Dissertação Alice Costa Souza
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Alice Costa Souza
IMAGENS DE
MEMRIA/ESQUECIMENTO
NA CONTEMPORANEIDADE
Universidade Federal de Minas Gerais
Escola de Belas Artes
Mestrado em Artes
2012
-
Alice Costa Souza
IMAGENS DE
MEMRIA/ESQUECIMENTO
NA CONTEMPORANEIDADE
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Artes da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial obteno
do ttulo de Mestre em Artes.
rea de Concentrao: Arte e Tecnologia
da Imagem.
Orientadora Profa. Dra. Maria Anglica Melendi de Biasizzo
Universidade Federal de Minas Gerais
Escola de Belas Artes
Mestrado em Artes
2012
-
Para todos...
-
AGRADECIMENTOS
Agradeo a toda a minha famlia pelo apoio e especialmente mame, Ana Rita, e ao papai,
Clio (in memorian) pelo incentivo incondicional aos estudos e arte desde as minhas
primeiras garatujas;
Piti, minha orientadora, pelo conhecimento transferido, conversas e apontamentos
preciosos;
A todos os professores da Escola de Belas Artes pela oportunidade concedida, por seus
ensinamentos, especialmente, Mabe Bethnico e Maria do Carmo Freitas Veneroso pelas
observaes no exame de qualificao;
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela bolsa
concedida;
D. Zina e demais funcionrios da Escola de Belas Artes pela ateno e presteza sempre que
solicitados;
Ao Grupo de estudos Estratgias da Arte numa Era de Catstrofes e demais colegas de curso
pelas trocas proporcionadas e pelo acolhimento sereno;
Ao Prof. Rogrio Luz, pelas importantes contribuies desde aulas inspiradoras, tradues,
at material indito em minha breve passagem como aluna especial no Programa de Ps-
Graduao do Instituto de Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ);
Aos amigos e professores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pela qual me
graduei, especialmente Edna Rezende (orientadora de minha monografia) e Afonso
Rodrigues, os quais compuseram a banca de bacharelado: sem os seus ensinamentos e
incentivos, talvez eu no prosseguiria na carreira acadmica.
Leila Danziger, pelo mesmo motivo acima e pela sua imensa generosidade e
disponibilidade em colaborar com a dissertao, alm do dulor e da potncia de seus
trabalhos desveladores.
Rosngela Renn, por sua arte esclarecer to bem pontos antes obscuros sobre a memria e
o esquecimento.
Ao meu amor e melhor amigo, pela fora, pacincia e estmulo.
Aos meus queridos e genunos amigos que, a despeito do recolhimento neste perodo,
mantiveram o afeto e a torcida pelo meu sucesso nesta etapa.
-
Sob a histria, a memria e o esquecimento.
Sob a memria e o esquecimento, a vida.
Mas escrever a vida outra histria.
Inacabamento.
(Paul Ricur)
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RESUMO
A arte, ao misturar-se com a vida, atende ao dever de memria exigido aps a Shoah e
desenvolve estratgias diante do desafio da representao da catstrofe. Para isso,
fundamental compreender a relao complexa com a temporalidade pela qual passou o sculo
XX at chegar cultura de memria e abertura dos arquivos proibidos. Se a histria
recente mostrou grandes apagamentos, a arte demonstra que a imagem a elaborar-se a de um
par indissocivel: memria/esquecimento. As estratgias que se esboaram revelam essas
negociaes tensas com a histria: fragmentao da linguagem, atrair pela angstia,
presentificao, e a insero da palavra na arte. Destacou-se tambm o uso frequente da
potica do branco em tais imagens. As obras de Rosngela Renn e Leila Danziger, entre
outros artistas, foram essenciais nessa anlise.
Palavras-chave: Memria, esquecimento, temporalidade, arquivo, arte, contemporaneidade.
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ABSTRACT
Art, once it mixes with life, fulfills its duty of memory demanded after the Shoah, and
develops strategies to meet the challenge of representing the catastrophe. For that, it is
fundamental to understand the complex relation of temporality that the 20th century went
through, arriving at a culture of memory and the opening of the forbidden files. If recent
history revealed great disremember, art shows that the image to be drawn up is of an
inseparable pair: memory/forgetfulness. The strategies outlined reveal these tense negotiations
with history: the fragmentation of language, attracting through anguish, re-presentation, and
the insertion of the word in art. The frequent use of poetics of white in those images is also of
prominence. The works of Rosngela Renn and Leila Danziger, among other artists, were
essential in this analysis.
Keywords: Memory, forgetfulness, temporality, file, art, contemporaneity.
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LISTA DE ILUSTRAES
FIGURA 1 - Pierre Bonnard, A toalete da manh ................................................................. 20
FIGURA 2 - Pierre Bonnard, Autorretrato no espelho do toalete ......................................... 20
FIGURA 3 - Paul Klee, Angelus Novus ................................................................................ 22
FIGURA 4 - Peter Eisenman, Monumento aos Judeus Assassinados da Europa . ................. 58
FIGURA 5 - Monumento aos Judeus Assassinados da Europa...............................................59
FIGURA 6 - Monumento aos Judeus Assassinados da Europa ............................................. 59
FIGURA 7 - Jochen Gerz, Memorial contra o Racismo ........................................................ 60
FIGURA 8 - Saarbrcken, Local do Memorial contra o Racismo ......................................... 60
FIGURA 9 - Gunter Demnig, Stolperstein ............................................................................ 61
FIGURA 10 - Gunter Demnig, Stolperstein .......................................................................... 61
FIGURA 11 - Anselm Kiefer, Nuremberg ............................................................................ 67
FIGURA 12 - Artur Barrio, Trouxas ensanguentadas ........................................................... 69
FIGURA 13 - Zbigniew Libera, Lego - Concentration Camp ............................................... 69
FIGURA 14 - Caspar David Friedrich, Viajante acima do mar de nvoas ............................ 71
FIGURA 15 - Caspar David Friedrich, Capuchin Friar By The Sea ..................................... 71
FIGURA 16 - Anselm Kiefer, Heroische Sinnbilder............................................................. 71
FIGURA 17 - Arte Callejero, Antimonumento a Roca .......................................................... 74
FIGURA 18 - Fotografia de famlia prxima a uma vala comum .......................................... 76
FIGURA 19 - Obiturio de desaparecidos polticos no Pgina 12. ....................................... 76
FIGURA 20 - Revista chilena durante a proibio de publicar fotografias em 1984 .............. 79
FIGURA 21 - Revista chilena durante a proibio de publicar fotografias em 1984 .............. 79
FIGURA 22 - Luis Navarro, Missa por Lonqun .................................................................. 80
FIGURA 23 - Luis Navarro, (s/t), fotografia do pai de Navarro . .......................................... 81
FIGURA 24 - Christian Boltanski, Dez retratos de Christian Boltanski, 1972. ..................... 83
FIGURA 25 - Guinaldo Nicolaevsky, Menina nega a mo ao presidente Figueiredo ........... 83
FIGURA 26 - Christian Boltanski, Kaddish ......................................................................... 85
FIGURA 27 - Christian Boltanski, Menschlich, 1994 / Rserve: Les Suisses morts .............. 85
FIGURA 28 - Arte Callejero, Carteles viales ....................................................................... 86
FIGURA 29 - Arte Callejero, Aqui viven genocidas.. ........................................................... 86
FIGURA 30 - Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, Monumento contra o Facismo ................. 87
FIGURA 31 - Jochen Gerz, Monumento (aos mortos) vivo ................................................... 87
-
FIGURA 32 - Daniel Libeskind, Projeto do Memory Foundations. ...................................... 88
FIGURA 33 - Vista do Museu e o One World Trade Centre................................................. 88
FIGURA 34 - Michael Arad e Peter Walker, Memorial Nacional 11 de Setembro. ............... 89
FIGURA 35 - Xu Bing preparando a obra Onde a Poeira se coleta. ..................................... 91
FIGURA 36 - Xu Bing, Onde a poeira se coleta .................................................................. 91
FIGURA 37 - Gabriel Orozco, Ilha dentro de uma ilha. ....................................................... 92
FIGURA 38 - Fritz Koenig, Esfera ...................................................................................... 93
FIGURA 39 - Fritz Koenig, Esfera ...................................................................................... 93
FIGURA 40 - Rosngela Renn, Srie Vulgo ....................................................................... 94
FIGURA 41 - Rosngela Renn, Srie Vulgo ....................................................................... 96
FIGURA 42 - Rosngela Renn, Three Holes (da srie Vulgo) ............................................. 96
FIGURA 43 - Rosngela Renn, Vulgo/Texto ...................................................................... 97
FIGURA 44 - Rosngela Renn, Vulgo/Texto ...................................................................... 97
FIGURA 45 - Rosngela Renn, Srie Vulgo. ...................................................................... 98
FIGURA 46 - Rosngela Renn, Number (da srie Vulgo) ................................................... 98
FIGURA 47 - Polcia Militar rende todos os presos e pe fim rebelio no Complexo
Penitencirio do Carandiru. ................................................................................................ 105
FIGURA 48 - Corpos numerados dos detentos mortos no massacre ................................... 105
FIGURA 49 - Rosngela Renn, Arquivo Universal........................................................... 107
FIGURA 50 - Mira Schendel, Sem ttulo (da srie Monotipias) .......................................... 115
FIGURA 51 - Mira Schendel, Sem ttulo (da srie Objeto Grfico) .................................... 115
FIGURA 52 - Mira Schendel, Sem ttulo (Disco)................................................................ 118
FIGURA 53 - Mira Schendel, Sem ttulo (Toquinhos) ........................................................ 118
FIGURA 54 - Maril Dardot, Entre Ns ............................................................................. 119
FIGURA 55 - Maril Dardot, O Livro de Areia. ................................................................. 120
FIGURA 56 - Maril Dardot. O Banquete .......................................................................... 120
FIGURA 57 - Hilal Sami Hilal, Biblioteca. ........................................................................ 121
FIGURA 58 - Hilal Sami Hilal, Sala do amor/Sala da dor ................................................. 122
FIGURA 59 - Hilal Sami Hilal, Sherazade ......................................................................... 123
FIGURA 60 - Hilal Sami Hilal, Biblioteca ......................................................................... 123
FIGURA 61 - Hilal Sami Hilal, Biblioteca ......................................................................... 123
FIGURA 62 - Anselm Kiefer, Your Golden HairMargarethe ............................................. 124
FIGURA 63 - Anselm Kiefer, Quebra dos vasos ................................................................ 125
FIGURA 64 - Anselm Kiefer, Quebra dos vasos ................................................................ 125
-
FIGURA 65 - Micha Ullman, Biblioteca ............................................................................ 127
FIGURA 66 - Ansel Kiefer, Terra de dois rios (ou Mesopotmia) ..................................... 128
FIGURA 67 - Rachel Whiteread, Untitled (Stacks) ............................................................ 128
FIGURA 68 - Rachel Whiteread, Memorial to the Victims of the Holocaust ....................... 128
FIGURA 69 - Rachel Whiteread, Memorial to the Victims of the Holocaust ....................... 128
FIGURA 70 - Michael Arad, Memorial Nacional 11 de Setembro. ..................................... 129
FIGURA 71 - Michael Arad, Memorial Nacional 11 de Setembro ...................................... 129
FIGURA 72 - Jochen Gerz, Testemunhas, 1997-1998. ....................................................... 130
FIGURA 73 - Marcelo Brodsky, Buena Memoria, Los Compaeros .................................. 132
FIGURA 74 - Antnio Manuel, Flan ................................................................................. 133
FIGURA 75 - Jenny Holzer, Chicago ................................................................................. 135
FIGURA 76 - Stphane Mallarm, Un coup de ds jamais nabolira le hasard .................. 138
FIGURA 77 - Kasimir Malevich, Quadrado Branco Sobre Fundo Branco ......................... 140
FIGURA 78 - Robert Ryman, Conjunto Quatro gua-fortes e uma Gravura ...................... 142
FIGURA 79 - Agnes Martin, Milk River ............................................................................ 143
FIGURA 80 - Agnes Martin, Untitled #8 ........................................................................... 143
FIGURA 81 - Mira Schendell, Sem ttulo (da srie Cortes e Letras IV) .............................. 145
FIGURA 82 - Mira Schendel, Datiloscritos. ...................................................................... 145
FIGURA 83 - Hlio Oiticica, Parangol Capa 23 P30 Mway Ke ...................................... 148
FIGURA 84 - Rosana Palazyan, ...uma histria que voc nunca mais esqueceu? ........... 151
FIGURA 85 - Rosana Palazyan, ...Antes Eu S Pensava em Maconha e Roupa de Marca,
mas Vi Minha Me Indo Presa Junto Comigo. Agora Quero Parar... ............................... 151
FIGURA 86 CADA, Para no morir de hambre en el arte ............................................... 152
FIGURA 87 CADA, Para no morir de hambre en el arte ............................................... 153
FIGURA 88 - Robert Rauschenberg, Erased De Kooning Drawing. ................................... 154
FIGURA 89 - Anselm Kiefer, Siegfried vergit Brunhilde. ................................................ 156
FIGURA 90 - Anselm Kiefer, Women of antiquity ............................................................. 156
FIGURA 91 - Rosngela Renn, Experincia de Cinema ................................................... 157
FIGURA 92 - Rosngela Renn, Experincia de Cinema ................................................... 157
FIGURA 93 - Rosngela Renn, 2005 - 510117385 5 ..................................................... 159
FIGURA 94 - Rachel Whiteread, House . ........................................................................... 161
FIGURA 95 - Rachel Whiteread, Memorial to the Victims of the Holocaust. ...................... 161
FIGURA 96 - Arte Callejero, Blancos Mbiles. ................................................................. 162
FIGURA 97 - Leila Danziger, Nomes Prprios. ................................................................. 163
-
FIGURA 98 - Leila Danziger, Nomes Prprios. ................................................................. 165
FIGURA 99 - Leila Danziger, Nomes Prprios. ................................................................. 165
FIGURA 100 - Leila Danziger, Greifwaldstr. 138 (da srie Nomes Prprios). ................... 167
FIGURA 101 - Leila Danziger, Lembrar/ Esquecer ........................................................... 169
FIGURA 102 - Leila Danziger, Para-ningum-e-nada-estar .............................................. 172
FIGURA 103 - Leila Danziger, Para-ningum-e-nada-estar. ............................................. 172
FIGURA 104 - Leila Danziger, Pequenos Imprios ............................................................ 175
FIGURA 105 - Leila Danziger, Pallaksch. Pallaksch.(da srie Dirios Pblicos). ......... 176
FIGURA 106 - Leila Danziger, Trs minutos e meio entre a lembrana e o esquecimento.. 177
FIGURA 107 - Leila Danziger, Pallaksch. Pallaksch. (da srie Dirios Pblicos) ......... 178
FIGURA 108 - Leila Danziger, Pallaksch. Pallaksch(da srie Dirios Pblicos)............ 179
-
SUMRIO
INTRODUO............................................................................................... 13
1 MEMRIA CONTEMPORNEA.............................................................. 16
1.1 Memria/esquecimento na contemporaneidade................................................ 16
1.2 Memria pessoal, memrias coletivas.............................................................. 28
1.3 O mal de arquivo: o mal do sculo................................................................ 41
1.4 Memria, esquecimento e seus abusos............................................................. 49
2 MEMRIA/ESQUECIMENTO NA ARTE CONTEMPORNEA.......... 65
2.1 Memria/esquecimento: algumas estratgias da arte........................................ 65
2.2 Arte da memria contempornea, arte do esquecimento.................................. 75
2.3 A arte amnsica de Rosngela Renn............................................................... 94
3 IMAGENS, ESPAOS E ESCRITURAS EM SEUS VNCULOS COM
O TRABALHO DE MEMRIA/ESQUECIMENTO.................................
111
3.1 Palavra, imagem, memria/esquecimento........................................................ 111
3.2 Branco na memria ou Visibilidade ao invisvel.............................................. 136
3.2.1 O branco e a potica do desaparecimento......................................................... 154
3.3 Entre Arquivos Prprios e Pblicos, a arte de Leila Danziger......................... 163
CONCLUSO................................................................................................. 181
REFERNCIAS.............................................................................................. 187
-
13
INTRODUO
Esta dissertao foi motivada inicialmente pelo trabalho de concluso de curso
apresentado ao departamento de Artes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com o
nome Fragmentos de Pretrito, homnimo da obra com a qual dei incio minha produo
plstica investigando a memria e o esquecimento. Tambm foram desenvolvidos
paralelamente alguns trabalhos artsticos. No entanto, optei por no apresent-los nos
resultados, por considerar que necessitam de mais tempo e ateno para serem expostos ao
pblico. Mas, sem dvidas, eles formam material ativo de trocas recprocas com a presente
dissertao.
Nosso interesse pela memria, tema central da dissertao, recai principalmente
sobre o sculo XX, no apenas por ser nossa histria recente, mas porque desde suas ltimas
dcadas passamos por uma febre de memria que desencadeou discusses importantes acerca
da possibilidade de representao. Esse desejo compulsivo e utpico de tudo lembrar,
impulsionado pelos arquivos (e a infindvel possibilidade de armazenamento eletrnico que
temos hoje), alm de rastros e restos diversos como prova documental, a saber, inflou uma
nova empreitada na busca pela verdade por parte de alguns historiadores. Entre excesso e
exceo, descobriram-se grandes lacunas, dentre apagamentos ou silenciamentos na histria.
Reconhecia-se, assim, um par indissocivel: memria/esquecimento.
Assim, o captulo MEMRIA CONTEMPORNEA, que poderia compreender
um grande nmero de aspectos da memria, foi dividido nas sees Memria/esquecimento
na contemporaneidade, Memria pessoal, memrias coletivas; O mal de arquivo: o mal do
sculo; Memria, esquecimento e seus abusos, temas essenciais que tiveram no sculo XX
abordagens inovadoras sobre a memria e que vem sendo discutida por diversos artistas
contemporneos. Memria/esquecimento na contemporaneidade contextualiza e apresenta
alguns desses conceitos em torno da memria com base na leitura, sobretudo, de Seduzidos
pela Memria de Andreas Huyssen; A Histria, a memria, o esquecimento, de Paul Ricur;
e Histria e Memria de Jacques Le Goff. Na seo Memria pessoal, memrias coletivas,
abordo a passagem da memria vista estritamente como pessoal, conforme supunham aqueles
da tradio do olhar interior Santo Agostinho, John Locke, Edmund Husserl, Henri Bergson
memria primordialmente coletiva, como props Maurice Halbwachs. ressaltada, no
entanto, a impossibilidade dessa dicotomia (como de vrias outras no sculo XX) como
ensinou Ricur. Em O mal de arquivo: o mal do sculo discorremos sobre a revoluo
-
14
documental e a febre de memria que invade o campo cultural a partir da dcada de 1980,
despertando na Histria grande interesse revisionista e reconhecendo documentos no escritos
como importantes materiais. A seo Memria, esquecimento e seus abusos relata o
despertar da nova histria para o quanto pretensiosa a investigao pela verdade, mas, ao
mesmo tempo, necessria, impulsionada por um dever de memria, que tambm um dever
de justia. Tambm nesse captulo, na busca por uma imagem de memria, a leitura de
Matria e Memria, de Henri Bergson, foi indispensvel desde o incio deste trabalho. Outra
leitura importante e que ecoa em muitas obras de arte contemporneas diz respeito s Teses
Sobre o Conceito de Histria, de Walter Benjamin.
No captulo MEMRIA/ESQUECIMENTO NA ARTE
CONTEMPORNEA, a seo Memria/esquecimento: algumas estratgias da arte expe
tais estratgias comuns no ps-guerra, que foram estendidas a outras memrias, que lidam
com negociaes tensas entre histria, memria e esquecimento. Trabalhos contemporneos
foram aqui analisados rapidamente, ilustrando tais estratgias: fragmentao da linguagem,
atrair pela angstia e praticar a presentificao. Em Arte da memria contempornea, arte
do esquecimento observada a constante presena da contestao histria oficial, no raro
a arte requerendo um dever de justia e a participao do espectador, numa posio dialtica,
como sugeria Theodor Adorno. Porm, na seo A arte amnsica de Rosngela Renn, que
analisamos melhor as estratgias mencionadas, observando mais atentamente a proximidade
entre as obras Arquivo Universal (desde 1992) e Vulgo (1998),
O captulo IMAGENS, ESPAOS E ESCRITURAS EM SEUS VNCULOS
COM O TRABALHO DE MEMRIA/ESQUECIMENTO foi separado do anterior por
entender que, embora o uso de palavras na arte tambm se trata de uma estratgia, um
assunto demasiado extenso, que merecia uma discusso maior. A seo Palavra, imagem,
memria/esquecimento trata da insero de palavras e imagens em campos que antes do
sculo XX se mantiveram por muito tempo indiferentes visualidade na poesia e, escrita
nas artes; sua integrao aos discursos sobre memria/esquecimento foi o foco principal. A
seo discorre desde trabalhos que se utilizam literalmente de jogos de palavras (que
entendemos, tambm jogam com a memria do observador, refazendo o movimento da
memria), passando pelos que recorrem citao, at aqueles mais contundentes na crtica
barbrie e memria difcil. A seo Branco na memria ou Visibilidade ao invisvel
destaca a visibilidade jamais antes dispensada ao branco em diversos aspectos na poesia e nas
artes. Tambm se destaca como potica, que vai desde a pura visualidade crtica como
metfora do apagamento histrico ou do indizvel - quando aparece como potica,
-
15
desenvolvida melhor na subseo O branco e a potica do desaparecimento. As inmeras
possibilidades do branco e da liberdade de associaes que infere foram o principal motivo
pelo qual a elegi como a cor (ou no-cor) da memria/esquecimento. Para finalizar, na seo
Entre Arquivos Prprios e Pblicos, a arte de Leila Danziger, analiso dois trabalhos desta
artista, as sries Nomes Prprios (1997-1998) e Dirios Pblicos (obra em processo desde
2001), que, de certa forma, trafegam por grande parte do contedo exposto ao longo desta
dissertao.
Assim como a arte contempornea, evitamos classificaes e reconhecemos as
aporias que determinadas memrias inferem, nos preocupamos mais em lanar questes,
deixando-as em aberto para que o prprio leitor faa algumas associaes sugeridas no
decorrer de nossa escrita. Nosso objetivo principal demonstrar que h um conjunto de
estratgias que foram e so ainda utilizadas nos discursos sobre o par memria/esquecimento
aps Auschwitz, e tambm como artista-pesquisadora, melhor compreend-las e utiliz-las
em meus trabalhos artsticos, obviamente, sem julg-las como frmulas pr-estabelecidas.
-
16
1 MEMRIA CONTEMPORNEA
Os tempos modernos no comeam de uma vez por todas.
Meu av j vivia uma poca nova.
Meu neto talvez ainda viva na antiga. (BRECHT)
1.1 Memria/esquecimento na contemporaneidade
Durante o sculo XX se expandem muito os conceitos em torno da memria,
conforme demonstra o grande nmero de pesquisas em campos diversos (como a psicologia, a
psiquiatria, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia) que evidenciam trocas recprocas
que as aproxima da esfera das cincias humanas e sociais. A teoria da memria perpassa
variados debates relacionados a essas cincias humanas. Nas ltimas dcadas do sculo XX
esse interesse culmina com o que considerado um boom de memria (HUYSSEN, 2000,
p. 14; WINTER, p. 67).
Pesquisa, salvamento, exaltao da memria coletiva no mais nos acontecimentos
mas ao longo do tempo, busca dessa memria menos nos textos do que nas palavras,
nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; uma converso do olhar histrico.
Converso partilhada pelo grande pblico, obcecado pelo medo de uma perda de
memria, de uma amnsia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retr,
explorada sem vergonha pelos mercadores de memria desde que a memria se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que se vende bem. (LE GOFF,
2003, p.466)
Tal emergncia da memria como uma das preocupaes culturais e polticas
centrais das sociedades ocidentais ressaltada por Andreas Huyssen em Seduzidos pela
Memria (2000), onde aponta o nascimento de uma cultura e de uma poltica de memria e
sua expanso global a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-
americanas e do fim do apartheid na frica do Sul. Tais eventos assinalam o papel-chave das
memrias traumticas e do imaginrio urbano na atual transformao da experincia de
espao e tempo. Huyssen contrasta esse fenmeno com a cultura de modernidade das
primeiras dcadas do sculo XX:
Desde os mitos apocalpticos de ruptura radical do comeo do sculo XX e a
emergncia do homem novo na Europa, atravs das fantasmagorias assassinas de purificao racial ou de classe, no Nacional Socialismo e no stalinismo, ao
paradigma de modernizao norte-americano, a cultura modernista foi energizada
por aquilo que poderia ser chamado futuros presentes. No entanto, a partir da dcada de 1980 o foco parece ter-se deslocado dos futuros presentes para os
-
17
passados presentes; este deslocamento na experincia e na sensibilidade do tempo
precisa ser explicado histrica e fenomenologicamente. (HUYSSEN, 2000, p.9)
Huyssen (2000, p.12) nos fala de uma globalizao da memria iniciada com o
trauma do Holocausto, lugar-comum universal, alm de muitas outras tramas secundrias que
contrastam com o incio do sculo XX. Dentre essas tramas, Huyssen (2000, p.14) destaca a
restaurao historicizante de velhos centros urbanos, cidades-museus e paisagens inteiras,
empreendimentos patrimoniais e heranas nacionais, a arquitetura de museus. Alm disso, as
modas retr e os utenslios repr, a comercializao em massa da nostalgia, a obsessiva
automusealizao atravs da cmera de vdeo e fotografia (principalmente desde que foram
banalizadas em diversos dispositivos eletrnicos), assim como dos sites na Internet, e dos
arquivos eletrnicos. Tambm destaca a literatura memorialista e confessional, o crescimento
dos romances autobiogrficos e histricos ps-modernos, a difuso das prticas
memorialsticas nas artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, e o aumento
do nmero de documentrios na televiso. A esse frenesi da memria Jacques Derrida (2001,
p.9) se refere como a espera sem horizonte acessvel, a impacincia absoluta de um desejo de
memria, atravs do que ele chama de mal de arquivo.
Huyssen (2000, p. 15) se pergunta se haveria a algo de um arquivista maluco
ou se h, [...] talvez, algo mais nesse desejo de puxar todos esses vrios passados para o
presente [...] que seja, de fato, especfico estruturao da memria e da temporalidade de
hoje e que no tenha sido experimentada do mesmo modo nas pocas passadas. Essa
pergunta se torna central neste captulo.
Se considerarmos as histrias alternativas reivindicadas no incio do sculo,
podemos responder que sim e nos precipitarmos em dizer que o algo mais estaria em
reconhecer e atribuir ao presente o tempo da memria. No entanto, essa proposio no
especfica de nosso tempo: no sculo IV Santo Agostinho j conferia ao presente a ao da
memria, muito embora ainda hoje parea prevalecer para o senso comum a crena na (ainda
mais) remota frase de Aristteles (apud RICUR, 2007, p.35) que diz que a memria do
passado. Mas nem por isso a resposta pode ser descartada: o deslocamento do passado para o
presente de fato uma conquista no campo da filosofia, da sociologia e da historiografia, nas
quais essa noo expandida e passa a ser mais aceita somente no sculo XX atravs dos
escritos dos defensores de uma nova histria que privilegia os acontecimentos do tempo
vivido, durao ou experincia vivida, na expresso de Henri Bergson (2006, p.73 e
p.170). Mas, esse deslocamento constitui-se apenas em uma pequena parcela de uma resposta
-
18
muito mais complexa. De qualquer forma, a problemtica da temporalidade um indicativo
que pode nos levar s vrias respostas que a pergunta de Huyssen suscita.
A relao com a temporalidade se d de forma muito particular no sculo XX,
mas veremos que o contraste entre o incio e o fim do sculo, do qual nos falara Huyssen, no
ocorre repentinamente. importante ressaltar que ao mesmo tempo em que o senso comum
fazia tbula rasa do passado espera de um futuro com progressos, os regimes nacionalistas
desde sua emergncia j apoiavam a permanncia da histria clssica, alm da averso arte e
arquitetura modernas. Essa velha histria, que exalta heris do passado, est desvinculada
do tempo presente, apoiada unicamente em documentos do passado; logo, uma histria sem
testemunhas vivas.
Nesse contexto so escritas crticas pioneiras a respeito da funo da histria,
como as Teses Sobre o Conceito da Histria, de 1940, de Walter Benjamin, atendendo ao
apelo por uma nova histria requerida tambm por outros intelectuais da poca e mesmo de
sculos precedentes 1. Dentre aqueles que reivindicavam um novo olhar sobre a temporalidade
e a memria em relao histria do presente, alm de Benjamin, podemos citar Bergson,
Halbwachs, Benedetto Croce, Pierre Nora, Eric Hobsbawm, Gilles Deleuze, Derrida, a escola
dos Annales 2, dentre outros. Alguns desses autores viriam a ter seus textos censurados e
seriam perseguidos ou mortos 3 pelos regimes totalitrios, o que contribuiu para que muitos de
seus textos se tornassem mais acessveis apenas aps a queda desses regimes.
Uma contribuio importante de Halbwachs em seu estudo sobre a memria
coletiva mostra que ela guarda a lembrana do grupo, sobretudo daquelas passagens que a
Histria oficial negligencia como se nada acontecesse nos perodos entre os acontecimentos
ditos histricos. E justamente centrado nesses perodos entre e no passado recente,
1 Voltaire, nas suas Nouvelle considrations sur l' histoire (1744), pretendera uma 'histria econmica,
demogrfica, das tcnicas e dos costumes e no s poltica, militar e diplomtica. Uma histria dos homens, de
todos os homens e no s dos reis e dos grandes. Uma histria das estruturas e no s dos acontecimentos.
Histria em movimento, histria das evolues e das transformaes e no histria esttica, histria-quadro.
Histria explicativa e no apenas histria narrativa, descritiva ou dogmtica. Enfim, histria oral [...] (Le Goff, 1978, p. 223, apud LE GOFF, 2003, p. 122). Tambm Karl Marx foi fundamental para as noes sociais e
histricas que se desenvolveriam no sculo XX. 2 Considera-se a fundao da revista Annales (Annales d'Histoire conomique et Sociale em 1929 e Annales:
conomies, Societs, Civilisations em 1945), obra de Marc Bloch e Lucien Febvre, um ato que fez nascer a nova
histria (Revel e Chartier, 1978; Allegra e Torre, 1977, Cedronio et al., 1977). As ideias da revista inspiraram a
fundao, em 1947, por Lucien Febvre (morto em 1956), de uma instituio de investigao e de ensino de
investigao em cincias humanas e sociais, a sexta seo (das cincias econmicas e sociais) [...]. (LE GOFF, 2003, p.129). 3 Benjamin escreve em 1940 as Teses sobre o conceito da histria em Paris s vsperas da invaso das tropas
alems e morre na tentativa de fuga na fronteira com a Espanha. Halbwachs foi encarcerado em julho de 1944 e
em maro de 1945 executado no campo de concentrao de Buchenwald. O poeta Paul Celan teve os pais
assassinados pelos alemes e o prprio chegou a trabalhar em um campo de concentrao em Tabaresti, na
Romnia. Marc Bloch, resistente, foi fuzilado pelos alemes em 1944.
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19
relacionado ao presente, que Benjamin prev a ascenso dos regimes totalitrios. O
historiador Jacques Le Goff chama a ateno para a relao entre passado e presente pela qual
passa o sculo XX:
A ligao com o passado comea por adquirir formas inicialmente exasperadas,
reacionrias; depois, a segunda metade do sculo XX, entre a angstia atmica e a
euforia do progresso cientfico e tcnico, volta-se para o passado com nostalgia e,
para o futuro, com temor ou esperana. Entretanto, na esteira de Marx, os
historiadores esforaram-se por estabelecer novas relaes entre presente e passado.
Marx tinha j denunciado o peso paralisado do passado de um passado reduzido exaltao das memrias gloriosas sobre os povos, por exemplo, o francs: O drama dos franceses, tal como o dos operrios, so as grandes memrias.
necessrio que os acontecimentos ponham fim, de uma vez por todas, a este culto
reacionrio do passado (1870, p.147), culto que, no fim do sculo XIX e incio do sculo XX, foi um dos elementos essenciais das ideologias de direita e uma das
componentes das ideologias fascistas e nazistas.
Ainda hoje, o culto pelo passado alia-se ao conservantismo social, identificando-o
Pierre Bordieu com categorias sociais em declnio [...].
A acelerao da histria, por outro lado, levou as massas dos pases industrializados
a ligarem-se nostalgicamente s suas razes: da a moda retr, o gosto pela histria e
pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia, criadora de
memrias e recordaes, o prestgio da noo de patrimnio.
Tambm em outros domnios a ateno pelo passado desempenhou um papel importante: na literatura, com Proust e Joyce, na filosofia, com Bergson, e,
finalmente, numa nova cincia, a psicanlise. (LE GOFF, 2003, p.225)
Dentre as mudanas acolhidas pela histria e pela sociologia no entendimento da
memria que vo se conhecer no sculo XX, algumas foram preparadas desde o fim do sculo
XIX. Da arte e literatura, a teoria da memria educvel do Manifesto Surrealista (1924) e,
da psicanlise, a Interpretao dos Sonhos, de Sigmund Freud, so pontos marcantes na
metamorfose da arte da memria recente. Tambm foi importante a publicao em 1896 de
Matria e Memria, de Bergson, livro no qual considerada central a noo de imagem na
encruzilhada da memria e da percepo, que, ao unir memria e esprito, tem grande
influncia na literatura, marcando o ciclo narrativo de Marcel Proust. Essas aproximaes so
evidenciadas inicialmente pelo interesse pela memria pessoal, e posteriormente, pelas
coletividades e a vida cotidiana.
A nova histria e a sociologia acolheram tambm a temporalidade, e a
presentificao desses outros discursos. Benjamin no ensaio A imagem de Proust (1929)
mostra esse escritor como exemplar nesse processo, atravs da construo de uma bela
imagem de memria e esquecimento 4. A mesma esttica proustiana percebida em suas teses
4 Parafraseando o mito de Penlope, Benjamin (1994, p.37, grifo nosso) assim divaga: Sabemos que Proust no
descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. [...] o
importante, para o autor que rememora, no o que ele viveu, mas o tecido de sua rememorao, o trabalho de
Penlope da reminiscncia. Ou seria prefervel falar do trabalho de Penlope do esquecimento? A memria
involuntria, de Proust, no est mais prxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos de
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Sobre o conceito de histria (1940). Se Ricur (2007, p.447), chega a atribuir Busca do
tempo perdido, de Proust, como o monumento literrio simtrico a Matria e Memria, de
Bergson (do qual era apreciador), para o historiador da arte Giulio Carlo Argan (2006, p.142),
Pierre Bonnard seu equivalente visual, tambm muito prximo de Proust 5.
FIGURA 1 - Pierre Bonnard, A toalete da manh, 1914. 120 x 80 cm, Muse dOrsay (Fonte: ARGAN, 2006, p.144).
FIGURA 2 - Pierre Bonnard, Autorretrato no espelho do toalete, 1939-1945, 73x51cm, Centre Pompidou (Fonte: The New York Times 6).
reminiscncia? No seria esse trabalho de rememorao espontnea, em que a recordao a trama e o
esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penlope, mais que sua cpia? Pois aqui o dia que desfaz o
trabalho da noite. Cada manh, ao acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes, seguramos em
nossas mos apenas algumas franjas da tapearia da existncia vivida, tal como o esquecimento a teceu para
ns. Cada dia, com suas aes intencionais e, mais ainda, com suas reminiscncias intencionais, desfaz os fios,
os ornamentos do olvido. Por isso, no final Proust transformou seus dias em noites para dedicar todas as suas
horas ao trabalho, sem ser perturbado, no quarto escuro, sob uma luz artificial, no af de no deixar escapar
nenhum dos arabescos entrelaados. 5 Nenhum outro artista pode mostrar melhor do que Bonnard a enorme influncia do pensamento filosfico de
Henri Bergson sobre toda a cultura e a arte francesa das primeiras dcadas do sculo XX, empenhado em
explicar os processos da vida interior, o sentido profundo do tempo, da memria, da imaginao e da matria;
isto explica porque, na histria da pintura, cabe a Pierre Bonnard um papel sob muitos aspectos prximo ao de
Marcel Proust na histria da literatura. (ARGAN, 2006, p.142). 6 Disponvel em Acesso em: 23 mar.
2011.
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O Cubismo se apresentava como a sntese, finalmente descoberta, entre o espao
e o tempo e triunfava ao mesmo tempo em que Bonnard pintou A toalete da manh (1914,
FIG.1). Esse artista parece objetar que no pode haver sntese entre duas entidades que no
so, e no podem ser, distintas, porque na realidade no so duas, mas somente uma
(ARGAN, 2006, p.142-145). Essa concepo bem expressa, assim como no Autorretrato no
espelho do toalete (1939-1945, FIG. 2), pelo tom do conjunto, no ambiente ou nas figuras
humanas, o interior e o exterior, sem demarcaes (o oposto dos debruns de Henry Matisse),
as figuras fragmentadas (recortadas pelo enquadramento ou por espelhos, que por sua vez as
replicam) parecem imersas no (e pelo) ambiente: [...] o quadro um contnuo, um contnuo
de espao e tempo, de coisas e ambiente, mas, acima de tudo, para usar os termos de Bergson,
de matria e memria (ARGAN, 2006, p.145, grifo do autor). As duas pinturas no espao
ntimo do toalete (como muitas outras do mesmo pintor), despidas de qualquer requinte ou de
vestes que demarcassem algum tempo especfico, demonstram o indivduo comum, situaes
corriqueiras, resqucio do romantismo.
Benjamin (1994, p.45) explica que a eternidade que Proust nos faz vislumbrar no
a do tempo infinito, mas do tempo entrecruzado, ao que constatamos, semelhante de
Bonnard e seu fluxo contnuo. No que concerne temporalidade, ambos exploram to bem,
no entanto, ainda muito presos tradio da memria interior. O que interessa a Benjamin no
mtodo proustiano no o fato de ter escrito memrias, mas a busca das analogias e das
semelhanas entre o passado e o presente (GAGNEBIN In BENJAMIN, 1994, p.16) 7. A
crtica barbrie nesse sculo s seria representada mais tarde com Guernica (1937) de
Picasso e com as assemblages, colages e combine paintings a partir da dcada de 1950, com
Jean Dubuffet, Robert Rauschenberg, Georges Braque e o prprio Picasso. De forma mais
literal (atravs de materiais do mundo) esse tipo de arte passa a interagir com o espao real
nessa crtica.
A temporalidade de que nos fala Benjamin, atento aos seus contemporneos,
focaliza os sentidos da memria que permitem esses dilogos com literatos, tais como Proust,
e com a filosofia de Bergson. Muito prximo do conceito benjaminiano de experincia, o
tempo vivido (durao, durao interna ou conscincia) o passado vivo no presente e aberto
7 Nas teses Sobre o conceito de histria h a mesma preocupao proustiana de salvar o passado no presente
graas percepo de uma semelhana que transforma o passado, que poderia ter desaparecido no esquecimento,
e transforma o presente, porque este se revela como a realizao possvel dessa promessa anterior, que poderia
ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se no a descobrirmos, inscritas nas linhas do atual. O autor
explica que a maioria das recordaes que buscamos aparecem nossa frente sob a forma de imagens visuais, mesmo a mmoire involontaire so imagens visuais ainda em grande parte isoladas, apesar do carter enigmtico da sua presena (BENJAMIN, 1994, p.49).
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ao futuro no esprito que compreende o real de modo imediato, e corresponde a uma
experincia direta entre o sujeito e o objeto. Quando Benjamin faz o elogio a Proust e sua
obra aberta onde cada histria o ensejo para uma nova histria, cada texto suscita a outros,
movimento infinito da memria podemos perceber uma estruturao da memria que
remonta precisamente ao fluxo entre passado e presente j apontado pelo sistema do cone que
Bergson (2006, p.178) elaborou em Matria e Memria. pautado em um tempo nico que
Benjamin (1994, p.226) nos fala de uma cadeia de acontecimentos e de uma catstrofe
nica ao analisar a imagem do Angelus Novus de Paul Klee (FIG. 3):
FIGURA 3 - Paul Klee, Angelus Novus, 1920 (Fonte: Centre for the Study of Historical Consciousness - CSHC 8).
H um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos esto
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da histria deve ter esse
aspecto. Seu rosto est dirigido para o passado. Onde ns vemos uma cadeia de acontecimentos, ele v uma catstrofe nica, que acumula incansavelmente runa
sobre runa e as dispersa a nossos ps. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraso e prende-se em
suas asas com tanta fora que ele no pode mais fech-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de
runas cresce at o cu. Essa tempestade o que chamamos progresso.
(BENJAMIN,1994, p.226)
8 Disponvel em: Acesso em: 19 maio 2010.
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Ambos se referem a um tempo entrecruzado, no qual, se h algo nesse desejo de
puxar esses vrios passados para o presente (Cf. HUYSSEN, 2000, p. 15) est em fazer com
que a experincia com o passado sirva de referncia para mudar o presente e o futuro. A
infinitude encontra-se na rememorao, pois um acontecimento vivido finito, ou pelo
menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado sem limites,
porque apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois (BENJAMIN, 1994, p. 37).
No sculo XX, a dinmica entre o passado e o presente, na memria, recupera a dimenso do
futuro nessa relao:
A distino passado/presente que aqui nos ocupa a que existe na conscincia
coletiva, em especial na conscincia social histrica. Mas torna-se necessrio, antes
de mais nada, chamar a ateno para a pertinncia desta posio e evocar o par
passado/presente sob outras perspectivas, que ultrapassam as da memria coletiva e
da histria.
De fato, a realidade da percepo e diviso do tempo em funo de um antes e um
depois no se limita, em nvel individual ou coletivo, oposio presente/passado:
devemos acrescentar-lhe uma terceira dimenso, o futuro (LE GOFF, 2003, p.209).
importante ressaltarmos, ao falarmos de memria no sculo XX, o processo de
desenvolvimento do capitalismo e uma srie de mudanas socioeconmicas que levaram as
pessoas a terem um outro tipo de relacionamento com seus espaos, com o passado, incluindo
a perda de contato com a sua cultura e tradio. O tema abordado, com duras crticas perda
da experincia em nome de um progresso acelerado na era moderna, no clebre ensaio
Experincia e pobreza de Benjamin. O texto, j em 1933, mostra um autor muito lcido sobre
os acontecimentos da prpria poca. A historiografia progressista, que era a concepo da
histria em vigor na social democracia alem de Weimar, conforme previa Benjamin,
provocaria uma avaliao equivocada do fascismo e a incapacidade de desenvolver uma luta
contra a sua ascenso. Benjamin tambm se empenhou em criticar a historiografia burguesa,
que, assim como a progressista, se apoia na concepo de um tempo homogneo 9, vazio,
cronolgico, linear. Sua caracterstica ateno ao passado para compreender o presente e
modificar o futuro, exprime exatamente o que Huyssen (2000, p.9) denominou passados
presentes, outro ponto fundamental e especfico de nosso tempo e que gostaramos de
ressaltar se retornarmos sua pergunta no incio de nosso captulo.
9 Bergson (2006, p. 243) tambm compartilha dessa crtica a um pretenso tempo homogneo, para ele um dolo da linguagem, uma fico: em realidade no h um ritmo nico de durao; possvel imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rpidos, mediriam o grau de tenso ou de relaxamento
das conscincias [...]. A fragilidade de sua observao, no entanto, est em atribuir percepo ao sujeito interior, descolado de sua posio de indivduo pertencente a um grupo.
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Trata-se para o historiador materialista - ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra histria, capaz
de levar em considerao os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face s
esperanas frustradas -, de fundar um outro conceito de tempo, tempo de agora (Jetztzeit), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade, cujo modelo foi explicitamente calcado na tradio messinica e mstica judaica.
Em lugar de apontar para uma imagem eterna do passado, como o historicismo, ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador
deve constituir uma experincia (Erfahrung) com o passado (tese 16). Estranha definio de um mtodo materialista! (GAGNEBIN in BENJAMIN, 1994, p.8)
A memria trata-se, assim, de uma espcie de contra histria, o que Benjamin
chamava de escovar a histria a contrapelo (BENJAMIN, 1994, p. 225), como um
historiador materialista. Pela busca de uma histria que no privilegiasse apenas o que era at
ento considerada grande histria, no apenas aquelas dos vencedores, mas tambm aquelas
dos vencidos, dos trabalhadores e das massas, que autores de diversos campos procuravam
recorrer memria coletiva, detentora de lembranas mais recentes dos grupos aos quais
pertencem.
Somente aps a dcada de 1960, os novos discursos de memria se firmaram, com
a revoluo documental (GLNISSON, 1977 apud LE GOFF, 2003, p.531), no rastro da
descolonizao e dos movimentos sociais em busca por histrias alternativas e revisionistas
iniciados no entre guerras, acompanhadas por inmeras declaraes de fim (fim da histria,
morte do sujeito, fim da obra de arte e das metanarrativas) que j apontavam para a atual
recodificao do passado.
Embora no fossem poucos os esforos, como vimos, o deslocamento dos
futuros presentes para os passados presentes, dentre uma srie de questes, ocorre
principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, quando o problema do futuro longnquo
foi se apagando, perdeu toda a intensidade perante os problemas do futuro imediato, bem mais
urgentes e concretos (LEVI apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 92).
Logo aps a Shoah 10
parecem ter faltado cdigos adequados para se expressar. A
arte, a poesia e toda a cultura europeia do ps-guerra parecem ento passar pela clebre,
banalizada e mal compreendida frase de Theodor Adorno de 1949: escrever um poema aps
Auschwitz um ato brbaro, e isso corri at mesmo o conhecimento de porque hoje se
tornou impossvel escrever poemas (ADORNO, 1977, vol. 10, p.30 apud SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 73). Para o terico, a poesia, e por extenso as outras artes, desempenham
um papel na crtica desumanizao promovida pelo capitalismo industrial e pelas
10
No hebraico, Shoah o mesmo que catstrofe ou devastao. O termo preferido por vrios autores que se recusam a usar a palavra Holocausto por suas conotaes de sacrifcio, pois significa oferenda pelo fogo.
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experincias de barbrie. No se trata de uma negao arte, mas tarefa da arte resistir, sem
se contentar em dar o cinismo como resposta, pois a sobrecarga de sofrimento real no tolera
o esquecimento, como ensinou Adorno (1995, p. 54 apud HEISE, 2008, p.174).
Desencadeia-se, pois, uma grande reflexo acerca da possibilidade de representao.
Lembrar ou esquecer, representar ou no representar a partir do trauma, o
testemunho, o horror, tornou-se uma questo muito discutida, ora exigindo a passagem do
discursivo para o imagtico, ora a descrio realista dos fatos, novamente nos moldes
tradicionais. Embora a catstrofe no seja um objeto novo no campo filosfico, passa no
sculo XX, a era da catstrofe (HOBSBAWM, 1994, p.27), a ser vista como parte da
cotidianidade, no mais um evento raro, nico, isolado. Da reflexo sobre a impossibilidade
de representao da catstrofe (pois o real estaria todo impregnado pela mesma) chegou-se
mesmo condenao da representao de modo geral, vista como impossvel.
A problemtica de representar no presente o prprio presente (ou passado
recente) era algo novo com que a histria ainda estava se familiarizando. Ao ver-se diante da
Segunda Guerra, deparou-se com um fardo demasiado grande e complexo. Demoraram-se
alguns anos at que se memorasse o horror da Shoah nas artes e que surgissem mesmo os
primeiros testemunhos. Alm daqueles autores pressionados pelo medo e pelo trauma, que
tiveram suas obras escondidas por anos, havia ainda aqueles que acreditavam em um
esquecimento produtivo como possibilidade nica de prosseguir a vida aps o trauma.
Inicialmente, narrativas heroicas de resistncia eram mais teis no reavivamento da poltica
cultural dos pases humilhados pelas invases, porm nos anos de 1960 e 1970 essas
narrativas j haviam cumprido sua tarefa, dando espao tambm aos testemunhos. Memrias
literrias tornaram-se atos de testemunhos, como o caso tpico dos escritos de Primo Levi
sobre sua experincia como prisioneiro em Auschwitz-Birkenau narradas em isso um
Homem?.
A expanso de uma cultura de memria ocorre especialmente nos anos 80,
quando a memria passa a ser discutida intensamente. Em 1988 realizou-se em Frankfurt, por
exemplo, um congresso de escritores com representantes das duas literaturas da Alemanha,
ento dividida, sobre o tema Escrever aps Auschwitz. O poema Fuga da morte, escrito em
1951 por Paul Celan sobre sua experincia como sobrevivente de Auschwitz, tornou-se uma
obsesso nacional no pas, reapareceu em antologias da literatura alem do ps-guerra e sua
recitao tornou-se um desafio em eventos comemorativos. Tambm com o fim das ditaduras
em naes europeias como Portugal e Espanha, e latino-americanas como Brasil, Argentina,
Paraguai (nas dcadas de 1970 e 1980), e do Chile (somente em 1990), alm do colapso do
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imprio sovitico em 1989, vem tona as vozes de testemunhas e se inicia um processo de
abertura dos arquivos proibidos.
Jay Winter (2006, p. 76), no ensaio chamado A gerao da memria: reflexes
sobre o boom da memria nos estudos contemporneos de histria, atenta para o aumento
real de renda, consequentemente com investimentos em educao (sobretudo de nvel
superior), somado ao crescimento demogrfico (a gerao do baby-boom entrava na idade
adulta) desde a Segunda Guerra ajudaram a fazer crescer a demanda por bens culturais.
Winter (2006, p.84) acrescenta ainda que o boom da memria surgiu em parte devido
nossa aceitao tardia, mas real de que entre ns, em nossas famlias, existem homens e
mulheres oprimidos por recordaes traumticas.
Na era da catstrofe no cabe mais o discurso inocente e simplificador da
autonomia do esttico, mas as histrias outras tambm devem ser motivo de interesse, como
j insistia Benjamin na primeira metade do sculo XX nas teses Sobre o Conceito da Histria.
Uma sobriedade na explicao recomendada pelo autor para o historiador verdadeiramente
atento ao passado o oposto do historiador clssico principalmente aos seus elementos
decretados negligenciveis e fadados ao esquecimento:
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os
pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser
considerado perdido para a histria. Sem dvida, somente a humanidade redimida
poder apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a
humanidade redimida o passado citvel, em cada um dos seus momentos. Cada
momento vivido transforma-se numa citation la ordre du jour e esse dia justamente o do juzo final. (BENJAMIN, 1994, p.223, grifo nosso).
A memria seria, desta forma, elemento libertador para aqueles grupos que a
solicitam, para os quais o esquecimento intolervel e a falta de punio inaceitvel. Esse o
caso do grupo formado pelas Madres de Plaza de Mayo ou pelo H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por
la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio) da Argentina. Podemos reconhecer na
arte o surgimento dos monumentos e antimonumentos do ps-guerra (Anselm Kiefer, Jochen
Gerz, Peter Eisenman, Rachel Whiteread, entre outros) e contra as sangrentas ditaduras latino-
americanas (Antnio Manuel, Arte Callejero, Escena de Avanzada, Colectivo Acciones de
Arte CADA), que atestam e denunciam a ocorrncia do esquecimento.
O conto Funes, o memorioso de Jorge Luis Borges (1995, p.116) nos mostra, de
certa forma, a importncia dos processos de presentificao bem como faz referncia ainda
utopia contempornea de recordao total. O personagem Ireneo Funes, depois de uma queda
do cavalo, acometido de uma doena que lhe confere uma memria infalvel. Por tudo
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lembrar, impedido de viver o presente e no consegue desenvolver o pensamento crtico.
Este conto esclarecedor quanto importncia de uma atualizao do passado.
Diante da impossibilidade de recordao total, resta-nos observar que aquela velha
histria, embora ditada por interesses polticos que negligenciam os cidados comuns e os
intervalos que levam aos grandes feitos histricos, de qualquer forma, assinala uma noo
prpria e inevitvel da memria como processo que age junto com o esquecimento. E mesmo
a memria coletiva ou a chamada nova histria utilizam apenas as lembranas dos elementos
que cada sociedade considera relevantes para sua constituio. por isso que, ao mesmo
tempo em que Huyssen (1995, p.3) observa uma cultura e uma poltica de memria em
expanso, no livro Twillight memories (1995) ele tambm aponta uma cultura de amnsia: a
obsesso com a memria na cultura contempornea deve ser lida em termos desta dupla
problemtica, pois o desejo de memria pressupe tambm o esquecimento, em vista de
sermos incapazes de lembrar tudo.
Atualmente, o foco da memria na temporalidade contrasta com alguns outros
campos centrados na questo do espao. Isso no ocorre nas artes e na literatura porque ambas
entendem que a separao entre tempo e espao representa um grande risco para o
entendimento tanto da cultura moderna quanto da cultura contempornea. Se pensarmos o
papel da arte nesse universo, perceberemos uma liquefao da tradio, alm da quebra da
linearidade do tempo no ltimo sculo:
No caso da arte, cabe registrar que essa insero paradoxal, j que ela participa
tambm da dissoluo das referncias. Podemos ver na prpria literatura os efeitos,
digamos, dessa liquefao da tradio. Por outro lado, uma tentativa de inscrio,
de construir um discurso que oriente minimamente a nossa ao. A arte ajuda a
construir essas orientaes, mesmo que muitas vezes nos desorientando para tentar
nos reorientar. Um escritor como o [Samuel] Beckett, cuja narrativa extremamente fragmentada, nos reorienta, cria novos parmetros. A narrativa no precisa ser
orgnica e linear. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 6)
Qual a funo da arte uma discusso extensa, na qual no nos deteremos aqui.
Porm, a arte contempornea atravs tanto da prtica da citao prpria arte, como ao
relacionar-se com outros meios que no os seus, exerce importante papel como preservao e
questionamento da memria, e talvez por isso mesmo tenda a retornar crtica, pois associa a
um fato do presente. Antes de buscarmos em que medida a arte se utiliza desses dilogos com
outros meios e quais estratgias prprias de seu meio utiliza, precisamos entender melhor os
processos especficos pelos quais passa a memria no sculo XX.
Para aprofundarmos nas sees, j temos claros alguns pontos especficos da
estruturao da memria e da temporalidade particulares do sculo XX. Mais que atribuir ao
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tempo presente o tempo da memria, o sculo passado tem sua relao com a temporalidade
marcada profundamente pelo trauma gerado por duas guerras mundiais. A memria passaria a
ser reconhecida finalmente como mais que elemento exclusivamente pessoal, mas tambm
coletivo e interpessoal. Um imperativo tico de memria, reivindicado pelas massas atravs
das memrias coletivas, e at mesmo pelo prprio Estado, viria a funcionar como apelo por
justia, posta, sobretudo, como elemento libertador. Se s vezes o indivduo contemporneo
se comporta como arquivista maluco (cf. HUYSSEN, 2000, p. 15), muito mais um reflexo
de sua avidez por memria ligada a fatores bem mais complexos do que mera ingenuidade. O
passado, reconhecido como construo e reinterpretao do presente, uma lucidez de que,
assim como a verdade, ele est irrecuperavelmente perdido no sentido que ambos no se
fixam integralmente, muito embora olhar para trs e ver um acmulo de catstrofes, deva se
fazer til para avistar a esperana de um outro tempo futuro.
1.2 Memria pessoal, memrias coletivas
Na discusso contempornea, a pergunta sobre qual o sujeito das operaes de
memria inflamada por uma inquietao do historiador por saber qual o seu contraponto: a
memria dos protagonistas da ao tomados um a um, ou das coletividades tomadas em
conjunto? Em outras palavras, se a memria primordialmente pessoal ou coletiva um
dilema com o qual a contemporaneidade tem esbarrado. Essa questo s foi possvel porque
Halbwachs, sob a presso do entre guerras nos anos 1920-1930, atribuiu a memria a uma
entidade coletiva o grupo ou sociedade, na publicao pstuma de A Memria Coletiva.
Antes, apenas a problemtica da subjetividade tomava conta dos discursos sobre a memria
com as reflexes fundadoras de Santo Agostinho, passando mais tarde por Husserl e Bergson.
Alguns traos indicados pelo filsofo Paul Ricur (2007, p. 107-108) devem ser
destacados naqueles que saem em defesa do discurso do carter essencialmente privado da
memria: Primeiro, a memria parece de fato ser radicalmente singular: minhas lembranas
no so as suas; segundo, o vnculo original da conscincia com o passado parece residir na
memria; e terceiro, memria que est vinculado o sentido da orientao na passagem
do tempo. Neste ltimo, o movimento em via dupla, do passado para o futuro, mas tambm
pelo movimento inverso de trnsito da expectativa lembrana, atravs do presente vivo
(RICUR, 2007, p. 108).
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Essa tradio, cujos precursores se encontram na Antiguidade tardia de matiz
cristo, tem Santo Agostinho como sua maior expresso. De forma simples, ele antecipa
dezessete sculos atrs vrias questes que interessaram aos filsofos do sculo XX. Seu livro
Confisses, um dos maiores esforos filosficos j consagrados ao tempo, tambm
considerado a primeira autobiografia ou livro de memrias.
pela questo da medida dos tempos que Santo Agostinho entra na problemtica
da interioridade. Sua ateno dispensada atribuio da memria ao presente viria mais tarde
a ser uma proposio da nova histria no incio do sculo XX. Quando se refere a uma
atualizao da memria no presente, Agostinho fornece uma caracterstica que constitui as
bases da noo de presentificao, que veremos melhor mais adiante com Husserl.
Se futuro e passado existem, quero saber onde esto. Se ainda no consigo
compreender, todavia sei que, onde quer que estejam, no sero futuro nem passado,
mas presente. Se a fosse futuro, no existiria ainda; e se fosse passado, j no
existiria. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, seja o que for, no podem existir seno no presente [...]. Agora est claro e evidente para mim que o
futuro e o passado no existem, e que no exato falar de trs tempos passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos so trs, isto , o
presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos
futuros. E estes trs tempos esto na mente e no os vejo em outro lugar. O presente
do passado a memria. O presente do presente a viso. O presente do futuro a
espera (AGOSTINHO, 2009, p. 342-345, grifo nosso).
Sobre a formao das imagens, Agostinho (2009, p. 274) utiliza sua famosa
metfora central dos vastos palcios da memria, reforada por outras figuras como o
depsito, o armazm, os compartimentos (p.277) onde as numerosas lembranas so
depositadas, postas em reserva. Para Agostinho (2009, p. 277), de fato, todas essas realidades
no se introduzem na memria. So apenas imagens colhidas com extraordinria rapidez,
dispostas como em compartimentos, de onde admiravelmente so extradas pela lembrana.
Le Goff (2003, p.440-441) observa que com Agostinho, a memria penetra
profundamente no homem interior, no seio da dialtica crist do interior e do exterior, de onde
saram o exame de conscincia, a introspeco, e tambm a psicanlise. Embora Agostinho
descreva o homem interior que se lembra, mas no ainda a conscincia e o sujeito, j fala
sobre percepo, e a importncia do querer de acordo com a necessidade no tempo presente
na seleo das lembranas como pode ser observado posteriormente em Bergson. Em sua
concepo de memria esto guardadas para serem evocadas quando quisermos todas as
ideias, conhecimentos, imagens, ou lembranas.
procura de respostas inicialmente no poder da memria individual, na viso das
imagens residentes em sua memria, Agostinho (2009, p.276) se interroga: Mas ento o
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esprito limitado demais para compreender-se a si mesmo? E onde est aquilo que no
apreende de si mesmo? Estar ento fora de si mesmo, e no dentro? Confrontado com essa
possibilidade, Agostinho j esboa a questo da memria pessoal alimentar-se das memrias
coletivas:
A [na memria] esto tambm todos os conhecimentos que recordo, seja por
experincia prpria ou pelo testemunho alheio. Dessa riqueza de idias me vem a
possiblidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas
pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho dos outros; posso lig-los aos
acontecimentos do passado, deles inferindo aes, fatos e esperanas para o futuro,
e, sempre pensando em todas como estando presentes [...]. (AGOSTINHO, 2009,
p.275-276, grifo nosso).
Ricur (2007, p. 108) destaca que , no entanto, s em torno da virada do sculo
XIX para o XX com a obra de Husserl que a escola do olhar interior atinge seu apogeu; ao
mesmo tempo, toda a tradio do olhar interior se constri como um impasse rumo memria
coletiva.
Fundador da fenomenologia, Husserl evoca Agostinho quanto maneira de
vincular as problemticas da interioridade, do tempo e da memria. Nas Lies para uma
fenomenologia da conscincia ntima do tempo, a ideia de continuidade e atualizao do
presente nos remete ao termo presentificao ou re-(a)presentao 11
cunhado por Husserl,
que significa o ato pelo qual um objeto se torna presente sob a forma de imagem, uma
caracterstica do tempo vivido, sentida como presente e integrada como tal na memria. A
presentificao difere da apresentao: a ltima, sob a forma da percepo, constitui a
apresentao pura e simples (e no intuitiva), enquanto todos outros atos sensveis so
classificados como presentificao, que por sua vez no apresentam o objeto.
Em Husserl encontramos reflexes acerca das diferenas entre imagem e
lembrana, no entanto, no consideram seu entrelaamento e a confuso entre ambas no nvel
da linguagem e no plano da experincia viva (RICUR, 2007, p.61). Quando Husserl fala de
imagem, se refere s presentificaes que descrevem alguma coisa de maneira indireta:
retratos, quadros, esttuas, fotografias, etc. (RICUR, 2007, p.63, grifo nosso). Por sua vez,
a busca da fenomenologia husserliana da lembrana no prope um equivalente da coisa
lembrada, mas a reapropriao do tempo perdido. A lembrana seria assim, uma espcie de
presentificao que tem a ver com o tempo (RICUR, 2007, p.62). Lembrana e imagem
fazem parte assim da grande famlia de presentificaes.
11 Vergegenwrtigung, sendo o termo traduzido tambm por re-(a)presentao para no ser confundido com
representao (Vorstellung), j que a ltima palavra, aps Kant, agrupava todos os correlatos de atos sensveis,
intuitivos, distintos do juzo. Ver mais em RICUR, 2007, p. 62.
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Segundo Ricur (2007, p. 67), a distino que Bergson estabelece entre
lembrana pura (aquela que ainda no est posta em imagens, como a lio decorada) e
lembrana-imagem (que Bergson chama intermediria ou mista da lembrana) 12
constitui a
radicalizao da tese das duas memrias. Vemos assim que, para Bergson, uma percepo
no uma apresentao, mas tambm uma presentificao, ou melhor, iniciada com uma
lembrana pura que a lembrana-imagem, atravs do reconhecimento e da rememorao,
torna-se til, atualiza-se, torna-se presentificao.
Na contemporaneidade, como Huyssen mostra, a presentificao bastante aceita
e utilizada, mas tambm confundida com a apresentao:
No preciso muita sofisticao terica para ver que toda representao - seja em linguagem, narrativa, imagem, ou som gravado - baseada na memria. Re-(a)
presentao sempre vem depois, ainda que algumas mdias tentem nos dar a iluso
de presena pura. Mas ao invs de nos levar a alguma origem autntica ou nos dar
um acesso verificvel ao real, a memria, mesmo e especialmente em sua
extemporaneidade, em si baseada na representao. O passado no est
simplesmente na memria, mas deve ser articulado para se tornar memria. Ao invs
de lament-lo ou ignor-lo, esta diviso deveria ser entendida como um forte
estimulante para a criatividade cultural e artstica. (HUYSSEN, 1995, p. 2-3,
traduo nossa) 13
Tambm se deve a Husserl a atribuio fenomenolgica da diferena entre
reteno da fase do fluxo que mal acaba de passar e ainda adere ao presente e a relembrana
de fases temporais que deixaram de aderir ao presente vivo. Ricur (2007, p. 125) explica
que podemos aproxim-lo de Bergson quanto questo da continuidade e da metfora do
fluxo que jorra do agora, num ponto de atualidade. A transformao incessante do agora
em no mais e do ainda no num agora constitui-se em um fluxo nico. Alm disso, o
termo reteno empregado para dizer da durao (termo caro a Bergson) de algo e da
persistncia da fase atual na unidade do fluxo: uma tendncia geral da fenomenologia da
lembrana a reabsorver uma lembrana secundria na lembrana primria, verdadeiro anexo
temporal do presente (RICUR, 2007, p. 125).O que se observa que para a fenomenologia
12
[...] to logo se transforma em imagem, o passado deixa o estado de lembrana pura e se confunde com uma certa parte de meu presente. A lembrana atualizada em imagem difere assim profundamente dessa lembrana
pura. A imagem um estado presente, e s pode participar do passado atravs da lembrana da qual ela saiu. A
lembrana, ao contrrio, impotente enquanto permanece intil, no se mistura com a sensao e no se vincula
ao presente, sendo portanto inextensiva. (BERGSON, 2006, p.164) 13
It does not require much theoretical sophistication to see that all representation whether in language, narrative, image, or recorded sound is based on memory. Re-presentation always comes after, even though some media will try to provide us with the delusion of pure presence. But rather than leading us to some
authentic origin or giving us verifiable access to the real, memory, even and especially in its belatedness, is itself
based on representation. The past is not simply there in memory, but is must be articulated to become memory.
Rather than lamenting or ignoring it, this split should be understood as a powerful stimulant for cultural and
artistic creativity.
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chegar noo de memria comum passa-se inicialmente pela ideia do prprio, depois
experincia de outrem, para, finalmente, proceder experincia dita de comunitarizao da
experincia subjetiva; mesmo assim, o salto do eu ao ns ainda no dado. O conceito
sociolgico de conscincia coletiva na quinta Meditao Cartesiana, de Husserl, pode resultar
apenas de um processo secundrio de objetivao das trocas intersubjetivas 14
. Podemos
assim, atribuir a um ns, independente de seu titular, todas as prerrogativas da memria.
no reconhecimento do grupo que Halbwachs encontra a memria coletiva,
passando da ideia de intersubjetividades que se encontram, formando uma memria comum,
para a ideia de que a memria do meio interfere mais no sujeito do que o contrrio. O seu
livro A Memria Coletiva traz a anlise da conscincia coletiva que encontrou obstculos no
vocabulrio legado da tradio do olhar interior, por isso, o esforo em constituir um
vocabulrio novo, como a literatura e a arte j desenvolviam. Em uma poca dominada pela
reflexo sobre a memria e a lembrana, os conhecimentos cientfico, literrio e artstico
coincidiam em sua preocupao em atingir as mesmas regies da experincia coletiva e
individual 15
.
A parte central da obra de Halbwachs demonstra que impossvel conceber os
problemas da evocao e localizao das lembranas se no tomarmos para ponto de
aplicao os quadros sociais reais que servem de pontos de referncia na reconstruo da
memria. Assim, ao analisar a memria com grupos sociais e situaes concretas nas quais o
homem se encontra na vida cotidiana, o autor ultrapassa o pensamento de seus mestres da
Escola francesa (recebeu influncias de mile Durkheim, e Bergson, embora tenha dirigido
algumas crticas ao ltimo).
Na anlise dos quadros sociais da memria, Halbwachs (assim como toda a
segunda gerao da Escola francesa de Sociologia) vai do longnquo ao prximo: a partir de
uma anlise da experincia de pertencer a um grupo e na base do ensino recebido, que a
memria individual toma posse de si mesma. Nessa tese, apenas quando nos colocamos no
ponto de vista de um ou mais grupos ou quando nos situamos em uma ou mais correntes do
14 Ricur (2007, p.128) explica que para Husserl, numa empreitada de fenomenologia pura, para ter algo que dura, preciso uma auto constituio do fluxo temporal, que se ope ideia de uma constituio simultnea da memria individual e da memria coletiva. Somente em outro estgio da fenomenologia, com a quinta
Meditao cartesiana, na interseco da teoria da conscincia transcendental e a da intersubjetividade, que
Husserl tenta passar do ego solitrio a um outrem suscetvel de se tornar um ns, admitindo-se j a possibilidade da experincia temporal tornar-se compartilhada. Essa fenomenologia j mais aberta, onde tais
termos so utilizados leva ao limiar do que se poderia chamar de uma sociologia fenomenolgica. 15
Se faz necessrio alertamos que os conceitos de memria coletiva e quadros sociais da memria desenvolvidos a partir dos anos de 1920 e de histria, para Halbwachs, nos remetem ao contexto da primeira metade do sculo XX, antes do trmino da Segunda Guerra. Por isso sua crtica contundente direcionada
precisamente velha histria e no nova histria, da qual foi incentivador.
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pensamento coletivo, que temos a capacidade de nos lembrar. Alm disso, o captulo
Memria Coletiva e Memria Individual explica que deve haver ainda alguma identificao
da memria com o grupo (HALBWACHS, 2004, p. 38-39). Halbwachs (2004, p. 42) v como
impossvel uma memria estritamente individual, porque, mesmo de forma imperceptvel, e
desde a infncia, o indivduo se relaciona com as noes e imagens tomadas dos meios sociais
dos quais faz parte, pois at mesmo nosso nome e lngua ptria so memrias pr-concebidas.
Na tese de Halbwachs, para manter as suas lembranas interpessoais com o
grupo, e para confirmar ou precisar suas prprias lembranas que o indivduo se apia e,
muitas vezes, se confunde com a memria coletiva, pois toda histria de nossa vida faz parte
da histria em geral (HALBWACHS, 2004, p.59). Para o autor, a memria coletiva, por sua
vez, envolve as memrias individuais, mas no se confunde com elas, abrange um campo bem
mais amplo. Assim, na tese sociolgica, um mesmo indivduo possui duas memrias distintas:
a memria interior (chamada tambm de interna, pessoal, ou autobiogrfica) e outra memria
exterior (social, histrica).
Para o autor, ao fazer parte de vrios grupos, inclusive possivelmente conviver
com ideias opostas, o indivduo no est, necessariamente, sujeito s suas influncias diretas,
nem sob a dependncia exclusiva de nenhuma das influncias sociais. No entanto,
entendemos que uma proposio como a de Halbwachs considera como homogneos os
grupos sociais, incapazes de distinguir ou privilegiar o indivduo, o pensamento individual.
Por isso, essas noes so questionveis, como veremos mais adiante.
Halbwachs tambm introduz a diferena, como supe o prprio ttulo do captulo
II, entre Memria Coletiva e Memria Histrica, com uma linha divisria muito mais rgida
que aquela que separava e a propsito poderia entrelaar memria pessoal e memria
coletiva. Ele critica o descompasso entre a memria vivida e a histria ensinada nas escolas,
exterior e morta, ligada s datas e aos calendrios como uma inquietante estranheza do
passado histrico. Halbwachs funda a ideia de vnculo transgeracional, baseado inicialmente
no ncleo familiar e posteriormente nos grupos sociais dos quais o indivduo faz parte, e
tambm na histria vivida 16
. Entendo que a noo de vnculo transgeracional foi
fundamental para os discursos pautados no mbito do familiar para contar histrias universais,
ou seja, que localizam um discurso em uma histria maior. As imagens da Segunda Guerra,
por exemplo, so atraentes porque se apoiam no vnculo contemporneo entre geraes e em
16
No na histria aprendida, na histria vivida que se apoia nossa memria. Por histria preciso entender ento no uma sucesso cronolgica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um perodo
se distinga dos outros, e cujos livros e narrativas no nos apresentam em geral seno um quadro bem
esquemtico e incompleto. (HALBWACHS, 2004, p.64)
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particular entre a gerao velha e a nova, entre avs e netos, muitas vezes pulando a gerao
problemtica dos pais que se encontra no meio (WINTER, 2006, p. 80). Para Winter esse
vnculo tambm foi um fator que contribuiu para o boom de memria do fim do sculo XX.
A memria coletiva, explica Halbwachs (2004, p.113), uma corrente de
pensamento contnuo, no tem em seu desenvolvimento linhas nitidamente marcadas, mas
limites irregulares e incertos: o presente no se ope ao passado, como dois perodos
histricos vizinhos. Alm disso, ela apresenta os grupos vistos de dentro e no ultrapassa a
durao de uma vida humana em mdia.
A histria, por sua vez, divide a sequncia dos acontecimentos cronologicamente,
com perodos determinados de acordo com interesses em jogo, obedecendo a uma necessidade
didtica de esquematizao. Isso ocorre porque a histria examina de fora os grupos e se fixa
em perodos longos. Alm da crtica s divises que ignoram completamente os perodos
entre os ditos acontecimentos histricos, Halbwachs faz a crtica confuso em um tempo
nico de histrias nacionais e locais que representam linhas de evoluo distintas e
passagem sbita de um estado que subsiste a outro, ressaltando que a histria
necessariamente um resumo e por isso que ela resume e concentra em poucos momentos
evolues que se estendem por perodos inteiros [...] (HALBWACHS, 2004, p.114). H
muitas memrias coletivas, no plural, outro ponto no qual elas se distinguem da histria.
Halbwachs conclui que a memria coletiva e histria no se confundem, e que a expresso
memria histrica no foi bem escolhida, pois associa dois termos que se opem. Com
Benjamin, desfaz-se a suposta diviso entre histria e memria, como bem observou
Seligmann-Silva:
O tempo para ele no vazio mas sim denso, poroso matrico. Nas suas mos a teoria da histria, antes ligada cincia da histria, passa a ser uma teoria da
Memria e assume os contornos de um trabalho mais prximo do artesanal, no qual o historiador deixa as marcas digitais na sua obra. O tempo deve deixar sua marca no espao; ele telrico, pesado: como nas esculturas e quadros de um Anselm
Kiefer. (SELIGMANN-SIVA. 2001. p. 366 apud DANZIGER, 2003, p. 70).
Salientamos que a memria coletiva se atm a um perodo menor de tempo, ela
tem certo limite, tendo em vista que a histria se fixa justamente a esses perodos a que a
memria coletiva no alcana mais. Por isso costuma-se dizer que a histria se interessa pelo
passado e no pelo presente, o que verdadeiramente o passado para ela, aquilo que no
est mais compreendido no domnio onde se estende ainda o pensamento dos grupos atuais
(HALBWACHS, 2004, p.114). nos depoimentos antigos, extrados dos escritos da poca,
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enfim, nos rastros dos grupos que no mais subsistem que o historiador se apoia, assim,
orienta Halbwachs:
Mas na escolha que deles faz, na importncia que lhes atribui, o historiador se deixa
guiar por razes que no tem nada a ver com a opinio de ento, porque esta opinio
no existe mais; no somos obrigados a lev-la em conta, no se tem medo que ela
venha a se chocar, com um desmentido. Tanto isso verdade que ele no pode
realizar sua obra seno com a condio de se colocar deliberadamente fora do tempo vivido pelos grupos que assistiram aos acontecimentos, que com eles tiveram
contato mais ou menos direto, e que deles podem se lembrar (HALBWACHS, 2004,
p.114).
Para Le Goff (2003, p.29), historiador pertencente Escola dos Annales na qual
dirigiu os estudos ligados Nova Histria, as duas constituem tipos distintos de histria: a
da memria coletiva e a dos historiadores. A primeira essencialmente mtica, deformada,
anacrnica, mas constitui o vivido desta relao nunca acabada entre o presente e o passado.
Le Goff (2003, p.47) entende que o historiador deve respeitar o tempo que, sob diversas
formas, a condio da histria e que deve fazer corresponder seus quadros de explicao
cronolgica durao do vivido. Aceita com prestgio na literatura e nas artes, o historiador
v o anacronismo na histria, no entanto, com certa desconfiana, porm, mais adiante o
mesmo autor indica que a memria criao do presente (LE GOFF, 2003, p.51), o que j
supe anacronismo.
Halbwachs (2004, p.75-76) compartilha dessa noo de lembrana como uma
reconstruo do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, preparada por
outras reconstrues em pocas anteriores, de onde a imagem de outrora manifestou-se j
bem alterada. Ao colocar em questo a participao da imaginao na reconstruo de nosso
passado, Halbwachs analisa que o que ocorre no um simples preenchimento das lacunas da
memria pela imaginao no interior do indivduo, mas uma busca na sociedade, no exterior,
por essas indicaes: No esquecemos nada, porm, esta proposio pode ser entendida em
sentidos diferentes (HALBWACHS, 2004, p.81). Se no horizonte delineia-se um desejo de
uma memria integral, como em vrios autores contemporneos seus, a Bergson que ele
dirige uma crtica para demonstrar uma dessas interpretaes refutveis:
Para Bergson, o passado permanece inteiramente dentro de nossa memria, tal como
foi para ns; porm alguns obstculos, em particular o comportamento de nosso
crebro, impedem que evoquemos dele todas as partes. Em todo caso, as imagens
dos acontecimentos passados esto completas em nosso esprito (na parte inconsciente de nosso esprito) como pginas impressas nos livros que poderamos
abrir, ainda que no os abrssemos mais. Para ns, ao contrrio, no subsistem em
alguma galeria subterrnea de nosso pensamento, imagens completamente prontas,
mas na sociedade, onde esto todas as indicaes necessrias para reconstruir tais
partes de nosso passado, as quais nos representamos de modo incompleto ou
indistinto, ou que, at mesmo, cremos que provm completamente de nossa memria
(HALBWACHS, 2004, p.81).
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Tambm o tempo definido no mais como percepo apenas interior, mas
tambm coletiva, considerando os encadeamentos da natureza e dos organismos, as duraes
e as divises do tempo resultantes de convenes e costumes, pois exprimem a ordem das
etapas da vida social. Do ponto de vista bergsoniano, a noo de um tempo universal, que
envolve todas as existncias, todas as sries sucessivas de fenmenos, traduzir-se-ia por uma
srie descontnua de momentos. Cada um deles corresponderia a uma relao estabelecida
entre vrios pensamentos individuais, que dela tomariam conscincia simultaneamente
quando se encontrassem.
Para Halbwachs (2004, p.105), alm de improvvel e muito abstrata, essa ideia na
qual consiste a simultaneidade faz-nos entender o tempo como uma criao artificial obtida
somente das duraes individuais, ignorando o espao e os objetos exteriores. No tempo
coletivo haveria o mesmo nmero de duraes e indivduos, enquanto na durao individual,
haveria um tempo abstrato que compreenderia todas as duraes. As divises traadas de
vrias duraes individuais se cruzam e no se confundem com os estados simultneos.
Halbwachs pontua ainda a relao da memria coletiva com o espao, o poder do
quadro espacial sobre um grupo. O autor retira do tempo seu privilgio de dado imediato da
conscincia, e passa a analisar, junto nova sociologia, fatos humanos, responder s
perguntas reais do homem vivo em seu meio social, no lugar de problemas abstratos que at
ento eram investigados. O espao aqui pode ser entendido tanto como os materiais, objetos
da vida cotidiana, seu meio prximo, como tambm de extenses maiores nas quais os grupos
se fixam, como a cidade. Baseado em Auguste Comte, o autor reafirma que o equilbrio
mental em boa parte se deve ao fato de que os objetos materiais com os quais estamos em
contato dirio mudam pouco, e nos oferecem uma imagem de permanncia e estabilidade.
Assim, ele analisa que mesmo fora de casos patolgicos, antes de nos adaptarmos a um novo
ent