Williams

    com Culture and Society (1958) e E. P. Thompsom com The Making of

    the English Working-class (1963). O primeiro em parte autobiogrfico

    e em parte histria cultural do meio do sculo XX. O segundo constri

  • 28

    um histrico do conceito de cultura, culminando com a ideia de que a

    cultura comum ou ordinria pode ser vista como um modo de vida em condies de igualdade de existncia com o mundo das artes, literatura

    e msica. E o terceiro reconstri uma parte da histria da sociedade

    inglesa de um ponto de vista particular a histria dos de baixo.

    Ainda para Escosteguy (2002, p. 156) a singularidade do projeto de estudos culturais do

    CCCS gerada por uma concepo particular de cultura.

    O grupo do CCCS amplia o conceito de cultura para que sejam

    includos dois temas adicionais. Primeiro: A cultura no uma entidade

    monoltica ou homognea, mas, ao contrrio, manifesta-se de maneira

    diferenciada em qualquer formao social ou poca histrica. Segundo:

    a cultura no significa simplesmente sabedoria recebida ou experincia

    passiva, mas um grande nmero de intervenes ativas expressas mais notadamente atravs do discurso e da representao que podem tanto mudar a histria quanto transmitir o passado. Por acentuar a natureza

    diferenciada da cultura, a perspectiva dos estudos culturais britnicos

    pode relacionar a produo, distribuio e recepo culturais a prticas

    econmicas que esto, por sua vez, intimamente relacionadas

    constituio do sentido cultural. (AGGER, 1992, p.89 apud

    ESCOSTEGUY)

    O termo cultura para Raymond Willians (2000, p. 10) comea com o nome de

    um processo, cultura (cultivo) de vegetais ou cultura (criao de animais) e por extenso

    como cultura (cultivo ativo) da mente humana, tornando-se em fins do sculo XVIII ...

    configurao ou generalizao do esprito que informava o modo de vida global de

    determinado povo..

    Willians em Cultura (2000, p. 11) esclarece que:

    No uso mais geral, houve grande desenvolvimento do sentido cultura como cultivo ativo da mente. Podemos distinguir uma gama de

    significados desde (I) um estado mental desenvolvido como em pessoa de cultura, pessoa culta, passando por (II) os processos desse desenvolvimento como interesses culturais, atividades culturais, at (III) os meios desses processos como cultura considerada como as artes e o trabalho intelectual do homem Em nossa poca, (III) o sentido mais comum, embora todos eles sejam

    usuais. Ele coexiste, muitas vezes desconfortavelmente, com o uso

    antropolgico e o amplo uso sociolgico para indicar modo de vida global de determinado povo ou de algum outro grupo social. (grifos do autor).

    Interessam-nos nesse estudo, apoiados nos conceitos de Williams, o uso do

    termo cultura como modo de vida de determinado povo, ou de grupo social,

    produzida em estreita relao com a estrutura social Gonzlez (1990, p. 13), como

    resultado, a cultura est em toda parte e atua em todos os nveis sociais.

  • 29

    Gonzlez (1990, p.27) baseado nas teorias de Taylor, sintetiza que a cultura se

    define como o conjunto de produtos intelectuais e materiais da sociedade

    (conhecimento, crenas, arte, moral, direito, costumes e outros hbitos e capacidades

    adquiridas pelo homem enquanto membro da sociedade). O autor seguindo ainda sobre

    a teoria tayloriana nos traz o pensamento de Franz Boas: A cultura inclui todas as

    manifestaes de hbitos sociais de uma comunidade, as reaes do indivduo, na

    medida em que so afetados pelos costumes do grupo em que vive, e os produtos das

    atividades humanas na medida em que eles so determinados por tais costumes

    (GONZLEZ 1990, p. 29).

    O estudo de uma cultura no pode ser feito apenas atravs da descrio de seus

    produtos, estes so resultados dos padres culturais assimilados e compartilhadas pelo

    mesmo grupo social.

    A cultura, como modelo social de comportamento, assimilada pelos membros

    de um grupo social, atravs de diversos processos de socializao contnua. O efeito

    sobre o grupo se reflete na personalidade bsica. Tal processo de assimilao

    incorporado em funes que envolvem necessariamente relaes intersubjetivas. a

    partir dessa assimilao, que os produtos intelectuais ou materiais adquirem

    inteligibilidade, e se pode entender as semelhanas e personalidade distinta de um povo

    (GONZLEZ 1990, p. 29).

    Para Martino (2002, 23), quando falamos de cultura, trabalhamos um conceito

    que implica num processo de comunicao:

    A cultura implica a transmisso de um patrimnio atravs das geraes.

    Observao que tambm vlida no que diz respeito aos prprios

    elementos que se encontram em relao, pois a noo de homem

    essencialmente da ordem do simblico, em oposio noo de animal homem, que remete apenas para o ser biolgico... Em outras palavras, o ser humano um ser da comunicao: consigo e com o mundo, ambos

    entendidos como o produto da comunicao com outrem (grifos do

    autor).

    Conforme Wolton (2006, p. 22) os povos e as culturas querem ser respeitadas.

    No h informao nem comunicao sem o respeito do outro, Wolton (2006, p.43)

    salienta ainda que a cultura e a comunicao se tornaram um desafio to importante

    quanto o meio ambiente, a sade, a educao.

    Kellner, em A cultura da mdia (2001, p. 52-53) acredita que cultura como

    produto superior ou como modo de vida est intimamente ligada com a comunicao.

    Toda cultura para se tornar produto social, serve de mediadora da comunicao e

  • 30

    mediada por esta, portanto comunicacional por natureza. No h comunicao seu

    cultura e no h cultura sem comunicao.

    J Geertz (1989, p. 33) considera que a cultura, no apenas um ornamento da

    existncia humana, mas uma condio essencial para ela a principal base de sua

    especificidade. O autor (1989, p.35) sugere no existir o que chamamos de natureza

    humana independente da cultura.

    Os homens sem cultura no seriam os selvagens inteligentes de Lord of

    the Flies, de Golding, atirados sabedoria cruel dos seus instintos

    animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista,

    ou at mesmo, como a antropologia insinua, os macacos

    intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se

    encontrar. Eles seriam monstruosidades incontrolveis, com muito

    poucos instintos teis, menos sentimentos reconhecveis e nenhum

    intelecto: verdadeiros casos psiquitricos. Como nosso sistema nervoso

    central e principalmente a maldio e glria que o coroam, o neocrtex cresceu, em sua maior parte, em interao com a cultura, ele incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa

    experincia sem a orientao fornecida por sistemas de smbolos

    significantes.

    Dentro desse contexto, ressaltamos que a comunicao relaciona-se com a

    cultura, notadamente no campo das prticas cotidianas, nos modos de vida que as

    pessoas desenvolvem para viver, nos costumes e nas tradies dos grupos ou

    comunidades. A integrao comunicao e cultura acontece na transmisso dos saberes

    e fazeres, via de regra pela oralidade, independentemente do tipo de comunidade.

    2.1. Cultura e identidade

    Para se compreender os aspectos culturais da vida cotidiana da populao

    quilombola do Serto da Fazenda, assim como de que maneira construda a identidade

    quilombola, lanaremos mo primeiramente de fundamentao terica elaborada por

    estudiosos de cultura e identidade.

    Para Denys Cuche em A noo da cultura nas cincias sociais (1999, p. 176),

    as noes de cultura e identidade, embora tenham uma grande ligao, no podem ser

    confundidas. A cultura pode existir sem conscincia de identidade. A cultura depende

    em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de

    vinculao, necessariamente consciente, baseada em oposies simblicas.

  • 31

    Kellner (2001, p. 295) aponta que nas sociedades tradicionais, conforme o

    folclore antropolgico e sociolgico, a identidade era fixa, slida e estvel. Existiam

    papis sociais predeterminados por um sistema de tradies, mitos e sanses religiosas

    que definiam o lugar de cada um no mundo:

    O indivduo nascia e morria como membro do mesmo cl, de um

    sistema fixo de parentesco, de uma mesma tribo ou grupo, com a

    trajetria de vida fixada de antemo. Nas sociedades pr-modernas, a

    identidade no era uma questo problemtica e no estava sujeita

    reflexo ou discusso. Os indivduos no passavam por crises de

    identidade, e esta no era nunca radicalmente modificada. Algum era

    caador e membro da tribo, e por meio desse papel e dessas funes

    obtinha sua identidade.

    J a identidade na modernidade para Kellner (2001, p. 297) est ligada

    individualidade, ao eu individual nico. Contrapondo a identidade nas sociedades

    tradicionais estava ligada tribo, grupo era algo coletivo, na modernidade a identidade

    funo da criao de individualidade particular.

    De acordo com Stuart Hall, em A identidade cultural na ps-modernidade

    (2003, p.85) O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte relao

    defensiva daqueles membros dos grupos tnicos dominantes que se sentem ameaados

    pela presena de outras culturas. Hall (2003, p.38) considera que a identidade algo

    formado ao longo do tempo. A identidade incompleta e est sempre em processo de

    formao. Para Hall (2003, p.48-49) no nascemos com a identidade j estabelecida,

    porm esta formada pela sua representao cultural gerando um sentimento de

    pertencimento e de identidade.

    Paul Gilroy, em Los estdios culturales britnicos y las trampas de la

    identidad (1998, p. 66) acredita que a natureza infinitamente mutvel da humanidade

    so marcas histricas e culturalmente diferentes vividas pela humanidade. Trabalho,

    lngua e cultura vivida de forma interativa, foram identificados como o principal meio

    para avaliar essa transformao social. Gilroy (1998, p. 69) acrescenta ainda que a

    identidade pode ser usada para marcar dvidas sobre a qualidade das relaes

    estabelecidas entre as semelhanas superficiais e profundas dos seres humanos, e

    tambm entre as interioridades parecidas e exterioridades diferentes.

    Cuche (1999, p. 176) entende que a identidade cultural um componente da

    identidade social, onde a identidade social de um indivduo caracterizada pelo

    conjunto de sua vinculaes em um sistema social: vinculao a uma classe sexual, a

    uma classe de idade, a uma classe social, a uma nao, etc. A identidade permite que o

  • 32

    indivduo se localize em um sistema e seja localizado socialmente.. Mas a identidade

    social no diz respeito somente ao indivduo, mas tambm aos grupos, tendo ainda os

    aspectos da incluso ou da excluso, baseados na diferena cultural.

    Entre as teorias elencadas por Cuche (1999, p. 178-180) sobre identidade

    cultural destacamos a abordagem culturalista, onde a nfase est na herana cultural,

    ligada socializao do indivduo dentro do seu grupo cultural, identificando-se com

    seu grupo de origem; j a teoria primordialista considera a identidade etno-cultural, pois

    no grupo tnico que se partilham as emoes e solidariedades mais profundas.

    Assim, a concepo de identidade cultural das teorias elencadas por Denys

    Cuche (1999) acima mostram que em ambos os casos existem critrios determinantes

    como a lngua, a cultura, a religio, o vnculo com o territrio etc. Dessa forma Cuche

    (1999, p. 180) destaca que: ... um grupo sem lngua prpria, sem cultura prpria, sem

    territrio prprio, e mesmo, sem fentipo prprio, no pode pretender constituir um

    grupo etno-cultural. No pode reivindicar uma identidade cultural autntica..

    Bauman, (2005, p. 17) pondera que o pertencimento e a identidade no possuem

    solidez como uma rocha, no so garantidos por toda uma vida, so negociveis e at

    revogveis, deixando essas decises para o prprio indivduo. Contrape dessa forma

    com as identidades ao estilo antigo, rgidas e inegociveis que simplesmente no

    funcionam (BAUMAN, 2005, P. 33).

    O conceito de identidade para Ulpiano Bezerra de Meneses (1999, p.182)

    implica em semelhana a si prprio, formulado como condio de vida psquica e

    social. Nessa linha, est muito mais prximo dos processos de re-conhecimento do que

    conhecimento. A busca de identidade se relaciona muito melhor com o tradicional do

    que com o novo, pois o novo representa a ameaa.

    Ortiz (2012, p. 8) conceitua que toda identidade uma construo simblica, ou

    seja, no existe uma identidade autntica, mas uma pluralidade de identidades,

    construdas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos histricos.

    2.2. Cultura popular

    Jorge Gonzlez em Sociologia de las culturas subalternas (1990, p. 13-15)

    considera que toda cultura tem uma ntima relao com as estruturas sociais e focaliza a

    discusso sobre os termos cultura e popular.

  • 33

    Gonzlez (1990, p. 66) afirma que a cultura popular, deve ser entendida no s

    pelo seu contedo, prticas e desempenhos, porm como uma competncia cultural,

    como uma srie de modos de produo e percepes simblicas prprias do povo.

    A definio de cultura, no entendimento de Franz Boas, (apud GONZLEZ,

    1990, p. 27-28):

    A cultura, inclui todas as manifestaes e hbitos sociais de uma

    comunidade, as reaes do indivduo, na medida em que forem afetados

    pelos costumes do grupo em que vive e dos produtos das atividades

    humanas, na medida em que so determinadas por esses costumes.

    Popular na viso de (GONZLEZ, 1990, p. 78)

    no um conceito abstrato, popular, subalterno, dominado constituem relaes histricas e sociais da condio de subordinao e

    de dominao dos grupos marginalizados, tendo em vista que a

    subordinao historicamente produzida carter central do popular.

    Gonzlez (1990, P.79) afirma que para um estudo da sociologia das culturas

    populares no est restrito s particularidades das culturas marginalizadas, folclricas

    ou tradicionais, mas constituem processos de estruturao, consolidao e

    desestruturao ou crise da hegemonia de um bloco histrico...

    Hall, em A dispora (2011, p.232) entende que a cultura popular est

    associada s questes da tradio e s formas tradicionais de vida. A cultura popular o

    terreno onde as transformaes so operadas. Por cultura entende-se o terreno das

    prticas, representaes, linguagens e costumes concretos de qualquer sociedade

    historicamente especfica (HALL, 2011, p.313).

    Em A Identidade Cultural na Ps-Modernidade (2003, p.50), Hall considera

    que as culturas nacionais so compostas pelas instituies culturais, smbolos e

    representaes, a construo de sentidos que esto contidos nas estrias que so

    contadas sobre a nao, suas memrias que conectam seu presente com seu passado.

    Renato Ortiz em A moderna tradio brasileira (2006, p. 38) nos lembra que

    pela Escola de Frankfurt que o tema sociedade e cultura de massa ganha destaque nesse

    momento de fortalecimento da indstria cultural no Brasil, atravs de revistas como

    Tempo Brasileiro com um nmero especial sobre comunicao e cultura de massa, e a

    Revista de Civilizao Brasileira.

    Renato Ortiz (2006, p. 15) considera que na dcada de 1940 j h a presena de

    atividades vinculadas a cultura popular de massa no Brasil, porm esse tipo de cultura

    passa a ser objeto de maior ateno nos idos dos anos 1960.

  • 34

    somente em 1966 que vamos encontrar um primeiro artigo de Ferreira

    Gullar sobre a esttica na sociedade de massa. Seguindo as reflexes da

    Escola de Frankfurt, o autor busca ampliar o quadro de compreenso da

    problemtica cultural entre ns.

    Ainda para Ortiz (2012, p.127-128) a temtica do popular e do nacional

    sempre presente quando se fala de cultura brasileira. O autor caracteriza o brasileiro

    como homem sincrtico, produto do cruzamento de culturas distintas (branca, negra e

    amerndia); o brasileiro (no sentido de povo) seria constitudo por um elemento popular

    originrio da miscigenao cultural, considera ainda:

    Identidade nacional e cultura popular se associam ainda aos

    movimentos polticos e intelectuais nos anos 1950 e 1960 e que se

    propem redefinir a problemtica brasileira em termos de oposio ao

    colonialismo. [...] O movimento modernista, que busca nos anos 1920

    uma identidade brasileira, se prolonga em Mrio de Andrade em seus

    estudos sobre o folclore, e na sua tentativa de criar um Departamento de

    Cultura, que entre outros aspectos se volta para a cultura popular.

    Roberto DaMatta em O que faz o Brasil, Brasil? (1986, p.17) diz que:

    A construo de uma identidade social, ento, como a construo de

    uma sociedade, feita de afirmativas e de negativas diante de certas

    questes. Tome uma lista de tudo o que voc considera importante leis, ideias relativas famlia, casamento e sexualidade; dinheiro; poder

    poltico; religio; artes; comida e prazer em geral e com ela voc poder saber quem quem. [...] Descobrindo como as pessoas se

    posicionam e atualizam as coisas desta lista, voc far um inventrio de identidades sociais e de sociedades. [...] Porque, para mim, a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um

    jeito, repito, de fazer coisas.

    A cultura popular e o folclore, no entender de Ortiz (2012, p. 105) devem ser

    preservados considerando-se que a cultura a tradio e a identidade e o folclore deve

    ser protegido da contaminao profana do mundo moderno. O popular concebido

    como beaut du mort, ele reificado e objetivado enquanto memria nacional. [...]

    Popular cultura, a massa tcnica.

    Alceu Maynard de Arajo, em Cultura popular brasileira (1973a, p. 9)

    delimita as reas culturais considerando os padres culturais tipificadores relacionados

    aos fatos folclricos. Dessa forma, o fato folclrico como fenmeno cultural, traz em

    seu bojo caractersticas do popular, do annimo e do tradicional, transmitindo, via de

    regra pela oralidade, as suas variadas manifestaes.

    Para Maynard (1973b, p. 14) rea cultural o espao geogrfico onde grupos

    apresentam condies semelhantes de cultura, com valores comuns e constantes, onde

  • 35

    h caractersticas prprias de uma determinada cultura, mesmo que diferente de outra

    cultura mesmo que vizinha.

    Nstor Garcia Canclini, em Culturas Hbridas (2011, p. 22) considera que o

    popular corre menor risco de inteno do que de transformao. Para o autor nunca

    houve tantos artesos, ou artistas populares; seus produtos tm caractersticas

    tradicionais e modernas, atraindo turistas e consumidores urbanos que veem nesses bens

    folclricos caractersticas nicas e personalizadas, no encontradas nos bens

    industrializados.

    Ecla Bosi (1977, p. 53-55) Considera que a definio de cultura popular no

    uma tarefa simples, fundamentada em autores como Gramsci; Oswaldo Elias Xidieh e

    Florestan Fernandes, a autora conclui que:

    o folclore consiste em uma educao informal que se d ao lado da sistemtica; uma educao que orienta e revigora comportamentos, faz

    participar de crenas e valores, perpetua um universo simblico. Se as condies da vida social que garantem a sua persistncia so

    ameaadas, tambm o folclore entra em crise. Mas, ainda assim, pode

    oferecer amparo cultural e emocional populao que vem da roa e

    deve integrar-se no meio urbano.

    Quando a cultura popular entra em crise, quando se empobrece e

    desagrega, os prejuzos que da advm afetam a segurana subjetiva do homem que se reduz de seu papel de criador e renovador da cultura para

    o de consumidor. Na cultura popular, novo e arcaico se entrelaam: os elementos mais

    abstratos do folclore podem persistir atravs dos tempos e muito alm

    da situao em que se formaram.

    Percebe-se bem a situao descrita por Bosi quando nos deparamos na metrpole

    com elementos vindos de comunidades tradicionais, onde na comunidade de origem

    esse integrante representava algumas vezes uma autoridade em determinada

    manifestao folclrica. Na cidade grande fica deslocado, voltado exclusivamente

    atividade para seu sustento, devido dificuldade de comunicao, no encontrando

    ressonncia para sua prpria cultura, gerando falta de integrao com o novo meio,

    comprometendo a identidade, provocando o esquecimento da cultura e de suas tradies

    e valores ancestrais.

    No entanto, na medida em que existe a oportunidade de exercer algum tipo de

    manifestao com utilizao de elementos folclricos, esses representantes de

    comunidades tradicionais despontam demonstrando seus valores e sua cultura.

  • 36

    2.3. Cultura caiara

    As manifestaes culturais das regies litorneas do sudeste do Brasil, chamadas

    de cultura caiara significam para Antonio Carlos Diegues (2004, v.1, p.22-23) um

    conjunto de valores, vises de mundo, prticas e smbolos que orientam os indivduos

    em suas relaes com a natureza e com os membros da sociedade, e que se expressam

    em produtos materiais como moradia, instrumentos de trabalho e tambm no materiais

    como a dana, a linguagem, a msica e os rituais religiosos. So relaes sociais

    marcadas pela reciprocidade, de tecnologias patrimoniais, de saberes associados ao

    tempo da natureza, periodicidade das atividades da terra e do mar. Essa tradio,

    herdada dos antepassados, constantemente reatualizada e transmitida s novas

    geraes pela oralidade. por meio da tradio que so usadas as categorias de tempo e

    espao e, por meio dessas ltimas, que so interpretados os fenmenos naturais.

    Diegues segue considerando que usado tambm o conceito de modo de vida caiara,

    ou seja, a maneira como as comunidades litorneas organizam a produo material, as

    relaes sociais e simblicas dentro de um contexto sociocultural.

    Os caiaras, assim como os quilombolas e outras comunidades tradicionais,

    receberam de ndios e negros os saberes e fazeres, herana lingustica, tcnicas

    patrimoniais, mitos e lendas (DIEGUES, 2004, v.1, p. 23).

    As comunidades quilombolas so grupos tnicos predominantemente

    constitudos pela populao negra rural ou urbana , que se autodefinem a partir das

    relaes com a terra, o parentesco, o territrio, a ancestralidade, as tradies e prticas

    culturais prprias. Estima-se que em todo o Pas existam mais de trs mil comunidades

    quilombolas (QUILOMBOLAS, s.d.).

    Os caiaras, fruto da miscigenao formou uma populao mestia que se

    espraiou por toda a orla martima. Essa populao mestia, com o passar do tempo

    espalhou-se pelo litoral, adentrou pelo serto construindo um Brasil rural, uma cultura

    rstica brasileira. Esse modo de vida fruto das caractersticas de vida dos portugueses

    aqui chegados, do indgena que aqui estava e do negro trazido da frica. Nessa cultura,

    em que a agricultura de subexistncia baseada principalmente no manejo da mandioca,

    fabricao de farinha, da prtica da pesca. O espao ocupado pelo caiara no litoral

    paulista est limitado aos confrontos com a Serra do Mar. O mar e a serra na luta pela

  • 37

    sobrevivncia. Esse modelo de ocupao do espao e as caractersticas geogrficas

    marcam a forma de ocupao diferenciada desse litoral (DIEGUES, 2005, v.2 p.22-23).

    Conforme Diegues (2005, v.2, p.26-27), os conhecimentos dos caiaras foram

    acumulados pelos sculos de convivncia e dependncia em relao natureza e da

    observao atenta das ocorrncias, e transmitido oralmente de gerao em gerao. O

    conhecimento fundamentado na tradio e as prticas culturais tm uma fora

    significativa que comandam as atividades dos caiaras, sendo seu ponto de referncia a

    localizao da comunidade. Embora cada comunidade caiara apresente configurao

    particular e diferenciada existem componentes gerais que as unificam enquanto

    pertencentes a um universo comum e singular. Observa-se nesses agrupamentos

    litorneos, uma noo de espao ou territorialidade prpria que compreende os

    domnios da terra e das guas, do mar e do rio. H, em cada um, espaos internos com

    microambientes prprios que demarcam formas de ocupao econmica e social, de

    acordo com suas peculiaridades, como se pode verificar:

    Mata: o espao tomado pela floresta, com um grande nmero de

    espcies vegetais. A se pratica a caa, busca-se a matria-prima para o

    artesanato, ervas medicinais e faz-se a roa, aps a derrubada.

    Terra: o espao de moradia e lazer das vizinhanas e dos povoados,

    onde se desenvolve grande parte da vida comunitria. constituda, em

    geral, pelas margens dos rios, do esturio e das praias. Muitas casas

    caiaras so construdas atrs do jandu, vegetao de restinga, e so

    ligadas gua pelos portinhos onde so guardadas as canoas.

    Mar/Rio: alm de serem o locus de atividades pesqueiras e extrativas,

    constituem espao de circulao (passeio e transporte).

    Terra/gua: constituem, simultaneamente, domnios materiais e sociais

    em torno dos quais as comunidades locais vm produzindo no tempo e no espao um modo de vida prprio, extraindo do mangue, do mar, do rio e da terra, as fontes bsicas de sua reproduo econmica e social.

    Isso se d de acordo com as especificidades de cada um desses

    ambientes e atividades que lhes so correspondentes, ainda que com

    variaes no tempo. A pesca, a coleta de frutos estuarinos e terrestres e

    a lavoura de subsistncia (alm da caa, no passado) so os modos

    produtivos por meio dos quais as populaes locais vm, secularmente,

    relacionando-se com os ecossistemas especficos de que fazem parte.

    Espaos produtivos explorados pelas comunidades locais em sua

    tradio histrica (DIEGUES, 2005, v.2, p.26-27).

    A agricultura tradicional caiara guarda influncia marcante da tradio

    indgena. Suas roas se enquadram no sistema de rotatividade do cultivo da terra

    destinada plantao, por vrios anos. Os terrenos so classificados pelos caiaras

    como terra braba e terra mansa. Terra braba a terra ocupada pelo avano progressivo

    da mata. Terra mansa a rea de cultivo onde a rotatividade da lavoura tornou o manejo

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    do solo mais fcil. Nos terreiros dos caiaras existe sempre um espao reservado ao

    pomar, podendo-se encontrar laranja, limo, banana, carambola, mamo, pitanga e

    outras rvores frutferas, alm, dos temperos para uso no preparo do peixe e da carne,

    como cheiro-verde, salsinha, cebolinha, coentro, alfavaca e muitas espcies de pimenta.

    So encontradas ainda plantas consideradas medicinais como a abuta (fortificante),

    alecrim, aroeira, arruda, boldo, camomila e outras mais (DIEGUES, 2005, v.2 p.28-31).

    As dificuldades geradas pelo isolamento, a precariedade das condies

    econmicas e a dificuldade de acesso aos bens de consumo, contriburam para o hbito

    de se fazer em casa objetos de utilidade domstica. Esse trabalho artesanal acabou

    ganhando interesse dos moradores da cidade e gerando complementao da renda

    familiar aos caiaras. Os materiais mais comuns utilizados na confeco dos artesanatos

    normalmente utilizados so a argila, caxeta (espcie de madeira branca utilizada na

    fabricao de brinquedos), cip, piaaba, madeiras de lei, taboa, junco, taquara, ub,

    sementes e macela (para confeco de travesseiros) (DIEGUES, 2005, v.2 p.39-44).

    Na comunidade do Serto da Fazenda pudemos constatar essas particularidades

    descritas por Diegues. A comunidade se autorreconhece como Remanescente de

    Quilombo, est bem prxima ao litoral, cerca de 5 (cinco) quilmetros, conservando

    dessa forma caractersticas de populao caiara, alm da quilombola.

    O espao ocupado pelo caiara, ou seja, sua casa e seu terreiro tm um valor

    sagrado. simples, porm acolhedora e funcional. A comunicao entre as casas, o

    caminho, de uso coletivo, porm o controle do proprietrio do terreno. O terreiro,

    ptio ou quintal da casa exclusivo de seu usufruto e a zona de sua jurisdio moral.

    A casa e o terreiro fazem pa