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    Emlia Maria Chamone de Freitas

    O gesto musical nos mtodos de percussoafro-brasileira

    Escola de MsicaUniversidade Federal de Minas Gerais

    2008

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    Emlia Maria Chamone de Freitas

    O gesto musical nos mtodos de percussoafro-brasileira

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-graduao em Msica da Escola deMsica da Universidade Federal deMinas Gerais, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Msica.

    Linha de pesquisa: Prticas Musicais

    Orientadora: Profa. Patrcia FurstSantiago

    Escola de MsicaUniversidade Federal de Minas Gerais

    2008

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    Dedico este trabalho aos meus pais,Alberto e Eliane, que me transmitiram a

    paixo pela msica, me incentivaram e meapoiaram em todos os momentos.

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    Agradecimentos

    minha querida famlia: Eliane, Maria, Ana Amlia, Carlos Alberto, Eduardo, Daniel e

    Marlene.

    Ana pelas incansveis conversas, pela busca da verdade e do conhecimento.

    Maria dos Anjos, Daniela, Ronise e Valria, amigas presentes que me acompanharam

    e estiveram ao meu lado durante todo meu percurso, que viram nascer e se concretizarmeu sonho de realizar esta pesquisa.

    Patrcia Santiago, pela orientao e apoio.

    A todos meus alunos do Grupo Magnum de Percusso, com os quais vivi e dividi meus

    questionamentos e idias sobre educao e percusso.

    A Jos Alonzo, Marly Palhares, Eliane Sudrio e Eldo Pena, pela generosidade e

    convivncia nestes 5 anos de trabalho no Colgio Magnum.

    Aos meus amigos queridos Edson Fernando, Tarcsio Braga e Bruno Santos.

    Ao professor Fernando Rocha.

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    Les gestes musicaux dune socit peuvent lui tre aussi spcifiquesque ses instruments de musique. Au mme titre que les objets

    producteurs de sons, certains gestes pourraient nous parler desconceptions musicales dun groupe humain, ou de ses reprsentationsde lunivers social et religieux, du corps, du souffle, de lespace...Mais le constat en a dj te fait por plusiers auteurs mises part

    certaines dmarches qui restent encore trop isoles, nous,ethnomusicologues, ninterrogeons pas ces mouvements de maniresystmatique. En outre, lattencion quon leur accorde reste tropsouvent confine en fournir une description ou les expliquer entermes dfficacit sur le plan de la production sonore. Pourtant, dansle monde andin, par exemple, nombre des gestes ont une finalit

    pratique tout en tant autre chose, une manire de vivre son corps, unefaon dentrer en relation avec les forces de linvisible, avec les tresvivants, avec les objets... (Roslia Martinez, 2001, p. 167)

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    RESUMO

    Esta pesquisa consiste em uma anlise do tratamento e da apresentao do gesto

    musical em significativos mtodos de percusso afro-brasileira, tendo como objetivo

    principal refletir sobre a importncia da gestualidade e da corporalidade nas relaes de

    ensino-aprendizagem dos instrumentos de percusso. Primeiramente foi realizado um

    estudo comparativo destes mtodos, destacando as mudanas na produo, difuso e

    recepo destes bens culturais, assim como o delineamento de seus princpios,

    abordagens e tendncias pedaggicas. A reviso de bibliografia realizada tratou das

    definies e abordagens do gesto musical influenciadas por diversos domnios do

    conhecimento como a Educao Musical, a Filosofia e a Etnomusicologia. Os

    resultados encontrados na anlise dos mtodos indicaram que o gesto musical

    frequentemente apresentado em funo da tcnica instrumental, centralizado nas mos e

    nos movimentos diretamente relacionados produo sonora, em detrimento de outros

    movimentos do corpo tambm envolvidos naperformance.

    Palavras-chave: percusso afro-brasileira, mtodos de ensino instrumental, gesto

    musical.

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    RSUM

    Cette recherche consiste en une analyse de la faon dont le geste musical est

    prsent travers des mthodes signifiantes de la percussion afro-brsilienne, et son

    objectif principal est de rflchir sur limportance du gestuel et du corporel dans les

    rapports enseignement-apprentissage de la percussion. On a dabord mis en marche une

    tude comparative des mthodes slectionnes, mettant en relief la dynamique tablie

    entre la production, la diffusion et la rception de ces biens culturels, ainsi quune

    esquisse de ses principes, approches et tendances pdagogiques. Les rsultats trouvs

    partir de cette analyse des mthodes nous ont permis de suggrer que le geste musical

    est frquemment prsent en fonction de la technique instrumentale, ayant comme

    centre les mains et les mouvements qui se trouvent directement en rapport avec la

    production sonore, en dtriment dautres mouvements du corps, compromis eux aussi

    dans la performance.

    Mots-cl : percussion afro-brsilienne, mthodes denseignement instrumental, geste

    musical.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Percussionistas tocando atabaque ................................................................ 30

    Figura 2 Percussionista tocando bombo sinfnico .............................................. 31

    Figura 3 Percussionistas tocando zabumba ......................................................... 31

    Partitura 1 Ritmo de maracatu e variaes adaptado para pandeiro ....................... 35

    Partitura 2 Ritmo executado pelo tambor chico no candombe uruguaio ................ 39

    Figura 4 Esquema gesto fsico e gesto mental ..................................................... 45

    Figura 5 Esquema mtua-fundao entre movimento e som ........................... 47

    Figura 6 Tcnica de dois surdos .......................................................................... 58

    Figura 7 Tcnica de chocalho ............................................................................. 58Figura 8 Pai, afox e cuca ................................................................................ 58

    Figura 9 Maracatu Porto Rico ............................................................................ 59

    Figura 10 Forma de sustentao do pandeiro ........................................................ 60

    Figura 11 Forma de sustentao da caixa, tarol e caixa em cima ......................... 60

    Figura 12 Ritmo de samba no pandeiro ................................................................. 61

    Figura 13 Ritmo de samba no pandeiro ................................................................. 61

    Figura 14 Golpes percussivos da conga ou atabaque ............................................ 62Figura 15 Ritmo de samba no pandeiro ................................................................. 63

    Figura 16 Apresentao do pandeiro ..................................................................... 63

    Figura 17 Tcnica do golpe percussivo polegar ............................................... 64

    Figura 18 Tcnica de repinique ............................................................................. 65

    Partitura 3 Ritmo bsico, variaes e entradas do repinique de escola de samba ... 66

    Figura 19 Tcnica do golpe percussivo ponta de dedos e sua grafia musical ........ 67

    Figura 20 Tcnica do golpe percussivo punho e sua grafia musical ..................... 68Partitura 4 Exerccio de combinaes rtmicas ponta de dedos / punho.............. 68

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    SUM RIO

    1. INTRODUO .............................................................................................. 111.1 Entrada Chamada ............................................................................... 11

    2. OS MTODOS DE PERCUSSO AFRO-BRASILEIRA ......................... 21

    2.1 Consideraes iniciais .......................................................................... 21

    2.1.2 Da cozinha sala de estar ...................................................... 23

    2.1.3 Novos recursos disponveis aos estudantes de percusso ......... 25

    2.2 Os mtodos de percusso afro-brasileira .............................................. 272.2.1 Objetivos que impulsionaram a publicao dos mtodos ......... 28

    2.2.2 Em busca de uma Educao Musical Brasileira ........................ 28

    2.2.3 Preconceitos sobre a percusso e os percussionistas ................. 30

    2.2.4 Os mtodos publicados no exterior ........................................... 32

    2.2.5 Contedos musicais e progressividade didtica ........................ 32

    2.2.6 Princpios pedaggicos comuns ................................................ 34

    2.2.7 Abordagens pedaggicas e tendncias comuns ......................... 36

    3. GESTO MUSICAL ......................................................................................... 38

    3.1 Aspectos iniciais ................................................................................... 38

    3.2 Gesto ..................................................................................................... 40

    3.3 Gesto musical ........................................................................................ 42

    3.3.1 Gesto fsico e gesto mental ........................................................ 43

    3.3.2 A mtua-fundao entre gesto e msica ................................... 46

    3.3.3 Dimenso cultural do gesto musical .......................................... 48

    3.4 Gesto musical e tcnica instrumental .................................................... 50

    3.5 Gestualidade e percusso ...................................................................... 51

    3.5.1 Gestualidade na percusso afro-brasileira ................................. 53

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    4. O GESTO E O MTODO .............................................................................. 56

    4.1 Apresentao do gesto musical nos mtodos de percusso

    afro-brasileira......................................................................................... 56

    4.1.1 Fotos, desenhos e vetores de movimento .................................. 57

    4.1.2 Textos explicativos .................................................................... 63

    4.2 Gesto musical e notao musical .......................................................... 66

    4.3 O gesto musical nos mtodos ................................................................ 68

    4.4 Possveis caminhos e percursos para o desenvolvimento de novas

    abordagens do gesto musical nos mtodos de percusso afro-brasileira .......... 69

    5. BREQUE FINAL ............................................................................................ 72

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................... 76

    ANEXO ....................................................................................................................... 80

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    INTRODUO

    1.1 Chamada - Entrada1

    A msica percussiva ocupa nos dias de hoje um lugar de destaque na cultura

    brasileira, sendo um dos principais smbolos culturais do pas. O Olodum, a Timbalada,

    as escolas de samba do Rio de Janeiro e os blocos afro, grupos musicais de base

    fortemente percussiva, se transformaram em cartes postais da cultura e da

    musicalidade brasileira.

    Esta msica fundada na relao intrnseca estabelecida entre gesto, som e

    movimento, recriada em cadaperformance pelos corpos dos batuqueiros e danarinos.

    Fixada na partitura, impressa nos mtodos de percusso afro-brasileira para ento

    ganhar lugar dentro da educao musical formal, ela distanciada de seus atores e de

    sua tradio, sofrendo intensa transformao no seu processo de produo, difuso e

    recepo.

    Ao longo da minha vivncia profissional como percussionista e professora, pude

    estudar vrios mtodos de percusso afro-brasileira, pioneiros na difcil tarefa de notar

    em partitura e sistematizar pedagogicamente o ensino da percusso brasileira, to

    variada em ritmos, instrumentos e tcnicas. Eles contm vasta gama de informaes,

    frases rtmicas, grades polifnicas de samba, maracatu, baio, entre outros ritmos, alm

    de exerccios tcnicos, leituras musicais e pequenos textos informativos sobre a histria

    dos ritmos e dos instrumentos.

    Entretanto, aspectos musicais que extrapolam a tcnica instrumental, a leitura

    rtmica e o repertrio de ritmos, como a interpretao, a improvisao e a composioso pouco sistematizados nestes manuais. Escritas musicais confusas, falta de ordenao

    e progressividade didtica dos contedos, excesso ou inexistncia de exerccios so

    problemas comuns a vrias publicaes. Para atender s diferentes demandas musicais

    dos alunos, torna-se necessrio, ento, utilizar trechos de vrios mtodos.

    1 As expresses entrada, chamada e virada so amplamente utilizadas na prtica percussiva afro-brasileira, que musicalmente tem a funo de articular a forma, o carter, o andamento e at o ritmo a sertocado. De acordo com a entrada, a chamada de um mestre de escola de samba ou samba-reggae, os

    participantes do grupo sabero que ritmo ou arranjo iro tocar a seguir. Uma virada ou um brequeconduzido pelo mestre ou executado em conjunto, poder sinalizar o final da msica, transiesimportantes ou pausas.

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    Uma preocupao semelhante sobre a pedagogia da percusso est presente na

    pesquisa de Rodrigo Paiva (2004). Ao analisar mtodos de percusso e bateria, ele

    observou que apesar da formao do percussionista estar profundamente ligada prtica

    em conjunto, estes privilegiam uma concepo de educao musical individualizada e

    descontextualizada. Por educao musical individualizada, o autor compreende a

    ausncia de ligaes com a prtica em conjunto e por educao musical

    descontextualizada, a pequena ou ausente preocupao com os diferentes perfis dos

    alunos. Os mtodos, dessa maneira, revelam uma educao musical relacionada com

    os valores tradicionais do ensino da msica (PAIVA, 2004, p.10), como a nfase na

    tcnica instrumental e na notao musical.

    Os mtodos analisados trazem uma srie de ritmos e exerccios para odesenvolvimento de habilidades relacionadas mecnica instrumental,principalmente tcnica, coordenao e independncia, ou ainda relacionadas teoria e notao musical. No h preocupao quanto integrao dessasatividades a questes musicais de carter mais amplo, como as capacidades de

    performance em grupo, improvisao, criao, apreciao e crtica musical.Alm disso, a reflexo e a discusso sobre as diferenas individuais entre osalunos no esto presentes na concepo da maioria desses mtodos, fazendocom que suas propostas e aplicaes muitas vezes se tornem pouco flexveis(PAIVA, 2004, p.10).

    Ritmos transmitidos oralmente, como o baio, maracatu, ijex e samba - apenas

    para citar alguns - so a matria prima fundamental dos mtodos de percusso afro-

    brasileira. Nestes, os ritmos da cultura popular so transcritos com o objetivo de

    registrar em partitura seus padres bsicos e variantes, ou para proporcionar o

    aprendizado de suas levadas2 caractersticas e tcnicas de seus instrumentos

    tradicionais. Entretanto, como ressaltou Paiva (2004), a sistematizao pedaggica dos

    mtodos , muitas vezes, baseada em modelos do ensino formal. Esta observao parece

    bvia, pois quando pensamos em mtodo de ensino instrumental, nos remetemos

    imediatamente longa tradio da educao musical formal. Porm, devemos refletir

    sobre as diferenas e as formas de transposio de um repertrio tradicionalmente

    caracterizado pela aprendizagem oral para o universo escolar, ou em outras palavras,

    pelo intermdio da partitura. Na medida em que a percusso passa a integrar o ensino

    institucionalizado nas escolas e universidades, os mtodos tornam-se objetos hbridos

    que transitam entre a cultura popular e a educao musical formal.

    2 Levada, groove e ritmo so sinnimos na linguagem coloquial do percussionista brasileiro.

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    Nesse sentido, atento a transposio de um repertrio transmitido oralmente para

    os domnios da educao formal, e refletindo sobre os limites de um material didtico,

    Ed Uribe (1993) aponta que:

    Este material uma organizao formal de estilos musicais que sobreviverame se desenvolveram de gerao a gerao, atravs da tradio oral. No umamsica que foi desenvolvida ou ensinada atravs da educao formal. Este um estudo de folclore. Voc est, em essncia, aprendendo uma linguagem alinguagem dos ritmos brasileiros e seus estilos musicais. Ao aprender qualquerlinguagem, voc estudar seus componentes, o alfabeto e a pronunciao,como formar palavras a partir de letras, como fazer frases e tudo mais. Oestudo deste material o mesmo. Voc ir praticar tcnicas bsicas e ritmos.Estes so os componentes. Voc ir depois coloc-los juntos para tocar estilosmusicais especficos e improvisar neste idioma. Num srio estudo delinguagem, o objetivo falar, entender e ser entendido falar como um nativo.Seu objetivo final em estudar um estilo musical deve ser o mesmo. Voc deve

    se esforar para tocar essa msica como se voc estivesse a aprendido em suapureza, de maneira autodidata, na tradio oral. Logo voc poder realmentesentir que sabe como tocar um estilo. O objetivo deste estudo no ensinarcomo tocar um samba ou baio em particular, mas aprender como tocarSamba, e Baio, juntamente com os outros estilos apresentados. Esta agrande diferena. (URIBE, 1993, p. 7)

    Entretanto, a notao musical enquanto matria escrita nasce na contradio da

    sua materialidade. O conhecimento fundado numa prtica scio-cultural especfica,

    como a da msica percussiva brasileira em constante movimento e transformao,

    recebe ento, uma forma, tambm especfica. Tais formas de ensino, na exigncia da

    sntese, vo delimitar e muitas vezes limitar a vivncia da musicalidade. Esta questo

    ultrapassa obviamente os limites da msica percussiva, tendo sido tratada por vrios

    pesquisadores nos domnios da Educao, Musicologia e Etnomusicologia3.

    Na sua aprendizagem informal, na vivncia socializadora e coletiva, nas festas e

    no cotidiano, a msica da cultura popular transmitida oralmente, atravs da imitao,

    repetio, observao e memorizao. So absorvidas no somente melodias e padres

    rtmicos, mas a corporalidade e os valores que cada manifestao carrega, apresentados

    explicitamente ou na forma de segredos, histrias e letras de msica. Dessa maneira, ser

    batuqueiro de maracatu incorporar a gestualidade do maracatu, plasmar seu corpo

    pela msica, pelo contexto, pelas histrias e pelos gestos dos antepassados, sem perder

    sua individualidade e expresso pessoal, pois a msica s existe no momento da

    performance e cada indivduo tem liberdade para criar sua tcnica, isto , desenvolver

    3 Para um panorama bibliogrfico sobre a questo ver: Cahiers de musiques traditionnelles. Le GesteMusical (2001); Heller (2006), Fenomenologia da expresso musical.

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    sua maneira de tocar e danar, de acordo com seu prprio corpo, sua percepo e

    expresso.

    Em um estudo sobre o gesto musical, que trata da topologia dos xilofones e

    aprendizagem musical no grupo Banda Gbambiya da frica Central, a antroploga

    Sylvie Le Bomin (2001, p. 201) afirma que: "no contexto da produo musical, a

    questo do gesto pode se apresentar pelo grupo de prticas e de estratgias coletivas e

    individuais que guiam o msico na sua interpretao4.

    A despeito das amplas discusses sobre o significado de gesto musical, que ser

    posteriormente discutido no captulo 3, a definio de Le Bomin nos atenta para a

    importncia do gesto na aprendizagem musical caracterizada pela transmisso oral. No

    podendo ser negligenciado, o gesto atua como uma importante referncia que orienta a

    imitao, a observao, a repetio e a memorizao, guiando o msico no seu percurso

    de aprendiz e na sua interpretao.

    Se nas manifestaes culturais brasileiras a gestualidade tem papel fundamental

    na transmisso do conhecimento musical, meio de interao e espelhamento, nos

    mtodos de percusso afro-brasileira o gesto se apresenta como uma grande lacuna,

    exceto naqueles que possuem materiais udio-visuais, como DVDs ou vdeos. O gesto

    apresentado em descries do posicionamento das mos, fotos e textos com longas

    explicaes sobre a maneira de produzir os diversos sons percussivos que so, muitas

    vezes, sintetizados por um discurso que utiliza uma linguagem assptica e cientfica.

    Para melhor exemplificar esta afirmao, podemos observar um trecho do mtodo de

    pandeiro de Luiz da Anunciao (1996), que procura explicar detalhadamente como

    executar um rulo de frico:

    Rulo um mecanismo tcnico utilizado em percusso para sustentar o som ouproduzir o efeito sonoro correspondente ao trmolo. A palavra rulo umadenominao genrica. Tecnicamente o som produzido pela frico do dedo

    polegar ao longo da membrana para gerar a trepidao das soalhas e obter oefeito desejado: o rulo. O dedo acompanha a direo da borda. Opcionalmente

    pode ser utilizado qualquer outro dedo. A eficcia da frico decorre de umaboa aderncia do dedo contra a membrana. Ter a membrana previamentepreparada e umedecer a ponta do dedo so medidas que asseguram um bomresultado na execuo do rulo. (ANUNCIAO, 1996, p. 34)

    4 Dans le contexte de la production musicale, la question du geste peut se prsenter comme ltant

    lensemble des conduites et des stratgies collectives ou individuelles qui guident le musicien dans soninterpretation.

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    Em contraposio, diversos mtodos de bateria e percusso erudita (marimba,

    vibrafone, caixa clara, tmpano e percusso mltipla) so inteiramente dedicados

    movimentao corporal ou dedicam boa parte de suas pginas ao estudo e

    aperfeioamento dos gestos (TACHA, 1998; STEVENS, 1990).

    Escrever em partitura um ritmo de maracatu no uma tarefa fcil, mas tarefa

    possvel. Vemos o resultado dessas transcries em muitos mtodos e partituras. Dentro

    desse contexto surge uma indagao: Como escrever ou descrever os gestos e os

    movimentos corporais, que so fundamentais para a performance e para o resultado

    sonoro? Essa tarefa difcil carrega em si mesma a prpria limitao intrnseca escrita

    musical ou a descrio verbal de gestos corporais.

    Apesar da riqueza de informaes e da inovao na publicao de mtodos sobre

    msica brasileira, a negligncia sobre a questo do gesto musical flagrante e

    inquietante. Dessa inquietude, surgiu ento a pergunta da presente pesquisa: Como o

    gesto musical apresentado e compreendido nos mtodos de percusso afro-brasileira?

    O tema amplo e interdisciplinar. Desta maneira, com a inteno de contribuir

    com esse campo de conhecimento, prope-se, neste primeiro momento, explicitar o

    tratamento dado para a gestualidade nos mtodos, a partir de uma anlise minuciosa,

    apontando assim a relevncia do assunto para a Educao Musical.

    Na apresentao de seu livro De tramas e fios Um ensaio sobre msica e

    educao, Marisa Fonterrada (2005) discute como a educao musical est sempre em

    estreita relao com os valores, idias e vises de cada sociedade, em suas diferentes

    pocas histricas.

    Atualmente, em face das profundas e rpidas mudanas que ocorrem em todasas reas, a educao musical pede uma reformulao que possa servir de guiaaos profissionais e membros da comunidade. Hoje, h uma enormenecessidade de compreenso da msica e dos processos de ensino eaprendizagem desta arte. (FONTERRADA, 2005, p. 11)

    Nesse sentido, a presente pesquisa afirma a importncia e a necessidade de

    investigaes sobre os processos de ensino-aprendizagem musical, especialmente no

    campo da percusso, carente de pesquisas e produo acadmica sobre o assunto.

    Diversos trabalhos sobre a percusso brasileira j foram realizados nas reas da

    Etnomusicologia, Musicologia e Educao, mas pouco foi escrito sobre a pedagogia e

    as metodologias de ensino da percusso no Brasil. Portanto, uma reflexo aprofundada

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    sobre as metodologias de ensino destes instrumentos se faz necessria, por cinco

    motivos principais:

    1 a percusso ganhou destaque e divulgao, inclusive miditica, na msica

    brasileira das ltimas dcadas, especialmente aps a exploso da msica baiana

    na dcada de oitenta;

    2 - a identificao da percusso e rtmica sincopada como um distintivo da

    msica brasileira e de brasilidade, tornando-se parte importante do ensino da

    msica brasileira;

    3 o grande nmero de blocos de percusso espalhados pelo pas em projetos

    sociais e escolas, tornando a pesquisa sobre esse tema relevante para a educao

    musical;

    4 a difuso dos mtodos de percusso, imbudos do poder do signo e da

    palavra escrita e/ou impressa, tornando-os referenciais do que , como , e

    como soa a prpria msica que os originou;

    5 finalmente, a carncia e escassez de pesquisas e produo acadmica sobre o

    tema.

    Diante disso, o objetivo geral da presente pesquisa explicitar a maneira como o

    gesto musical apresentado em 18 mtodos significativos da percusso afro-brasileira,

    editados no Brasil e no exterior entre 1986 e 20075.

    Para alcanar o objetivo geral da pesquisa foi necessrio realizar uma reviso

    crtica da literatura sobre o gesto musical, sobre as prticas de ensino da percusso afro-

    brasileira e sobre os processos de aprendizagem musical informal e formal.

    Na primeira etapa da pesquisa foi realizada uma compilao dos mtodos de

    percusso afro-brasileira, seguida de um estudo comparativo e da sistematizao de seus

    contedos, atravs da criao de uma tipologia e da realizao de um quadro

    comparativo. A tipologia criada se baseia nos seguintes critrios:1 - suporte material (como a existncia ou no de CDs de udio e vdeo, aparncia,

    fotos, textos bilnges, etc..);

    2 dados bibliogrficos (data e local de publicao, autor, textos explicativos);

    3 contedo musical (improvisao e criao, existncia de exerccios de leitura

    rtmica, peas compostas para o instrumento, repertrio de ritmos);

    5 Ver lista dos mtodos estudados no Anexo 1.

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    4 abordagem tcnica (posio das mos nos instrumentos, exerccios tcnicos,

    tcnica desvinculada do repertrio);

    5 abordagem pedaggica (progressividade e ordenao dos contedos, clareza da

    escrita musical).

    A segunda parte da pesquisa consiste na anlise do tratamento do gesto nos

    mtodos de percusso, seguida da discusso e da reflexo sobre as questes e dados

    levantados durante a anlise, presentes no captulo 4, O gesto e o mtodo.

    Alguns autores referenciados nesta investigao merecem destaque, no que

    tange os domnios da Educao Musical (ARROYO, 2000; SANTIAGO, 2004;

    FONTERRADA, 2005; FEICHAS; 2006), da Etnomusicologia (LUCAS, 2002), da

    Sociologia da Msica (GREEN, 2001) e no amplo e polmico tema do gesto musical

    (HELLER, 2006; ZAGONEL, 1992; IAZZETTA, 2008; MABRU, 2001; MARTINEZ,

    2001).

    Uma vez que a msica aqui compreendida como discurso, a hermenutica da

    profundidade proposta por John Thompson (1995) adotada como referencial

    metodolgico que orientar a anlise do gesto e estudo dos mtodos de percusso, aqui

    destacados como formas simblicas significativas do ensino musical formal.

    De acordo com o autor:

    [...] estudo das formas simblicas fundamentalmente e inevitavelmente umproblema de compreenso e interpretao. Formas simblicas so construessignificativas que exigem uma interpretao; elas so aes, falas, textos que,

    por serem construes significativas, podem ser compreendidas.(THOMPSON, 1995, p. 357)

    A diferena e caracterstica do pensamento hermenutico estono valor dado

    interpretao, em contraposio herana positivista do sculo XIX que ainda

    sobrevive no estudo das humanidades, expressa no tratamento das formas simblicascomo objetos naturais, passveis de vrios tipos de anlise formal, estatstica e objetiva.

    Segundo Thompson (1995, p. 356) , a hermenutica de profundidade um

    referencial metodolgico que apresenta trs fases ou procedimentos principais que no

    so separados ou seqenciais, mas dimenses analiticamente distintas de um processo

    interpretativo complexo. So elas: a anlise scio-histrica, a anlise formal ou

    discursiva e a interpretao ou re-interpretao.

    A anlise scio-histrica tem por objetivo reconstruir as condies sociais e

    histricas de produo, difuso e recepo das formas simblicas. A anlise formal ou

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    discursiva procura compreender a organizao interna das formas simblicas, com suas

    caractersticas estruturais, seus padres e relaes. (THOMPSON, 1995, p. 376)

    A etapa final da metodologia da hermenutica da profundidade a

    interpretao/reinterpretao, que consiste na sntese, na construo criativa de

    possveis significados a partir das anlises scio-histricas e discursivas. Nesse sentido,

    sinaliza-se a concordncia entre o pensamento de Thompson e de Edgar Morin (2006),

    na valorizao da complementaridade entre os processos de anlise e sntese, para gerar

    uma compreenso aprofundada e complexa dos objetos estudados, que relaciona o

    conhecimento das partes ao conhecimento do todo.

    Para Thompson (1995, p. 376), o processo de interpretao vai alm dos

    mtodos de anlise scio-histrica ou discursiva, pois ele transcende a

    contextualizao das formas simblicas tratadas como produtos socialmente situados, e

    o fechamento das formas simblicas como construes que apresentam uma estrutura

    articulada. Entretanto, toda interpretao uma reinterpretao, pois os objetos

    estudados esto inseridos num campo anteriormente pr-interpretado pelos sujeitos do

    mundo social e histrico. Dessa forma, o processo de interpretao necessariamente

    arriscado, cheio de conflito e aberto discusso, criando um grande potencial crtico

    na tarefa da interpretao.

    Devido s necessidades e caractersticas da presente pesquisa, os procedimentos

    da anlise formal e da interpretao/reinterpretao sero enfatizados, em detrimento da

    anlise scio-histrica dos mtodos. Na pesquisa, a anlise scio-histrica consiste

    na observao dos objetivos que impulsionaram a criao dos mtodos, das maneiras de

    recepo e utilizao destes manuais, apontando para uma lenta transformao nas

    prticas de aprendizagem e ensino da percusso no pas, cada vez mais prximas do

    registro em partitura. O estudo comparativo realizado (sistematizao dos contedos e

    abordagens pedaggicas, criao de tipologia e a realizao de tabelas) reflete a etapa daanlise formal proposta pela hermenutica da profundidade, que pretende compreender

    a estrutura pedaggica dos mtodos, revelando quais so seus pontos comuns e

    divergentes. Os questionamentos e discusses frutos da anlise do gesto nos mtodos de

    percusso correspondem aqui aos processos de interpretao/reinterpretao, que

    buscam revelar novas vises sobre a educao musical percussiva e propor reflexes

    que possam iluminar e enriquecer a pedagogia da percusso.

    Os mtodos de percusso so tratados como textos culturais e como documentoshistricos significativos de uma cultura, de acordo com o sentido atribudo por Jacques

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    Le Goff (2003). Para os historiadores embebidos do esprito positivista do sculo

    XIX, os documentos vlidos eram apenas textos escritos e estes se apresentavam como

    provas histricas objetivas, mesmo sendo escolhidos e selecionados pelo olhar do

    historiador (LE GOFF, 2003, p. 527). Entretanto, na segunda metade do sculo XX, um

    movimento de renovao da historiografia francesa, chamado Nova Histria Cultural,

    empreendeu uma verdadeira revoluo documental nos estudos histricos, destacando a

    necessidade de diversificao das fontes e objetos usados na pesquisa histrica, assim

    como a utilizao de novos mtodos de pesquisa.

    No textoDocumento/Monumento, Le Goff (2003) amplia e enriquece o contedo

    do que documento, antes limitado a textos escritos, mas que passa a ser toda e

    qualquer produo da cultura, pois h que se tomar a palavra documento no sentido

    mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de

    qualquer outra maneira. (SAMARAN apudLE GOFF, 2003, p. 531)

    Le Goff ressalta ainda a importncia da crtica do documento enquanto

    monumento, pois ele testemunha de uma poca e de um poder, sendo ao mesmo

    tempo, fruto e criador desse poder. Dessa maneira, o documento no qualquer coisa

    que fica por conta do passado, uma produto da sociedade que o fabricou segundo as

    relaes de fora que a detinham o poder. S a anlise do documento enquanto

    monumento permite memria coletiva us-lo cientificamente, isto , com pleno

    conhecimento de causa. (LE GOFF, 2003, p. 536)

    O documento monumento. Resulta do esforo das sociedades histricas paraimpor ao futuro voluntria ou involuntariamente uma imagem de si

    prprias. Cabe ao historiador no fazer papel de ingnuo. [...] por que qualquerdocumento ao mesmo tempo, verdadeiro incluindo talvez sobretudo osfalsos e falso, porque um monumento em especial uma roupagem, umaaparncia enganadora, uma montagem. preciso comear por desmontar,demolir essa montagem, desestruturar essa construo e analisar as condies

    de produo dos documentos-monumentos. (LE GOFF, 2003, p. 538)

    No mesmo sentido, Marcos Napolitano (2002, p. 32) afirma que o documento

    artstico-cultural um documento histrico como outro qualquer, na medida em que

    produto de uma mediao de experincia histrica subjetiva com as estruturas objetivas

    da esfera econmica.

    Dessa maneira, a anlise dos mtodos pretende ir alm da discusso de suas

    pedagogias, refletindo tambm sobre valores e concepes subjacentes escrita dos

    mtodos, que permeiam e ultrapassam a pedagogia instrumental e se mostram

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    relevantes, instigando a investigao e abrindo portas para a compreenso e discusso

    mais ampla do ensino formal da percusso brasileira.

    Os captulos que compe a presente dissertao esto apresentados da seguinte

    maneira: No captulo 2, Os mtodos de percusso afro-brasileira, so apresentados

    estes manuais de ensino em suas caractersticas e peculiaridades, alm da discusso de

    suas abordagens, contedos e tendncias pedaggicas comuns. O intuito do Captulo 3,

    O gesto musical, apresentar uma reviso de literatura e uma reflexo aprofundada

    sobre o assunto, alm de explicitar a importncia do gesto para o ensino e a prtica

    percussiva afro-brasileira. No captulo 4, O gesto e o mtodo, so apresentadas as

    anlises e discusses sobre a maneira como o gesto musical valorizado ou

    negligenciado nos mtodos de percusso. Por fim, em Breque Final, so apresentadas

    as consideraes finais e reflexes que surgiram da anlise dos mtodos, assim como as

    possveis contribuies da pesquisa e a importncia de colocar em evidncia a pesquisa

    sobre a pedagogia da percusso afro-brasileira.

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    OS MTODOS DE PERCUSSO AFRO-BRASILEIRA

    Este captulo apresenta os mtodos de percusso afro-brasileira estudados, em

    suas particularidades e pontos em comum. Inicialmente, descreve-se o movimento de

    expanso e divulgao da percusso a partir da dcada de oitenta, com o surgimento do

    samba-reggae no cenrio musical nacional, com a abertura de novas escolas e cursos

    superiores de percusso e com aumento de publicaes sobre o assunto no pas e no

    exterior. Dessa maneira, o captulo trata tambm das mudanas nas prticas de

    produo, difuso e recepo cultural da percusso e tenta compreender quais foram as

    principais motivaes que levaram a criao destes manuais.

    Em seguida, uma sistematizao dos contedos, princpios e abordagens

    musicais dos mtodos apresentada, revelando as principais tendncias pedaggicas

    neles presentes. Esta sistematizao, adequada s caractersticas dos mtodos de

    percusso, se inspirou na pesquisa de Patrcia Santiago (2004), que realizou uma ampla

    reviso de literatura sobre a pedagogia do piano, atravs do estudo de mtodos

    publicados em locais e pocas diferentes.

    2.1 Consideraes iniciais

    No incio dos meus estudos em percusso afro-brasileira, os mtodos de

    percusso foram uma das minhas principais fontes de pesquisa, embora houvesse

    poucos ttulos minha disposio. Naquela poca eu participava de um grupo para-

    folclrico que fazia apresentaes em festivais e, num desses encontros, vivi uma

    situao que ilustra claramente o que me inspira pesquisar os mtodos e as diferentesabordagens de ensino da percusso.

    Naquela circunstncia, eu estava tocando zabumba, pensando no tema Asa

    Branca de Luis Gonzaga, um baio que iramos tocar noite, quando uma

    percussionista da Paraba, que tambm participava do festival me perguntou: E a

    menina, o que voc est tocando? Respondi prontamente: Um baio.

    Coincidentemente, eu havia estudado este ritmo a partir de um mtodo de percusso e

    estava fascinada por ele. Numa gargalhada gostosa, a percussionista me pediu paramostrar na zabumba o que era realmente um baio. Ela comeou a tocar um fraseado

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    complicado que levei algum tempo para compreender e reproduzir. Depois desse

    encontro, ao comparar as duas frases rtmicas, a aprendida com a zabumbeira e a escrita

    em partitura, pude compreender que o ritmo notado continha uma simplificao, por que

    demonstrava apenas um primeiro esqueleto do baio, uma sntese, reduo pedaggica

    que me propiciou um contato inicial com o ritmo e no a maneira como ele era tocado

    tradicionalmente, por exemplo, na Paraba.

    Atravs desta pequena histria no pretendo afirmar que o primeiro padro

    rtmico, aprendido no mtodo, estava incorreto e o padro rtmico da percussionista

    paraibana era o correto. Existem muitas variaes de um mesmo ritmo dentro de uma

    regio to grande como o nordeste brasileiro, dentro de uma cidade, ou dentro de um

    nico grupo. Cada msico pode compreender e executar um ritmo de forma

    diferenciada, em sutis variaes ou grandes mudanas rtmicas, imprimindo na

    interpretao musical sua prpria personalidade e/ou as caractersticas e sotaques de sua

    localidade. Neste sentido, Glaura Lucas (2002, p. 121) afirma que na msica do

    congado mineiro, um nico padro [rtmico] pode diferir, em alguns aspectos, de

    caixeiro para caixeiro, de guarda para guarda, e at em dois momentos de execuo de

    um mesmo caixeiro.

    Entretanto, o contato direto com a percussionista paraibana despertou ento uma

    reflexo mais ampla do que era um ritmo. O ritmo de baio no era apenas uma

    seqncia de divises rtmicas distribudas em timbres diferentes - agudas ou graves,

    secas ou ressonantes, no caso da zabumba - mas uma somatria de gestos, acentos,

    inflexes, fraseados e variaes que se tornavam mais facilmente compreensveis

    atravs da observao dos movimentos e sons produzidos pela percussionista.

    Oscar Bolo (2003), excelente e experiente percussionista-baterista, autor do

    mtodo de samba Batuque um privilgio, tambm viveu semelhante dificuldade em

    obter materiais impressos sobre ritmos brasileiros na sua poca de estudante. O ttulo dolivro parafraseia e dialoga com a famosa msica Feitio de Orao de Noel Rosa e

    Vadico, no verso batuque um privilgio, ningum aprende samba no colgio.....

    E no se aprendia mesmo. O depoimento de Bolo transcrito abaixo descreve

    como acontecia o aprendizado da percusso, quais eram as fontes e materiais

    disponveis na poca em que ele comeou a estudar bateria:

    Quando tomei a deciso de me tornar msico profissional - e l se vo quasetrinta anos -, esbarrei na enorme dificuldade em conseguir material didticoque possibilitasse o meu aprimoramento. O que se via nas prateleiras

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    especializadas eram mtodos e mais mtodos vindos de fora. Eram trabalhosvoltados para o Rock ou para o jazz e que davam nfase aplicao derudimentos de caixa da escola americana. Para um jovem interessado emritmos brasileiros, pouco ou quase nada havia. Nas escolas oficiais, o ensino da

    percusso era dirigido quase exclusivamente para a msica sinfnica. Asmelhores fontes para o aprendizado eram, ento, os discos, os espetculos e os

    redutos de samba e choro. Gafieiras, biroscas, bares e quadras de ensaio queeram as minhas salas de aula. (BOLO, 2003, p. 10)

    Entretanto, este panorama transformou-se a partir da dcada de oitenta, com o

    aumento significativo das publicaes sobre msica brasileira, incluindo tambm os

    livros e mtodos sobre ritmos brasileiros, bateria e percusso. Em 1988 a editora Lumiar

    lanava seu primeiro songbook sobre a obra de compositores nacionais e as revistas

    semanais Modern Drummer Brasil e Batera foram lanadas em 1996 e 2003,

    respectivamente.

    2.1.2 Da cozinha sala de estar

    Um novo cenrio se revelou para a msica percussiva brasileira nas ltimas

    dcadas. O movimento de revalorizao esttica, a ampliao dos mercados

    consumidores, o lanamento de publicaes sobre ritmos brasileiros e a criao de

    novas escolas e grupos demonstraram um grande interesse despertado sobre esse

    assunto. Da cozinha sala de estar, expresso usada por Guerreiro (2000) para definir

    a mudana de status social do samba-reggae6baiano, uma imagem que explicita o

    deslocamento alegrico da percusso, sada da periferia cultural e econmica rumo ao

    centro da produo musical brasileira.

    A criao, em 1978, do curso de percusso superior na Universidade Estadual de

    So Paulo e do grupo de percusso PIAP, sob a direo de John Boudler, foi um

    momento decisivo para a divulgao da msica percussiva contempornea no Brasil e

    para a formao de futuros percussionistas. Em 1987, Ney Rosauro tambm

    implementar na Universidade Federal de Santa Maria o bacharelado em percusso.

    Posteriormente, outros cursos superiores sero criados em vrios estados brasileiros,

    entre eles Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e Paraba. Estes cursos incitaro uma

    6 O samba-reggae a msica, basicamente percussiva e vocal, criada pelos blocos afro-baianos a partir

    dos anos 80. O termo pode designar tambm a rtmica executada pelos tambores e instrumentosharmnicos de base. Este complexo cultural fundiu influncias musicais do samba, do candombl, domerengue e da salsa e possui uma variada gama de padres rtmicos.

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    nova produo no campo da msica contempornea brasileira, formando novas geraes

    de msicos eruditos e professores.

    A msica contempornea, to conhecida pela sua inacessibilidade aos no-

    iniciados, pela sua dificuldade tcnica de execuo e alta sofisticao do seu repertrio,

    ganha um novo movimento de difuso atravs dos trabalhos desenvolvidos pelo grupo

    PIAP (e pelos seus diretores John Boudler, Carlos Stasi e Eduardo Gianesella), pelo

    Grupo de Percusso da UFSM (coordenado por Ney Rosauro) e pelo Grupo de

    Percusso da UFMG (sob direo de Fernando Rocha), grupo no qual participei como

    percussionista durante quatro anos.

    No mbito da msica popular, outras revolues tambm se processavam. A

    exploso miditica da percusso e o sucesso do samba-reggae, fenmenos tambm

    surgidos a partir dos anos 80, incitaram a criao de centenas de escolas de percusso e

    blocos-afro nos projetos sociais espalhados pelo pas. O samba-reggae trouxe em suas

    letras e em seu ritmo a valorizao do universo negro, que buscava participar mais

    ativamente da cena poltica e cultural no Brasil. A apropriao da linguagem percussiva

    do samba-reggae, adaptada as tendncias musicais do mercado consumidor, gerou um

    novo paradigma rtmico, composicional e tmbrico que iria marcar profundamente a

    msica popular brasileira. Dos bairros pobres de Salvador, dos desfiles de bloco nos

    carnavais, esta msica, de sonoridade nova e danante, de cadncia sincopada e no

    muito rpida, seria imediatamente incorporada aos programas de televiso e rdio,

    sempre associada ao repertrio carnavalesco.

    Neste contexto de divulgao e ampliao dos espaos da msica percussiva,

    projetos sociais espalhados por todo pas investiram no grande poder musicalizador e no

    potencial de transformao social que os grupos de percusso poderiam exercer em suas

    comunidades. O ensino da percusso foi descoberto como estratgia eficaz para atrair a

    participao dos jovens de bairros desfavorecidos, que vm nos blocos uma forma deincluso social e vivncia artstica. Nasceram ento na Bahia vrias escolas de

    percusso ligadas aos blocos-afro, como a Escola Criativa do Olodum, a Escola de

    Msica Did e a Pracatum de Carlinhos Brown. Enquanto isso, as escolas de samba do

    Rio de Janeiro compunham suas batucadas mirins, assegurando a perpetuao desta

    tradio musical.

    A Msica Percussiva Brasileira se estabelece ento, como um fenmeno cultural

    que atravessa diferentes meios sociais, polticos e estticos. Se apropriando dediferentes linguagens e ancorada em tradies muitas vezes opostas, a msica

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    percussiva parece delimitar seu campo de difuso e recepo de forma quase consciente.

    Aqui estamos na oposio clssica dada no binmio: msica popular e msica erudita.

    No seria uma mera coincidncia que dois fenmenos aparentemente opostos, o

    momento da exploso da msica percussiva baiana e da criao de cursos de percusso

    erudita nas universidades brasileiras aconteam simultaneamente.

    2.1.3 Novos recursos disponveis aos estudantes de percusso

    Se na poca de estudante de Bolo (2003) era difcil encontrar mtodos de

    bateria e percusso que no fossem americanos, focados no jazz e no blues, atualmente

    o panorama diferente. Dezenas de vdeo-aulas, mtodos e apostilas dedicadas

    percusso e a rtmica afro-brasileira esto disponveis nas prateleiras das lojas de

    msica.

    Com o aumento da quantidade de informaes disponveis, abertura de cursos,

    escolas e blocos de percusso e com a popularizao da internet, outras ferramentas de

    aprendizado e acumulao de conhecimento passam a ser utilizadas pelos estudantes. O

    depoimento do percussionista Guello sinaliza uma possvel mudana nas prticas

    sociais de estudo da percusso afro-brasileira.

    Lembro-me que, quando comecei a estudar percusso, eu ouvia, observava, eprocurava guardar na memria tudo o que tinha visto e ouvido na rua comamigos, em shows ou nas aulas com Osvaldinho da cuca, para que, depois deter observado todas essas performances e recebido tantas informaes, emcasa, tocar tudo aquilo que tinha absorvido. Registrar os modos e formas detocar o Pandeiro com a escrita musical, para um percussionista naquela pocaera bastante raro e eu no fugia regra. Hoje, depois de alguns anos, quandoenfim os percussionistas demonstram maior intimidade com a escrita musical,vejo que os novos msicos e estudantes de percusso fazem o que eu faziainstintivamente, observam, escutam, aprendem e tentam fazer, ao seu modo, oque ouviram, s que agora se sentem aptos a fazer o registro, atravs da escritamusical. (GUELLO apudSAMPAIO, BUB, 2006, p. 8, grifo meu)

    Apesar da crescente utilizao de mtodos e manuais de ensino, grande parte das

    relaes de ensino-aprendizado da percusso afro-brasileira acontece sem a utilizao

    da leitura musical. Alm do uso da notao, estes apresentam por vezes um custo

    elevado, sendo encontrados principalmente em lojas especializadas das grandes cidades,

    tornando-se acessvel apenas a um pblico restrito.

    Para o percussionista, as principais fontes de pesquisa e vivncia ainda so os

    shows, concertos, aulas particulares, audies de gravaes e situaes de interao com

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    msicos mais experientes. O contato com mestres da cultura popular e a participao em

    grupos tambm so momentos privilegiados de seu aprendizado musical. Danando nas

    rodas de samba, acompanhando cortejos de blocos-afro, se misturando aos arrastos de

    maracatu ou assistindo a ensaios de escolas de samba, o percussionista compe seu

    repertrio pessoal de ritmos, frases e timbres.

    Diversos pesquisadores estudaram grupos da cultura popular brasileira de base

    fortemente percussiva, incluindo suas formas de transmisso musical oral (ARROYO,

    1999; CARDOSO, 2008; GUERREIRO, 2000; LUCAS, 2005; PRASS, 2004). Destaca-

    se o trabalho de Luciana Prass sobre a escola de samba catarinense Bambas da Orgia.

    Ao observar as formas de transmisso musical naquele grupo, a autora afirma que o

    aprendizado percussivo ocorre quase indiretamente entre os familiares e a partir deles,

    pois quem ensina vivncia socializadora na quadra, desde a infncia, convivendo

    com msica e dana, com o mundo do samba e do carnaval. (PRASS, 2004, p. 138)

    Entretanto, ngelo Cardoso (2008) aponta a incorporao de novas formas de

    aprendizagem musical dos atabaques na religio do candombl, especificamente no

    grupo baiano de Casa Branca.

    Alm dos pais e mes-de-santo indicarem livros, emprestarem Cds, vdeos,tudo isso claramente realizado como uma forma complementar de ensino,

    preocupados com a dinmica da vida contempornea, v-se algumas inovaesprticas no ensino, por parte dos lderes da religio. Um exemplo recentedessas novidades a criao de Oficinas de toques de atabaques. Essasoficinas consistem no ensino dos toques de candombl para grupos decrianas. (...) Hoje, outras casas de candombl, seguindo o exemplo deEdvaldo, tambm realizam essas oficinas. Conforme o prprio alab da CasaBranca, sua iniciativa nasceu de uma preocupao em capacitar pessoas amanter a tradio dos toques. (CARDOSO, 2008, p. 5)7

    Dessa maneira, mesmo que o aprendizado percussivo permanea, em sua

    essncia, baseado na imitao, na memorizao e na capacidade de observar e

    reproduzir gestos e fraseados, como ressaltou Guello e Prass, os mtodos vm

    complementar a prtica e a pesquisa de estudantes e professores, pois as diferentes

    faces do aprendizado no se excluem. (CARDOSO, 2008, p. 1) Assim, torna-se

    fundamental observar e tentar melhor compreender estes novos mtodos de percusso.

    Nas sees seguintes, procura-se definir e compreender quais so os mtodos de

    7

    CARDOSO, ngelo Nonato Natale.Aprendizagem no candombl: Inovaes e pluralidade.Internet em 11/01/2008. http://www.anppom.com.br

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    percusso, quais motivos incentivaram a sua escrita, bem como sua estruturao

    pedaggica, contedos e principais abordagens.

    2.2 Os mtodos de percusso afro-brasileira

    Antes de comearmos, necessrio definir precisamente o que chamamos de

    mtodos e manuais de msica. Mtodo musical aqui compreendido como um

    material didtico que apresenta uma seqncia de atividades e exerccios organizados

    para o estudo de instrumentos. (PAIVA, 2004, p. 9)

    Os mtodos de percusso estudados na presente pesquisa foram publicados entre

    1986 e 2007, no Brasil e no exterior. Escritos por pedagogos experientes, por

    percussionistas, ou na associao entre msicos de formao erudita e mestres da

    cultura popular, procuram sistematizar e transcrever em partitura o vasto conhecimento

    percussivo brasileiro. Apresentam, em sua maioria, textos em portugus e ingls,

    chegando ao limite de ensinar o ritmo de escola de samba em 6 lnguas. (SALAZAR,

    CHEDIAK, 1991)

    Especializados em um ritmo, em um instrumento ou com pretenses

    panormicas, abarcando simultaneamente vrias manifestaes culturais brasileiras, os

    mtodos se lanam na dupla tarefa de transcrever e transpor pedagogicamente uma

    msica marcada pela transmisso oral. Tarefa que rene reflexes etnomusicolgicas e

    pedaggicas, expressas na escolha de o que e como transcrever, na opo de organizar

    os contedos didaticamente ou tentar no reproduzir padres educacionais do ensino

    musical tradicional.

    Da enorme diversidade de mtodos de percusso - livros sobre a percusso

    cubana, africana, rabe e erudita foram selecionadas as publicaes sobre a percusso

    afro-brasileira, devido grande carncia de estudos sobre o assunto na rea da EducaoMusical e da Pedagogia Instrumental. Destaca-se a pesquisa de Paiva (2001), que

    analisou vdeo-aulas e mtodos de bateria e percusso publicados no Brasil e no

    exterior, voltados aprendizagem de todos os estilos musicais.

    O perodo escolhido marca a primeira publicao encontrada pela bibliografia

    (ROCCA, 1986), abragendo exemplos dos livros pioneiros, passando expanso editorial

    a partir do incio dos anos 2000 (GONALVES, COSTA, 2000; MARTINEZ, 2002;

    BOLO, 2003), chegando atualidade (SAMPAIO, 2007; BRASIL, 2006; SANTOS,RESENDE, 2005), momento de valorizao da percusso no pas.

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    2.2.1 Objetivos que impulsionaram a publicao dos mtodos

    Coexistem nos materiais didticos para percusso afro-brasileira uma srie de

    diferentes objetivos, concepes e tentativas, tornando-os um rico e interessante objeto

    de pesquisa. Objetivos pedaggicos, polticos, estticos e tcnicos que se inter-

    relacionam continuamente, em oposio ou em complementaridade.

    Vrios foram os motivos que impulsionaram a escrita destes manuais. Podemos

    destacar o desejo de se desenvolver um ensino musical brasileiro; de organizar e

    sistematizar o ensino percussivo; de levar a percusso at a educao musical formal; de

    desenvolver um estilo de escrita rtmica adequada aos ritmos brasileiros; de divulgar e

    preservar a cultura popular brasileira, tanto para o pblico interno, quanto para o

    externo; e de suprir uma crescente demanda por materiais e mtodos sobre a rtmica e a

    percusso brasileira.

    2.2.2 Em busca de uma Educao Musical Brasileira

    Um aspecto sempre presente nos primeiros mtodos encontrados pela

    bibliografia o desejo de desenvolver uma Educao Musical Brasileira, que se

    fundamente nos elementos musicais constituintes da nossa identidade nacional. Quais

    seriam estes elementos que afirmam e destacam a musicalidade brasileira? Ritmos,

    instrumentos percussivos, escalas, modalismos e os estilos musicais nacionais por

    excelncia, como por exemplo, o samba? A despeito dos intensos debates sobre os

    significados do nacionalepopularna msica brasileira, presentes na obra de Mrio de

    Andrade na dcada de 20 e 30, reavivados por Jos Miguel Wisnik (2004), Napolitano e

    Wasserman (2000) pode-se afirmar que a msica prestou um papel fundamental para

    delinear os traos da brasilidade. Distintivos da msica brasileira e associados identidade nacional8, os ritmos brasileiros e seus instrumentos de percusso se tornam

    ento essenciais ao objetivo de se desenvolver um ensino musical brasileiro.

    A Escola Brasileira de Msica, editora dos mtodos de Rocca (1986) e

    Anunciao (1990, 1996), tinha como slogan: um modo brasileiro de ensino de

    msica. Sobre o lanamento do segundo livro de Anunciao, Nelson de Macedo

    afirma:

    8 Para um panorama sobre o debate histrico das origens na msica brasileira, ver Napolitano (2007) eVianna (1995).

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    O livro Pandeiro Estilo Brasileiro resultado de sria pesquisa do professor epercussionista Luiz DAnunciao, que codifica o uso que o povo brasileiro faz do pandeironas diversas formas de expresso musical brasileira, como o samba, o choro, frevo, msicanordestina e manifestaes folclricas. O ineditismo desta obra coincide com o objetivo

    prioritrio da Escola Brasileira de Msica: um pensar musical brasileiro. (...) O estudocontnuo e permanente de nossos ritmos, nossas escalas, nossos modalismos, nossasfrmulas meldicas e harmnicas tem sido a busca por um idioma musical verdadeiramente

    brasileiro (NELSON MACEDO apudANUNCIAO, 1996: 9).

    Apesar de nos localizarmos em um momento histrico j distanciado dos debates

    sobre a construo da identidade nacional, no qual a rtmica brasileira j sinnimo de

    brasilidade, objetivos nacionalistas e de preservao do folclore esto claramente

    expressos naqueles mtodos. Esta tendncia pode ser observada em diferentes graus, em

    publicaes posteriores, que na maioria das vezes se restringem a apresentar ritmosafro-brasileiros tradicionais, mesmo com o surgimento de novas tcnicas, criao de

    novos ritmos e linguagens musicais.

    Contraditoriamente, nos mtodos de Anunciao, os elementos e ritmos

    tradicionais so um ponto de partida, uma fonte de composio, possvel ponte de

    ligao entre a cultura brasileira e msica percussiva contempornea. No mtodo de

    Berimbau, por exemplo, proposta uma nova tcnica utilizando duas baquetas na mo

    direita, baseada na tcnica Gary Burton de vibrafone, alm de uma srie de estudos epequenas peas utilizando os novos recursos disponibilizados. Sobre o autor, Nelson

    Macedo afirma que: Primeiro percussionista a se preocupar com a pedagogia musical

    atravs de um pensar brasileiro. A codificao da escrita do berimbau, realizada neste

    trabalho, tem o mrito de, entre outros, incorpor-lo de forma definitiva cultura

    musical universal. (NELSON MACEDO apudANUNCIAO, 1996: 5)

    O que significaria exatamente incorporar o berimbau cultura musical

    universal? Certamente, seria escrever seus padres rtmico-meldicos em partitura,sistematizar pedagogicamente seus repertrios, tornando possvel seu ensino formal e

    sua utilizao como matria-prima de futuras composies musicais. Assim, neste

    pequeno texto acima revelada uma pista sobre a importncia da escrita musical como

    meio de insero da percusso afro-brasileira nas escolas de msica, na academia e nos

    conservatrios, isto , no contexto da Educao Musical formal.

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    2.2.3 Preconceitos sobre percusso e os percussionistas

    Nos pequenos detalhes s vezes nem to pequenos podemos observar

    indcios da auto-imagem do percussionista, ou daquela imagem que no se quer mais

    afirmar e sim transformar.

    Ilustrado com desenhos, o mtodo de Rocca (1986) apresenta cenas de vrios

    msicos tocando diferentes instrumentos de percusso. No semblante, na cor da pele e

    nas vestimentas dos msicos so apresentadas as classes sociais s quais cada estilo

    musical estaria associado, no olhar do desenhista. A percusso afro-brasileira (figura 1),

    na viso romntica e preconceituosa do ilustrador, tocada por negros descalos e sem

    camisa, ou por pessoas com claros traos mestios. A percusso sinfnica (figura 2),

    dona de outro status e importncia cultural e social, sempre interpretada por um

    msico de orquestra, de cabelos lisos e traos europeus, trajando um terno.

    FIGURA 1 Percussionistas tocando atabaque

    Fonte: Rocca, 1986, p. 18

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    FIGURA 2 Percussionista tocando bombo sinfnico

    Fonte: Rocca, 1986, p. 21

    A msica popular seria o espao idealizado de interao entre os diversos grupos

    sociais e tnicos, como no samba e no forr, nicos exemplos de desenhos que mostram

    homens mestios, brancos e negros tocando lado a lado (figura 3). Ressalta-se que

    nenhuma mulher retratada tocando percusso.

    FIGURA 3 Percussionistas tocando zabumba

    Fonte: Rocca, 1986, p. 37

    Em seu cotidiano, o percussionista por vezes se depara com diversos

    preconceitos associados a sua profisso, piadas e lugares comuns, desmerecendo e

    desvalorizando sua prtica. Podemos perceber a transformao destes lugares comuns

    com o passar do tempo, com a transformao e valorizao do status social da

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    percusso. Alguns resqucios destas atitudes foram descritas no Mtodo Bsico de

    Percusso de Jacob (2003).

    No se deve encarar os instrumentos, e, consequentemente a msica, com preconceito.

    Nenhum instrumento secundrio ou dispensvel. Ele pode ser bem ou mal tocado. Bemou mal utilizado. Estes so os maiores problemas encontrados pelos percussionistas, muitasvezes encarados como subprodutos musicais, que esto num grupo para tocar apenas umanota no triangulo ou executar apenas um rufar de tmpanos durante uma msica. (JACOB,2003, p. 12).

    2.2.4 Os mtodos publicados no exterior

    Mtodos publicados nos Estados Unidos, Alemanha e Frana foram includos na

    pesquisa (URIBE, 1993; SABANOVICH; ASSIS, 2003; MARTINEZ, 2002; MINDY,

    2003) com o objetivo de demonstrar o interesse que a percusso brasileira desperta no

    exterior e apontar algumas imagens e conceitos por vezes relacionados a ela.

    Nestes manuais os aspectos relacionados prtica em conjunto so enfatizados,

    como a presena de grades polifnicas9 dos ritmos, a transcrio de arranjos completos,

    textos explicativos sobre a msica brasileira ou a histria dos instrumentos, compilao

    de breques, viradas e variaes tradicionais. Eles apresentam tambm informaes

    prticas fundamentais para se montar um grupo de percusso brasileira, desde a

    instrumentao bsica, posicionamento dos instrumentos no espao, a possveis

    substituies de instrumentos tradicionais por outros encontrados mais facilmente. Em

    alguns casos, elementos tpicos da rtmica brasileira so destacados e organizados

    pedagogicamente em exerccios de progressiva dificuldade.

    Alguns mtodos estrangeiros trazem simplificaes e equvocos que podem

    confundir seus leitores. Por vezes, os ritmos escritos no correspondem ao ritmo

    tradicional brasileiro, ritmos binrios so transformados em quaternrios, nomes errados

    so atribudos aos instrumentos (URIBE, 1993), fotos de tambores de bateria so

    apresentadas como surdos, padres rtmicos so transformados para facilitar a execuo,

    melodias rtmicas so simplificados e reduzidas (MARTINEZ, 2003).

    O samba, o samba enredo e o samba-reggae so ritmos brasileiros de grande

    destaque na mdia internacional e associados ao carnaval, compe o repertrio principal

    9 As partituras que trazem todas as linhas rtmicas de um ritmo escritas simultaneamente, de maneirasemelhante a uma partitura de orquestra, so chamadas aqui de grades polifnicas.

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    destes mtodos. Outros ritmos tambm so colocados em evidncia, como o baio e o

    maracatu de baque virado.

    2.2.5 Contedos musicais e progressividade didtica

    O principal eixo pedaggico que orienta a seleo de contedos musicais dos

    mtodos o desenvolvimento de um repertrio de padres rtmicos e suas variantes, que

    chamamos na linguagem cotidiana de ritmos ou levadas. Estes ritmos so

    apresentados em diferentes graus de aprofundamento. Alguns mtodos so consagrados

    a um nico ritmo (BOLO, 2003; GONALVES, COSTA, 2000; SANTOS,

    RESENDE, 2005; SALAZAR e CHEDIAK, 1991), tornando possvel explorar cada

    universo rtmico e cultural em maiores detalhes. Em contraposio, outros mtodos

    possuem concepes panormicas, procurando transcrever o maior nmero de ritmos

    possveis, abrangendo desde uma regio brasileira a todo o pas (ROCCA, 1986;

    MARTINEZ, 2002; JACOB, 2003; MINDY, 2003; ASSIS, 2003).

    Nos mtodos dedicados a um ritmo, a presena de grades polifnicas, arranjos e

    breques tradicionais demonstram a nfase dada prtica em grupo. Os ritmos so

    mostrados em suas variantes regionais, isto , no so delimitados a um nico padro

    rtmico, recebendo acentos e personalidade prpria, como em Gonalves e Costa (2000),

    que destaca as caractersticas musicais de cada escola de samba carioca. Nessa

    perspectiva, em Santos e Resende (2005) no transcrito um padro nico de maracatu,

    mas diversos maracatus. Os grupos e atores tradicionais ganham voz e destaque: nas

    escolhas musicais podemos ouvir os nomes de suas naes: Maracatu Porto Rico,

    Maracatu Leo Coroado, entre outros. Para ilustrar o detalhamento das informaes, no

    mtodo de Bolo (2003), por exemplo, so apresentadas as diferentes formas de tocar,

    levadas e posturas de sustentao do tarol da escola de samba. As funes tradicionaisdos instrumentos10 na dinmica do ritmo so explicitadas, destacando quais so os

    instrumentos solistas, quais tm responsabilidade de sustentar a base, e assim por diante.

    10 A funo dos instrumentos percussivos dentro de um ritmo determina em grande parte seucomportamento musical tradicional. Comportamento musical tradicional aqui compreendido comoatitudes musicais fundamentais de sustentao da base ou improviso, floreios e variaes, dilogos de

    perguntas e repostas, sungue e balano. Estes comportamentos e usos tradicionais acontecem em seuscontextos originais e so compartilhados socialmente pelos grupos. Eles refletem uma hierarquia musical

    e organizao interna de cada ritmo, isto , a maneira como o cada pensamento musical estruturado.Este conhecimento extremamente importante para o trabalho em grupo de percusso.

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    Nos mtodos panormicos, devido quantidade de informaes, cada ritmo est

    geralmente reduzido uma nica linha rtmica, por vezes desdobrada em poucas

    variaes. Nestes livros, o objetivo pedaggico central propiciar uma viso geral dos

    ritmos brasileiros, agrupados em suas familiaridades regionais e musicais. Em resumo,

    pode-se ento observar nos mtodos duas tendncias distintas: uma que particulariza

    ritmos e grupos tradicionais e outra que pretende mostrar a diversidade rtmica e

    cultural do pas atravs de seus instrumentos percussivos e tcnicas.

    Outra maneira de sistematizao dos contedos musicais est centrada no

    aprendizado de um instrumento, presente nos mtodos dedicados ao pandeiro,

    zabumba e ao berimbau (ANUNCIAO, 1996 e 1990; SANTOS, 2005; BRASIL,

    2006; SAMPAIO, 2007). Esta escolha pedaggica propicia um aprofundamento no

    repertrio do instrumento, a explorao de novas tcnicas, a adequao de ritmos

    tradicionais e a criao de outros novos. Nestes mtodos o conhecimento do repertrio

    relevante, mas divide espao e importncia com as questes tcnicas particulares do

    instrumento, com exerccios tcnicos e leituras rtmicas. Em sua maioria, eles possuem

    um sistema prprio de notao desenvolvido com o objetivo de descrever os principais

    timbres e efeitos sonoros do instrumento. Assim, dentre os 18 mtodos analisados, 7 se

    dedicam a um nico instrumento (principalmente o pandeiro), outros 7 passeiam por

    vrios ritmos brasileiros e 5 focalizam um estilo musical (predominando o samba). A

    progressividade didtica est presente em apenas alguns mtodos, principalmente

    naqueles direcionados ao estudo de um instrumento (ANUNCIAO, 1990 e 1996;

    JACOB, 2003; MARTINEZ, 2002; SAMPAIO, BUB, 2006; SAMPAIO, 2007). Pode-

    se perceber que esta no uma preocupao freqente nos livros centrados no

    repertrio, talvez pela dificuldade em ordenar em termos de complexidade as levadas

    dos instrumentos. Este fato demonstra que, apesar do ttulo de mtodos ou manuais,

    vrias publicaes mais se assemelham a uma compilao de ritmos e arranjos, do que auma proposta metodolgica sistematizada de ensino da percusso.

    2.2.6 Princpios pedaggicos comuns

    O aprendizado da leitura musical um tema frequentemente retomado pelos

    autores, que se revela um grande objetivo a ser conquistado pelo percussionista.

    Diversos mtodos procuram aproximar o percussionista da leitura musical, pois ummsico deve estar apto a ler e escrever qualquer idia que tenha ou um ritmo que oua.

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    (SAMPAIO, BUB, 2006: 7). Assim, captulos inteiros so dedicados s explicaes

    bsicas sobre as figuras rtmicas, exerccios progressivos de leitura so entrelaados aos

    exerccios tcnicos e ao repertrio de ritmos (ROCCA, 1986; MARTINEZ, 2002;

    JACOB, 2003; SAMPAIO, BUB, 2006).

    Elemento fundamental na formao do percussionista afro-brasileiro, o

    repertrio rtmico um grande ponto de convergncia entre todos os mtodos, sejam

    eles sobre um ritmo ou um instrumento. A memorizao de um grande nmero de

    padres incentivada, assim como frases tradicionais e variaes, resultando em uma

    enorme quantidade de informaes. O repertrio ser, na maioria das vezes, a base

    sobre a qual o trabalho tcnico e de alfabetizao musical ser desenvolvido. Em

    Sampaio e Bub (2006), os exerccios de aprimoramento dos timbres so realizados a

    partir dos ritmos, deslocando acentos e timbres (partitura 1).

    PARTITURA 1 Ritmo de maracatu e variaes adaptado para pandeiro

    Fonte: Sampaio e Bub, 2006, p. 55

    Outro princpio pedaggico destacado a importncia do estudo da tcnica,

    reforada no grande volume de exerccios e explicaes sobre a maneira correta da

    produo dos diversos timbres dos instrumentos percussivos.

    A improvisao e a composio, atividades musicais que extrapolam o

    aprendizado tcnico do instrumento e o repertrio de ritmos, so comumentenegligenciadas nos mtodos, como j foi apontado por Paiva (2004). Apenas Uribe

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    (1993, p. 7) aponta que obter uma boa formao, o estudo de um percussionista deve

    abarcar a improvisao, o desenvolvimento tcnico e o conhecimento de um repertrio

    de ritmos.

    Sobre a maneira correta de se estudar, vrios autores afirmam a necessidade de

    praticar os exerccios lentamente, de aumentar gradativamente de velocidade, de utilizar

    o metrnomo, de contar os tempos durante o estudo, de aperfeioar os golpes, de tocar

    sem utilizar fora e de manter o corpo relaxado durante aperformance. (ROCCA, 1986,

    p. 38; ARAUJO, 2003, p. 10; SAMPAIO, BUB, 2006, p. 9; ANUNCIAO, 1996, p.

    32).

    2.2.7 Abordagens pedaggicas e tendncias comuns

    As principais abordagens pedaggicas dos mtodos consistem na apresentao

    do ritmo ou instrumento atravs de textos que descrevem sua origens; explicaes sobre

    questes tcnicas, sonoridade, posio correta das mos no instrumento atravs de fotos

    e textos; grades polifnicas dos ritmos, entradas, breques e viradas tradicionais;

    exerccios de leitura musical e de tcnica; variaes rtmicas; Cds e Dvds contendo

    exemplos musicais, exerccios e levadas.

    A partir da sistematizao de suas abordagens e princpios pedaggicos foi

    possvel delinear as seguintes tendncias que permeiam os mtodos de percusso afro-

    brasileira:

    1 nfase no registro em partitura dos ritmos brasileiros, mesclando objetivos

    pedaggicos e de manuteno e divulgao do patrimnio cultural nacional;

    2 Foco nas questes tcnicas, no repertrio e na leitura musical em detrimento

    de outros aspectos musicais importantes como a composio e a improvisao;

    3 Estudo individual versus prtica em grupo;4 - Generalizao versus particularidade, presente nos mtodos panormicos ou

    naqueles centrados em somente um ritmo;

    5 A importncia dos recursos audiovisuais como ferramenta para demonstrar o

    sungue dos ritmos, a boa sonoridade dos instrumentos e o movimento correto a

    ser executado.

    6 Pesquisa etnomusicolgica como vis de observao e construo de

    mtodos, que ressaltam o contexto scio-histrico nos quais os ritmos esto

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    inseridos, apresentam grupos tradicionais e msicos clebres (SANTOS,

    RESENDE, 2005; GONALVES, COSTA, 2000; BOLO, 2003).

    Por fim, cabe ressaltar que os princpios, abordagens e tendncias pedaggicas

    apresentadas aqui no se encontram literalmente descritas nos mtodos, mas foram

    extradas e organizadas no decorrer do estudo e da realizao das tabelas comparativas,

    de maneira semelhante sistematizao da literatura de piano realizada por Santiago

    (2004, p. 13). As tendncias e pontos comuns apontados no podem ser generalizados a

    todos os mtodos, mas relevam preocupaes recorrentes de seus autores.

    Desta maneira, este captulo permitiu conhecermos os mtodos de percusso

    afro-brasileira em maiores detalhes, representando assim as etapas de anlise scio-

    histrica e anlise formal da hermenutica da profundidade, referencial terico utilizado

    na pesquisa. Entretanto, antes de prosseguirmos na anlise gestual nos mtodos de

    percusso, ou seja, para a etapa da interpretao, torna-se necessrio compreender e

    definir o que o gesto musical, esboando sua relevncia na msica em geral e mais

    especificamente na prtica percussiva afro-brasileira.

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    3

    GESTO MUSICAL

    Com o objetivo de fornecer uma discusso terica significativa que auxilie e

    fundamente a anlise dos mtodos de percusso, este captulo apresenta uma reviso

    bibliogrfica crtica sobre as diferentes definies de gesto e gesto musical, percorrendo

    as vises de gesto fsico e mental de Bernadete Zagonel (1990, 1992), Fernando Iazzetta

    (2007) e Franois Delalande (1988), a proposta hermenutica de Heller (2006) e indo ao

    encontro das concepes etnomusicolgicas de Laurent Brum (2001), Rosala Martinez

    (2001), Lothaire Mabru (2001), Sylvie Le Bomin (2001) e Jean During (2001).

    Em seguida, a importncia da gestualidade na prtica percussiva ressaltada

    tanto no mbito da msica erudita quanto da msica popular e destacada como elemento

    fundamental nas relaes de ensino-aprendizagem da percusso afro-brasileira,

    especialmente naquelas realizadas em grupo. Outros aspectos gestuais - que extrapolam

    as noes convencionais de tcnica e as abordagens tradicionais, geralmente

    centralizadas nas mos do intrprete - como locomoo, execuo de coreografias, a

    relao msica-dana durante aperformance so colocados como questes pertinentes e

    importantes para a pedagogia da percusso afro-brasileira.

    3.1 Aspectos iniciais

    A importncia do gesto na prtica e no ensino percussivo em grupo se relevou

    para mim durante uma oficina de candombe uruguaio11 que cursei em 2005. Essa

    manifestao cultural latina possui uma formao instrumental unicamente percussiva e

    acontece na conversa dos tambores piano, repique e chico (respectivamente, congasgraves, mdias e agudas). Os tambores, de diversos tamanhos, ficam dependurados no

    corpo e so tocados com uma mo livre e uma baqueta, em grupos que variam de

    tamanho, podendo reunir um trio ou dezenas de percussionistas.

    11 Candombe uruguaio uma manifestao cultural percussiva afro-latina presente no Uruguai e naArgentina.

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    Durante a oficina, os professores ressaltaram a necessidade de se fazer gestos

    amplos com a mo esquerda, tanto para reforar o som do tapa12tocado com as mos,

    quanto para sincronizar a pulsao durante a performance, num ajuste coletivo da

    amplitude do movimento, criando uma referncia visual para os percussionistas. A

    realizao destes gestos amenizava a dificuldade de executar os ritmos sincopados do

    candombe, especialmente a frase rtmica do tambor chico(partitura 2), que nunca toca

    no primeiro tempo da pulsao e mantm o mesmo padro sem nenhuma variao por

    toda msica.

    PARTITURA 2 Ritmo executado pelo tambor chico no candombe uruguaio

    Posteriormente, pude assistir ao vivo a uma apresentao de candombe. Os

    msicos se posicionavam em linha, possibilitando ao espectador, alm de perceber a

    musicalidade do candombe uruguaio, ver uma msica dos gestos expressa nos corpos

    dos batuqueiros, resultante de seus movimentos corporais. Os gestos possuam neste

    contexto funes musicais, como o reforo de sonoridade, acentuao, entrosamento do

    grupo, mas tambm funes visuais, no auxlio da manuteno do pulso. Pude constatar

    que a realizao de determinados gestos interferiam no sotaque adequado para se

    executar aquele ritmo.

    Ao observar os mltiplos significados e papis dos gestos no candombe

    uruguaio, comecei a refletir se o mesmo ocorreria na msica percussiva afro-brasileira.

    Teria a gestualidade uma importncia semelhante, por exemplo, nos ritmos de maracatu

    de baque virado, no samba-reggae e na escola de samba? Entretanto, antes de buscar

    responder este questionamento, torna-se necessrio explicitar as diferentes concepes

    de gesto e de gesto musical.

    12 O tapa, tambm chamado de slap o som percussivo produzido por um movimento semelhante a um

    tapa, pressionando as pontas dos dedos contra a pele do instrumento. De sonoridade aguda ecaracterstico dos instrumentos de pele, o tapa um dos sons mais difceis de se executar, principalmentecom a mo esquerda, ou a mo no-predominante.

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    3.2 Gesto

    A multiplicidade de sentidos da palavra gesto e especialmente da expresso

    gesto musical decorre da variedade de olhares possveis sobre elas, provenientes de

    campos do conhecimento como a Antropologia, Sociologia, Psicologia, Educao e

    Etnomusicologia, alm de seus significados atribudos em diferentes culturas e

    contextos sociais. Palavra de muitos sentidos, reivindicada por atores, bailarinos,

    msicos - e por professores - possui sua riqueza exatamente por escapar e no caber em

    definies simplistas ou esquemticas, impondo, para sua compreenso mais ampla, a

    interao de vrias reas do conhecimento.

    A etimologia da palavra gesto provm do latinogestu, que significa movimento

    do corpo. Em seu plural, gesta, ganha o sentido de aes, mas tambm de grandes

    feitos, proezas, acontecimentos histricos, como as canes de gesta da Idade Mdia.

    Na sua acepo atual, o gesto associado a um movimento que extrapola a ao motora,

    pois carregado de inteno. Geralmente relacionado s expresses da face, braos e

    mos, o gesto estabelece comunicao e tece significados construdos e compartilhados

    socialmente. Entretanto, at o sculo XV, no estava associado palavra gesto o sentido

    de sensao ou sentimento, pois ela remetia a uma ao voluntria, ao ato de fazer ou

    executar.

    Marcel Mauss (1974, p. 212), um dos primeiros pesquisadores a escrever sobre a

    gestualidade humana, lana a idia de tcnicas corporais os modos como os

    homens, sociedade por sociedade, de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus

    corpos. Esses modos de agir, que moldam o corpo e a gestualidade humana em todos

    os aspectos da vida, como correr, comer e danar, so aprendidos atravs da educao e

    da imitao. A palavra tcnica compreendida como um ato tradicional eficaz,

    varivel em cada contexto cultural, de acordo com as sociedades, as educaes, asconvenincias e as modas, os prestgios (MAUSS, 1974, p. 214).Habitus como dormir

    deitado, nadar crawl, sorrir ao sentir alegria, noes tidas muitas vezes como universais

    e naturais, so construes histricas e sociais. As maneiras distintas de realizar as

    mesmas aes revelariam, segundo o autor, as diferenas de educao e de mtodo entre

    as culturas.

    A partir da constatao da existncia de uma histria das tcnicas corporais, a

    pesquisa de Mabru (2001) ressalta a importncia da idia de uma cultura musical docorpo. Se dentro das prticas musicais atuais as tcnicas corporais parecem naturais,

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    elas revelam entre as camadas de histria que reagrupam produo, difuso e recepo

    do bem cultural ou simblico, o processo de incorporao das regras de comportamento

    culturalmente determinadas e inscritas em uma histria do corpo. (Mabru, 2001, p. 95)

    A Nova Histria Cultural, movimento que colocou em questo as noes de fato

    histrico e de documento, concretizou, a partir da dcada de 70, uma virada corporal

    atravs do trabalho de pesquisadores que se dedicaram histria do corpo. O

    medievalista Jacques Le Goff inaugurou os estudos sobre a histria dos gestos e Jean-

    Claude Schmitt pesquisou os significados dos gestos na Idade Mdia ocidental. Le Goff

    (2006), no livro A histria do corpo na Idade Mdia, apresenta os motivos que o

    levaram a estudar esse assunto:

    Por que o corpo na Idade Mdia? Por que ele constitui uma das grandes lacunasda histria, um grande esquecimento do historiador. A histria tradicional era, defato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelasmulheres. Mas quase sem corpo. Como se a vida dos homens se situasse fora dotempo e do espao, reclusa na imobilidade presumida da espcie. Comfreqncia, tratava-se de pintar os poderosos, reis e santos, guerreiros e senhorese outras grandes figuras de mundos perdidos que era preciso reencontrar,engrandecer e, por vezes, at mitificar, merc das causas e necessidades domomento. Reduzidos a sua parte colocada mostra, esses seres estavamdespossudos de sua carne. Seus corpos no passavam de smbolos,representaes e figuras; seus atos, apenas sucesses, sacramentos, batalhas,acontecimentos.(...) Dando espao longa durao e sensibilidade, vida

    material e espiritual, o movimento da histria chamado Annales quis promoveruma histria dos homens, uma histria total, uma histria global. Pois, se ahistria foi frequentemente escrita do ponto de vista dos vencedores, como diziaWalter Benjamin, tambm denunciava Marc Bloch foi por muito tempodespojada de seu corpo, de sua carne, de suas vsceras, de suas alegrias edesgraas. Seria preciso, portanto, dar corpo histria. E dar uma histria aocorpo. (LE GOFF, 2006, p. 9)

    De maneira semelhante, a Educao Musical, a partir da mudana de paradigma

    apresentada pelos mtodos ativos de ensino, desenvolvidos inicialmente por pedagogos

    como mile Jacques-Dalcroze, Carl Orff e Edgar Willems, tem buscado dar corpo aeducao musical atravs da valorizao do gesto e da corporeidade na aprendizagem

    musical.

    Para compreender melhor a definio de gesto musical e suas implicaes na

    pedagogia instrumental preciso ento localiz-lo em maiores detalhes nas prticas

    musicais.

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    3.3 Gesto musical

    Refletir sobre os gestos musicais acima de tudo tratar do corpo, do corpo nas

    prticas musicais e nas relaes de ensino-aprendizagem de um instrumento. O corpo,

    colocado em oposio ao esprito e ao pensamento na tradio cartesiana, por vezes

    relegado a segundo plano na cultura ocidental. Seu esquecimento nas prticas musicais

    reflete uma compreenso da msica como uma entidade pura, desencarnada, livre de sua

    materialidade que, contraditoriamente, a torna concreta e audvel. Torna-se necessrio

    ento recolocar o corpo e o gesto em seus lugares de destaque dentro da prtica musical.

    Para isso, devemos superar as antigas dicotomias corpo/esprito, extra-musical/msica

    pura e buscar uma compreenso antropolgica do fazer musical. Dessa maneira, Jean

    Molino afirma que:

    Ns estamos sempre dentro do dualismo e a questo somente saber se o corpo(o extra-musical) intervm, e em qual proporo, para exercer sua influnciasobre a alma (a msica pura). O progresso da reflexo no acontecer senoatravs da superao do dualismo e da oposio estril entre a alma da musica eo corpo da cultura. No existe msica pura por que a musica um misto.13(Molino, 1988: 9)

    Se na msica eletrnica a participao do corpo restrita ou inexistente, nosinstrumentos acsticos - nos quais o movimento ainda se conserva como principal

    produtor de som - o gesto que transmite a energia necessria para transformar uma

    idia musical ou simplesmente uma inteno em matria sonora. Os diversos gestos de

    percutir, raspar, pinar, soprar, entre tantos outros, iro compor as infinitas tcnicas

    instrumentais e possibilidades sonoras com as quais a msica construda e

    reconstruda a cada performance. O gesto se mostra simultaneamente como um

    elemento constitutivo e fundamental da atividade musical e como fruto e fundador deidentidade musical dos grupos sociais.

    Contraditoriamente, a dimenso gestual da msica redescoberta medida que a

    presena fsica do corpo no mais um requisito fundamental para a produo sonora,

    como no caso da msica eletrnica. O aparecimento da musica eletrnica e eletro-

    13Nous sommes toujours dans le dualisme et la questione est seulement de savoir si le corps (lextra-musical) intervient, et dans quelle proportion, pour exercer son influence sur lme (la musique pure). Le

    progrs de la reflxion ne saurait venir que dun dpassement du dualisme et de lopposition strile entrelme de la musique et corps de la culture. Il ny a pas de musique pure parce que la musique est unmixte.

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    acstica ser ento capaz de recriar prticas de recepo da produo musical

    contempornea. Essas novas prticas de recepo, associadas ao surgimento das

    tecnologias de reproduo sonora, como CDs e DVDs, se formam em detrimento do

    tempo presente oferecido pela performance. Dessa maneira as prticas scio-culturais

    de produo, difuso e recepo musicais alteram-se significativamente, impulsionando

    pesquisadores, educadores e compositores a construir um novo olhar sobre a

    corporalidade e a gestualidade em msica.

    3.3.1 Gesto fsico e gesto mental

    Se no corpo o gesto veculo de uma inteno, de uma expresso individual,

    parte essencial da comunicao humana e da construo das relaes sociais, na msica

    o gesto musical tambm concebido como movimento expressivo portador de um

    sentido especial, de uma inteno, que extrapola a ao corporal ou movimento

    automatizado. Segundo Fernando Iazzetta (2008, p. 7), gesto musical um fenmeno

    de expresso que se atualiza na forma de movimento, (...) que desempenha um papel

    primordial como gerador de significao. De certo modo, ns aprendemos a

    compreender os acontecimentos sonoros com o auxlio dos gestos que produzem ou

    representam esses sons.

    De acordo com Bernadete Zagonel (1992, p. 21), o gesto musical uma ao

    corporal que, em contato com um objeto, provoca uma reao sonora. Ao mesmo tempo

    produtor do som e da expresso musical, o gesto fsico pode ser tambm compreendido

    como movimento sonoro. A autora prope duas distines do gesto musical: o gesto

    fsico e o gesto mental. O gesto fsico considerado um movimento corporal que ao

    entrar em contato com um objeto, gerador de um som, guardando uma relao causal

    entre ao gestual e seus resultados sonoros (IAZZETTA, 2008, p. 13). No limitado realizao t