Dissert Mbalassal Final
description
Transcript of Dissert Mbalassal Final
-
ARQUITETURA, IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS POLTICOS NA DITADURA VARGUISTA as escolas prticas de agricultura do estado de so paulo Marianna Ramos Boghosian Al Assal
Orientadora: Prof. Dr. Ana Lcia Duarte Lanna
So Paulo, 2009
-
ARQUITETURA, IDENTIDADE NACIONAL E PROJETOS POLTICOS NA DITADURA VARGUISTA as escolas prticas de agricultura
do estado de so paulo
Marianna Ramos Boghosian Al Assal
Dissertao apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
rea de Concentrao: Histria e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo
Orientador: Prof. Dr. Ana Lcia Duarte Lanna
So Paulo, 2009
-
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Assinatura:
Email: [email protected]
Projeto grfico e diagramao: Juliana Grenfell
Capa: Projeto de casa para diretor, elaborado pela diretoria de obras pblicas
para a E.P.A. Getlio Vargas. Fonte: Acervo do Centro de Preservao Cultural da
Universidade de So Paulo.
-
A Lourdes
e Djalma (i.m.)
-
Agradecimentos
Agradeo primeiramente a minha orientadora Ana Lucia Duarte Lanna pela orientao
precisa, pelo constante estmulo e enorme pacincia com os meus altos e baixos.
Maria Lucia Bressan Pinheiro agradeo os comentrios durante o exame de qualificao,
mas principalmente por me abrir as portas do universo da pesquisa - pelo que serei
eternamente grata - e pelos longos anos de orientao.
Maria Helena Rolim Capelato agradeo igualmente pelos comentrios no exame de
qualificao e pelo incentivo para continuar me aventurando pelo universo da histria.
Sou grata FAPESP e ao CNPq cujos apoios viabilizaram a realizao da presente pesquisa;
e novamente ao CNPq e Pr-Reitoria de Pesquisa da Universidade de So Paulo por
me oferecerem a oportunidade de desenvolver pesquisas cientficas ainda durante a
graduao, fato que alterou de forma decisiva meu percurso profissional.
Agradeo aos diversos professores com quem convivi ao longo dessa trajetria no curso
de Mestrado, pelas reflexes esclarecedoras, mas principalmente a Gabriela Pellegrino
Soares, Paulo Csar Garcez Marins, Sergio Miceli Pessoa de Barros e Ana Paula Cavalcanti
Simioni pela disponibilidade e comentrios acerca da minha pesquisa. Maria Irene
Szmrecsnyi agradeo por conversas antigas, mas significativas.
Agradeo tambm aos diversos rgos e instituies que me acolheram para a realizao
da presente pesquisa, em especial, ao Diretor Sergio Esteves Martins e a Eva, do Ncleo
de Engenharia da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de So Paulo;
ao Diretor Ademir Panciera do Instituto Penal Agrcola Dr. Javert de Andrade; Diretora
Rosane Cristina da Silva e a Joo Honorato Filho do Instituto Penal Agrcola Prof. No
Azevedo; e Diretora Elza Francisco da E.T.E.C. Professor Edson Galvo.
Aos Funcionrios da Secretaria de Ps-Graduao e das Bibliotecas da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, agradeo pela presteza
e bom humor.
A toda a equipe do Centro de Preservao Cultural da Universidade de So Paulo, que
acompanhou a etapa inicial dessa pesquisa, muito obrigada pelo carinho e incentivo.
-
Sou grata principalmente a Joana Mello, mas tambm a Ana Claudia Castro, Juliana Prata,
Amanda Franco, Mariana Madureira e Angela Garcia pelas diversas leituras cuidadosas de
meus trabalhos e por tambm dividirem comigo as inquietaes com suas pesquisas.
Agradeo a todos os meus amigos e companheiros de jornada pelas essenciais discusses,
compartilhamento de angustias e risadas, em especial: Milene Soares Cara, Ana Clara
Giannechini, Flavia Brito do Nascimento, Sabrina Fontenele, Clvio Rabelo, Maria Luiza de
Freitas e Rafael Urano.
Na reta final, agradeo a Juliana Grenfell, Roberta Baradel e Deuseana Barbosa de Souza
por auxlios imprescindveis.
Aos meus anjos da guarda, Alice Turazzi, Carolina Delage Beltran, Humberto Pierre e Caio
Nahas, muito obrigada.
A Gabriela, Adriana, Carol e Faffy agradeo pela certeza de que sempre estaro ao meu
lado. Aos meus pais, Alzira e Rubens, sou muitssimo grata pelas oportunidades que me
concederam e pelos inmeros exemplos de vida. E a minha segunda famlia, Claudio, Mary
Lucia, Karina e Fernando, agradeo pelo apoio.
Finalmente, sou profundamente grata ao Daniel pelo seu amor e carinho e por ser a nica
pessoa que consegue sempre me fazer acreditar que tudo vai ficar bem.
-
Resumo
AL ASSAL, Marianna Boghosian. Arquitetura, identidade nacional e projetos polticos
na ditadura varguista - as Escolas Prticas de Agricultura do Estado de So Paulo.
2009. Dissertao (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de So Paulo, So Paulo, 2009.
Entre 1937 e 1945 o Brasil viveu o governo ditatorial do Estado Novo, cuja ideologia de
progresso e engrandecimento nacional aparece fortemente caracterizada pelos paradigmas
do nacionalismo, a defesa da soberania nacional, a modernizao das instituies e a
industrializao dos processos de produo, mas, principalmente, pela crena no Estado
como mediador das tenses. Neste processo, marcado pela transformao do imaginrio
coletivo num instrumento regulador do cotidiano, a construo de uma identidade
nacional unificadora, que acomodasse as diferenas, tornou-se um mecanismo central
de poder. Alm disso, pode-se dizer que, no mesmo perodo, culminou o longo processo
de construo de um campo profissional autnomo para a arquitetura, especialmente
no que diz respeito a seu aspecto erudito, que havia ocupado as dcadas anteriores
envolvendo procedimentos e estratgias diversas no s no campo da educao, mas
tambm no que diz respeito consolidao de uma linguagem plstica reconhecida,
construo de obras emblemticas e o poder para elaborar sua prpria histria. Neste
contexto, arquitetura e Estado estabeleceram, especialmente durante estes anos de
governo ditatorial, uma relao bastante particular. O objetivo da presente dissertao
abordar algumas destas questes, a partir de um episdio especfico: a construo das
Escolas Prticas de Agriculturas do Estado de So Paulo erigidas pelo Interventor Fernando
Costa, entre 1942 e 1945. Prope-se para tanto abordar os processos de idealizao,
concepo do projeto e implantao das referidas escolas procurando identificar, a
partir de sua arquitetura, o entrecruzamento de projetos polticos diversos. Destaca-
se particularmente nesse cenrio a adoo da arquitetura neocolonial como aspecto
central do projeto de implantao das referidas escolas executado no mbito de rgos
pblicos estaduais - e do discurso ideolgico que assume para tanto -, onde os elementos
que constituram seu vocabulrio ganharam importncia ao assumirem uma carga
simblica que se referenciava e propunha novas construes para o imaginrio coletivo;
e onde tais elaboraes eram vistas em uma perspectiva da funo social da arquitetura.
Palavras-chave: Estado Novo; identidade nacional; arquitetura neocolonial; campo
profissional; escolas agrcolas; Fernando Costa.
-
Abstract
AL ASSAL, Marianna Boghosian. Architecture, national identity and political projects during
Getlio Vargass dictatorial government - the So Paulos Practical Schools of Agriculture.
2009. Dissertation (Master Degree) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de So Paulo, So Paulo, 2009.
Between 1937 and 1945 Brazil lived the dictatorial government of the Estado Novo,
whose ideology of progress and national growth appears strongly characterized by
the paradigms of nationalism, defense of the national sovereignty, modernization of
institutions and industrialization of production processes, but mainly by the belief in the
government as a mediator of tensions. In this process, marked by the transformation
of the collective imagery in a regulatory instrument of daily life, the construction of a
unifying national identity, which accommodates differences, became a central mechanism
of power. Furthermore, we can say that, in the same period culminated the long process of
construction of an architectural autonomous professional field, especially in what concerns
its erudite aspect, that had occupied the decades before and involved many procedures
and strategies not only in the educational field, but also regarding the consolidation of
a recognized plastic language, the construction of emblematic buildings and the power
to elaborate its own history. In such a context, architecture and the state established,
especially during these years of dictatorial government, a very particular relationship. The
aim of this dissertation is to approach some of these questions by addressing a specific
episode: the construction of the Practical Schools of Agriculture, carried through by the
governor of So Paulo, Fernando Costa, between 1942 and 1945. Therefore the research
is centered in the analysis of the idealization, conception of the architectural project
and establishment of these schools and in the effort to identify through its architecture,
interconnected or contrasting political projects. In this scenario, special attention is given
to the neocolonial architecture adopted as a central aspect of the conception of these
schools, whose architectural projects were conceived by governmental institutions, - and
the ideological discourse assumed -, where the esthetic and symbolic elements made
reference to but also proposed new constructions to the collective imagery, and where
these elaborations were understood as part of architectural social responsibility.
Key words: Getlio Vargass dictatorial government; national identity; neocolonial
architecture; professional field; schools of agriculture; Fernando Costa.
-
15
223442
45
50
59
8194
103
114
120138
153
176
189213226241
273274
-
SumrioIntroduo
O estilo neocolonial na dcada de 1940 - uma manifestao tardia?Algumas questes acerca da historiografia do Estado Novo e de sua arquiteturaA construo de uma abordagem a partir de trs momentos: idealizao, concepo e implantao Arquivos e fontes
captulo 1Projetos Polticos e Arquitetura
A idealizao das Escolas Prticas de Agricultura e a criao de um espao pedaggicoFernando Costa e as escolas agrcolasO Estado Novo e a formao do novo trabalhador brasileiro Arquitetura, Estado, identidade nacional e poltica de massas
captulo 2 O estado como agente na produo arquitetnica e a formao do campo profissional
A elaborao dos projetos das Escolas Prticas de AgriculturaO cenrio paulista da produo arquitetnica no incio da dcada de 40 e a arquitetura neocolonial Linguagens arquitetnicas e espaos de disputa no processo de legitima- o do campo profissional da arquitetura
captulo 3 Forma e conduta
Espaos de controle, hierarquia e disciplinaCientificismo, aptido e eficincia para o trabalho Higiene, sade e forma fsica do trabalhadorEducao moral e cvica
BibliografiaArquivos consultadosReferncias bibliogrficas
15
223442
45
50
59
8194
103
114
120138
153
176
189213226241
273274
-
15Introduo
Logo aps assumir o posto de Interventor do Estado de So Paulo em 1941, nomeado
pelo presidente Getlio Vargas - segundo o modelo previsto pelo Estado Novo, ento
em vigor -, Fernando Costa comeou a delinear o projeto que se tornaria uma das
caractersticas mais marcantes de sua administrao: a criao de um abrangente
conjunto de Escolas Prticas de Agricultura. Em consonncia com as prerrogativas estado-
novistas de formao profissional do trabalhador brasileiro - nesse caso voltadas para a
industrializao dos processos agropecurios -, tratava-se tambm de dar continuidade s
diversas iniciativas relacionadas ao ensino agrcola empreendidas ao longo de sua carreira
poltica, implantando uma rede de escolas profissionalizantes localizadas em alguns dos
principais centros produtivos do estado, de forma que seus raios de ao cobrissem quase
todo seu territrio. Foram, portanto, criadas em 19421 as dez primeiras Escolas Prticas
de Agricultura do referido plano de Fernando Costa, localizadas em Amparo, Araatuba,
Ribeiro Preto, Bauru, Guaratinguet, Itapetininga, Marlia, Presidente Prudente,
Pirassununga e So Jos do Rio Preto. Embora apenas seis dessas escolas tenham sido
de fato construdas at o final de sua gesto enquanto interventor, em 1945 - seguido da
deposio de Getlio Vargas e do encerramento do Estado Novo -; o feito impressiona
pela dimenso e complexidade das construes realizadas em apenas trs anos. Em
1946, j estavam em plena atividade a E.P.A. Fernando Costa, em Pirassununga; a E.P.A.
Getlio Vargas, em Ribeiro Preto; a E.P.A. Gustavo Capanema, em Bauru; a E.P.A. Carlos
Botelho, em Itapetininga; e a E.P.A. Paulo de Lima Corra, em Guaratinguet. Apenas a
Escola Prtica de Agricultura de So Jos do Rio Preto no havia iniciado suas atividades,
embora parte considervel de suas instalaes tivesse sido projetada e construda at essa
data. Chama ateno, ainda, a indicao arquitetnica oficial que tal plano assume: todas
as escolas, projetadas por rgos pblicos estaduais, deveriam ser realizadas dentro da
linguagem neocolonial.
A partir deste contexto, a presente dissertao pretende abordar a idealizao, concepo do
projeto e implantao de tais escolas, problematizando sua insero no contexto arquitetnico
e poltico do perodo em que foram realizadas; e buscando, sobretudo, identificar a partir de
sua arquitetura, o entrecruzamento de projetos polticos diversos. A definio de tal propsito
fruto de um percurso que se acredita interessante minimamente pontuar.
1 Embora as Escolas Prti cas de Agricultura tenham sido ofi cialmente criadas apenas em junho de 1942 atravs do De- Embora as Escolas Prticas de Agricultura tenham sido oficialmente criadas apenas em junho de 1942 atravs do De-creto-Lei n 12742 (SO PAULO (Estado), 1942d), note-se que desde de janeiro daquele ano j haviam sido promulgados decretos que visavam a obteno pelo Estado de terras em Ribeiro Preto, Pirassununga e Bauru destinadas instalao desses estabelecimentos (SO PAULO (Estado), 1942a; 1942b; 1942c).
Introduo
-
16 Introduo
O contato inicial com Escolas Prticas de Agricultura se deu por meio das pginas da revista
Acrpole, ao longo de pesquisa de iniciao cientfica 2 realizada a partir do levantamento
da presena da linguagem neocolonial nos projetos arquitetnicos publicados em
revistas especializadas paulistas entre as dcadas de 1910 e 1940. Tendo sua data inicial
de publicao em 1938, a revista Acrpole caracterizou-se em seus primeiros anos de
existncia - entre finais da dcada de 1930 e os primeiros anos da dcada seguinte - pelo
enfoque que privilegiava a publicao diversificada de projetos arquitetnicos produzidos
naquele momento principalmente na capital paulista, bem como pela heterogeneidade
de linguagens que apresentavam tais projetos (PINHEIRO, 1997; LEME, 1999b) 3. Em meio
profuso de projetos que utilizavam a linguagem neocolonial publicados nas pginas
da revista naquele momento, em sua maioria voltados a programas residenciais 4 - o que
desde logo colocava em cheque, como j havia apontado Pinheiro (1997), determinadas
afirmaes da historiografia da arquitetura do perodo que indicavam a predominncia
de linguagens modernistas -, chamava a ateno o destaque conferido a um conjunto
de projetos neocoloniais de notvel monumentalidade realizados pelos rgos estaduais:
entre fevereiro de 1944 e agosto de 1946, haviam sido publicadas na revista sete matrias
tratando da construo das Escolas Prticas de Agricultura (ESCOLA Prtica de Agricultura
Getlio..., 1944; ESCOLA Prtica de Agricultura - Guaratinguet..., 1944; ESCOLA Prtica de
Agricultura Fernando..., 1944; ESCOLA Prtica de Agricultura Dr..., 1945; ESCOLA Prtica
de Agricultura Gustavo..., 1946; REALIZAES..., 1944; SEDE..., 1945) 5.
O contato seguinte com as referidas escolas se deu atravs de estgio realizado junto ao
Centro de Preservao Cultural, rgo da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso Universitria
da Universidade de So Paulo, no momento de elaborao do stimo volume da srie
Cadernos CPC, entitulado Cidades Universitrias: patrimnio urbanstico e arquitetnico da
USP (LANNA, 2005) 6. Doadas Universidade de So Paulo em momentos e circunstncias
diversas, duas das escolas do plano de Fernando Costa deram origem aos campi dessa
instituio nos municpios de Pirassununga e Ribeiro Preto 7, os quais ainda hoje possuem
2 O projeto de iniciao cientfica Pibic-CNPq intitulado Arquitetura Neocolonial Paulista foi desenvolvido entre os anos de 2000 e 2002, sob orientao da Profa. Dra. Maria Lucia Bressan Pinheiro (BOGHOSIAN, 2002).
3 Parti cularmente interessante nesse senti do a pesquisa realizada por Pinheiro (1997) que toma como referncia pri- Particularmente interessante nesse sentido a pesquisa realizada por Pinheiro (1997) que toma como referncia pri-meira os projetos publicados nas pginas dessa revista para tratar da diversidade de linguagens utilizadas na produo arquitetnica paulista de finais da dcada de 1930 e incio da dcada de 1940. Cabe destacar ainda que a revista Acrpole foi fundada em maio de 1938 por Roberto A. Corra de Brito - dono e diretor geral da revista desta data at 1952 - no escritrio do arquiteto Eduardo Kneese de Mello (LEME, 1999b, p.571).
4 No perodo de 1938 a 1947 foram publicados cerca de 80 projetos que fazem uso de linguagem neocolonial nas pginas da revista Acrpole, voltados para programas residenciais, religiosos, educacionais, hospitalares, hoteleiros, administrati-vos, de clubes, complexos expositivos e at de uma estao de abastecimento de guas (BOGHOSIAN, 2002).
5 Cabe assinalar que se por um lado tal destaque surpreende para os parmetros de publicao da revista naqueles anos, que se foca na publicao nica da maior variedade possvel de projetos; por outro levanta outra questo, para a qual no se pde obter qualquer explicao minimamente conclusiva: esse destaque configura uma exceo da revista Acrpole que no se repete nas demais revistas paulistas especializadas consultadas, a exemplo do Boletim do Instituto de Engenharia e da Revista Politcnica. Pinheiro destaca nesse sentido certa aproximao da edio da revista das prerrogativas estado-novistas - o que poderia ser explicado em parte pela centralidade exercida no perodo pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (D.I.P.) e seus braos estaduais (Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda - D.E.I.P.) -, a partir do tom ufanista adotado e dos elogios destinados s obras pblicas (PINHEIRO, 1997, p.27). A autora aponta ainda o seguinte trecho do editorial comemorativo do quinto aniversrio da revista publicado em maio de 1943: a par dos problemas que nos fazem lutar [provenientes do estado de guerra], somos estimulados e alimentados por um esprito de brasilidade, de luta, de labor incessante. [] a plena compreenso do programa delineado por nossos distintos conselheiros tcnicos [] servir ao Brasil, divulgando o que construimos o que erguemos; ilustrando o que decoramos; instruindo, ensinando o que projetamos. Num justo e patritico anseio - difundindo o que somos; prevendo o que seremos, dentro do setor arquitet-nico-urbanstico (apud PINHEIRO, 1997, p.42).
6 As pesquisas desenvolvidas principalmente entre 2003 e 2004 foram coordenadas pela Profa. Dra. Ana Lucia Duarte Lanna, ento diretora do CPC-USP, e conduzidas por Juliana Prata. Integraram ainda a equipe de pesquisa, alm da autora da presente dissertao, Tatiana Durigan e Luciana Alem Gennari.
7 As Escolas Prticas de Agricultura estiveram ativas at a dcada de 1950, momento em que passam por um gradual processo de desmonte e transferncia para fins diversos, marcado certamente por mltiplas disputas e negociaes pol-ticas (VIVEL..., 1951). A primeira das escolas a ser desativada foi a E.P.A. Paulo de Lima Corra, em Guaratinguet, doada
-
17Introduo
as dimenses originais das antigas escolas agrcolas bem como englobam suas construes
remanescentes. Tornou-se possvel, ao longo das pesquisas realizadas para a elaborao
dessa publicao, entrar em contato com a materialidade construda das referidas escolas,
bem como, de forma ainda preliminar, analisar os desenhos arquitetnicos concebidos junto
Diretoria de Obras Pblicas e a Diviso de Engenharia Rural no incio da dcada de 1940
para a concepo dessas escolas. Foi nesse momento tambm que se travou conhecimento
com o processo de tombamento da Escola Prtica de Agricultura Getlio Vargas, em Ribeiro
Preto, junto ao Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e
Turstico de So Paulo (Condephaat), cuja resoluo, que indica a proteo desse bem, data
de maro de 1994 8. Nesse processo, novamente a questo da monumentalidade, dimenso
e complexidade das construes realizadas chamava a ateno, mas tambm o processo de
produo desses projetos junto a rgos pblicos do estado de So Paulo - aspecto muito
pouco abordado pela historiografia da arquitetura do perodo e que, todavia, aguarda
estudos mais detalhados - se destacava como dado relevante.
Os dois episdios anteriores levaram ao terceiro momento de contato com as referidas
escolas, dessa vez de forma mais prxima: optou-se pela adoo da Escola Prtica de
Agricultura Fernando Costa - em Pirassununga e tambm campus da USP - como objeto
central de estudo para a realizao do Trabalho Final de Graduao junto ao curso de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo 9. Tratava-se, sobretudo, de
estudar o processo histrico de constituio dessa escola, ressaltando seu valor enquanto
patrimnio cultural e apontando possveis estratgias para a sua preservao. Nesse
contato mais direto com a documentao histrica (em especial os desenhos originais)
referente E.P.A. Fernando Costa, novas questes surgiram sobre os sentidos e significados
desse conjunto surpreendente de escolas agrcolas, de uso e destinao pblica, realizadas,
como j dito, pelo Interventor Fernando Costa, no contexto do Estado Novo.
O projeto de pesquisa inicial para desenvolvimento da presente dissertao de mestrado
propunha assim, j como objetivo primeiro, abordar a idealizao, concepo do projeto e
implantao das Escolas Prticas de Agricultura realizadas entre 1942 e 1945. Destacavam-
se particularmente, j naquele momento, as questes relativas ao uso da arquitetura
neocolonial em um programa escolar visto a partir de sua perspectiva pedaggica e,
portanto, de sua funo social - como aparecem repetidas vezes na documentao
referente construo das escolas. Notabilizavam-se tambm, como questes de grande
relevncia, a conexo entre a figura do Interventor Fernando Costa e a concepo dessas
escolas; bem como entre sua arquitetura, os rgos pblicos autores dos projetos,
para a unio em 1950 para receber a Escola de Especialistas da Aeronutica, a qual abriga at os dias atuais. Em 1952 a E.P.A. Getlio Vargas fio doada Universidade de So Paulo para sediar a recm criada Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto. As demais escolas foram desativadas durante a gesto de Jnio Quadros no governo do Estado: em 1955 as escolas de So Jos do Rio Preto, Bauru (E.P.A. Gustavo Capanema) e Itapetininga (E.P.A. Carlos Botelho) so transformadas em Institutos Penais Agrcolas, uso que se mantm nas duas primeiras at hoje (Instituto Penal Agrcola Prof. No Azevedo, em Bauru; e Instituto Penal Agrcola Dr. Javert de Andrade, em So Jos do Rio Preto). O Instituto Penal Agrcola de Itapetininga foi extinto em 1965, dando lugar Escola de Artes e Ofcios para Menores, depois transformada em FEBEM. Apenas em 1985 a FEBEM foi desativada e parte das antigas instalaes recebe a Escola Tcnica Estadual Prof. Edson Galvo, uso que se mantm at os dias atuais. A ltima das escolas a ser desativada foi a E.P.A. Fernando Costa, em Pirassununga, doada Universidade de So Paulo em 1957.
8 Condephaat - Processo 2469986, Resoluo de tombamento SC7, de 2231994. Entre os diversos estudos desenvol- Condephaat - Processo 2469986, Resoluo de tombamento SC7, de 2231994. Entre os diversos estudos desenvol-vidos pelo corpo tcnico do rgo ao longo do desenrolar do processo destaca-se particularmente Wolff (1991).
9 Esse trabalho foi realizado sob orientao da Profa. Dra. Maria Lucia Bressan Pinheiro (BOGHOSIAN, 2005).
-
18 Introduo
o governo ditatorial do Estado Novo e as discusses em torno do tema da identidade
nacional realizadas naquele momento de forma geral, e, pelos idelogos de tal regime, de
forma especfica.
Assim, por um lado a temtica proposta justificava-se pela ausncia de estudos sobre o
conjunto das Escolas Prticas de Agricultura do Estado de So Paulo10, episdio importante
no quadro da arquitetura paulista - seja pela extenso e monumentalidade dos edifcios
e espaos construdos e sua permanncia como vestgios de grande relevncia social
enquanto lugares representativos de sistemas produtivos e de ensino prtico do trabalho
agropecurio; seja pela importncia histrica enquanto projeto poltico relacionado ao
ensino rural, pgina da arquitetura oficial paulista e exemplo de projeto elaborado no
contexto dos rgos pblicos do estado de So Paulo. Por outro lado justificava-se tambm
por que se vislumbrava a possibilidade de, a partir desse objeto pontual, abordar questes
pouco ou brevemente estudadas pela historiografia corrente da arquitetura do perodo 11 -
algumas j evidentes naquele momento, outras que foram progressivamente se tornando
mais claras ao longo do processo -, que diziam respeito especialmente permanncia da
arquitetura neocolonial at a dcada de 1940 e s mltiplas relaes entre arquitetura,
identidade nacional e Estado no perodo do governo ditatorial varguista. O objeto, plano
oficial do Interventor Fernando Costa durante o Estado Novo, trazia ainda, para o campo
das discusses, questes nem sempre restritas ao universo da arquitetura, bem como
sinalizava interlocues possveis com outros campos do saber.
O trabalho inseria-se, portanto, desde logo, no conjunto de estudos que procuram propiciar
uma reviso crtica da historiografia da arquitetura brasileira e da arquitetura neocolonial,
procurando abord-la entre as diversas propostas de inovao - no s na arquitetura como
tambm no campo cultural como um todo - ao longo da primeira metade do sculo XX: a
busca de razes nacionais que variam desde as iniciativas regionalistas at o nacionalismo
exacerbado. Pretendia-se, portanto, desde aquele momento, avanar no entendimento
da arquitetura neocolonial no apenas como um estilo onde elementos supostamente
originrios da arquitetura colonial brasileira so sobrepostos a composies de carter
ecltico de forma epidrmica, mas como manifestao artstica inserida num contexto
scio-cultural. Ou, segundo nos aponta Perichi, procurando entender a arquitetura
neocolonial atravs dos
[] hilos, sutiles en su mayora, que relacionan los ejemplos de esa arquitectura
- en sus distintas versiones y en su ms amplia acepcin - con la particular
realidad social histrica e ideolgica de cada pas latinoamericano, la cual, en
ltima instancia, le dan sentido al objeto construido [] (1994, p.130)
10 Os estudos que abordam as Escolas Prti cas de Agricultura, vistas a parti r de seus projetos arquitetnico e urbansti co Os estudos que abordam as Escolas Prticas de Agricultura, vistas a partir de seus projetos arquitetnico e urbanstico englobam: Wolff (1991), Lanna (2005); Boghosian (2005); e Mascaro (2008); alm das pesquisas realizadas pela equipe tcnica do CONDEPHAAT e reunidas no Processo 2469986.
11 Faz-se referncia aqui ao conjunto de obras que se abordar de forma mais especfi ca nos itens subsequentes dessa in- Faz-se referncia aqui ao conjunto de obras que se abordar de forma mais especfica nos itens subsequentes dessa in-troduo e que se dedicam, por um lado ao estudo da arquitetura neocolonial e, por outro, centram-se na anlise da dcada de 1940, sob o foco de proeminncia da arquitetura moderna, sobretudo feita pela chamada escola carioca, que englobaria alm de Lucio Costa (1902-1998) e Oscar Niemeyer (1907-), Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), Carlos Leo (1906-1983), Alcides da Rocha Miranda (1909-2001) e os irmos Roberto (Marcelo, 1908-1964; Milton, 1914-1953), entre outros. Sobre a atuao desses arquitetos cf. Cavalcanti, L. (2001).
-
19Introduo
Ainda com relao especificidade do objeto de estudo escolhido, a temtica proposta no
projeto de pesquisa justificava-se tambm por uma perspectiva de trabalho que procurava
caminhar no entendimento das relaes possveis entre estruturas de poder e arquitetura.
Vislumbrava-se que, vista como elemento constituinte do projeto para a implantao
das Escolas Prticas de Agricultura, a arquitetura no s teria adquirido nesse contexto
um carter de funo social, bem como os elementos estilsticos que constituram seu
vocabulrio formal teriam ganhado importncia, ao assumirem um significado simblico
que se referenciava e propunha novas construes para o imaginrio coletivo. O objeto
sugeria, portanto, a possibilidade de ler o repertrio formal empregado a partir de sentidos
diversos associados a uma determinada situao histrica. Nesse sentido, as Escolas
Prticas de Agricultura ganhavam ainda maior relevncia por constiturem arquitetura de
produo e destinao pblica. Enquanto projeto elaborado por profissionais qualificados
de um rgo pblico para um grande plano encampado pela Interventoria ostentava, de
certa maneira, uma imagem simblica deste governo, e, enquanto arquitetura escolar,
assumia o carter de promoo de uma determinada ideologia. Nesse sentido Wolff
assinala que:
A arquitetura escolar possivelmente a que permite uma viso mais ampla
sobre a evoluo da arquitetura pblica em So Paulo. Uma arquitetura que
est concretizada nos prdios, mas tambm presente nos discursos polticos,
nas reivindicaes e na memria de tantos que se alfabetizaram e educaram
pelas mos do Estado. (1992, p.17)
Destacava-se assim, a especificidade do objeto de estudo escolhido e sua insero na dcada
de 1940, perodo visto na historiografia da arquitetura brasileira quase que exclusivamente
sob o ponto de vista do modernismo. Assim, se por um lado podia parecer estranho que j
em princpios da dcada de 1940 houvesse uma proposta encampada por notvel figura
do cenrio poltico nacional para a construo de dez monumentais escolas em estilo
neocolonial; por outro, e de certa forma tambm como consequncia de tal estranheza,
tornava-se bastante oportuno, o estudo de tal episdio. Buscava-se, portanto, desde aquele
momento, a compreenso do objeto escolhido dentro do contexto em que estava inserido,
no tanto como um elemento estranho para sua poca ou como uma manifestao tardia
de um estilo arquitetnico j superado, mas como sintoma de permanncias e mudanas,
impasses e tenses que caracterizariam fortemente o perodo.
No entanto, se por um lado as pesquisas realizadas ao longo do curso de Mestrado e do
desenvolvimento da presente dissertao vieram a confirmar tais hipteses e prerrogativas
de anlise, por outro puderam contribuir para uma gradual complexificao, tanto do
cenrio, quanto das relaes nele estabelecidas. Ganhava, portanto, especial relevncia,
no apenas pensar as conexes entre a arquitetura das escolas - ligada a discursos polticos
de reafirmao da nacionalidade e de um projeto modernizador da nao - e o momento
poltico em que se encontravam inseridas, o Estado Novo; mas tambm procurar entender
as articulaes e circuitos diversos de negociao, influncia e disputa pelos quais as
decises no campo da arquitetura relacionavam-se com as mltiplas escalas de poder.
Tratava-se, sobretudo, de procurar transpor a viso dos projetos arquitetnicos das escolas
-
20 Introduo
como materializaes de determinadas condies scio-culturais, para, de forma mais
complexa, discutir, a partir do caso especfico das Escolas Prticas de Agricultura e de sua
arquitetura, as conexes e os entrecruzamentos de projetos polticos diversos. Projetos
polticos estes que perpassavam escalas que iam da insero das escolas no projeto
nacional difundido pelo Estado Novo e da continuidade de sentidos atribudos a formas e
linguagens plsticas, s negociaes cotidianas pela afirmao do campo profissional ou
s articulaes polticas pessoais.
Ao longo das pesquisas realizadas, esse vis de anlise ganhou progressivo destaque
a partir da construo de um olhar para as Escolas Prticas de Agricultura focado em
trs momentos: a idealizao do plano, a concepo dos projetos arquitetnicos e a
implantao das escolas. A abordagem focada nesses trs momentos passou tambm - de
forma inversa, mas complementar - a ganhar maior centralidade por apontar alternativas
diversificadas para se entender as relaes entre arquitetura e poder, ou entre arquitetura
e Estado, em uma perspectiva das disputas que estariam em jogo em nome da construo
de identidades. Essa abordagem permitiu vislumbrar com maior clareza algumas das
diversas escalas, ou dimenses, das relaes entre arquitetura e Estado que se pretendia
discutir: as relaes entre as prerrogativas de concepo das escolas com o projeto estado-
novista da formao do novo trabalhador brasileiro; a dimenso do plano enquanto projeto
pessoal de Fernando Costa como estratgia para angariar maior capital poltico no cenrio
de nascimento de uma poltica de caractersticas populistas; o projeto de afirmao da
profisso de arquiteto, bem como o lugar que linguagens ou estilos e as conexes com
o Estado assumem nesse processo; e o papel atribudo arquitetura na afirmao de
identidades nacionais.
Dessa maneira, novas questes puderam surgir e ser amadurecidas ao longo do processo
de pesquisa. Entre elas cabe mencionar especialmente a particularidade em pensar
o neocolonial para o perodo especfico do Estado Novo. Embora reconhecendo as
continuidades de linguagem e processos que perpassam a utilizao do estilo neocolonial
na arquitetura brasileira desde a dcada de 1910, tornou-se cada vez mais claro a
necessidade de abordar o carter especfico que a adoo dessa arquitetura assumiu nesse
perodo, tanto como estratgia para compreender sua complexa insero no contexto e
seus discursos de legitimao, quanto como estratgia para contribuir com os debates
que procuram abordar as relaes entre arquitetura e o Estado Novo do ponto de vista da
poltica de massas.
Desta maneira, a grande heterogeneidade da produo arquitetnica estado-novista
- desde logo evidente 12 -, bem como a presena, mas no centralidade, da linguagem
neocolonial que se pretendeu discutir, igualmente tornaram relevante a tarefa de esmiuar
os embates pela definio de linguagens no campo da arquitetura e procurar desvendar
as articulaes entre arquitetura, atuao do estado e conformao de uma identidade
nacional como projeto poltico.
12 O captulo 2 da presente dissertao tratar desse aspecto de forma mais detalhada. O captulo 2 da presente dissertao tratar desse aspecto de forma mais detalhada.
-
21Introduo
Nesse cenrio destaca-se no apenas a convivncia entre linguagens arquitetnicas
bastante diversas, que muitas vezes chegam a ser abertamente apresentadas como
oficiais 13, mas a reverberao em graus diversos, na justificativa para a adoo de
tais linguagens, de um discurso que se baseia de forma geral nas prerrogativas de
modernidade e nacionalidade. Visou-se assim, uma maior compreenso das arquiteturas
do perodo, onde o mesmo discurso poltico d origem a materialidades to diversas - e,
particularmente, trazer novos dados sobre como o embate entre tais materializaes se
d no mbito dos rgos pblicos.
Tais questes trouxeram, portanto, alguns embates e confrontos com a historiografia
da arquitetura que trata das temticas relacionadas: quer seja aquela que se concentra
em estudos sobre a denominada arquitetura neocolonial, quer seja aquela que trata das
ligaes entre arquitetos e classes dirigentes no perodo do Estado Novo.
13 Sobre esse aspecto parti cularmente interessante a anlise desenvolvida por Cavalcanti acerca dos processos de Sobre esse aspecto particularmente interessante a anlise desenvolvida por Cavalcanti acerca dos processos de elaborao dos projetos e construo de alguns dos ministrios estado-novistas, a saber, o Ministrio da Educao e Sade, o Ministrio da Fazenda e o Ministrio do Trabalho (CAVALCANTI, L., 2006).
-
22 Introduo
O estilo neocolonial na dcada de 1940 - uma manifestao tardia?
Tornou-se lugar comum entre os estudos que procuram focar-se na arquitetura neocolonial,
a constatao de seu lugar marginal na historiografia da arquitetura brasileira referente
ao sculo XX. Destaca-se nesse sentido que tal historiografia assumiu com frequncia,
principalmente at a dcada de 1980, um vis triunfalista, concentrando-se nas realizaes da
escola carioca de arquitetura moderna e relegando a um esquecimento intencional, outros
momentos menos espetaculares: adota-se o modelo onde o quadro geral da arquitetura
brasileira das primeiras dcadas do sculo XX frequentemente construdo como uma
sucesso de tentativas embrionrias ou equivocadas de modernizao, interrompidas pela
grande ruptura propiciada pela construo do Ministrio da Educao e Sade no Rio de
Janeiro, em 1936, visto como marco inaugural da arquitetura moderna no Brasil 14.
J no primeiro livro publicado sobre a arquitetura moderna brasileira, Brazil Builds:
architecture new and old (GOODWIN; SMITH, 1943) 15, nota-se a presena desse tom,
que enfoca a ruptura propiciada pela construo do Ministrio da Educao e Sade,
para tratar tanto do surgimento da arquitetura moderna, quanto dos estilos utilizados
antes de tal advento. Editado em 1943, pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque,
com o intuito de aproximar relaes com um aliado em tempos de guerra e promover
internacionalmente a arquitetura brasileira, a publicao na realidade um catlogo
de exposio, que pretendia apresentar aos olhos estrangeiros um panorama geral da
arquitetura brasileira - desde seu perodo colonial at meados do sculo XX. O texto exibe
duas caractersticas que se repetiro com surpreendente frequncia na historiografia da
arquitetura brasileira: um corte histrico que estabelece conexes quase diretas entre
a arquitetura moderna e a arquitetura colonial - praticamente ignorando mais de um
sculo de histria, que apenas representaria uma interrupo nessa continuidade -; e
o surgimento da arquitetura moderna como algo repentino, quase miraculoso. Nesse
sentido o seguinte trecho bastante esclarecedor:
A avenida Rio Branco, na capital federal, ostenta a sua grande biblioteca, um
museu, um majestoso teatro e o Palcio Monroe, antiga sede do Senado. Talvez
14 Anlises mais detalhadas da construo dessa trama historiogrfi ca encontram-se parti cularmente em Marti ns, C. Anlises mais detalhadas da construo dessa trama historiogrfica encontram-se particularmente em Martins, C. (1987) e Puppi (1998).
15 importante notar que o livro de Goodwin e Smith elaborado, a princpio, com um carter que se aproxima mais de importante notar que o livro de Goodwin e Smith elaborado, a princpio, com um carter que se aproxima mais de um catlogo do que de elaborao historiogrfica; no entanto, assume maior importncia enquanto abordagem histrica, pois, alm de ter sido por muito tempo um dos nicos estudos disponveis sobre o assunto, inaugura certa verso histrica que ir se repetir em grande parte, nos mais diversos ensaios sobre a arquitetura moderna brasileira publicados em revistas especializadas de todo o mundo, assim como em obras de carter historiogrfico propriamente dito.
-
23Introduo
seja melhor no falar neles. Aparentam uma imponncia de acordo com os
grupos estaturios monumentais que os circundam. (...) A correo acadmica
se preferiu a uma arquitetura viva e adequada a terra e o efeito pretensioso
e pesado s encontra igual na sua esterilidade. O caso, porm teve um bom
fim. Poucos anos decorridos e, quase da noite para o dia, a encantadora
cidade curou-se dessa doena, comeando a ver melhor as vantagens de uma
arquitetura de acordo com a vida atual e com a moderna tcnica construtora.
(GOODWIN; SMITH, 1943, p.25)
Nota-se ainda em Brazil Builds um ar bastante categrico no texto, ao afirmar que
embora os primeiros mpetos modernos tenham chegado por importao, bem logo o
Brasil achou um caminho prprio; e que a sua grande contribuio para a arquitetura
nova est nas inovaes destinadas a evitar o calor e os reflexos luminosos em superfcies
de vidro por meio de quebra-luzes externos, especiais (GOODWIN; SMITH, 1943, p.84).
Assim, se por um lado o texto destaca a realizao de experincias e a difuso de certa
arquitetura moderna antes do episdio do Ministrio da Educao e Sade, por outro,
nesse momento que se encontraria a verdadeira chave da modernidade, ao operar-se
efetivamente a nacionalizao dos preceitos modernos. Quanto arquitetura neocolonial
especificamente, Goodwin e Smith afirmam - admitindo alguma permanncia, mas jamais
qualquer embate - que:
bem recebido o chamado estilo colonial aqui tanto quanto o nosso estilo
colonial dos Estados Unidos, embora no aparente o mesmo garbo que
possuam os velhos solares do sculo XVIII. Felizmente h agora gente
audaciosa que ama as casas mais de acordo com os seus hbitos prprios e
necessidades modernas. (GOODWIN; SMITH, 1943, p.100)
Pode-se dizer que essa viso, apologtica da arquitetura moderna, a tnica predominante
na historiografia da arquitetura brasileira do sculo XX produzida at a dcada de 1980,
exaltando a inventiva arquitetura modernista frente arquitetura de estilos totalmente
desinteressante que a precedeu, e que s mereceria ser narrada porque, alm de tratar-
se de um acontecimento histrico, salientaria a grandiosidade da ruptura propiciada
pela arquitetura modernista. Exemplo claro disso encontra-se em Bruand 16, que define
o neocolonial como um entre os diversos estilos histricos, que teriam predominado no
cenrio da arquitetura brasileira at 1930, estilos esses retratados como efetivamente
o reflexo de uma poca, caracterizada pela falta de originalidade e por um complexo de
inferioridade levados ao extremo sob o ponto de vista local, mas que j contm o germe
dos elementos de uma reao salutar que no demorou em se manifestar (BRUAND,
2002, p.33). Reao essa que segundo o autor j se esboaria na dcada de 1930. Inicia
assim o sub-captulo dedicado ao estilo neocolonial com a seguinte afirmao:
16 Realizada inicialmente como tese de doutorado no campo da paleografi a, e apresentada Universidade de Paris, a Realizada inicialmente como tese de doutorado no campo da paleografia, e apresentada Universidade de Paris, a pesquisa de Bruand sobre a arquitetura brasileira foi concluda em 1971, embora sua primeira publicao em portugus tenha sido editada apenas dez anos mais tarde. Sua contribuio para a historiografia da arquitetura brasileira inquestio-nvel - em especial pelo enorme levantamento documental realizado e pelo esforo metodolgico de sntese -, e adquire significado ainda maior pelo seu carter pioneiro enquanto abordagem que de fato se prope histrica.
-
24 Introduo
Conforme observou Lucio Costa, a controvrsia entre o falso colonial e o
ecletismo dos falsos estilos europeus (que chegou a seu ponto crtico logo
aps 1920) pode hoje parecer uma discusso infantil sobre o sexo dos anjos.
Os partidrios das duas teorias no percebiam as profundas modificaes que
a revoluo industrial havia causado na vida contempornea, nem os novos
problemas que os arquitetos seriam chamados a resolver, a fim de dar uma
resposta adequada s necessidades do homem do sculo XX. Ora, a arquitetura
jamais foi e jamais ser uma arte pela arte; ela est intimamente ligada s
necessidades materiais da civilizao que a faz nascer e da qual um dos signos
mais evidentes; ela no pode ignorar essas necessidades, sob pena de perder
toda sua autenticidade e qualquer valor duradouro. Por conseguinte, o debate
puramente formal que tinha sido instaurado era totalmente acadmico, e no
abria qualquer perspectiva nova. (BRUAND, 2002, p.52)
O texto de Bruand consolida 17 assim alguns traos que sero frequentemente reiterados
na historiografia da arquitetura brasileira: o surgimento da arquitetura moderna no Brasil
vista como um fenmeno historicamente determinado e como retomada da continuidade
histrica interrompida pela arquitetura do sculo XIX e do incio do sculo XX, estando
implcita a ideia de uma descontinuidade histrica 18; a glorificao da escola carioca
em detrimento de outras iniciativas e a justificao de sua genialidade quase repentina
pela vinda de Le Corbusier ao Brasil; a mitificao de alguns personagens de grande
sensibilidade na poltica nacional em detrimento de um esclarecimento sobre as relaes
entre a arquitetura moderna e o regime poltico ditatorial que a teria financiado, bem
como o papel central que o apoio oficial representa para a difuso dessa linguagem; e,
acima de tudo, a articulao entre tradio e modernidade - trao presente em toda a
construo historiogrfica da arquitetura brasileira do sculo XX, e que se alega como
fator determinante para a originalidade da arquitetura moderna de razes nacionais 19.
Muitos so os paralelos que se pode encontrar entre o carter eminentemente operativo
que tal trama historiogrfica assume e a crtica de Tournikiotis 20 aos livros clssicos da
histria da arquitetura moderna quando tal autor afirma que:
17 Puppi, entre outros autores, destaca que, sendo o trabalho de Bruand o primeiro do gnero de cunho acadmico e que Puppi, entre outros autores, destaca que, sendo o trabalho de Bruand o primeiro do gnero de cunho acadmico e que se propem efetivamente enquanto pesquisa histrica, contribui efetivamente para a consolidao de uma trama historio-grfica que, em realidade, o precede, conferindo a ela ainda o respaldo da pesquisa documental de um estrangeiro (1998).
18 J no prefcio Bruand coloca como um dos moti vos para a escolha do seu objeto de pesquisa o fato de que [...] a J no prefcio Bruand coloca como um dos motivos para a escolha do seu objeto de pesquisa o fato de que [...] a arquitetura brasileira s conhecera dois grandes perodos de atividade criadora: o da arte luso-brasileira dos sculos XVII e XVIII, estudado por Germain Bazin numa tese recente e o perodo atual, abordado apenas superficialmente em publicaes de carter documental (BRUAND, 2002, p.7). Nessa trama, a conexo entre esses dois momentos estabelecida a partir de uma produo arquitetnica supostamente mais ligada ao aspecto tcnico do canteiro de obras. Um exemplo dessa cons-truo, que tem origem nos textos de Lucio Costa (MARTINS, C., 1987; LEONIDIO, 2007), encontra-se na obra de Mindlin, que aponta a retomada pelos modernistas de uma tradio, mantida viva pelos mestres de obras atravs de todo o sculo XIX, paralelamente ao trabalho sofisticado dos arquitetos da Misso Francesa e de seus discpulos (2000, p.25).
19 Embora organizando tais aspectos de maneira diversa a afi rmao de Marti ns corrobora tal anlise: [] h pelo me- Embora organizando tais aspectos de maneira diversa a afirmao de Martins corrobora tal anlise: [] h pelo me-nos alguns elementos invariantes que nos permitem falar efetivamente de uma trama sendo construda. [] h pelo menos trs pontos fundamentais na constituio dessa trama. Primeiro, o destaque para o fato de que a arquitetura brasileira se caracteriza desde seu incio por ser uma arquitetura oficial, ou seja, o que chama a ateno o fato de que, naquele momento, ao contrrio das outras capitais do mundo, h algo raro acontecendo no Brasil e esse algo raro precisamente um estado autoritrio que, paradoxalmente, elege a arquitetura moderna como sua linguagem oficial. Quanto ao segundo elemento importante [] surge a ideia de que a arquitetura moderna brasileira, ao contrrio de uma leitura, digamos, mais ortodoxa da arquitetura moderna, no representa um rompimento com o passado. Ao menos no representa um rompi-mento com a verdadeira tradio brasileira. Representa uma negao, sim, de um passado imediato [], mas, ao contrrio de um rompimento radical com o passado, o que pretende, o que busca exatamente o reengate com uma tradio []. O terceiro ponto a destacar [] que a historiografia no atua apenas exaltando valores, destacando projetos, trazendo para o primeiro plano autores ou escolas. Ela atua tambm de modo contrrio, por estratgias de omisso, por estratgias de silenciamento. (MARTINS, C., 1994, p.93)
20 Nessa obra Tournikioti s elabora uma crti ca historiografi a da arquitetura moderna, a parti r da anlise de autores Nessa obra Tournikiotis elabora uma crtica historiografia da arquitetura moderna, a partir da anlise de autores como Pevsner, Kaufmann, Giedion, Zevi, Benevolo, Hitchcock, Banhan, e Taufuri (TOURNIKIOTIS, 2001). Cf. tambm sobre essse aspecto operativo que a histria da arquitetura moderna assume Cohen (1999) e Olmo (1999).
-
25Introduo
La eleccin de los textos [] tambin revela los campos en los que se aplicar
nuestro anlisis: la decisiva significacin de las palabras y el carcter fundacional
de un discurso histrico que, en ltima instancia, demuestra ser otro aspecto
de la teora. Leyendo estos textos uno tras otro, resulta difcil distinguir entre
las interpretaciones de los acontecimientos y fenmenos del pasado reciente,
y cierta clase de manifiestos acerca de la arquitectura del futuro inmediato.
(TOURNIKIOTIS, 2001, p.21-22)
Tendo isso em mente, possvel entender que a origem dessa trama historiogrfica se
encontra alm da obra de Bruand (2002) e at mesmo da primeira publicao sobre a
arquitetura brasileira do sculo XX; remete ao prprio surgimento da arquitetura moderna
nesse pas. Os mesmos arquitetos e intelectuais responsveis pela difuso e teorizao do
modernismo, assumiram tambm a defesa do patrimnio atravs da fundao do Servio
do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - SPHAN, fundado em 1936. Encontram-se
assim reunidas aes a princpio contraditrias: a defesa e difuso dos ideais modernistas
e o grande ncleo original da elaborao oficial de estudos e leituras sobre a histria
da arquitetura brasileira (REIS FILHO, 1994; CAVALCANTI, L., 2000). Dessa maneira,
essa tradio historiogrfica nasce intrinsecamente ligada ao discurso modernista,
assumindo suas justificativas, servindo como veculo para sua legitimao e relegando
a um esquecimento intencional momentos que no se inserem em uma lgica evolutiva
de interpretao da histria da arquitetura brasileira - cujo ponto culminante seria o
surgimento do movimento moderno.
A par dos problemas metodolgicos e tericos que essa construo historiogrfica
evidencia, interessa particularmente destacar a articulao entre tradio e modernidade
que apareceu como trao constante no discurso que defende a genialidade e a unicidade da
ento nova arquitetura modernista. a partir desse aspecto que, embora de forma marginal,
a arquitetura neocolonial passaria a figurar gradualmente como episdio de presena
obrigatria em tal lgica evolutiva ao conter, nas palavras j citadas de Bruand, o germe
dos elementos de uma reao salutar: a prerrogativa de se nacionalizar a arquitetura e os
olhos voltados para o perodo colonial como fonte das verdadeiras razes da arte nacional 21.
Entretanto, nessa trama, o registro sobre a arquitetura neocolonial recai invariavelmente no
enfoque do erro ou do equvoco: da incompreenso, por um lado, do que tais propsitos
de nacionalizao deveriam significar e, por outro, das efetivas necessidades da arquitetura
na contemporaneidade. Dessa maneira a arquitetura neocolonial passaria a caracterizar-se
como o ltimo episdio entre os chamados estilos eclticos, construo bastante evidente
nas palavras de Lucio Costa - elemento central para a construo dessa trama historiogrfica
(MARTINS, C., 1987; PUPPI, 1998; LEONIDIO, 2007).22
Foi contra essa feira de cenrios arquitetnicos improvisados que se pretendeu
invocar o artificioso revivescimento formal do nosso prprio passado, donde
21 Sobre os aspectos diversos que as leituras (e re-leituras) das artes do perodo colonial, e especifi camente o barroco Sobre os aspectos diversos que as leituras (e re-leituras) das artes do perodo colonial, e especificamente o barroco assumem, ver Gomes Junior (1998).
22 Cabe destacar ainda as conexes de Lucio Costa em seu incio de carreira produo neocolonial, bem como sua pos-terior negao sistemtica de tais referncias apontando-as como um grande equvoco. Cf. a esse respeito Costa, L. (1995) e Pinheiro (2005).
-
26 Introduo
resultou mais um pseudo-estilo, o neocolonial, fruto da interpretao errnea
das sbias lies de Arajo Viana, e que teve como precursor Ricardo Severo
e por patrono Jos Marianno Filho. Tratava-se, no fundo, de um retardado
ruskinismo 23, quando j no se justificava mais na poca o desconhecimento
do sentido profundo implcito na industrializao, nem o menosprezo por
suas consequncias inelutveis. Relembrada agora, ainda mais avulta a
irrelevncia da querela entre o falso colonial e o ecletismo dos falsos estilos
europeus: era como se, no alheamento da tempestade iminente, anunciada
de vspera, ocorresse uma disputa por causa do feito do toldo para o garden-
party. Equvoco ainda agravado pelo desconhecimento das verdadeiras
caractersticas da arquitetura tradicional e consequente incapacidade de lhe
saber aproveitar convenientemente aquelas solues e peculiaridades de
algum modo aplicveis aos programas atuais, do que resultou verdadeira
salada de formas contraditrias provenientes de perodos, tcnicas, regies e
propsitos diferentes. (COSTA, L., 1995, p.164)24
Destaca-se ainda, nas palavras de Lucio Costa, o papel central atribudo a Ricardo Severo e
Jos Marianno Filho na defesa da chamada arquitetura neocolonial, aspecto que ganhar
lugar permanente em toda a historiografia da arquitetura neocolonial. Passaria a ser ento
gradualmente construda uma cronologia para a arquitetura neocolonial que, de forma
esquemtica, teria origem com Ricardo Severo em 1914, sendo seguido de perto por
Victor Dubugras; seria levada para o Rio de Janeiro pela defesa apaixonada e as iniciativas
prticas de Jos Marianno Filho; alcanaria alguma proeminncia junto aos episdios de
comemorao do centenrio da independncia em 1922; se difundiria principalmente
na arquitetura residencial misturada a certa vertente californiana; e chegaria a sua
fase de esgotamento j em princpios da dcada de 1930. Sem desconsiderar o carter
efetivamente central que tais episdios possuem para o entendimento da arquitetura
neocolonial de forma ampla, cabe destacar brevemente os aspectos simplificadores que
assumiram nessa narrativa - alguns dos quais possuram surpreendente longevidade nas
sucessivas leituras e anlises sobre a difuso dessa linguagem arquitetnica.
Engenheiro portugus dedicado a estudos arqueolgicos, Ricardo Severo25 seria apontado
como propugnador primeiro do neocolonial a partir da conferncia proferida em 1914
na Sociedade de Cultura Artstica de So Paulo, sob o ttulo A arte tradicional no Brasil.
23 Lucio Costa faz referncia a John Ruskin (1819-1900), escritor e crtico de arte e arquitetura vinculado ao Lucio Costa faz referncia a John Ruskin (1819-1900), escritor e crtico de arte e arquitetura vinculado ao romantismo ingls.
24 Esse mesmo enfoque igualmente notvel na afi rmao de Mindlin de que: o protesto acabaria, mais tarde, por Esse mesmo enfoque igualmente notvel na afirmao de Mindlin de que: o protesto acabaria, mais tarde, por assumir a forma que assumiu no Brasil: a de uma reao neocolonial, vista por muitos como um retorno nica tradio legtima. Se essa reao levou arquitetos menos abertos a uma nova srie de pastiches, para outros, como Lucio Costa, ela clareou rapidamente o problema, levando-os a retomar a tradio de uma construo mais prxima da realidade brasilei-ra, a nica que, ao responder diretamente s exigncias do clima e dos materiais, assim como s necessidades do povo, poderia servir de base e de ponto de partida para uma interpretao construtiva das necessidades arquitetnicas do Brasil ps-guerra. [] era uma tradio de bom senso, de equilbrio e de constante mudana para se adaptar s condies sempre novas de um pas ainda em fase de formao. Essa tradio, ou talvez a atitude espiritual que ela reflita, levada a uma au-toconscincia pelas ideias lanadas por Le Corbusier, cuja obra polarizou todas as conquistas contemporneas, foi o ponto de partida do movimento de arquitetura moderna no Brasil (MINDLIN, 2000, p.25). Publicada inicialmente em 1956 a obra de Mindlin tambm tinha o intuito de promover a nova arquitetura brasileira internacionalmente, sendo editada somente em ingls, francs e alemo at anos recentes.
25 Engenheiro, arquelogo e arquiteto portugus, Ricardo Severo (1869-1940) migra inicialmente para o Brasil em 1891, Engenheiro, arquelogo e arquiteto portugus, Ricardo Severo (1869-1940) migra inicialmente para o Brasil em 1891, aps participar da revolta republicana do Porto. Em So Paulo conhece o engenheiro-arquiteto Ramos de Azevedo (1851-1928), que o convida a trabalhar em seu escritrio. Em 1893, casa-se com Francisca Santos Dumont, filha de Henrique Dumont. Foi scio do Escritrio Tcnico F. P. Ramos de Azevedo, da Companhia Iniciadora Predial e da Companhia Cermica Vila Prudente; alm de diretor do Liceu de Artes e Ofcios de So Paulo entre 1928 e 1940 (MELLO, 2007).
-
27Introduo
Tendo em vista sua palestra - que contou com um pblico composto por altas figuras da
sociedade paulistana -, bem como a difuso posterior de suas propostas tericas, suas
elaboraes seriam analisadas a partir do encontro entre os desejos de reafirmao de
classe em meio s imensas mudanas scio-econmicas e processos migratrios ocorridos
em So Paulo na poca 26 e ideais romnticos, como a liberdade na criao arquitetnica ou
a elaborao de uma cultura de razes nacionais. Severo, por outro lado, seria retratado
como um excelente conferencista, um engenheiro cheio de boas ideias e um arquiteto
mediano (MELLO, 2005, p.27), sendo responsvel por obras de uma espcie de barroco
portugus modernizado de pouca qualidade (NEVES, 1960).
Junto a Severo outro arquiteto destacado nessa narrativa por suas obras neocoloniais
realizadas em So Paulo, a partir de meados da dcada de 1910, foi Victor Dubugras 27.
Nascido na Frana, Dubugras seria tambm reconhecido como precursor do modernismo
no Brasil, graas ao carter racionalista atribudo a sua obra j em princpios do sculo
- especialmente seu projeto para a estao ferroviria de Mairinque. Responsvel pela
elaborao de uma srie de projetos encomendados por Washington Lus quando prefeito
da cidade de So Paulo - a saber, a Ladeira da Memria e conjunto de monumentos da
Serra do Mar em comemorao ao Centenrio da Independncia - alm de diversas
residncias realizadas em um suposto estilo neocolonial a adoo dessa linguagem, alm
de feita de forma bastante inventiva - segundo uma mistura de estilos ou uma fantasia
pitoresca (BRUAND, 2002, p.53) - seria apontada ora como caracterstica eminente de um
profissional da poca dos estilos eclticos, ora como um retrocesso patente por parte de
quem, j em 1908, tinha preconizado novos caminhos (BRUAND, 2002, p.54).
Assim como em So Paulo a difuso da arquitetura neocolonial no Rio de Janeiro teria
nessa narrativa a figura chave de um destacado terico: Jos Marianno Filho 28. Mdico e
intelectual, Marianno Filho seria o responsvel por diversas iniciativas com vistas difuso
dos preceitos da arquitetura neocolonial. Apesar de sua efetiva influncia nos meios
intelectuais e arquitetnicos cariocas - principalmente entre as dcadas de 1920 e 1940
quando defende a arquitetura neocolonial inicialmente contra o ecletismo predominante,
e posteriormente contra o modernismo que comea a surgir 29 -, Marianno Filho retratado
como figura polarizadora de todas as discusses acerca da linguagem neocolonial e um
tanto isolada, principalmente medida que o modernismo comearia a surgir com seus
argumentos irrefutveis. Marianno Filho passaria, ento, gradualmente a ter tambm seu
percurso marcado nessa construo pela oposio pblica assumida com relao a Lucio
26 Bruand aponta nesse senti do que para Severo [] procurar inspirao atravs de uma relati va imitao dos modelos Bruand aponta nesse sentido que para Severo [] procurar inspirao atravs de uma relativa imitao dos modelos de sua terra natal, era uma atitude to natural quanto dos imigrantes italianos quando davam preferncia aos diversos estilos originados da renascena (2002, p.52). Embora posterior, esse aspecto parece central ainda na anlise de Lemos (1994) de tais episdios.
27 Francs, Victor Dubugras (1868-1933) viveu e atou como arquiteto em Buenos Aires at 1891, quando se mudou para Francs, Victor Dubugras (1868-1933) viveu e atou como arquiteto em Buenos Aires at 1891, quando se mudou para o Brasil. Em So Paulo trabalhou na carteira imobiliria do Banco Unio, dirigida por Ramos de Azevedo, e na Diretoria de Obras Pblicas de So Paulo - DOP, antes de abrir seu prprio escritrio. Foi ainda professor da Escola Politcnica de So Paulo, entre 1894 e 1928 (TOLEDO, 1985).
28 Nascido em Pernambuco, Jos Marianno Filho (1881-1946) formou-se mdico, embora sem nunca ter exercido a pro- Nascido em Pernambuco, Jos Marianno Filho (1881-1946) formou-se mdico, embora sem nunca ter exercido a pro-fisso. Casou-se com Violeta Siciliano, de famlia abastada, e dedicou-se s atividades de crtico de arte. Foi presidente da Associao Brasileira de Belas Artes, teve participao ativa na criao do Instituto Central de Arquitetos, e assumiu o posto de diretor da Escola Nacional de Belas Artes por curto perodo em 1926 (PINHEIRO, 2005; KESSEL, 2008).
29 O prprio Marianno Filho afi rma, em livro publicado em 1943, ter tornado a defesa do neocolonial uma questo pesso- O prprio Marianno Filho afirma, em livro publicado em 1943, ter tornado a defesa do neocolonial uma questo pesso-al entre 1920, poca em que iniciei a campanha que visava integrar a arquitetura brasileira no seu destino histrico, e 1940 quando me vi impedido de prosseguir na campanha cujo fracasso os comunistas se incumbiram de proclamar (MARIANNO FILHO, 1943a, p.5).
-
28 Introduo
Costa 30; e por suas fervorosas afirmaes e ofensas publicadas em inmeros artigos em
jornais, onde de fato faz referncias pejorativas constantes nova arquitetura moderna,
e demonstra o carter xenfobo de seus discursos em inmeras citaes ao judeus
errantes Warchavchik e Le Corbusier (MARIANNO FILHO, 1943a) - este ltimo, tambm
segundo ele, responsvel pela chegada ao Brasil da arquitetura moderna (talvez sendo
esse o nico ponto de concordncia com seu opositor a partir desse momento).
Nessa construo narrativa mereceriam ainda algum destaque no curto perodo de difuso
da arquitetura neocolonial, a presena do estilo na exposio comemorativa do Centenrio
da Independncia, realizada no Rio de Janeiro em 1922 31; bem como sua propagao na
arquitetura residencial, misturada a elementos formais de uma linguagem apontada como
importada de certa vertente presente principalmente na arquitetura americana - mais
especificamente na regio da Califrnia - e mexicana, que pretendia retomar o passado colonial
das misses espanholas32. Denominado, por esse motivo, de estilo misses (mission style),
essa linguagem passaria a ser vista ora como uma vertente da arquitetura neocolonial, ora
como mais um estilo ecltico importado; ou ainda, misturando elementos das duas leituras
anteriores, como mais uma prova do carter equivocado da proposta neocolonial.
Assim, a arquitetura neocolonial brasileira comeou a despontar efetivamente como tema
de interesse para pesquisas na segunda metade da dcada de 1980, no bojo das revises
acerca da historiografia da arquitetura brasileira - especialmente em relao arquitetura
de finais do sculo XIX e incio do sculo XX - que comeavam a tomar corpo naqueles anos 33.
No entanto, tal recorte firmou-se como temtica especfica apenas na dcada de 1990,
a partir do seminrio realizado em So Paulo e da publicao resultante organizada por
30 Sobre as desavenas entre Marianno Filho e Lucio Costa cabe destacar os episdios conturbados por que passa a Sobre as desavenas entre Marianno Filho e Lucio Costa cabe destacar os episdios conturbados por que passa a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, especialmente em 1926 quando Marianno Filho assume, por curto perodo, a sua direo, e posteriormente, em 1930, quando Lucio Costa assume tambm por sua vez tal diretoria (PINHEIRO, 2005). Note-se, no entanto, a aproximao existente entre Lucio Costa e Marianno Filho em datas anteriores a tais episdios, quando inclusive Lucio Costa participaria de diversos dos concursos de arquitetura promovidos por Marianno Filho, bem como viajaria a Minas Gerais para estudos em 1924, comissionado pela Sociedade Brasileira de Belas Artes (PINHEIRO, 2004; 2005; KESSEL, 2008).
31 Citando especifi camente os pavilhes das Pequenas Indstrias (projeto de Nestor de Figueiredo) e de Caa e Pesca Citando especificamente os pavilhes das Pequenas Indstrias (projeto de Nestor de Figueiredo) e de Caa e Pesca (projeto de Armando de Oliveira), o Palcio das Grandes Indstrias (interveno em prdio colonial projetada por Memria e Cuchet) e a Porto Norte (projeto de Raphael Galvo e M. Brasil do Amaral) Bruand apontaria sobre esse episdio que A pregao apaixonada de Jos Marianno teve grande repercusso entre os arquitetos e o pblico erudito. O estilo neo-colonial encontrou de imediato uma magnfica oportunidade de afirmar-se: a Exposio Internacional do Centenrio da Independncia, inaugurada em 1922. Alguns dos pavilhes brasileiros eram inteiramente acadmicos, mas a sua maioria (e indiscutivelmente os melhores) prendia-se ao novo estilo, considerando smbolo da emancipao artstica do pas, cem anos aps a sua emancipao poltica (2002, p.55-56). Entre os exemplos neocoloniais de pavilhes brasileiros, alm dos j citados por Bruand, encontravam-se o Porto Principal (projeto de Edgard Viana e Mario Fertin), o Pavilho de Viao e Agricultura (projeto de Adolfo Morales de Los Rios Filho) e o Porto Beira Mar (tambm projeto de Adolfo Morales de Los Rios Filho) (PINHEIRO, 2004; KESSEL, 2008). Consta ainda, na edio de julho de 1922 do Boletim do Instituto de Engenharia de So Paulo, um projeto neocolonial de Bruno Simes Magro para o Pavilho do Acre nessa exposio, que aparentemente no foi construdo (PROJETO..., 1922).
32 A esse respeito destaca-se a afi rmao de Paulo Santos de que: o neocolonial no foi ideia original nossa, mas da A esse respeito destaca-se a afirmao de Paulo Santos de que: o neocolonial no foi ideia original nossa, mas da maior parte do continente que, nas segunda e terceira dcadas do sculo, adotou uma espcie de Doutrina Monroe para a arquitetura [] cada qual procurando reviver formas, seno autctones, pelo menos caldeadas no novo mundo e no tempo da colonizao - algumas repblicas como o Mxico e os Estados Unidos chegaram a exportar essas formas (Mexicano, Ca-liforniano, Mission Style) (SANTOS, 1981, p.94). Cabe destacar que a obra de Paulo Santos (1904-1988) - contemporneo de Lucio Costa na Escola de Belas Artes e igualmente protagonista da afirmao do movimento moderno -, Quatro Sculos de Arquitetura, inicialmente publicada em 1966, se por um lado reafirma a trama historiogrfica triunfal do modernismo, por outro aponta j algumas questes que serviro para uma reviso posterior da arquitetura neocolonial. Exemplos disso encontram-se em sua obra no s ao reconhecer certo dilogo na Amrica Latina e Estados Unidos da questo, mas tam-bm ao apontar o cenrio de disputas das dcadas de 1920 e 1930, onde o neocolonial possua algum mrito por ter criado condies propcias - segundo ele depois exploradas em sua plenitude pelo modernismo - para pesquisas sobre as questes nacionais (SANTOS, 1981; MELLO, 2005; KESSEL, 2008).
33 Destacam-se especialmente as teses de livre docncia defendidas por Toledo (1985) e Lemos (1989) na Faculdade de Destacam-se especialmente as teses de livre docncia defendidas por Toledo (1985) e Lemos (1989) na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo que de formas distintas chamavam ateno para a temtica da ar-quitetura neocolonial: o primeiro apontando a importncia desse estilo no desenvolvimento da carreira do arquiteto Victor Dubugras - principalmente a partir da construo da Ladeira da Memria (1919) e dos Monumentos da Serra do Mar (1922); o segundo destacando o uso e ampla difuso desse estilo na arquitetura residencial paulista, primeiro a partir do debate entre intelectuais, e, posteriormente, atravs da chamada arquitetura sem arquitetos.
-
29Introduo
Aracy Amaral que procurava reunir reflexes acerca da arquitetura neocolonial produzidas
em toda a Amrica Latina, Caribe e Estados Unidos (AMARAL, 1994a).
Constituindo um campo bastante frtil para a construo de leituras comparadas
sobre a dinmica desse fenmeno nos diversos pases da Amrica, o volume colocava
definitivamente a arquitetura neocolonial como tema de interesse para as pesquisas
historiogrficas, construindo uma viso onde esta figurava como uma antecipao do
moderno, ao trazer para discusso pela primeira vez a elaborao de uma arquitetura
nacional. Destacava tambm sua importncia junto a algumas das primeiras iniciativas de
estudo e valorizao do patrimnio arquitetnico colonial. E procurava ainda relacion-la a
certo afastamento da Europa e aproximao dos Estados Unidos como modelo referencial
de cultura, descrevendo-a muitas vezes por um abandono dos estilos historicistas eclticos,
mas questionando uma eventual difuso como modismo importado dos Estados Unidos.
Assim, sobre as contradies inerentes ao neocolonial, entre modismo e ideologia, Aracy
Amaral assinala que:
En realidad, es muy difcil para nosotros determinar hasta qu punto el
nacionalismo emergente es precursor de una novedad eclctica que desea
sacarnos del atascadero de los eclecticismos de fines del siglo, intentando
encontrar en la arquitectura un estilo ms cercano a nuestra identidad tan
ansiosamente buscada; y hasta qu punto es ms una moda importada de
los Estados Unidos, inspirada, en este caso, en la arquitectura de los pases de
colonizacin hispnica. De cualquier forma, [] la Primera Guerra Mundial cre
nuevas condiciones para que los intelectuales de toda Amrica Latina revisaran
su cultura y, tambin, criticaran el modelo europeo que antes anhelaban. []
Independiente de la polmica sobre si puede ser considerado una modalidad
del eclecticismo, el neocolonial, con todos sus equvocos y empastelados,
pasara a ser [] la apertura para trascender los europesmos arquitectnicos
neoclsicos. Significara la bsqueda de la tan deseada independencia cultural
que sbitamente adquiere importancia debido a las conmemoraciones de los
centenarios de independencia poltica de los pases latinoamericanos. En ese
sentido, en varios centros, el neocolonial se configura como una anticipacin
de lo moderno. (AMARAL, 1994b, p.16)34
Visto como um fenmeno, de uma forma ou de outra, ligado a uma perspectiva de
modernizao, notvel a ampliao de possibilidades de anlise e investigao que
essa abordagem passaria a oferecer para o estilo neocolonial 35. No entanto, formula-se,
34 Destacam-se tambm nesse senti do as afi rmaes de Waisman, acerca do cenrio argenti no, na mesma publicao: Destacam-se tambm nesse sentido as afirmaes de Waisman, acerca do cenrio argentino, na mesma publicao: Tanto en la bsqueda de expresin nacional como en la modernizacin universalista se hacen patentes las contradicciones y complejidades de esta sociedad: el gesto (la figuratividad) con el que se pretende expresar (o suplir) una actitud ideol-gica; la discontinuidad en la atencin a los problemas estructurales, cuya solucin (o al menos discusin) debera estar en la base de las decisiones figurativas. Como saldo positivo del enfrentamiento entre ambas posiciones, ha de considerarse, a ms de la produccin de muchas obras de considerable valor arquitectnico (mas all de sus motivaciones ideolgicas), el comienzo de un debate terico y de una confrontacin de ideologas arquitectnicas que habras de conducir al largo del tiempo, por una parte al desarrollo de los estudios histricos y por la otra a la reflexin sobre la arquitectura nacional en relacin a los conceptos de modernidad, de identidad de regionalismo y otros []. (WAISMAN, 1994, p.280-281)
35 Signifi cati vo das possibilidades que esse enfoque de modernidade ofereceu so os novos olhares lanados para a Significativo das possibilidades que esse enfoque de modernidade ofereceu so os novos olhares lanados para a relao da arquitetura neocolonial com os episdios ocorridos em 1922: a j mencionada Exposio do Centenrio da Independncia e a Semana de Arte Moderna - onde essa linguagem figura como exemplo de modernidade. No entanto, se por um lado as conexes do neocolonial com a exposio carioca vm sendo exploradas (PINHEIRO, 2005; KESSEL 2008), sua presena na semana de So Paulo - apontada j por Amaral (1998) em 1970 em estudo sobre o evento, e retomada por
-
30 Introduo
dessa maneira, uma viso sobre a arquitetura neocolonial, que novamente se cristalizaria
ao longo do tempo, onde ela apontada quase como uma transio necessria entre o
ecletismo e o modernismo - ao trazer a temtica da nacionalidade para as discusses -,
j em plena superao na dcada de 1940 36. Cabe destacar nesse cenrio, que, desde
meados da dcada de 1990, autores diversos tm contribudo para a ampliao gradual
dos debates acerca da arquitetura neocolonial destacando sua abrangncia e permanncia,
embora muitas vezes ressaltando-a ainda como um modismo arquitetnico, amplamente
difundido nas cidades brasileiras, mas dificilmente ultrapassando a dcada de 1940 37.
Apenas mais recentemente alguns autores passaram a problematizar de forma mais efetiva
esse modelo cristalizado de interpretao, mostrando, por um lado, maior complexidade
nos embates entre neocoloniais e modernistas pela construo de hegemonias tanto
em torno da legitimao de uma linguagem arquitetnica moderna e nacional, quanto
pela possibilidade de construo simblica do passado, ou do patrimnio; e por outro
as relaes entre esse estilo e o poder, ou a articulao de capital social ou poltico.
So notveis, nesse sentido, os trabalhos de Pinheiro (2005) 38, Kessel (2008) 39, Mello
(2007) 40 e Atique (2007) 41. Tais autores conseguem efetivamente mostrar que se por
um lado a arquitetura neocolonial pode ser associada a estratgias conservadoras que
passam, entre outras questes, pela afirmao cultural da elite de seu lugar de poder, por
outro, so propostas que muitas vezes integram disputas pela afirmao de um iderio
essencialmente moderno, ou de modernizao, uma vez que na Amrica Latina, de
forma bastante geral, a busca pelas razes nacionais passa a ser entendida como processo
instransponvel para se chegar modernidade - fenmeno que se exemplifica pela
manifestao dessa questo tanto do ponto de vista poltico, pelos esforos repetidos de
Kessel (2002) em artigo mais recente - ainda aguarda estudos mais acurados.
36 Nesse senti do, Mello aponta que a imagem do neocolonial como um movimento limitado e de transio entre uma Nesse sentido, Mello aponta que a imagem do neocolonial como um movimento limitado e de transio entre uma arquitetura estrangeira e acadmica e outra nacional e moderna, entre o ecletismo e o movimento moderno, aparece per-sistentemente na maioria dos estudos a ele dedicados, ainda que seu significado e suas implicaes nem sempre tenham sido investigados. justamente a partir dessa ideia de transio que o neocolonial parece adquirir a importncia necessria para se transformar propriamente em um objeto de estudo e pesquisa, conferindo ao movimento um destaque positivo em meio critica do ecletismo de matriz europia no incio do sculo XX (MELLO, 2005, p.17).
37 Destaca-se parti cularmente Pinheiro (1997), Wolff (2001) e DAlambert (2003). Alm da j citada pesquisa de Pinheiro, Destaca-se particularmente Pinheiro (1997), Wolff (2001) e DAlambert (2003). Alm da j citada pesquisa de Pinheiro, Wolff e DAlambert procuram assinalar a diversidade de linguagens arquitetnicas utilizadas pelos profissionais paulistas - entre elas o neocolonial e o misses - entre meados da dcada de 1910 e incio da dcada de 1940, particularmente no que diz respeito construo residencial relacionando-a implantao do modelo bairro-jardim (WOLFF, 2001) e s inovaes arquitetnicas e sua recepo pelo pblico (DALAMBERT, 2003). Inserimos ainda nessa categoria o trabalho mais recente de Mascaro (2008), que, embora buscando traar paralelos entre a arquitetura neocolonial brasileira e o modelo portugus, e destacando algum uso oficial da arquitetura neocolonial no perodo do Estado Novo, principalmente no estado de So Pau-lo, tem a sua tnica em demonstrar a difuso desse estilo no interior paulista at a dcada de 1950. Note-se ainda a obra de Reis Filho (1997) sobre a atuao do arquiteto Victor Dubugras procurando explicar seus projetos neocoloniais no pela retomada fiel das solues formais dos modelos antigos, mas por um uso mais conveniente e inventivo dos materiais e pela busca de processos construtivos mais adequados para a regio, qual o autor denominaria de regionalismo emprico.
38 Concentrando-se na dcada de 1920 - ainda que transpondo muitas vezes esses limites para tratar de questes espec- Concentrando-se na dcada de 1920 - ainda que transpondo muitas vezes esses limites para tratar de questes espec-ficas - Pinheiro (2005) trouxe como contribuies centrais, evidenciar novos dados acerca das conexes entre o neocolonial e o surgimento das primeiras reflexes acerca da preservao do patrimnio nacional, e entre essa linguagem e arquitetos e intelectuais modernistas. A autora procura relacionar ainda tais questes s reflexes do iderio romntico, principalmente ingls, a partir da figura de Ruskin.
39 Kessel (2008) concentra seu estudo entre meados da dcada de 1910 e incio da dcada de 1940, procurando desta- Kessel (2008) concentra seu estudo entre meados da dcada de 1910 e incio da dcada de 1940, procurando desta-car as formulaes iniciais, bem como a difuso do neocolonial nos contextos paulistas e carioca. Dando grande ateno centralidade exercida pela figura de Marianno Filho, o autor procura destacar a importncia da anlise dessa linguagem no apenas a partir de sua produo construda, mas tambm a partir de sua produo textual, localizando-a no campo de disputas diversas travadas no cenrio arquitetnico e da profisso - envolvendo a formao de agremiaes, disputas por obras pblicas e pelo domnio do ensino.
40 Mello (2007) aborda a questo do ponto de vista do percurso pessoal de Ricardo Severo e de suas arti culaes para Mello (2007) aborda a questo do ponto de vista do percurso pessoal de Ricardo Severo e de suas articulaes para a obteno de capital social. A autora procura assim situar a formulao das teorias de Severo a partir dos amplos estudos principalmente arqueolgicos e antropolgicos da nacionalidade brasileira e portuguesa por ele realizados; bem como situ-ar seu posicionamento profissional e produo arquitetnica no cenrio paulista das primeiras dcadas do sculo XX.
41 Dedicando-se ao estudo das relaes diversas estabelecidas entre Brasil e Estados Unidos no campo da arquitetura e Dedicando-se ao estudo das relaes diversas estabelecidas entre Brasil e Estados Unidos no campo da arquitetura e do urbanismo, Atique (2007) procura ressaltar os impasses do neocolonial enquanto modelo parcialmente importado que pretende a consolidao de uma linguagem nacional, bem como o papel do estilo misses para a construo da ideia de pan-americanismo e os interesses americanos sobre essa construo identitria.
-
31Introduo
construo de unidade para a nao ou para blocos internacionais; quanto das propostas
modernistas nas artes plsticas, literatura e arquitetura. Note-se ainda que as imbricadas
relaes entre a arquitetura neocolonial e as questes sociais, polticas e culturais do
perodo, bem como a particularidade que tais formulaes assumem, quer em momentos
distintos, quer atravs da atuao de personagens diversos, apontadas por esses trabalhos,
j sinalizam a impossibilidade de tratar a arquitetura neocolonial como um bloco nico e
integral de formulaes tericas, discursos e significados construdos.
Cabe salientar que, embora em muitos casos chegando at a dcada de 1940 e destacando a
permanncia da arquitetura neocolonial nesse perodo, so poucos os trabalhos que, ao tratar
dessa linguagem, propem qualquer relao entre ela e a poltica de cunho nacionalista ento
vigente do Estado Novo 42. Entretanto, a utilizao da linguagem neocolonial em projetos de
carter oficial no perodo (especificamente os das Escolas Prticas de Agricultura do Estado
de So Paulo, mas no se restringindo certamente a esses), expressamente justificada pelo
carter formador de nacionalidade que deveriam desempenhar e associada ao discurso
estado-novista de construo de uma unidade nacional que aglutinasse diferenas, parece
indicar a impossibilidade em tratar esses exemplos como manifestaes isoladas ou tardias.
Por outro lado, tais aspectos parecem indicar a necessidade de uma anlise que, sem
esquecer as continuidades que a linguagem neocolonial assume ao longo do tempo, assuma
as particularidades de sua adoo nesse cenrio poltico.
possvel, portanto, dizer que a permanncia no tempo da linguagem neocolonial
associada a conceitos, discursos e contextos particulares diversos - como as pesquisas
recentes tm apontado, e como o presente trabalho procura igualmente assinalar - parece
indicar a necessidade de reviso do conceito mesmo de manifestao tardia, ou de estilo
anacrnico. Tais avaliaes baseiam-se, sobretudo, em uma construo da histria da
arquitetura a partir da lgica da sucesso de estilos - ainda que com certas sobreposies
ao longo do tempo -, entendidos enquanto materializao de condies scio-culturais
manifestas em um determinado contexto histrico 43. Assim - sem esquecer a centralidade
que se credita no presente trabalho questo da linguagem associada a significados
e discursos para anlises no campo da histria da arquitetura - o conceito de estilo,
42 Destaca-se entre os autores que mencionam tal ligao Kessel (2008) e Mascaro (2008). Kessel o faz centrando-se na Destaca-se entre os autores que mencionam tal ligao Kessel (2008) e Mascaro (2008). Kessel o faz centrando-se na figura de Marianno Filho - aponta-o como figura anacrnica - e negando qualquer relao mais efetiva entre a arquitetura neocolonial e o Estado Novo, uma vez que essa j estaria em agonia enquanto movimento na dcada de 1940, embora fosse possvel averiguar sua continuidade do ponto de vista de sua produo construda (2008, p.228 et seq.). Mascaro (2008), embora ressaltando as aproximaes entre a ideologia estado-novista e a produo neocolonial paulista - que aponta como centrada, sobretudo, na figura de Fernando Costa -, o faz de forma bastante breve, no apresentando maiores discusses sobre o assunto. Por outro lado a autora tambm no apresenta em sua anlise qualquer sinal de embate entre as lin-guagens arquitetnicas do perodo, apoiando-se nas reflexes apresentadas por Lemos (1989) para construir um grande modelo de continuidade que se iniciaria com a formulao erudita e pioneira da arquitetura neocolonial - atrelada, segundo a autora, ao modelo portugus -, teria seu ponto intermedirio, igualmente erudito nas obras de carter oficial propugna-das principalmente por Fernando Costa, para ento se difundir em modelos no-erudito nas cidades do interior paulista (MASCARO, 2008). 43 Exemplo notvel desse entendimento encontra-se na defi nio apresentada por Gropius para esti lo enquanto a for- Exemplo notvel desse entendimento encontra-se na definio apresentada por Gropius para estilo enquanto a for-ma de expresso constantemente repetida de um perodo, cujo fundamento, culturalmente saturado, permite a criao de um denominador comum (GROPIUS, 1994, p.132). Outra anlise que caminha em sentido anlogo a de Arango: El ideario poltico y social, unido a circunstancias de tipo econmico o tcnico que cada generacin encuentra como sus cir-cunstancias, o como un ideal a adquirir, se manifiesta en arquitectura en los llamados lenguajes, es decir, en la apariencia o envoltorio de la arquitectura y que normalmente se cataloga como estilos o modas arquitectnicas. Esta expresin arqui-tectnica de la ideologa necesita ser socialmente evidente y por ello es de vocacin exhibicionista: se viste de un repertorio de formas que permitan una fcil lectura o decodificacin, es decir, que permitan su reconocimiento a travs de volmenes, fachadas y juegos decorativos. (...) Por otra parte, como calibrar el clima histrico y hacer su interpretacin fsica es una tarea colectiva pero que demanda un cierto nivel intelectual, los lenguajes arquitectnicos novedosos generalmente son asumidos por el sector profesional o especializado en arquitectura. Es normal que en todo momento histrico coexistan distintos lenguajes, la mayor parte de ellos anacrnicos, con la primaca de uno de ellos, que es el encargado de interpre-tar la situacin histrica de la generacin al mando y el cual es elaborado por el grupo de arquitectos de esa generacin (ARANGO, 1989, p.12).
-
32 Introduo
extensamente utilizado para o estudo da arquitetura neocolonial, parece trazer alguns
impasses de difcil resoluo.
Nesse sentido Arango afirma que: Estilo e influencia son dos de las categoras ms
problemticas de la historiografa arquitectnica. A pesar de todos los intent