Dissertação Alice Costa Souza

201
Alice Costa Souza IMAGENS DE MEMÓRIA/ESQUECIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Belas Artes Mestrado em Artes 2012

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Artes.

Transcript of Dissertação Alice Costa Souza

  • Alice Costa Souza

    IMAGENS DE

    MEMRIA/ESQUECIMENTO

    NA CONTEMPORANEIDADE

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Escola de Belas Artes

    Mestrado em Artes

    2012

  • Alice Costa Souza

    IMAGENS DE

    MEMRIA/ESQUECIMENTO

    NA CONTEMPORANEIDADE

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Artes da Escola de Belas

    Artes da Universidade Federal de Minas

    Gerais, como requisito parcial obteno

    do ttulo de Mestre em Artes.

    rea de Concentrao: Arte e Tecnologia

    da Imagem.

    Orientadora Profa. Dra. Maria Anglica Melendi de Biasizzo

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Escola de Belas Artes

    Mestrado em Artes

    2012

  • Para todos...

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a toda a minha famlia pelo apoio e especialmente mame, Ana Rita, e ao papai,

    Clio (in memorian) pelo incentivo incondicional aos estudos e arte desde as minhas

    primeiras garatujas;

    Piti, minha orientadora, pelo conhecimento transferido, conversas e apontamentos

    preciosos;

    A todos os professores da Escola de Belas Artes pela oportunidade concedida, por seus

    ensinamentos, especialmente, Mabe Bethnico e Maria do Carmo Freitas Veneroso pelas

    observaes no exame de qualificao;

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela bolsa

    concedida;

    D. Zina e demais funcionrios da Escola de Belas Artes pela ateno e presteza sempre que

    solicitados;

    Ao Grupo de estudos Estratgias da Arte numa Era de Catstrofes e demais colegas de curso

    pelas trocas proporcionadas e pelo acolhimento sereno;

    Ao Prof. Rogrio Luz, pelas importantes contribuies desde aulas inspiradoras, tradues,

    at material indito em minha breve passagem como aluna especial no Programa de Ps-

    Graduao do Instituto de Artes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ);

    Aos amigos e professores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pela qual me

    graduei, especialmente Edna Rezende (orientadora de minha monografia) e Afonso

    Rodrigues, os quais compuseram a banca de bacharelado: sem os seus ensinamentos e

    incentivos, talvez eu no prosseguiria na carreira acadmica.

    Leila Danziger, pelo mesmo motivo acima e pela sua imensa generosidade e

    disponibilidade em colaborar com a dissertao, alm do dulor e da potncia de seus

    trabalhos desveladores.

    Rosngela Renn, por sua arte esclarecer to bem pontos antes obscuros sobre a memria e

    o esquecimento.

    Ao meu amor e melhor amigo, pela fora, pacincia e estmulo.

    Aos meus queridos e genunos amigos que, a despeito do recolhimento neste perodo,

    mantiveram o afeto e a torcida pelo meu sucesso nesta etapa.

  • Sob a histria, a memria e o esquecimento.

    Sob a memria e o esquecimento, a vida.

    Mas escrever a vida outra histria.

    Inacabamento.

    (Paul Ricur)

  • RESUMO

    A arte, ao misturar-se com a vida, atende ao dever de memria exigido aps a Shoah e

    desenvolve estratgias diante do desafio da representao da catstrofe. Para isso,

    fundamental compreender a relao complexa com a temporalidade pela qual passou o sculo

    XX at chegar cultura de memria e abertura dos arquivos proibidos. Se a histria

    recente mostrou grandes apagamentos, a arte demonstra que a imagem a elaborar-se a de um

    par indissocivel: memria/esquecimento. As estratgias que se esboaram revelam essas

    negociaes tensas com a histria: fragmentao da linguagem, atrair pela angstia,

    presentificao, e a insero da palavra na arte. Destacou-se tambm o uso frequente da

    potica do branco em tais imagens. As obras de Rosngela Renn e Leila Danziger, entre

    outros artistas, foram essenciais nessa anlise.

    Palavras-chave: Memria, esquecimento, temporalidade, arquivo, arte, contemporaneidade.

  • ABSTRACT

    Art, once it mixes with life, fulfills its duty of memory demanded after the Shoah, and

    develops strategies to meet the challenge of representing the catastrophe. For that, it is

    fundamental to understand the complex relation of temporality that the 20th century went

    through, arriving at a culture of memory and the opening of the forbidden files. If recent

    history revealed great disremember, art shows that the image to be drawn up is of an

    inseparable pair: memory/forgetfulness. The strategies outlined reveal these tense negotiations

    with history: the fragmentation of language, attracting through anguish, re-presentation, and

    the insertion of the word in art. The frequent use of poetics of white in those images is also of

    prominence. The works of Rosngela Renn and Leila Danziger, among other artists, were

    essential in this analysis.

    Keywords: Memory, forgetfulness, temporality, file, art, contemporaneity.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    FIGURA 1 - Pierre Bonnard, A toalete da manh ................................................................. 20

    FIGURA 2 - Pierre Bonnard, Autorretrato no espelho do toalete ......................................... 20

    FIGURA 3 - Paul Klee, Angelus Novus ................................................................................ 22

    FIGURA 4 - Peter Eisenman, Monumento aos Judeus Assassinados da Europa . ................. 58

    FIGURA 5 - Monumento aos Judeus Assassinados da Europa...............................................59

    FIGURA 6 - Monumento aos Judeus Assassinados da Europa ............................................. 59

    FIGURA 7 - Jochen Gerz, Memorial contra o Racismo ........................................................ 60

    FIGURA 8 - Saarbrcken, Local do Memorial contra o Racismo ......................................... 60

    FIGURA 9 - Gunter Demnig, Stolperstein ............................................................................ 61

    FIGURA 10 - Gunter Demnig, Stolperstein .......................................................................... 61

    FIGURA 11 - Anselm Kiefer, Nuremberg ............................................................................ 67

    FIGURA 12 - Artur Barrio, Trouxas ensanguentadas ........................................................... 69

    FIGURA 13 - Zbigniew Libera, Lego - Concentration Camp ............................................... 69

    FIGURA 14 - Caspar David Friedrich, Viajante acima do mar de nvoas ............................ 71

    FIGURA 15 - Caspar David Friedrich, Capuchin Friar By The Sea ..................................... 71

    FIGURA 16 - Anselm Kiefer, Heroische Sinnbilder............................................................. 71

    FIGURA 17 - Arte Callejero, Antimonumento a Roca .......................................................... 74

    FIGURA 18 - Fotografia de famlia prxima a uma vala comum .......................................... 76

    FIGURA 19 - Obiturio de desaparecidos polticos no Pgina 12. ....................................... 76

    FIGURA 20 - Revista chilena durante a proibio de publicar fotografias em 1984 .............. 79

    FIGURA 21 - Revista chilena durante a proibio de publicar fotografias em 1984 .............. 79

    FIGURA 22 - Luis Navarro, Missa por Lonqun .................................................................. 80

    FIGURA 23 - Luis Navarro, (s/t), fotografia do pai de Navarro . .......................................... 81

    FIGURA 24 - Christian Boltanski, Dez retratos de Christian Boltanski, 1972. ..................... 83

    FIGURA 25 - Guinaldo Nicolaevsky, Menina nega a mo ao presidente Figueiredo ........... 83

    FIGURA 26 - Christian Boltanski, Kaddish ......................................................................... 85

    FIGURA 27 - Christian Boltanski, Menschlich, 1994 / Rserve: Les Suisses morts .............. 85

    FIGURA 28 - Arte Callejero, Carteles viales ....................................................................... 86

    FIGURA 29 - Arte Callejero, Aqui viven genocidas.. ........................................................... 86

    FIGURA 30 - Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, Monumento contra o Facismo ................. 87

    FIGURA 31 - Jochen Gerz, Monumento (aos mortos) vivo ................................................... 87

  • FIGURA 32 - Daniel Libeskind, Projeto do Memory Foundations. ...................................... 88

    FIGURA 33 - Vista do Museu e o One World Trade Centre................................................. 88

    FIGURA 34 - Michael Arad e Peter Walker, Memorial Nacional 11 de Setembro. ............... 89

    FIGURA 35 - Xu Bing preparando a obra Onde a Poeira se coleta. ..................................... 91

    FIGURA 36 - Xu Bing, Onde a poeira se coleta .................................................................. 91

    FIGURA 37 - Gabriel Orozco, Ilha dentro de uma ilha. ....................................................... 92

    FIGURA 38 - Fritz Koenig, Esfera ...................................................................................... 93

    FIGURA 39 - Fritz Koenig, Esfera ...................................................................................... 93

    FIGURA 40 - Rosngela Renn, Srie Vulgo ....................................................................... 94

    FIGURA 41 - Rosngela Renn, Srie Vulgo ....................................................................... 96

    FIGURA 42 - Rosngela Renn, Three Holes (da srie Vulgo) ............................................. 96

    FIGURA 43 - Rosngela Renn, Vulgo/Texto ...................................................................... 97

    FIGURA 44 - Rosngela Renn, Vulgo/Texto ...................................................................... 97

    FIGURA 45 - Rosngela Renn, Srie Vulgo. ...................................................................... 98

    FIGURA 46 - Rosngela Renn, Number (da srie Vulgo) ................................................... 98

    FIGURA 47 - Polcia Militar rende todos os presos e pe fim rebelio no Complexo

    Penitencirio do Carandiru. ................................................................................................ 105

    FIGURA 48 - Corpos numerados dos detentos mortos no massacre ................................... 105

    FIGURA 49 - Rosngela Renn, Arquivo Universal........................................................... 107

    FIGURA 50 - Mira Schendel, Sem ttulo (da srie Monotipias) .......................................... 115

    FIGURA 51 - Mira Schendel, Sem ttulo (da srie Objeto Grfico) .................................... 115

    FIGURA 52 - Mira Schendel, Sem ttulo (Disco)................................................................ 118

    FIGURA 53 - Mira Schendel, Sem ttulo (Toquinhos) ........................................................ 118

    FIGURA 54 - Maril Dardot, Entre Ns ............................................................................. 119

    FIGURA 55 - Maril Dardot, O Livro de Areia. ................................................................. 120

    FIGURA 56 - Maril Dardot. O Banquete .......................................................................... 120

    FIGURA 57 - Hilal Sami Hilal, Biblioteca. ........................................................................ 121

    FIGURA 58 - Hilal Sami Hilal, Sala do amor/Sala da dor ................................................. 122

    FIGURA 59 - Hilal Sami Hilal, Sherazade ......................................................................... 123

    FIGURA 60 - Hilal Sami Hilal, Biblioteca ......................................................................... 123

    FIGURA 61 - Hilal Sami Hilal, Biblioteca ......................................................................... 123

    FIGURA 62 - Anselm Kiefer, Your Golden HairMargarethe ............................................. 124

    FIGURA 63 - Anselm Kiefer, Quebra dos vasos ................................................................ 125

    FIGURA 64 - Anselm Kiefer, Quebra dos vasos ................................................................ 125

  • FIGURA 65 - Micha Ullman, Biblioteca ............................................................................ 127

    FIGURA 66 - Ansel Kiefer, Terra de dois rios (ou Mesopotmia) ..................................... 128

    FIGURA 67 - Rachel Whiteread, Untitled (Stacks) ............................................................ 128

    FIGURA 68 - Rachel Whiteread, Memorial to the Victims of the Holocaust ....................... 128

    FIGURA 69 - Rachel Whiteread, Memorial to the Victims of the Holocaust ....................... 128

    FIGURA 70 - Michael Arad, Memorial Nacional 11 de Setembro. ..................................... 129

    FIGURA 71 - Michael Arad, Memorial Nacional 11 de Setembro ...................................... 129

    FIGURA 72 - Jochen Gerz, Testemunhas, 1997-1998. ....................................................... 130

    FIGURA 73 - Marcelo Brodsky, Buena Memoria, Los Compaeros .................................. 132

    FIGURA 74 - Antnio Manuel, Flan ................................................................................. 133

    FIGURA 75 - Jenny Holzer, Chicago ................................................................................. 135

    FIGURA 76 - Stphane Mallarm, Un coup de ds jamais nabolira le hasard .................. 138

    FIGURA 77 - Kasimir Malevich, Quadrado Branco Sobre Fundo Branco ......................... 140

    FIGURA 78 - Robert Ryman, Conjunto Quatro gua-fortes e uma Gravura ...................... 142

    FIGURA 79 - Agnes Martin, Milk River ............................................................................ 143

    FIGURA 80 - Agnes Martin, Untitled #8 ........................................................................... 143

    FIGURA 81 - Mira Schendell, Sem ttulo (da srie Cortes e Letras IV) .............................. 145

    FIGURA 82 - Mira Schendel, Datiloscritos. ...................................................................... 145

    FIGURA 83 - Hlio Oiticica, Parangol Capa 23 P30 Mway Ke ...................................... 148

    FIGURA 84 - Rosana Palazyan, ...uma histria que voc nunca mais esqueceu? ........... 151

    FIGURA 85 - Rosana Palazyan, ...Antes Eu S Pensava em Maconha e Roupa de Marca,

    mas Vi Minha Me Indo Presa Junto Comigo. Agora Quero Parar... ............................... 151

    FIGURA 86 CADA, Para no morir de hambre en el arte ............................................... 152

    FIGURA 87 CADA, Para no morir de hambre en el arte ............................................... 153

    FIGURA 88 - Robert Rauschenberg, Erased De Kooning Drawing. ................................... 154

    FIGURA 89 - Anselm Kiefer, Siegfried vergit Brunhilde. ................................................ 156

    FIGURA 90 - Anselm Kiefer, Women of antiquity ............................................................. 156

    FIGURA 91 - Rosngela Renn, Experincia de Cinema ................................................... 157

    FIGURA 92 - Rosngela Renn, Experincia de Cinema ................................................... 157

    FIGURA 93 - Rosngela Renn, 2005 - 510117385 5 ..................................................... 159

    FIGURA 94 - Rachel Whiteread, House . ........................................................................... 161

    FIGURA 95 - Rachel Whiteread, Memorial to the Victims of the Holocaust. ...................... 161

    FIGURA 96 - Arte Callejero, Blancos Mbiles. ................................................................. 162

    FIGURA 97 - Leila Danziger, Nomes Prprios. ................................................................. 163

  • FIGURA 98 - Leila Danziger, Nomes Prprios. ................................................................. 165

    FIGURA 99 - Leila Danziger, Nomes Prprios. ................................................................. 165

    FIGURA 100 - Leila Danziger, Greifwaldstr. 138 (da srie Nomes Prprios). ................... 167

    FIGURA 101 - Leila Danziger, Lembrar/ Esquecer ........................................................... 169

    FIGURA 102 - Leila Danziger, Para-ningum-e-nada-estar .............................................. 172

    FIGURA 103 - Leila Danziger, Para-ningum-e-nada-estar. ............................................. 172

    FIGURA 104 - Leila Danziger, Pequenos Imprios ............................................................ 175

    FIGURA 105 - Leila Danziger, Pallaksch. Pallaksch.(da srie Dirios Pblicos). ......... 176

    FIGURA 106 - Leila Danziger, Trs minutos e meio entre a lembrana e o esquecimento.. 177

    FIGURA 107 - Leila Danziger, Pallaksch. Pallaksch. (da srie Dirios Pblicos) ......... 178

    FIGURA 108 - Leila Danziger, Pallaksch. Pallaksch(da srie Dirios Pblicos)............ 179

  • SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................... 13

    1 MEMRIA CONTEMPORNEA.............................................................. 16

    1.1 Memria/esquecimento na contemporaneidade................................................ 16

    1.2 Memria pessoal, memrias coletivas.............................................................. 28

    1.3 O mal de arquivo: o mal do sculo................................................................ 41

    1.4 Memria, esquecimento e seus abusos............................................................. 49

    2 MEMRIA/ESQUECIMENTO NA ARTE CONTEMPORNEA.......... 65

    2.1 Memria/esquecimento: algumas estratgias da arte........................................ 65

    2.2 Arte da memria contempornea, arte do esquecimento.................................. 75

    2.3 A arte amnsica de Rosngela Renn............................................................... 94

    3 IMAGENS, ESPAOS E ESCRITURAS EM SEUS VNCULOS COM

    O TRABALHO DE MEMRIA/ESQUECIMENTO.................................

    111

    3.1 Palavra, imagem, memria/esquecimento........................................................ 111

    3.2 Branco na memria ou Visibilidade ao invisvel.............................................. 136

    3.2.1 O branco e a potica do desaparecimento......................................................... 154

    3.3 Entre Arquivos Prprios e Pblicos, a arte de Leila Danziger......................... 163

    CONCLUSO................................................................................................. 181

    REFERNCIAS.............................................................................................. 187

  • 13

    INTRODUO

    Esta dissertao foi motivada inicialmente pelo trabalho de concluso de curso

    apresentado ao departamento de Artes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com o

    nome Fragmentos de Pretrito, homnimo da obra com a qual dei incio minha produo

    plstica investigando a memria e o esquecimento. Tambm foram desenvolvidos

    paralelamente alguns trabalhos artsticos. No entanto, optei por no apresent-los nos

    resultados, por considerar que necessitam de mais tempo e ateno para serem expostos ao

    pblico. Mas, sem dvidas, eles formam material ativo de trocas recprocas com a presente

    dissertao.

    Nosso interesse pela memria, tema central da dissertao, recai principalmente

    sobre o sculo XX, no apenas por ser nossa histria recente, mas porque desde suas ltimas

    dcadas passamos por uma febre de memria que desencadeou discusses importantes acerca

    da possibilidade de representao. Esse desejo compulsivo e utpico de tudo lembrar,

    impulsionado pelos arquivos (e a infindvel possibilidade de armazenamento eletrnico que

    temos hoje), alm de rastros e restos diversos como prova documental, a saber, inflou uma

    nova empreitada na busca pela verdade por parte de alguns historiadores. Entre excesso e

    exceo, descobriram-se grandes lacunas, dentre apagamentos ou silenciamentos na histria.

    Reconhecia-se, assim, um par indissocivel: memria/esquecimento.

    Assim, o captulo MEMRIA CONTEMPORNEA, que poderia compreender

    um grande nmero de aspectos da memria, foi dividido nas sees Memria/esquecimento

    na contemporaneidade, Memria pessoal, memrias coletivas; O mal de arquivo: o mal do

    sculo; Memria, esquecimento e seus abusos, temas essenciais que tiveram no sculo XX

    abordagens inovadoras sobre a memria e que vem sendo discutida por diversos artistas

    contemporneos. Memria/esquecimento na contemporaneidade contextualiza e apresenta

    alguns desses conceitos em torno da memria com base na leitura, sobretudo, de Seduzidos

    pela Memria de Andreas Huyssen; A Histria, a memria, o esquecimento, de Paul Ricur;

    e Histria e Memria de Jacques Le Goff. Na seo Memria pessoal, memrias coletivas,

    abordo a passagem da memria vista estritamente como pessoal, conforme supunham aqueles

    da tradio do olhar interior Santo Agostinho, John Locke, Edmund Husserl, Henri Bergson

    memria primordialmente coletiva, como props Maurice Halbwachs. ressaltada, no

    entanto, a impossibilidade dessa dicotomia (como de vrias outras no sculo XX) como

    ensinou Ricur. Em O mal de arquivo: o mal do sculo discorremos sobre a revoluo

  • 14

    documental e a febre de memria que invade o campo cultural a partir da dcada de 1980,

    despertando na Histria grande interesse revisionista e reconhecendo documentos no escritos

    como importantes materiais. A seo Memria, esquecimento e seus abusos relata o

    despertar da nova histria para o quanto pretensiosa a investigao pela verdade, mas, ao

    mesmo tempo, necessria, impulsionada por um dever de memria, que tambm um dever

    de justia. Tambm nesse captulo, na busca por uma imagem de memria, a leitura de

    Matria e Memria, de Henri Bergson, foi indispensvel desde o incio deste trabalho. Outra

    leitura importante e que ecoa em muitas obras de arte contemporneas diz respeito s Teses

    Sobre o Conceito de Histria, de Walter Benjamin.

    No captulo MEMRIA/ESQUECIMENTO NA ARTE

    CONTEMPORNEA, a seo Memria/esquecimento: algumas estratgias da arte expe

    tais estratgias comuns no ps-guerra, que foram estendidas a outras memrias, que lidam

    com negociaes tensas entre histria, memria e esquecimento. Trabalhos contemporneos

    foram aqui analisados rapidamente, ilustrando tais estratgias: fragmentao da linguagem,

    atrair pela angstia e praticar a presentificao. Em Arte da memria contempornea, arte

    do esquecimento observada a constante presena da contestao histria oficial, no raro

    a arte requerendo um dever de justia e a participao do espectador, numa posio dialtica,

    como sugeria Theodor Adorno. Porm, na seo A arte amnsica de Rosngela Renn, que

    analisamos melhor as estratgias mencionadas, observando mais atentamente a proximidade

    entre as obras Arquivo Universal (desde 1992) e Vulgo (1998),

    O captulo IMAGENS, ESPAOS E ESCRITURAS EM SEUS VNCULOS

    COM O TRABALHO DE MEMRIA/ESQUECIMENTO foi separado do anterior por

    entender que, embora o uso de palavras na arte tambm se trata de uma estratgia, um

    assunto demasiado extenso, que merecia uma discusso maior. A seo Palavra, imagem,

    memria/esquecimento trata da insero de palavras e imagens em campos que antes do

    sculo XX se mantiveram por muito tempo indiferentes visualidade na poesia e, escrita

    nas artes; sua integrao aos discursos sobre memria/esquecimento foi o foco principal. A

    seo discorre desde trabalhos que se utilizam literalmente de jogos de palavras (que

    entendemos, tambm jogam com a memria do observador, refazendo o movimento da

    memria), passando pelos que recorrem citao, at aqueles mais contundentes na crtica

    barbrie e memria difcil. A seo Branco na memria ou Visibilidade ao invisvel

    destaca a visibilidade jamais antes dispensada ao branco em diversos aspectos na poesia e nas

    artes. Tambm se destaca como potica, que vai desde a pura visualidade crtica como

    metfora do apagamento histrico ou do indizvel - quando aparece como potica,

  • 15

    desenvolvida melhor na subseo O branco e a potica do desaparecimento. As inmeras

    possibilidades do branco e da liberdade de associaes que infere foram o principal motivo

    pelo qual a elegi como a cor (ou no-cor) da memria/esquecimento. Para finalizar, na seo

    Entre Arquivos Prprios e Pblicos, a arte de Leila Danziger, analiso dois trabalhos desta

    artista, as sries Nomes Prprios (1997-1998) e Dirios Pblicos (obra em processo desde

    2001), que, de certa forma, trafegam por grande parte do contedo exposto ao longo desta

    dissertao.

    Assim como a arte contempornea, evitamos classificaes e reconhecemos as

    aporias que determinadas memrias inferem, nos preocupamos mais em lanar questes,

    deixando-as em aberto para que o prprio leitor faa algumas associaes sugeridas no

    decorrer de nossa escrita. Nosso objetivo principal demonstrar que h um conjunto de

    estratgias que foram e so ainda utilizadas nos discursos sobre o par memria/esquecimento

    aps Auschwitz, e tambm como artista-pesquisadora, melhor compreend-las e utiliz-las

    em meus trabalhos artsticos, obviamente, sem julg-las como frmulas pr-estabelecidas.

  • 16

    1 MEMRIA CONTEMPORNEA

    Os tempos modernos no comeam de uma vez por todas.

    Meu av j vivia uma poca nova.

    Meu neto talvez ainda viva na antiga. (BRECHT)

    1.1 Memria/esquecimento na contemporaneidade

    Durante o sculo XX se expandem muito os conceitos em torno da memria,

    conforme demonstra o grande nmero de pesquisas em campos diversos (como a psicologia, a

    psiquiatria, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia) que evidenciam trocas recprocas

    que as aproxima da esfera das cincias humanas e sociais. A teoria da memria perpassa

    variados debates relacionados a essas cincias humanas. Nas ltimas dcadas do sculo XX

    esse interesse culmina com o que considerado um boom de memria (HUYSSEN, 2000,

    p. 14; WINTER, p. 67).

    Pesquisa, salvamento, exaltao da memria coletiva no mais nos acontecimentos

    mas ao longo do tempo, busca dessa memria menos nos textos do que nas palavras,

    nas imagens, nos gestos, nos ritos e nas festas; uma converso do olhar histrico.

    Converso partilhada pelo grande pblico, obcecado pelo medo de uma perda de

    memria, de uma amnsia coletiva, que se exprime desajeitadamente na moda retr,

    explorada sem vergonha pelos mercadores de memria desde que a memria se tornou um dos objetos da sociedade de consumo que se vende bem. (LE GOFF,

    2003, p.466)

    Tal emergncia da memria como uma das preocupaes culturais e polticas

    centrais das sociedades ocidentais ressaltada por Andreas Huyssen em Seduzidos pela

    Memria (2000), onde aponta o nascimento de uma cultura e de uma poltica de memria e

    sua expanso global a partir da queda do Muro de Berlim, do fim das ditaduras latino-

    americanas e do fim do apartheid na frica do Sul. Tais eventos assinalam o papel-chave das

    memrias traumticas e do imaginrio urbano na atual transformao da experincia de

    espao e tempo. Huyssen contrasta esse fenmeno com a cultura de modernidade das

    primeiras dcadas do sculo XX:

    Desde os mitos apocalpticos de ruptura radical do comeo do sculo XX e a

    emergncia do homem novo na Europa, atravs das fantasmagorias assassinas de purificao racial ou de classe, no Nacional Socialismo e no stalinismo, ao

    paradigma de modernizao norte-americano, a cultura modernista foi energizada

    por aquilo que poderia ser chamado futuros presentes. No entanto, a partir da dcada de 1980 o foco parece ter-se deslocado dos futuros presentes para os

  • 17

    passados presentes; este deslocamento na experincia e na sensibilidade do tempo

    precisa ser explicado histrica e fenomenologicamente. (HUYSSEN, 2000, p.9)

    Huyssen (2000, p.12) nos fala de uma globalizao da memria iniciada com o

    trauma do Holocausto, lugar-comum universal, alm de muitas outras tramas secundrias que

    contrastam com o incio do sculo XX. Dentre essas tramas, Huyssen (2000, p.14) destaca a

    restaurao historicizante de velhos centros urbanos, cidades-museus e paisagens inteiras,

    empreendimentos patrimoniais e heranas nacionais, a arquitetura de museus. Alm disso, as

    modas retr e os utenslios repr, a comercializao em massa da nostalgia, a obsessiva

    automusealizao atravs da cmera de vdeo e fotografia (principalmente desde que foram

    banalizadas em diversos dispositivos eletrnicos), assim como dos sites na Internet, e dos

    arquivos eletrnicos. Tambm destaca a literatura memorialista e confessional, o crescimento

    dos romances autobiogrficos e histricos ps-modernos, a difuso das prticas

    memorialsticas nas artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, e o aumento

    do nmero de documentrios na televiso. A esse frenesi da memria Jacques Derrida (2001,

    p.9) se refere como a espera sem horizonte acessvel, a impacincia absoluta de um desejo de

    memria, atravs do que ele chama de mal de arquivo.

    Huyssen (2000, p. 15) se pergunta se haveria a algo de um arquivista maluco

    ou se h, [...] talvez, algo mais nesse desejo de puxar todos esses vrios passados para o

    presente [...] que seja, de fato, especfico estruturao da memria e da temporalidade de

    hoje e que no tenha sido experimentada do mesmo modo nas pocas passadas. Essa

    pergunta se torna central neste captulo.

    Se considerarmos as histrias alternativas reivindicadas no incio do sculo,

    podemos responder que sim e nos precipitarmos em dizer que o algo mais estaria em

    reconhecer e atribuir ao presente o tempo da memria. No entanto, essa proposio no

    especfica de nosso tempo: no sculo IV Santo Agostinho j conferia ao presente a ao da

    memria, muito embora ainda hoje parea prevalecer para o senso comum a crena na (ainda

    mais) remota frase de Aristteles (apud RICUR, 2007, p.35) que diz que a memria do

    passado. Mas nem por isso a resposta pode ser descartada: o deslocamento do passado para o

    presente de fato uma conquista no campo da filosofia, da sociologia e da historiografia, nas

    quais essa noo expandida e passa a ser mais aceita somente no sculo XX atravs dos

    escritos dos defensores de uma nova histria que privilegia os acontecimentos do tempo

    vivido, durao ou experincia vivida, na expresso de Henri Bergson (2006, p.73 e

    p.170). Mas, esse deslocamento constitui-se apenas em uma pequena parcela de uma resposta

  • 18

    muito mais complexa. De qualquer forma, a problemtica da temporalidade um indicativo

    que pode nos levar s vrias respostas que a pergunta de Huyssen suscita.

    A relao com a temporalidade se d de forma muito particular no sculo XX,

    mas veremos que o contraste entre o incio e o fim do sculo, do qual nos falara Huyssen, no

    ocorre repentinamente. importante ressaltar que ao mesmo tempo em que o senso comum

    fazia tbula rasa do passado espera de um futuro com progressos, os regimes nacionalistas

    desde sua emergncia j apoiavam a permanncia da histria clssica, alm da averso arte e

    arquitetura modernas. Essa velha histria, que exalta heris do passado, est desvinculada

    do tempo presente, apoiada unicamente em documentos do passado; logo, uma histria sem

    testemunhas vivas.

    Nesse contexto so escritas crticas pioneiras a respeito da funo da histria,

    como as Teses Sobre o Conceito da Histria, de 1940, de Walter Benjamin, atendendo ao

    apelo por uma nova histria requerida tambm por outros intelectuais da poca e mesmo de

    sculos precedentes 1. Dentre aqueles que reivindicavam um novo olhar sobre a temporalidade

    e a memria em relao histria do presente, alm de Benjamin, podemos citar Bergson,

    Halbwachs, Benedetto Croce, Pierre Nora, Eric Hobsbawm, Gilles Deleuze, Derrida, a escola

    dos Annales 2, dentre outros. Alguns desses autores viriam a ter seus textos censurados e

    seriam perseguidos ou mortos 3 pelos regimes totalitrios, o que contribuiu para que muitos de

    seus textos se tornassem mais acessveis apenas aps a queda desses regimes.

    Uma contribuio importante de Halbwachs em seu estudo sobre a memria

    coletiva mostra que ela guarda a lembrana do grupo, sobretudo daquelas passagens que a

    Histria oficial negligencia como se nada acontecesse nos perodos entre os acontecimentos

    ditos histricos. E justamente centrado nesses perodos entre e no passado recente,

    1 Voltaire, nas suas Nouvelle considrations sur l' histoire (1744), pretendera uma 'histria econmica,

    demogrfica, das tcnicas e dos costumes e no s poltica, militar e diplomtica. Uma histria dos homens, de

    todos os homens e no s dos reis e dos grandes. Uma histria das estruturas e no s dos acontecimentos.

    Histria em movimento, histria das evolues e das transformaes e no histria esttica, histria-quadro.

    Histria explicativa e no apenas histria narrativa, descritiva ou dogmtica. Enfim, histria oral [...] (Le Goff, 1978, p. 223, apud LE GOFF, 2003, p. 122). Tambm Karl Marx foi fundamental para as noes sociais e

    histricas que se desenvolveriam no sculo XX. 2 Considera-se a fundao da revista Annales (Annales d'Histoire conomique et Sociale em 1929 e Annales:

    conomies, Societs, Civilisations em 1945), obra de Marc Bloch e Lucien Febvre, um ato que fez nascer a nova

    histria (Revel e Chartier, 1978; Allegra e Torre, 1977, Cedronio et al., 1977). As ideias da revista inspiraram a

    fundao, em 1947, por Lucien Febvre (morto em 1956), de uma instituio de investigao e de ensino de

    investigao em cincias humanas e sociais, a sexta seo (das cincias econmicas e sociais) [...]. (LE GOFF, 2003, p.129). 3 Benjamin escreve em 1940 as Teses sobre o conceito da histria em Paris s vsperas da invaso das tropas

    alems e morre na tentativa de fuga na fronteira com a Espanha. Halbwachs foi encarcerado em julho de 1944 e

    em maro de 1945 executado no campo de concentrao de Buchenwald. O poeta Paul Celan teve os pais

    assassinados pelos alemes e o prprio chegou a trabalhar em um campo de concentrao em Tabaresti, na

    Romnia. Marc Bloch, resistente, foi fuzilado pelos alemes em 1944.

  • 19

    relacionado ao presente, que Benjamin prev a ascenso dos regimes totalitrios. O

    historiador Jacques Le Goff chama a ateno para a relao entre passado e presente pela qual

    passa o sculo XX:

    A ligao com o passado comea por adquirir formas inicialmente exasperadas,

    reacionrias; depois, a segunda metade do sculo XX, entre a angstia atmica e a

    euforia do progresso cientfico e tcnico, volta-se para o passado com nostalgia e,

    para o futuro, com temor ou esperana. Entretanto, na esteira de Marx, os

    historiadores esforaram-se por estabelecer novas relaes entre presente e passado.

    Marx tinha j denunciado o peso paralisado do passado de um passado reduzido exaltao das memrias gloriosas sobre os povos, por exemplo, o francs: O drama dos franceses, tal como o dos operrios, so as grandes memrias.

    necessrio que os acontecimentos ponham fim, de uma vez por todas, a este culto

    reacionrio do passado (1870, p.147), culto que, no fim do sculo XIX e incio do sculo XX, foi um dos elementos essenciais das ideologias de direita e uma das

    componentes das ideologias fascistas e nazistas.

    Ainda hoje, o culto pelo passado alia-se ao conservantismo social, identificando-o

    Pierre Bordieu com categorias sociais em declnio [...].

    A acelerao da histria, por outro lado, levou as massas dos pases industrializados

    a ligarem-se nostalgicamente s suas razes: da a moda retr, o gosto pela histria e

    pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia, criadora de

    memrias e recordaes, o prestgio da noo de patrimnio.

    Tambm em outros domnios a ateno pelo passado desempenhou um papel importante: na literatura, com Proust e Joyce, na filosofia, com Bergson, e,

    finalmente, numa nova cincia, a psicanlise. (LE GOFF, 2003, p.225)

    Dentre as mudanas acolhidas pela histria e pela sociologia no entendimento da

    memria que vo se conhecer no sculo XX, algumas foram preparadas desde o fim do sculo

    XIX. Da arte e literatura, a teoria da memria educvel do Manifesto Surrealista (1924) e,

    da psicanlise, a Interpretao dos Sonhos, de Sigmund Freud, so pontos marcantes na

    metamorfose da arte da memria recente. Tambm foi importante a publicao em 1896 de

    Matria e Memria, de Bergson, livro no qual considerada central a noo de imagem na

    encruzilhada da memria e da percepo, que, ao unir memria e esprito, tem grande

    influncia na literatura, marcando o ciclo narrativo de Marcel Proust. Essas aproximaes so

    evidenciadas inicialmente pelo interesse pela memria pessoal, e posteriormente, pelas

    coletividades e a vida cotidiana.

    A nova histria e a sociologia acolheram tambm a temporalidade, e a

    presentificao desses outros discursos. Benjamin no ensaio A imagem de Proust (1929)

    mostra esse escritor como exemplar nesse processo, atravs da construo de uma bela

    imagem de memria e esquecimento 4. A mesma esttica proustiana percebida em suas teses

    4 Parafraseando o mito de Penlope, Benjamin (1994, p.37, grifo nosso) assim divaga: Sabemos que Proust no

    descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. [...] o

    importante, para o autor que rememora, no o que ele viveu, mas o tecido de sua rememorao, o trabalho de

    Penlope da reminiscncia. Ou seria prefervel falar do trabalho de Penlope do esquecimento? A memria

    involuntria, de Proust, no est mais prxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos de

  • 20

    Sobre o conceito de histria (1940). Se Ricur (2007, p.447), chega a atribuir Busca do

    tempo perdido, de Proust, como o monumento literrio simtrico a Matria e Memria, de

    Bergson (do qual era apreciador), para o historiador da arte Giulio Carlo Argan (2006, p.142),

    Pierre Bonnard seu equivalente visual, tambm muito prximo de Proust 5.

    FIGURA 1 - Pierre Bonnard, A toalete da manh, 1914. 120 x 80 cm, Muse dOrsay (Fonte: ARGAN, 2006, p.144).

    FIGURA 2 - Pierre Bonnard, Autorretrato no espelho do toalete, 1939-1945, 73x51cm, Centre Pompidou (Fonte: The New York Times 6).

    reminiscncia? No seria esse trabalho de rememorao espontnea, em que a recordao a trama e o

    esquecimento a urdidura, o oposto do trabalho de Penlope, mais que sua cpia? Pois aqui o dia que desfaz o

    trabalho da noite. Cada manh, ao acordarmos, em geral fracos e apenas semiconscientes, seguramos em

    nossas mos apenas algumas franjas da tapearia da existncia vivida, tal como o esquecimento a teceu para

    ns. Cada dia, com suas aes intencionais e, mais ainda, com suas reminiscncias intencionais, desfaz os fios,

    os ornamentos do olvido. Por isso, no final Proust transformou seus dias em noites para dedicar todas as suas

    horas ao trabalho, sem ser perturbado, no quarto escuro, sob uma luz artificial, no af de no deixar escapar

    nenhum dos arabescos entrelaados. 5 Nenhum outro artista pode mostrar melhor do que Bonnard a enorme influncia do pensamento filosfico de

    Henri Bergson sobre toda a cultura e a arte francesa das primeiras dcadas do sculo XX, empenhado em

    explicar os processos da vida interior, o sentido profundo do tempo, da memria, da imaginao e da matria;

    isto explica porque, na histria da pintura, cabe a Pierre Bonnard um papel sob muitos aspectos prximo ao de

    Marcel Proust na histria da literatura. (ARGAN, 2006, p.142). 6 Disponvel em Acesso em: 23 mar.

    2011.

  • 21

    O Cubismo se apresentava como a sntese, finalmente descoberta, entre o espao

    e o tempo e triunfava ao mesmo tempo em que Bonnard pintou A toalete da manh (1914,

    FIG.1). Esse artista parece objetar que no pode haver sntese entre duas entidades que no

    so, e no podem ser, distintas, porque na realidade no so duas, mas somente uma

    (ARGAN, 2006, p.142-145). Essa concepo bem expressa, assim como no Autorretrato no

    espelho do toalete (1939-1945, FIG. 2), pelo tom do conjunto, no ambiente ou nas figuras

    humanas, o interior e o exterior, sem demarcaes (o oposto dos debruns de Henry Matisse),

    as figuras fragmentadas (recortadas pelo enquadramento ou por espelhos, que por sua vez as

    replicam) parecem imersas no (e pelo) ambiente: [...] o quadro um contnuo, um contnuo

    de espao e tempo, de coisas e ambiente, mas, acima de tudo, para usar os termos de Bergson,

    de matria e memria (ARGAN, 2006, p.145, grifo do autor). As duas pinturas no espao

    ntimo do toalete (como muitas outras do mesmo pintor), despidas de qualquer requinte ou de

    vestes que demarcassem algum tempo especfico, demonstram o indivduo comum, situaes

    corriqueiras, resqucio do romantismo.

    Benjamin (1994, p.45) explica que a eternidade que Proust nos faz vislumbrar no

    a do tempo infinito, mas do tempo entrecruzado, ao que constatamos, semelhante de

    Bonnard e seu fluxo contnuo. No que concerne temporalidade, ambos exploram to bem,

    no entanto, ainda muito presos tradio da memria interior. O que interessa a Benjamin no

    mtodo proustiano no o fato de ter escrito memrias, mas a busca das analogias e das

    semelhanas entre o passado e o presente (GAGNEBIN In BENJAMIN, 1994, p.16) 7. A

    crtica barbrie nesse sculo s seria representada mais tarde com Guernica (1937) de

    Picasso e com as assemblages, colages e combine paintings a partir da dcada de 1950, com

    Jean Dubuffet, Robert Rauschenberg, Georges Braque e o prprio Picasso. De forma mais

    literal (atravs de materiais do mundo) esse tipo de arte passa a interagir com o espao real

    nessa crtica.

    A temporalidade de que nos fala Benjamin, atento aos seus contemporneos,

    focaliza os sentidos da memria que permitem esses dilogos com literatos, tais como Proust,

    e com a filosofia de Bergson. Muito prximo do conceito benjaminiano de experincia, o

    tempo vivido (durao, durao interna ou conscincia) o passado vivo no presente e aberto

    7 Nas teses Sobre o conceito de histria h a mesma preocupao proustiana de salvar o passado no presente

    graas percepo de uma semelhana que transforma o passado, que poderia ter desaparecido no esquecimento,

    e transforma o presente, porque este se revela como a realizao possvel dessa promessa anterior, que poderia

    ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se no a descobrirmos, inscritas nas linhas do atual. O autor

    explica que a maioria das recordaes que buscamos aparecem nossa frente sob a forma de imagens visuais, mesmo a mmoire involontaire so imagens visuais ainda em grande parte isoladas, apesar do carter enigmtico da sua presena (BENJAMIN, 1994, p.49).

  • 22

    ao futuro no esprito que compreende o real de modo imediato, e corresponde a uma

    experincia direta entre o sujeito e o objeto. Quando Benjamin faz o elogio a Proust e sua

    obra aberta onde cada histria o ensejo para uma nova histria, cada texto suscita a outros,

    movimento infinito da memria podemos perceber uma estruturao da memria que

    remonta precisamente ao fluxo entre passado e presente j apontado pelo sistema do cone que

    Bergson (2006, p.178) elaborou em Matria e Memria. pautado em um tempo nico que

    Benjamin (1994, p.226) nos fala de uma cadeia de acontecimentos e de uma catstrofe

    nica ao analisar a imagem do Angelus Novus de Paul Klee (FIG. 3):

    FIGURA 3 - Paul Klee, Angelus Novus, 1920 (Fonte: Centre for the Study of Historical Consciousness - CSHC 8).

    H um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que

    parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos esto

    escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da histria deve ter esse

    aspecto. Seu rosto est dirigido para o passado. Onde ns vemos uma cadeia de acontecimentos, ele v uma catstrofe nica, que acumula incansavelmente runa

    sobre runa e as dispersa a nossos ps. Ele gostaria de deter-se para acordar os

    mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraso e prende-se em

    suas asas com tanta fora que ele no pode mais fech-las. Essa tempestade o impele

    irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de

    runas cresce at o cu. Essa tempestade o que chamamos progresso.

    (BENJAMIN,1994, p.226)

    8 Disponvel em: Acesso em: 19 maio 2010.

  • 23

    Ambos se referem a um tempo entrecruzado, no qual, se h algo nesse desejo de

    puxar esses vrios passados para o presente (Cf. HUYSSEN, 2000, p. 15) est em fazer com

    que a experincia com o passado sirva de referncia para mudar o presente e o futuro. A

    infinitude encontra-se na rememorao, pois um acontecimento vivido finito, ou pelo

    menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado sem limites,

    porque apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois (BENJAMIN, 1994, p. 37).

    No sculo XX, a dinmica entre o passado e o presente, na memria, recupera a dimenso do

    futuro nessa relao:

    A distino passado/presente que aqui nos ocupa a que existe na conscincia

    coletiva, em especial na conscincia social histrica. Mas torna-se necessrio, antes

    de mais nada, chamar a ateno para a pertinncia desta posio e evocar o par

    passado/presente sob outras perspectivas, que ultrapassam as da memria coletiva e

    da histria.

    De fato, a realidade da percepo e diviso do tempo em funo de um antes e um

    depois no se limita, em nvel individual ou coletivo, oposio presente/passado:

    devemos acrescentar-lhe uma terceira dimenso, o futuro (LE GOFF, 2003, p.209).

    importante ressaltarmos, ao falarmos de memria no sculo XX, o processo de

    desenvolvimento do capitalismo e uma srie de mudanas socioeconmicas que levaram as

    pessoas a terem um outro tipo de relacionamento com seus espaos, com o passado, incluindo

    a perda de contato com a sua cultura e tradio. O tema abordado, com duras crticas perda

    da experincia em nome de um progresso acelerado na era moderna, no clebre ensaio

    Experincia e pobreza de Benjamin. O texto, j em 1933, mostra um autor muito lcido sobre

    os acontecimentos da prpria poca. A historiografia progressista, que era a concepo da

    histria em vigor na social democracia alem de Weimar, conforme previa Benjamin,

    provocaria uma avaliao equivocada do fascismo e a incapacidade de desenvolver uma luta

    contra a sua ascenso. Benjamin tambm se empenhou em criticar a historiografia burguesa,

    que, assim como a progressista, se apoia na concepo de um tempo homogneo 9, vazio,

    cronolgico, linear. Sua caracterstica ateno ao passado para compreender o presente e

    modificar o futuro, exprime exatamente o que Huyssen (2000, p.9) denominou passados

    presentes, outro ponto fundamental e especfico de nosso tempo e que gostaramos de

    ressaltar se retornarmos sua pergunta no incio de nosso captulo.

    9 Bergson (2006, p. 243) tambm compartilha dessa crtica a um pretenso tempo homogneo, para ele um dolo da linguagem, uma fico: em realidade no h um ritmo nico de durao; possvel imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rpidos, mediriam o grau de tenso ou de relaxamento

    das conscincias [...]. A fragilidade de sua observao, no entanto, est em atribuir percepo ao sujeito interior, descolado de sua posio de indivduo pertencente a um grupo.

  • 24

    Trata-se para o historiador materialista - ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra histria, capaz

    de levar em considerao os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face s

    esperanas frustradas -, de fundar um outro conceito de tempo, tempo de agora (Jetztzeit), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade, cujo modelo foi explicitamente calcado na tradio messinica e mstica judaica.

    Em lugar de apontar para uma imagem eterna do passado, como o historicismo, ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador

    deve constituir uma experincia (Erfahrung) com o passado (tese 16). Estranha definio de um mtodo materialista! (GAGNEBIN in BENJAMIN, 1994, p.8)

    A memria trata-se, assim, de uma espcie de contra histria, o que Benjamin

    chamava de escovar a histria a contrapelo (BENJAMIN, 1994, p. 225), como um

    historiador materialista. Pela busca de uma histria que no privilegiasse apenas o que era at

    ento considerada grande histria, no apenas aquelas dos vencedores, mas tambm aquelas

    dos vencidos, dos trabalhadores e das massas, que autores de diversos campos procuravam

    recorrer memria coletiva, detentora de lembranas mais recentes dos grupos aos quais

    pertencem.

    Somente aps a dcada de 1960, os novos discursos de memria se firmaram, com

    a revoluo documental (GLNISSON, 1977 apud LE GOFF, 2003, p.531), no rastro da

    descolonizao e dos movimentos sociais em busca por histrias alternativas e revisionistas

    iniciados no entre guerras, acompanhadas por inmeras declaraes de fim (fim da histria,

    morte do sujeito, fim da obra de arte e das metanarrativas) que j apontavam para a atual

    recodificao do passado.

    Embora no fossem poucos os esforos, como vimos, o deslocamento dos

    futuros presentes para os passados presentes, dentre uma srie de questes, ocorre

    principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, quando o problema do futuro longnquo

    foi se apagando, perdeu toda a intensidade perante os problemas do futuro imediato, bem mais

    urgentes e concretos (LEVI apud SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 92).

    Logo aps a Shoah 10

    parecem ter faltado cdigos adequados para se expressar. A

    arte, a poesia e toda a cultura europeia do ps-guerra parecem ento passar pela clebre,

    banalizada e mal compreendida frase de Theodor Adorno de 1949: escrever um poema aps

    Auschwitz um ato brbaro, e isso corri at mesmo o conhecimento de porque hoje se

    tornou impossvel escrever poemas (ADORNO, 1977, vol. 10, p.30 apud SELIGMANN-

    SILVA, 2003, p. 73). Para o terico, a poesia, e por extenso as outras artes, desempenham

    um papel na crtica desumanizao promovida pelo capitalismo industrial e pelas

    10

    No hebraico, Shoah o mesmo que catstrofe ou devastao. O termo preferido por vrios autores que se recusam a usar a palavra Holocausto por suas conotaes de sacrifcio, pois significa oferenda pelo fogo.

  • 25

    experincias de barbrie. No se trata de uma negao arte, mas tarefa da arte resistir, sem

    se contentar em dar o cinismo como resposta, pois a sobrecarga de sofrimento real no tolera

    o esquecimento, como ensinou Adorno (1995, p. 54 apud HEISE, 2008, p.174).

    Desencadeia-se, pois, uma grande reflexo acerca da possibilidade de representao.

    Lembrar ou esquecer, representar ou no representar a partir do trauma, o

    testemunho, o horror, tornou-se uma questo muito discutida, ora exigindo a passagem do

    discursivo para o imagtico, ora a descrio realista dos fatos, novamente nos moldes

    tradicionais. Embora a catstrofe no seja um objeto novo no campo filosfico, passa no

    sculo XX, a era da catstrofe (HOBSBAWM, 1994, p.27), a ser vista como parte da

    cotidianidade, no mais um evento raro, nico, isolado. Da reflexo sobre a impossibilidade

    de representao da catstrofe (pois o real estaria todo impregnado pela mesma) chegou-se

    mesmo condenao da representao de modo geral, vista como impossvel.

    A problemtica de representar no presente o prprio presente (ou passado

    recente) era algo novo com que a histria ainda estava se familiarizando. Ao ver-se diante da

    Segunda Guerra, deparou-se com um fardo demasiado grande e complexo. Demoraram-se

    alguns anos at que se memorasse o horror da Shoah nas artes e que surgissem mesmo os

    primeiros testemunhos. Alm daqueles autores pressionados pelo medo e pelo trauma, que

    tiveram suas obras escondidas por anos, havia ainda aqueles que acreditavam em um

    esquecimento produtivo como possibilidade nica de prosseguir a vida aps o trauma.

    Inicialmente, narrativas heroicas de resistncia eram mais teis no reavivamento da poltica

    cultural dos pases humilhados pelas invases, porm nos anos de 1960 e 1970 essas

    narrativas j haviam cumprido sua tarefa, dando espao tambm aos testemunhos. Memrias

    literrias tornaram-se atos de testemunhos, como o caso tpico dos escritos de Primo Levi

    sobre sua experincia como prisioneiro em Auschwitz-Birkenau narradas em isso um

    Homem?.

    A expanso de uma cultura de memria ocorre especialmente nos anos 80,

    quando a memria passa a ser discutida intensamente. Em 1988 realizou-se em Frankfurt, por

    exemplo, um congresso de escritores com representantes das duas literaturas da Alemanha,

    ento dividida, sobre o tema Escrever aps Auschwitz. O poema Fuga da morte, escrito em

    1951 por Paul Celan sobre sua experincia como sobrevivente de Auschwitz, tornou-se uma

    obsesso nacional no pas, reapareceu em antologias da literatura alem do ps-guerra e sua

    recitao tornou-se um desafio em eventos comemorativos. Tambm com o fim das ditaduras

    em naes europeias como Portugal e Espanha, e latino-americanas como Brasil, Argentina,

    Paraguai (nas dcadas de 1970 e 1980), e do Chile (somente em 1990), alm do colapso do

  • 26

    imprio sovitico em 1989, vem tona as vozes de testemunhas e se inicia um processo de

    abertura dos arquivos proibidos.

    Jay Winter (2006, p. 76), no ensaio chamado A gerao da memria: reflexes

    sobre o boom da memria nos estudos contemporneos de histria, atenta para o aumento

    real de renda, consequentemente com investimentos em educao (sobretudo de nvel

    superior), somado ao crescimento demogrfico (a gerao do baby-boom entrava na idade

    adulta) desde a Segunda Guerra ajudaram a fazer crescer a demanda por bens culturais.

    Winter (2006, p.84) acrescenta ainda que o boom da memria surgiu em parte devido

    nossa aceitao tardia, mas real de que entre ns, em nossas famlias, existem homens e

    mulheres oprimidos por recordaes traumticas.

    Na era da catstrofe no cabe mais o discurso inocente e simplificador da

    autonomia do esttico, mas as histrias outras tambm devem ser motivo de interesse, como

    j insistia Benjamin na primeira metade do sculo XX nas teses Sobre o Conceito da Histria.

    Uma sobriedade na explicao recomendada pelo autor para o historiador verdadeiramente

    atento ao passado o oposto do historiador clssico principalmente aos seus elementos

    decretados negligenciveis e fadados ao esquecimento:

    O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os

    pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser

    considerado perdido para a histria. Sem dvida, somente a humanidade redimida

    poder apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a

    humanidade redimida o passado citvel, em cada um dos seus momentos. Cada

    momento vivido transforma-se numa citation la ordre du jour e esse dia justamente o do juzo final. (BENJAMIN, 1994, p.223, grifo nosso).

    A memria seria, desta forma, elemento libertador para aqueles grupos que a

    solicitam, para os quais o esquecimento intolervel e a falta de punio inaceitvel. Esse o

    caso do grupo formado pelas Madres de Plaza de Mayo ou pelo H.I.J.O.S. (Hijos e Hijas por

    la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio) da Argentina. Podemos reconhecer na

    arte o surgimento dos monumentos e antimonumentos do ps-guerra (Anselm Kiefer, Jochen

    Gerz, Peter Eisenman, Rachel Whiteread, entre outros) e contra as sangrentas ditaduras latino-

    americanas (Antnio Manuel, Arte Callejero, Escena de Avanzada, Colectivo Acciones de

    Arte CADA), que atestam e denunciam a ocorrncia do esquecimento.

    O conto Funes, o memorioso de Jorge Luis Borges (1995, p.116) nos mostra, de

    certa forma, a importncia dos processos de presentificao bem como faz referncia ainda

    utopia contempornea de recordao total. O personagem Ireneo Funes, depois de uma queda

    do cavalo, acometido de uma doena que lhe confere uma memria infalvel. Por tudo

  • 27

    lembrar, impedido de viver o presente e no consegue desenvolver o pensamento crtico.

    Este conto esclarecedor quanto importncia de uma atualizao do passado.

    Diante da impossibilidade de recordao total, resta-nos observar que aquela velha

    histria, embora ditada por interesses polticos que negligenciam os cidados comuns e os

    intervalos que levam aos grandes feitos histricos, de qualquer forma, assinala uma noo

    prpria e inevitvel da memria como processo que age junto com o esquecimento. E mesmo

    a memria coletiva ou a chamada nova histria utilizam apenas as lembranas dos elementos

    que cada sociedade considera relevantes para sua constituio. por isso que, ao mesmo

    tempo em que Huyssen (1995, p.3) observa uma cultura e uma poltica de memria em

    expanso, no livro Twillight memories (1995) ele tambm aponta uma cultura de amnsia: a

    obsesso com a memria na cultura contempornea deve ser lida em termos desta dupla

    problemtica, pois o desejo de memria pressupe tambm o esquecimento, em vista de

    sermos incapazes de lembrar tudo.

    Atualmente, o foco da memria na temporalidade contrasta com alguns outros

    campos centrados na questo do espao. Isso no ocorre nas artes e na literatura porque ambas

    entendem que a separao entre tempo e espao representa um grande risco para o

    entendimento tanto da cultura moderna quanto da cultura contempornea. Se pensarmos o

    papel da arte nesse universo, perceberemos uma liquefao da tradio, alm da quebra da

    linearidade do tempo no ltimo sculo:

    No caso da arte, cabe registrar que essa insero paradoxal, j que ela participa

    tambm da dissoluo das referncias. Podemos ver na prpria literatura os efeitos,

    digamos, dessa liquefao da tradio. Por outro lado, uma tentativa de inscrio,

    de construir um discurso que oriente minimamente a nossa ao. A arte ajuda a

    construir essas orientaes, mesmo que muitas vezes nos desorientando para tentar

    nos reorientar. Um escritor como o [Samuel] Beckett, cuja narrativa extremamente fragmentada, nos reorienta, cria novos parmetros. A narrativa no precisa ser

    orgnica e linear. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 6)

    Qual a funo da arte uma discusso extensa, na qual no nos deteremos aqui.

    Porm, a arte contempornea atravs tanto da prtica da citao prpria arte, como ao

    relacionar-se com outros meios que no os seus, exerce importante papel como preservao e

    questionamento da memria, e talvez por isso mesmo tenda a retornar crtica, pois associa a

    um fato do presente. Antes de buscarmos em que medida a arte se utiliza desses dilogos com

    outros meios e quais estratgias prprias de seu meio utiliza, precisamos entender melhor os

    processos especficos pelos quais passa a memria no sculo XX.

    Para aprofundarmos nas sees, j temos claros alguns pontos especficos da

    estruturao da memria e da temporalidade particulares do sculo XX. Mais que atribuir ao

  • 28

    tempo presente o tempo da memria, o sculo passado tem sua relao com a temporalidade

    marcada profundamente pelo trauma gerado por duas guerras mundiais. A memria passaria a

    ser reconhecida finalmente como mais que elemento exclusivamente pessoal, mas tambm

    coletivo e interpessoal. Um imperativo tico de memria, reivindicado pelas massas atravs

    das memrias coletivas, e at mesmo pelo prprio Estado, viria a funcionar como apelo por

    justia, posta, sobretudo, como elemento libertador. Se s vezes o indivduo contemporneo

    se comporta como arquivista maluco (cf. HUYSSEN, 2000, p. 15), muito mais um reflexo

    de sua avidez por memria ligada a fatores bem mais complexos do que mera ingenuidade. O

    passado, reconhecido como construo e reinterpretao do presente, uma lucidez de que,

    assim como a verdade, ele est irrecuperavelmente perdido no sentido que ambos no se

    fixam integralmente, muito embora olhar para trs e ver um acmulo de catstrofes, deva se

    fazer til para avistar a esperana de um outro tempo futuro.

    1.2 Memria pessoal, memrias coletivas

    Na discusso contempornea, a pergunta sobre qual o sujeito das operaes de

    memria inflamada por uma inquietao do historiador por saber qual o seu contraponto: a

    memria dos protagonistas da ao tomados um a um, ou das coletividades tomadas em

    conjunto? Em outras palavras, se a memria primordialmente pessoal ou coletiva um

    dilema com o qual a contemporaneidade tem esbarrado. Essa questo s foi possvel porque

    Halbwachs, sob a presso do entre guerras nos anos 1920-1930, atribuiu a memria a uma

    entidade coletiva o grupo ou sociedade, na publicao pstuma de A Memria Coletiva.

    Antes, apenas a problemtica da subjetividade tomava conta dos discursos sobre a memria

    com as reflexes fundadoras de Santo Agostinho, passando mais tarde por Husserl e Bergson.

    Alguns traos indicados pelo filsofo Paul Ricur (2007, p. 107-108) devem ser

    destacados naqueles que saem em defesa do discurso do carter essencialmente privado da

    memria: Primeiro, a memria parece de fato ser radicalmente singular: minhas lembranas

    no so as suas; segundo, o vnculo original da conscincia com o passado parece residir na

    memria; e terceiro, memria que est vinculado o sentido da orientao na passagem

    do tempo. Neste ltimo, o movimento em via dupla, do passado para o futuro, mas tambm

    pelo movimento inverso de trnsito da expectativa lembrana, atravs do presente vivo

    (RICUR, 2007, p. 108).

  • 29

    Essa tradio, cujos precursores se encontram na Antiguidade tardia de matiz

    cristo, tem Santo Agostinho como sua maior expresso. De forma simples, ele antecipa

    dezessete sculos atrs vrias questes que interessaram aos filsofos do sculo XX. Seu livro

    Confisses, um dos maiores esforos filosficos j consagrados ao tempo, tambm

    considerado a primeira autobiografia ou livro de memrias.

    pela questo da medida dos tempos que Santo Agostinho entra na problemtica

    da interioridade. Sua ateno dispensada atribuio da memria ao presente viria mais tarde

    a ser uma proposio da nova histria no incio do sculo XX. Quando se refere a uma

    atualizao da memria no presente, Agostinho fornece uma caracterstica que constitui as

    bases da noo de presentificao, que veremos melhor mais adiante com Husserl.

    Se futuro e passado existem, quero saber onde esto. Se ainda no consigo

    compreender, todavia sei que, onde quer que estejam, no sero futuro nem passado,

    mas presente. Se a fosse futuro, no existiria ainda; e se fosse passado, j no

    existiria. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, seja o que for, no podem existir seno no presente [...]. Agora est claro e evidente para mim que o

    futuro e o passado no existem, e que no exato falar de trs tempos passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos so trs, isto , o

    presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos

    futuros. E estes trs tempos esto na mente e no os vejo em outro lugar. O presente

    do passado a memria. O presente do presente a viso. O presente do futuro a

    espera (AGOSTINHO, 2009, p. 342-345, grifo nosso).

    Sobre a formao das imagens, Agostinho (2009, p. 274) utiliza sua famosa

    metfora central dos vastos palcios da memria, reforada por outras figuras como o

    depsito, o armazm, os compartimentos (p.277) onde as numerosas lembranas so

    depositadas, postas em reserva. Para Agostinho (2009, p. 277), de fato, todas essas realidades

    no se introduzem na memria. So apenas imagens colhidas com extraordinria rapidez,

    dispostas como em compartimentos, de onde admiravelmente so extradas pela lembrana.

    Le Goff (2003, p.440-441) observa que com Agostinho, a memria penetra

    profundamente no homem interior, no seio da dialtica crist do interior e do exterior, de onde

    saram o exame de conscincia, a introspeco, e tambm a psicanlise. Embora Agostinho

    descreva o homem interior que se lembra, mas no ainda a conscincia e o sujeito, j fala

    sobre percepo, e a importncia do querer de acordo com a necessidade no tempo presente

    na seleo das lembranas como pode ser observado posteriormente em Bergson. Em sua

    concepo de memria esto guardadas para serem evocadas quando quisermos todas as

    ideias, conhecimentos, imagens, ou lembranas.

    procura de respostas inicialmente no poder da memria individual, na viso das

    imagens residentes em sua memria, Agostinho (2009, p.276) se interroga: Mas ento o

  • 30

    esprito limitado demais para compreender-se a si mesmo? E onde est aquilo que no

    apreende de si mesmo? Estar ento fora de si mesmo, e no dentro? Confrontado com essa

    possibilidade, Agostinho j esboa a questo da memria pessoal alimentar-se das memrias

    coletivas:

    A [na memria] esto tambm todos os conhecimentos que recordo, seja por

    experincia prpria ou pelo testemunho alheio. Dessa riqueza de idias me vem a

    possiblidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas

    pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho dos outros; posso lig-los aos

    acontecimentos do passado, deles inferindo aes, fatos e esperanas para o futuro,

    e, sempre pensando em todas como estando presentes [...]. (AGOSTINHO, 2009,

    p.275-276, grifo nosso).

    Ricur (2007, p. 108) destaca que , no entanto, s em torno da virada do sculo

    XIX para o XX com a obra de Husserl que a escola do olhar interior atinge seu apogeu; ao

    mesmo tempo, toda a tradio do olhar interior se constri como um impasse rumo memria

    coletiva.

    Fundador da fenomenologia, Husserl evoca Agostinho quanto maneira de

    vincular as problemticas da interioridade, do tempo e da memria. Nas Lies para uma

    fenomenologia da conscincia ntima do tempo, a ideia de continuidade e atualizao do

    presente nos remete ao termo presentificao ou re-(a)presentao 11

    cunhado por Husserl,

    que significa o ato pelo qual um objeto se torna presente sob a forma de imagem, uma

    caracterstica do tempo vivido, sentida como presente e integrada como tal na memria. A

    presentificao difere da apresentao: a ltima, sob a forma da percepo, constitui a

    apresentao pura e simples (e no intuitiva), enquanto todos outros atos sensveis so

    classificados como presentificao, que por sua vez no apresentam o objeto.

    Em Husserl encontramos reflexes acerca das diferenas entre imagem e

    lembrana, no entanto, no consideram seu entrelaamento e a confuso entre ambas no nvel

    da linguagem e no plano da experincia viva (RICUR, 2007, p.61). Quando Husserl fala de

    imagem, se refere s presentificaes que descrevem alguma coisa de maneira indireta:

    retratos, quadros, esttuas, fotografias, etc. (RICUR, 2007, p.63, grifo nosso). Por sua vez,

    a busca da fenomenologia husserliana da lembrana no prope um equivalente da coisa

    lembrada, mas a reapropriao do tempo perdido. A lembrana seria assim, uma espcie de

    presentificao que tem a ver com o tempo (RICUR, 2007, p.62). Lembrana e imagem

    fazem parte assim da grande famlia de presentificaes.

    11 Vergegenwrtigung, sendo o termo traduzido tambm por re-(a)presentao para no ser confundido com

    representao (Vorstellung), j que a ltima palavra, aps Kant, agrupava todos os correlatos de atos sensveis,

    intuitivos, distintos do juzo. Ver mais em RICUR, 2007, p. 62.

  • 31

    Segundo Ricur (2007, p. 67), a distino que Bergson estabelece entre

    lembrana pura (aquela que ainda no est posta em imagens, como a lio decorada) e

    lembrana-imagem (que Bergson chama intermediria ou mista da lembrana) 12

    constitui a

    radicalizao da tese das duas memrias. Vemos assim que, para Bergson, uma percepo

    no uma apresentao, mas tambm uma presentificao, ou melhor, iniciada com uma

    lembrana pura que a lembrana-imagem, atravs do reconhecimento e da rememorao,

    torna-se til, atualiza-se, torna-se presentificao.

    Na contemporaneidade, como Huyssen mostra, a presentificao bastante aceita

    e utilizada, mas tambm confundida com a apresentao:

    No preciso muita sofisticao terica para ver que toda representao - seja em linguagem, narrativa, imagem, ou som gravado - baseada na memria. Re-(a)

    presentao sempre vem depois, ainda que algumas mdias tentem nos dar a iluso

    de presena pura. Mas ao invs de nos levar a alguma origem autntica ou nos dar

    um acesso verificvel ao real, a memria, mesmo e especialmente em sua

    extemporaneidade, em si baseada na representao. O passado no est

    simplesmente na memria, mas deve ser articulado para se tornar memria. Ao invs

    de lament-lo ou ignor-lo, esta diviso deveria ser entendida como um forte

    estimulante para a criatividade cultural e artstica. (HUYSSEN, 1995, p. 2-3,

    traduo nossa) 13

    Tambm se deve a Husserl a atribuio fenomenolgica da diferena entre

    reteno da fase do fluxo que mal acaba de passar e ainda adere ao presente e a relembrana

    de fases temporais que deixaram de aderir ao presente vivo. Ricur (2007, p. 125) explica

    que podemos aproxim-lo de Bergson quanto questo da continuidade e da metfora do

    fluxo que jorra do agora, num ponto de atualidade. A transformao incessante do agora

    em no mais e do ainda no num agora constitui-se em um fluxo nico. Alm disso, o

    termo reteno empregado para dizer da durao (termo caro a Bergson) de algo e da

    persistncia da fase atual na unidade do fluxo: uma tendncia geral da fenomenologia da

    lembrana a reabsorver uma lembrana secundria na lembrana primria, verdadeiro anexo

    temporal do presente (RICUR, 2007, p. 125).O que se observa que para a fenomenologia

    12

    [...] to logo se transforma em imagem, o passado deixa o estado de lembrana pura e se confunde com uma certa parte de meu presente. A lembrana atualizada em imagem difere assim profundamente dessa lembrana

    pura. A imagem um estado presente, e s pode participar do passado atravs da lembrana da qual ela saiu. A

    lembrana, ao contrrio, impotente enquanto permanece intil, no se mistura com a sensao e no se vincula

    ao presente, sendo portanto inextensiva. (BERGSON, 2006, p.164) 13

    It does not require much theoretical sophistication to see that all representation whether in language, narrative, image, or recorded sound is based on memory. Re-presentation always comes after, even though some media will try to provide us with the delusion of pure presence. But rather than leading us to some

    authentic origin or giving us verifiable access to the real, memory, even and especially in its belatedness, is itself

    based on representation. The past is not simply there in memory, but is must be articulated to become memory.

    Rather than lamenting or ignoring it, this split should be understood as a powerful stimulant for cultural and

    artistic creativity.

  • 32

    chegar noo de memria comum passa-se inicialmente pela ideia do prprio, depois

    experincia de outrem, para, finalmente, proceder experincia dita de comunitarizao da

    experincia subjetiva; mesmo assim, o salto do eu ao ns ainda no dado. O conceito

    sociolgico de conscincia coletiva na quinta Meditao Cartesiana, de Husserl, pode resultar

    apenas de um processo secundrio de objetivao das trocas intersubjetivas 14

    . Podemos

    assim, atribuir a um ns, independente de seu titular, todas as prerrogativas da memria.

    no reconhecimento do grupo que Halbwachs encontra a memria coletiva,

    passando da ideia de intersubjetividades que se encontram, formando uma memria comum,

    para a ideia de que a memria do meio interfere mais no sujeito do que o contrrio. O seu

    livro A Memria Coletiva traz a anlise da conscincia coletiva que encontrou obstculos no

    vocabulrio legado da tradio do olhar interior, por isso, o esforo em constituir um

    vocabulrio novo, como a literatura e a arte j desenvolviam. Em uma poca dominada pela

    reflexo sobre a memria e a lembrana, os conhecimentos cientfico, literrio e artstico

    coincidiam em sua preocupao em atingir as mesmas regies da experincia coletiva e

    individual 15

    .

    A parte central da obra de Halbwachs demonstra que impossvel conceber os

    problemas da evocao e localizao das lembranas se no tomarmos para ponto de

    aplicao os quadros sociais reais que servem de pontos de referncia na reconstruo da

    memria. Assim, ao analisar a memria com grupos sociais e situaes concretas nas quais o

    homem se encontra na vida cotidiana, o autor ultrapassa o pensamento de seus mestres da

    Escola francesa (recebeu influncias de mile Durkheim, e Bergson, embora tenha dirigido

    algumas crticas ao ltimo).

    Na anlise dos quadros sociais da memria, Halbwachs (assim como toda a

    segunda gerao da Escola francesa de Sociologia) vai do longnquo ao prximo: a partir de

    uma anlise da experincia de pertencer a um grupo e na base do ensino recebido, que a

    memria individual toma posse de si mesma. Nessa tese, apenas quando nos colocamos no

    ponto de vista de um ou mais grupos ou quando nos situamos em uma ou mais correntes do

    14 Ricur (2007, p.128) explica que para Husserl, numa empreitada de fenomenologia pura, para ter algo que dura, preciso uma auto constituio do fluxo temporal, que se ope ideia de uma constituio simultnea da memria individual e da memria coletiva. Somente em outro estgio da fenomenologia, com a quinta

    Meditao cartesiana, na interseco da teoria da conscincia transcendental e a da intersubjetividade, que

    Husserl tenta passar do ego solitrio a um outrem suscetvel de se tornar um ns, admitindo-se j a possibilidade da experincia temporal tornar-se compartilhada. Essa fenomenologia j mais aberta, onde tais

    termos so utilizados leva ao limiar do que se poderia chamar de uma sociologia fenomenolgica. 15

    Se faz necessrio alertamos que os conceitos de memria coletiva e quadros sociais da memria desenvolvidos a partir dos anos de 1920 e de histria, para Halbwachs, nos remetem ao contexto da primeira metade do sculo XX, antes do trmino da Segunda Guerra. Por isso sua crtica contundente direcionada

    precisamente velha histria e no nova histria, da qual foi incentivador.

  • 33

    pensamento coletivo, que temos a capacidade de nos lembrar. Alm disso, o captulo

    Memria Coletiva e Memria Individual explica que deve haver ainda alguma identificao

    da memria com o grupo (HALBWACHS, 2004, p. 38-39). Halbwachs (2004, p. 42) v como

    impossvel uma memria estritamente individual, porque, mesmo de forma imperceptvel, e

    desde a infncia, o indivduo se relaciona com as noes e imagens tomadas dos meios sociais

    dos quais faz parte, pois at mesmo nosso nome e lngua ptria so memrias pr-concebidas.

    Na tese de Halbwachs, para manter as suas lembranas interpessoais com o

    grupo, e para confirmar ou precisar suas prprias lembranas que o indivduo se apia e,

    muitas vezes, se confunde com a memria coletiva, pois toda histria de nossa vida faz parte

    da histria em geral (HALBWACHS, 2004, p.59). Para o autor, a memria coletiva, por sua

    vez, envolve as memrias individuais, mas no se confunde com elas, abrange um campo bem

    mais amplo. Assim, na tese sociolgica, um mesmo indivduo possui duas memrias distintas:

    a memria interior (chamada tambm de interna, pessoal, ou autobiogrfica) e outra memria

    exterior (social, histrica).

    Para o autor, ao fazer parte de vrios grupos, inclusive possivelmente conviver

    com ideias opostas, o indivduo no est, necessariamente, sujeito s suas influncias diretas,

    nem sob a dependncia exclusiva de nenhuma das influncias sociais. No entanto,

    entendemos que uma proposio como a de Halbwachs considera como homogneos os

    grupos sociais, incapazes de distinguir ou privilegiar o indivduo, o pensamento individual.

    Por isso, essas noes so questionveis, como veremos mais adiante.

    Halbwachs tambm introduz a diferena, como supe o prprio ttulo do captulo

    II, entre Memria Coletiva e Memria Histrica, com uma linha divisria muito mais rgida

    que aquela que separava e a propsito poderia entrelaar memria pessoal e memria

    coletiva. Ele critica o descompasso entre a memria vivida e a histria ensinada nas escolas,

    exterior e morta, ligada s datas e aos calendrios como uma inquietante estranheza do

    passado histrico. Halbwachs funda a ideia de vnculo transgeracional, baseado inicialmente

    no ncleo familiar e posteriormente nos grupos sociais dos quais o indivduo faz parte, e

    tambm na histria vivida 16

    . Entendo que a noo de vnculo transgeracional foi

    fundamental para os discursos pautados no mbito do familiar para contar histrias universais,

    ou seja, que localizam um discurso em uma histria maior. As imagens da Segunda Guerra,

    por exemplo, so atraentes porque se apoiam no vnculo contemporneo entre geraes e em

    16

    No na histria aprendida, na histria vivida que se apoia nossa memria. Por histria preciso entender ento no uma sucesso cronolgica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um perodo

    se distinga dos outros, e cujos livros e narrativas no nos apresentam em geral seno um quadro bem

    esquemtico e incompleto. (HALBWACHS, 2004, p.64)

  • 34

    particular entre a gerao velha e a nova, entre avs e netos, muitas vezes pulando a gerao

    problemtica dos pais que se encontra no meio (WINTER, 2006, p. 80). Para Winter esse

    vnculo tambm foi um fator que contribuiu para o boom de memria do fim do sculo XX.

    A memria coletiva, explica Halbwachs (2004, p.113), uma corrente de

    pensamento contnuo, no tem em seu desenvolvimento linhas nitidamente marcadas, mas

    limites irregulares e incertos: o presente no se ope ao passado, como dois perodos

    histricos vizinhos. Alm disso, ela apresenta os grupos vistos de dentro e no ultrapassa a

    durao de uma vida humana em mdia.

    A histria, por sua vez, divide a sequncia dos acontecimentos cronologicamente,

    com perodos determinados de acordo com interesses em jogo, obedecendo a uma necessidade

    didtica de esquematizao. Isso ocorre porque a histria examina de fora os grupos e se fixa

    em perodos longos. Alm da crtica s divises que ignoram completamente os perodos

    entre os ditos acontecimentos histricos, Halbwachs faz a crtica confuso em um tempo

    nico de histrias nacionais e locais que representam linhas de evoluo distintas e

    passagem sbita de um estado que subsiste a outro, ressaltando que a histria

    necessariamente um resumo e por isso que ela resume e concentra em poucos momentos

    evolues que se estendem por perodos inteiros [...] (HALBWACHS, 2004, p.114). H

    muitas memrias coletivas, no plural, outro ponto no qual elas se distinguem da histria.

    Halbwachs conclui que a memria coletiva e histria no se confundem, e que a expresso

    memria histrica no foi bem escolhida, pois associa dois termos que se opem. Com

    Benjamin, desfaz-se a suposta diviso entre histria e memria, como bem observou

    Seligmann-Silva:

    O tempo para ele no vazio mas sim denso, poroso matrico. Nas suas mos a teoria da histria, antes ligada cincia da histria, passa a ser uma teoria da

    Memria e assume os contornos de um trabalho mais prximo do artesanal, no qual o historiador deixa as marcas digitais na sua obra. O tempo deve deixar sua marca no espao; ele telrico, pesado: como nas esculturas e quadros de um Anselm

    Kiefer. (SELIGMANN-SIVA. 2001. p. 366 apud DANZIGER, 2003, p. 70).

    Salientamos que a memria coletiva se atm a um perodo menor de tempo, ela

    tem certo limite, tendo em vista que a histria se fixa justamente a esses perodos a que a

    memria coletiva no alcana mais. Por isso costuma-se dizer que a histria se interessa pelo

    passado e no pelo presente, o que verdadeiramente o passado para ela, aquilo que no

    est mais compreendido no domnio onde se estende ainda o pensamento dos grupos atuais

    (HALBWACHS, 2004, p.114). nos depoimentos antigos, extrados dos escritos da poca,

  • 35

    enfim, nos rastros dos grupos que no mais subsistem que o historiador se apoia, assim,

    orienta Halbwachs:

    Mas na escolha que deles faz, na importncia que lhes atribui, o historiador se deixa

    guiar por razes que no tem nada a ver com a opinio de ento, porque esta opinio

    no existe mais; no somos obrigados a lev-la em conta, no se tem medo que ela

    venha a se chocar, com um desmentido. Tanto isso verdade que ele no pode

    realizar sua obra seno com a condio de se colocar deliberadamente fora do tempo vivido pelos grupos que assistiram aos acontecimentos, que com eles tiveram

    contato mais ou menos direto, e que deles podem se lembrar (HALBWACHS, 2004,

    p.114).

    Para Le Goff (2003, p.29), historiador pertencente Escola dos Annales na qual

    dirigiu os estudos ligados Nova Histria, as duas constituem tipos distintos de histria: a

    da memria coletiva e a dos historiadores. A primeira essencialmente mtica, deformada,

    anacrnica, mas constitui o vivido desta relao nunca acabada entre o presente e o passado.

    Le Goff (2003, p.47) entende que o historiador deve respeitar o tempo que, sob diversas

    formas, a condio da histria e que deve fazer corresponder seus quadros de explicao

    cronolgica durao do vivido. Aceita com prestgio na literatura e nas artes, o historiador

    v o anacronismo na histria, no entanto, com certa desconfiana, porm, mais adiante o

    mesmo autor indica que a memria criao do presente (LE GOFF, 2003, p.51), o que j

    supe anacronismo.

    Halbwachs (2004, p.75-76) compartilha dessa noo de lembrana como uma

    reconstruo do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, preparada por

    outras reconstrues em pocas anteriores, de onde a imagem de outrora manifestou-se j

    bem alterada. Ao colocar em questo a participao da imaginao na reconstruo de nosso

    passado, Halbwachs analisa que o que ocorre no um simples preenchimento das lacunas da

    memria pela imaginao no interior do indivduo, mas uma busca na sociedade, no exterior,

    por essas indicaes: No esquecemos nada, porm, esta proposio pode ser entendida em

    sentidos diferentes (HALBWACHS, 2004, p.81). Se no horizonte delineia-se um desejo de

    uma memria integral, como em vrios autores contemporneos seus, a Bergson que ele

    dirige uma crtica para demonstrar uma dessas interpretaes refutveis:

    Para Bergson, o passado permanece inteiramente dentro de nossa memria, tal como

    foi para ns; porm alguns obstculos, em particular o comportamento de nosso

    crebro, impedem que evoquemos dele todas as partes. Em todo caso, as imagens

    dos acontecimentos passados esto completas em nosso esprito (na parte inconsciente de nosso esprito) como pginas impressas nos livros que poderamos

    abrir, ainda que no os abrssemos mais. Para ns, ao contrrio, no subsistem em

    alguma galeria subterrnea de nosso pensamento, imagens completamente prontas,

    mas na sociedade, onde esto todas as indicaes necessrias para reconstruir tais

    partes de nosso passado, as quais nos representamos de modo incompleto ou

    indistinto, ou que, at mesmo, cremos que provm completamente de nossa memria

    (HALBWACHS, 2004, p.81).

  • 36

    Tambm o tempo definido no mais como percepo apenas interior, mas

    tambm coletiva, considerando os encadeamentos da natureza e dos organismos, as duraes

    e as divises do tempo resultantes de convenes e costumes, pois exprimem a ordem das

    etapas da vida social. Do ponto de vista bergsoniano, a noo de um tempo universal, que

    envolve todas as existncias, todas as sries sucessivas de fenmenos, traduzir-se-ia por uma

    srie descontnua de momentos. Cada um deles corresponderia a uma relao estabelecida

    entre vrios pensamentos individuais, que dela tomariam conscincia simultaneamente

    quando se encontrassem.

    Para Halbwachs (2004, p.105), alm de improvvel e muito abstrata, essa ideia na

    qual consiste a simultaneidade faz-nos entender o tempo como uma criao artificial obtida

    somente das duraes individuais, ignorando o espao e os objetos exteriores. No tempo

    coletivo haveria o mesmo nmero de duraes e indivduos, enquanto na durao individual,

    haveria um tempo abstrato que compreenderia todas as duraes. As divises traadas de

    vrias duraes individuais se cruzam e no se confundem com os estados simultneos.

    Halbwachs pontua ainda a relao da memria coletiva com o espao, o poder do

    quadro espacial sobre um grupo. O autor retira do tempo seu privilgio de dado imediato da

    conscincia, e passa a analisar, junto nova sociologia, fatos humanos, responder s

    perguntas reais do homem vivo em seu meio social, no lugar de problemas abstratos que at

    ento eram investigados. O espao aqui pode ser entendido tanto como os materiais, objetos

    da vida cotidiana, seu meio prximo, como tambm de extenses maiores nas quais os grupos

    se fixam, como a cidade. Baseado em Auguste Comte, o autor reafirma que o equilbrio

    mental em boa parte se deve ao fato de que os objetos materiais com os quais estamos em

    contato dirio mudam pouco, e nos oferecem uma imagem de permanncia e estabilidade.

    Assim, ele analisa que mesmo fora de casos patolgicos, antes de nos adaptarmos a um novo

    ent