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Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) | Mariana/MG | 10 e 11 de outubro 2019 DISPOSITIVOS CONVOCADORES DE UMA POÉTICA DA ESTRADA: liberdade, poder e melancolia na interface Lana Del Rey com Easy Rider 1 EVOKING DEVICES OF A POETICS OF THE ROAD: freedom, power and melancholy in Lana Del Rey’s interface with Easy Rider William David Vieira 2 Universidade Federal de Ouro Preto Resumo Símbolo de uma cultura pop dos anos 2010 e, mais precisamente, de uma chamada “geração dos melancólicos”, a cantora Lana Del Rey traz, em seus produtos audiovisuais, interseções com outros produtos da cultura midiática. Essas referências contribuem para fomentar a melancolia em seu discurso. A partir disso, buscamos analisar a que servem esses diálogos entre tais referenciais. Tendo como base um videoclipe, Ride, percebemos que ele se sustenta por meio de uma aura do filme Easy Rider (1969), de Dennis Hopper – a referência acionada por Lana nesse produto. O longa é responsável por levar ao clipe uma poética da estrada, isto é: a presença da estrada como um gesto de caráter político. Por meio de três dispositivos convocadores de ordem teórico-metodológica (liberdade, poder e melancolia), em diálogo com autores que discutem esses temas, mapeamos tal caráter da estrada como componente de um discurso pop e de uma estética audiovisual. Palavras-chave: Dispositivos; Easy Rider; Estrada; Lana Del Rey; Poética. Abstract Symbol of a pop culture from the 2010s and, more precisely, a so-called “generation of the melancholic”, singer Lana Del Rey brings, in her audiovisual products, intersections with other media culture products. These references contribute to foster melancholy in her speech. From this, we seek to analyze to what purpose these dialogues between such references serve. Based on a music video, Ride, we realize that it sustains itself through an aura from Dennis Hopper's Easy Rider (1969) movie – Lana's reference in this product. The film is responsible for bringing to the video a poetics of the road, that is: the presence of the road as a gesture of political character. Through three devices which evoke an theoretical-methodological order (freedom, power and melancholy), in dialogue with authors who discuss these themes, we map such character of the road as a component of a pop discourse and audiovisual aesthetics. Keywords: Devices; Easy Rider; Road; Lana Del Rey; Poetics. 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5 – Estudos Interdisciplinares, do XII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais – Ecomig 2019, 11 e 12 de outubro de 2019. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto e bacharel em Jornalismo pela mesma instituição. Pesquisador do grupo de pesquisa “Quintais: cultura da mídia, arte e política” (UFOP/CNPq). E-mail: [email protected].

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DISPOSITIVOS CONVOCADORES DE UMA POÉTICA DA ESTRADA: liberdade, poder e melancolia na interface Lana Del Rey com Easy Rider1

EVOKING DEVICES OF A POETICS OF THE ROAD:

freedom, power and melancholy in Lana Del Rey’s interface with Easy Rider

William David Vieira2 Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

Símbolo de uma cultura pop dos anos 2010 e, mais precisamente, de uma chamada “geração dos melancólicos”, a cantora Lana Del Rey traz, em seus produtos audiovisuais, interseções com outros produtos da cultura midiática. Essas referências contribuem para fomentar a melancolia em seu discurso. A partir disso, buscamos analisar a que servem esses diálogos entre tais referenciais. Tendo como base um videoclipe, Ride, percebemos que ele se sustenta por meio de uma aura do filme Easy Rider (1969), de Dennis Hopper – a referência acionada por Lana nesse produto. O longa é responsável por levar ao clipe uma poética da estrada, isto é: a presença da estrada como um gesto de caráter político. Por meio de três dispositivos convocadores de ordem teórico-metodológica (liberdade, poder e melancolia), em diálogo com autores que discutem esses temas, mapeamos tal caráter da estrada como componente de um discurso pop e de uma estética audiovisual.

Palavras-chave: Dispositivos; Easy Rider; Estrada; Lana Del Rey; Poética.

Abstract

Symbol of a pop culture from the 2010s and, more precisely, a so-called “generation of the melancholic”, singer Lana Del Rey brings, in her audiovisual products, intersections with other media culture products. These references contribute to foster melancholy in her speech. From this, we seek to analyze to what purpose these dialogues between such references serve. Based on a music video, Ride, we realize that it sustains itself through an aura from Dennis Hopper's Easy Rider (1969) movie – Lana's reference in this product. The film is responsible for bringing to the video a poetics of the road, that is: the presence of the road as a gesture of political character. Through three devices which evoke an theoretical-methodological order (freedom, power and melancholy), in dialogue with authors who discuss these themes, we map such character of the road as a component of a pop discourse and audiovisual aesthetics.

Keywords: Devices; Easy Rider; Road; Lana Del Rey; Poetics.

1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 5 – Estudos Interdisciplinares, do XII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social de Minas Gerais – Ecomig 2019, 11 e 12 de outubro de 2019. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto e bacharel em Jornalismo pela mesma instituição. Pesquisador do grupo de pesquisa “Quintais: cultura da mídia, arte e política” (UFOP/CNPq). E-mail: [email protected].

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Introdução

Quando desponta na cultura pop, no meio fonográfico, a cantora Lana Del Rey, no início

dos anos 2010, passa a integrar e também surge como ícone de um movimento que poderíamos

definir, a partir do início dessa década, como uma “geração dos melancólicos”. Seu discurso

pop, pautado por essa frente cultural envernizadora, mostra que tal condição possui ciclos de

renovação e produção. É possível encontrar referências da mesma melancolia no Romantismo

(entre os séculos XVIII e XIX), na ascensão da modernidade com o surgimento do trem na

Revolução Industrial (também no século XIX), na ascensão de uma chamada pós-modernidade

sociológica (“instaurada” em 1989) e até mesmo no imaginário de fim do mundo na última

virada do milênio (1999-2000). Em 2010, por sua vez, Lana Del Rey faz parte de um grupo que

está contra a ascensão dos movimentos conservadores/ultradireitistas no mundo. É comum

encontrarmos, em suas obras, outras referências que dialogam com esse movimento e fazem

uso de uma melancolia como possibilidade de resistência.

No videoclipe da música Ride, a cantora se apoia em um grande ícone da contracultura

no cinema, o filme Easy Rider (1969), dirigido pelo cineasta Dennis Hopper, para circunscrever

essa discussão de uma melancolia política como possibilidade de sobrevivência e resistência.

Tanto Ride quanto Easy Rider mergulham em uma mesma noção discursiva ao abordarem a

fuga pela estrada aparentemente sem fim, muito comum nas imagens trazidas pelos dois objetos

audiovisuais, como uma tentativa de liberdade em meio às amarras do mundo. Como problema

de pesquisa possível a partir dessa relação, identificamos que o longa-metragem da década de

1960 é responsável por levar ao clipe, lançado em 2012, uma poética da estrada, isto é: a

presença da estrada como “gesto político” (SERELLE, 2010; AGAMBEN, 2015), que surge

como reivindicação de uma vida aparentemente livre, sem amarras.

Para tanto, mapeamos três atributos presentes no clipe e advindos do filme, os quais

fundamentam tal caráter da estrada como dispositivos convocadores. Objetivamos perscrutá-

los em funcionamento, no intuito de tatearmos essa dimensão comunicacional da estrada que

se desloca de Easy Rider para Ride. São os atributos: liberdade, poder e melancolia, dispositivos

acionados como categorias de análise de ordem teórico-metodológica. Inicialmente,

vislumbramos a produção de uma liberdade questionadora de uma felicidade falseada pelos

ditames neoliberais, arregimentados pela ideia de liberdade como commodity (ŽIŽEK, 2018);

em seguida, problematizamos a subversão de uma ilusão de poder possibilitado por essa mesma

ordem do capital (HAN, 2017); logo depois, conceituamos a execução de ambas essas ações

por meio de um semblante melancólico de resistência às opressões do sistema neoliberal

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sedimentado (LOPES, 1999; RANGEL, 2016) e que funciona como estimulante do consumo e

da ilusão de poder. Esses três atributos delineiam o “gesto político” no qual se traduz a poética

da estrada, materializada em formas audiovisuais que são políticas justamente pela ação

humana e pelos contextos sociais de que falam.

Curiosamente, Ride e Easy Rider estão cientes de que essa poética da estrada pode ter

um destino fascista, como muitos movimentos dos anos 1960 e como uma contracultura

anunciada por essa década e advinda anos mais tarde, na década seguinte – como nos dizem

Žižek (2018) e Didi-Huberman (2017)3. Por conta disso, a poética da estrada culmina, como

vemos em ambas as obras, na aceitação do deserto (ao lado da estrada) como destino possível

e inicial para uma fuga que, no fim das contas, requer tanto a compreensão de que estamos

sujeitos às opressões do mundo moderno quanto a altivez de que é preciso encarar esse mesmo

sufocamento. Ora, não estaria nessa espécie de convenção da melancolia – erigida entre

produtos da cultura midiática –, de um lado, uma poética do encontro do eu, que passa antes

pela poética da estrada, e, de outro lado, novas estratégias de representação da cultura midiática

(na qualidade de esteio ou mais uma presa do mundo moderno) das inconsistências causadas

por ela própria no social?

Ride: notas sobre liberdade, poder e melancolia

Trazendo um embate entre a indústria hollywoodiana – uma das frentes organizadoras

de embalagens midiáticas, livres para capitanear afetos do social (GROSSBERG, 2018, p. 10-

11) –, mostrando o desejo pela fama (buscado por Lana Del Rey) e o seu nascimento como

diva, mas sem a morte de sua essência pela indústria cultural, o videoclipe de Ride traz Lana

em uma espécie de subversão de figuras da modernidade, como o flâneur benjaminiano, para,

em seguida, por meio dessa mesma composição, acionar uma discursividade que tece um novo

sujeito “errante”, “desviante” e “observador”. Se podemos observar todas essas características

no próprio flâneur, como há em poesias de Charles Baudelaire, ao trazer, para suas

composições, um lirismo crítico da sôfrega modernidade – sendo esta a verdadeira causadora

do sufocamento nos sujeitos, por meio de várias instâncias, entre elas a indústria hollywoodiana

–, a subversão desta figura, em Lana Del Rey, dá-se a partir do momento em que o poder

3 Ambos os autores nos mostram que, no curso da história, é comum encontrarmos que muitos levantes ou mobilizações políticas em geral acabaram por ter um destino fascista. Para se ter uma ideia, tanto o movimento francês de maio de 1968 – como explica Žižek (2018), retomando a mesma época de produção de Easy Rider –, quanto a contracultura desiludida (anos mais tarde) das décadas de 60 e 70 e o filme Easy Rider (que se embebe dessas fontes para sua produção) sofrem do mal do levante acometido pelo destino fascista

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sufocador de uma modernidade como tempo psicológico burguês de desumanização não mais

encontra, como resistência, um transe ou descontrole de si – ambos igualmente epidêmicos –

em noitadas regadas a bebedeiras, como Baudelaire e também escritos benjaminianos

representam o flâneur.

Agora, Lana Del Rey recorre a um estilo de vida bucólico, em certa medida, que tem a

estrada como uma “nova fuga para o Oeste”. É no caráter aberto da estrada sem fim, sempre

passível de novos sentidos, que o corpo melancólico de Lana Del Rey, aviltado por uma

indústria fonográfica, à qual ela acaba por fazer concessões e da qual não consegue se

desprender – próprio de uma ambiência de modernidade, de aprisionamento –, encontra uma

fuga, uma reivindicação contracultural ou um próprio face a face ontológico consigo, no sentido

de se desprender das amarras do mundo, sabendo, para tanto, que, antes disso, é preciso estar

atado a elas, em sua falsa felicidade, para que se encontre e se viva a “verdadeira felicidade” –

possível e pregada a partir do discurso de Lana em seu videoclipe.

Em Ride, há a exteriorização, pela figura de Lana Del Rey, de uma liberdade encontrada

em três referências espectrais que surgem como uma trindade no vídeo (todas estão arroladas

no corpo da diva pop e materializadas pela mesma garota, a personagem de Lana no clipe): uma

aspirante a cantora (que, por fim, alcança a cultura pop), uma prostituta à moda lolita ou pin-

up e, ao mesmo tempo, uma mulher sem vernizes e de alma aparentemente livre, que encontrou

a “verdadeira felicidade” e vagueia sem destino (nome da versão brasileira para o filme Easy

Rider) pelas estradas estadunidenses. No videoclipe, é contada uma história que gira em torno

dessa personagem tripla, que ganha a vida com a prostituição, tem o sonho de se tornar mais do

que cantora, sendo uma verdadeira poetisa, e combina tudo isso com o desejo de ser livre. As

experiências obtidas em sua vida, a partir dos dias sempre sem rumo empilhados um sobre o

outro na estrada, as relações com os homens mais velhos que a contratam, a mente conturbada

em meio a esses problemas e a compreensão de sua diferença diante do mundo moderno, regido

pelo capital, dão o tom do lirismo das composições dessa cantora e da própria composição de

Lana em Ride. Isso pode ser visto na música em: “I was always an unusual girl / My mother

told me I had a chameleon soul / No moral compass pointing due north, no fixed personality /

Just an inner indecisiveness / That was as wide and as wavering as the ocean / [...] I was born

to be the other woman / I belong to no one, who belonged to everyone / Who had nothing, who

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wanted everything / With a fire for every experience / And an obsession for freedom”4, diz a

musicista nos primeiros momentos do vídeo, durante um monólogo que é sucedido pela canção.

Na sequência, no clipe, a personagem da cantora no sobe a um palco, simulando seu

nascimento como diva após tanto desejar a fama, mas sem se esquecer de suas experiências,

dos homens para quem se vendia e de sua necessidade de liberdade: “I’ve been out on that open

road / You can be my full time, daddy / [...] Don’t break me down / I’ve been traveling too long

/ I’ve been trying too hard / With one pretty song / I hear the birds on the summer breeze / I

drive fast / I am alone at midnight / Been trying hard not to get into trouble, but I / I’ve got a

war in my mind / So, I just ride / I just ride”5. Agora, a liberdade não é mais sentida da mesma

forma que antes, por isso, no videoclipe, são inseridos, em meio à performance dessa ex-

aspirante à cantora no palco, lampejos de sua vida como garota de programa. Enquanto a

indústria tão desejada aprisiona, também proporciona uma felicidade falseada, por meio da ideia

de que se conquistou o ponto máximo de desejo na vida e de que se pode tudo a partir dessa

conquista.

Entretanto, as inserções de liberdade com cenas da vida de antes em meio às cenas de

sucesso da já não mais aspirante à cantora estabelecem, por esse diálogo entre imagens, um

processo comunicacional que postula ambos como contrastantes. Para completar, essa

felicidade falseada também se apresenta como detentora de frestas de liberdade, isto é, porta-se

como uma vida que também vai realizar a personagem de Lana por meio da felicidade contida

nessa conquista de se tornar uma grande cantora. Tal compreensão estaria próxima da ideia de

liberdade como commodity, discutida pelo filósofo esloveno Žižek (2018) dentro da lógica do

“capitalismo ético”, a saber que se trata de uma liberdade incorporada por uma cultura

capitalista sempre em reinvenção e sempre a buscar, nos próprios levantes ou nas mobilizações

políticas, uma ancoragem para amparar seus pontos de vista arbitrários. Para o autor, essa

liberdade surge de movimentos como o maio de 1968, na França, que trouxe, como

consequência, uma apropriação possível de elementos da contracultura da década:

4 Tradução livre: “Sempre fui uma garota incomum / Minha mãe me disse que eu tinha alma de camaleão / Sem bússola moral apontando para o norte, sem personalidade fixa / Só uma indecisão interior / Tão grande e oscilante quanto o oceano / [...] Eu nasci para ser a outra mulher / Eu não pertencia a ninguém e pertencia a todo mundo / Eu não tinha nada e queria tudo / Com um fogo para cada experiência / E uma obsessão pela liberdade”. 5 Tradução livre: “Eu caí na estrada / Você pode ficar comigo em tempo integral, daddy / [...] Não me decepcione / Eu viajei muito longe / Eu tentei tanto / Com uma linda canção / Eu ouço os pássaros na brisa de verão / Eu dirijo rápido / Eu estou sozinha à meia-noite / Estou tentando muito não entrar em confusão, mas eu / Eu tenho uma guerra na minha mente / Então, eu só sigo em frente / Eu só sigo”.

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[...] muitos [...] aspectos de 68 foram integrados com sucesso na ideologia capitalista hegemônica e são hoje mobilizados não apenas pelos liberais, mas também pela direita contemporânea, em sua luta contra qualquer forma de “socialismo”. Por exemplo, a “liberdade de escolha” é usada na defesa dos benefícios do trabalho precário. Então, esqueça a ansiedade por não ter certeza de como você vai sobreviver nos próximos anos e se concentre no fato de ter conquistado a liberdade de “se reinventar” muitas vezes, de evitar a prisão de um mesmo trabalho monótono. (ŽIŽEK, 2018, n.p.)

Desse modo, percebemos, no fim das contas, que a aspirante à cantora de Lana Del Rey

no vídeo, que volta a flertar com sua aura lolita ou uma espécie de pin-up de antes (modos com

os quais a garota de programa é esteticamente construída) ao questionar a felicidade que lhe é

apresentada pela indústria do espetáculo, também se dá conta de que está submetida às agruras

e humilhações da indústria fonográfica ao ser rejeitada inicialmente como cantora e ser obrigada

a ser uma garota de programa para se sustentar e alcançar seu sonho. Se antes ela era sufocada

por essa pressão, agora, mesmo alcançando o que desejava, não é diferente.

Entretanto, ao fazer concessões para conseguir o que queria, acaba submetida em maior

intensidade (por sua ótica) às opressões do mundo. Assim, o poder que lhe é garantido pelo

status de ser uma cantora de sucesso é, na verdade, uma ausência de poder sobre a própria vida,

algo descrito por Han (2017) como uma condição própria da sociedade contemporânea, uma

sociedade dita moderna ou “do progresso”. Para o autor, não podemos poder as coisas porque,

na realidade, somos impelidos a fazê-las por meio da ideia de que podemos fazer tudo o que

queremos – algo que que substitui a lógica de devermos fazer as coisas e exerce coerção e

obrigação de produtividade ainda maiores que o próprio conceito de dever. O poder é, assim,

uma ilusão:

A sociedade do desempenho está totalmente dominada pelo verbo modal poder, em contraposição à sociedade da disciplina, que profere proibições e conjuga o verbo dever. A partir de um determinado ponto da produtividade, o dever se choca rapidamente com seus limites. É substituído pelo verbo poder para elevação da produtividade. O apelo à motivação, à iniciativa e ao projeto é muito mais efetivo para exploração do que o chicote ou as ordens. Como empreendedor de si mesmo, o sujeito de desempenho é livre, na medida em que não está submisso a outras pessoas que lhe dão ordens e o exploram; mas realmente livre ele não é, pois explora a si mesmo e quiçá por decisão pessoal. O explorado é o mesmo explorador. A gente é vítima e algoz ao mesmo tempo. A autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração alheia, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. (HAN, 2017, p. 21-22; grifos no original)

Por outro lado, essa “coerção autogerada”, que mais parece um caso de liberdade, passa

despercebido pelo sujeito quando imerso nela:

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É bem verdade que Foucault indica que o Homo oeconomicus neoliberal não habita a sociedade da disciplina, que enquanto empreendedor de si mesmo já não é mais um sujeito de obediência. O que lhe permanece oculto, no entanto, é o fato de tal empreendedor de si mesmo não ser livre na realidade. Ele apenas aventa a si mesmo ser livre, enquanto explora a si próprio. Foucault refere-se ao neoliberalismo afirmativamente. De forma acrítica, ele admite que o regime neoliberal, enquanto “sistema do estado mínimo”, possibilita a liberdade do cidadão enquanto “empreendedor da liberdade”. (HAN, 2017, p. 22-23; grifos no original)

Isso está, por exemplo, na conquista do sonho de se tornar cantora, um modelo quase

autobiográfico da própria artista Lana Del Rey, que passa a ser vítima de si mesma, é incapaz

de sair de sua personagem nas ruas, consome a si mesma na cultura pop e tenta resistir a ela,

embora sua resistência seja, ao mesmo tempo, saqueada, embalada e vendida pelo próprio pop

e pelo mundo do progresso e dos espetáculos. É nesse momento que surge, como reação, no

próprio semblante de Lana Del Rey, ao se perceber como alvo dessa armadilha do poder, uma

composição melancólica. Seu pop, mesmo atrelado a essas rédeas do capital, é crítico das

armadilhas que ele próprio pratica e é, também, alvo da melancolia que surge nos sujeitos como

reação a seus desmandos. Assim, estamos diante tanto de mais um caso de “capitalismo ético”

quanto de uma possibilidade de representatividade dessa iconoclastia de amarras e da indústria

do espetáculo. E, na medida em que podemos compreender o semblante como uma frente

envernizadora do rosto, estamos a perceber um processo comunicacional que se dá, por meio

desse semblante da melancolia, como uma ação que também deixa o mundo passível de

reconfiguração.

Nas palavras de Rancière (2007, p. 201), o rosto, por sua capacidade de não dizer nada

– inicialmente – e, ao mesmo tempo, dizer tudo o que se esconde por trás de si e do corpo,

possui um funcionamento orgânico e sensível, agindo como uma politicidade do corpo em

movimento, capaz de ressignificar e transformar o mundo6. Logo, rosto e semblante são

percebidos, pois, como acionamentos políticos. Isso porque a melancolia que os embala não é

um pessimismo puro ou uma apatia, e sim um ato político. Reconhecida em figuras como o

pensador Walter Benjamin, diante das consequências sofridas pelos sujeitos por conta da

Segunda Guerra Mundial, essa melancolia seria uma reação/resistência que estaria longe de

uma genialidade, de uma prostração ou apatia profundas. Ela caracterizaria uma Stimmung

(estado de alma) de compreensão do tempo opressor da modernidade e de rejeição a ele e seus

6 Aqui, abordamos, pela ótica de Rancière (2007), a visão “imediatista” do rosto e o que tal condição evoca. Fazemos isso por meio da compreensão de Agamben (2015, p. 87) de que “a exposição [passível de ser dada pelo rosto] é o lugar da política.

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efeitos, pautando-se, no fim das contas, em um pessimismo não estático, mas possivelmente

revolucionário, como destaca Rangel (2016)7, em sua leitura do pensador alemão. E se trata,

segundo o autor, de

[...] um sentimento, uma atmosfera ou clima (Stimmung) que é a origem (e também desponta) da compreensão de que a reconfiguração da história [suplantar uma cultura cristalizada do capital] é ou teria se tornado difícil ou mesmo improvável, o que, por outro lado, não significa passividade. [...]. Maria Rita Kehl também entende que Benjamin seria determinado pelo que chama de “melancolia positiva”, e [Michael] Löwy classifica isto que estamos chamando de melancolia de “pessimismo revolucionário”... (RANGEL, 2016, p. 127; grifo no original)

Desse modo, a melancolia, da forma como a sentimos em Benjamin, segundo Rangel

(2016), está longe de um ato de cunho soberbo, de uma estratégia de genialidade ou de um

pessimismo inerte e apático. Está, na verdade, como elemento dosador do próprio semblante

melancólico de Lana, que se espalha pela cultura pop e pela chamada “geração dos

melancólicos” da qual a cantora faz parte. E, embora conceitualmente separados, mas imagética

e fisicamente interpenetrados, rosto e semblante, por essa condição política – que, veremos, à

frente, pode ser compreendida como gesto –, fazem-se definir a nós como imagens melancólicas

de uma persona Lana Del Rey que nada mais é que um reagenciamento possível do mundo, o

qual se viabiliza, segundo Marques (2014) – em diálogo com Rancière (2007) e para além da

conceituação de abertura à “exposição” de Agamben (2015) –,

[...] a partir do momento que indagamos as imagens menos a partir de uma pretensa “mensagem política” a ser decifrada, e mais a partir dos dispositivos de visibilidade que definem e impõem constrangimentos e cerceamentos aos modos como se constroem, na imagem, possibilidades de apresentação e de aparência dos indivíduos... (MARQUES, 2014, p. 71)

Dessa maneira, a melancolia pode ser percebida no semblante, como mostra a Figura 1,

pela resistência à modernidade, a uma felicidade falseada, a uma liberdade vendida, ao falso

poder e, acima disso, ao próprio sistema neoliberal sedimentado, que se comporta como o

7 Essas acepções estão próximas do que atesta também Lopes (1999, p. 14-15), ao dizer que “a melancolia não é simplesmente uma vaga tristeza ou prostração... Sua suave força nasce da percepção da passagem do tempo, das ruínas que se avolumam, até na história dos sentimentos. O melancólico se sabe infinitamente íntimo [no sentido de se conhecer, alcançar sua ontologia, sua verdadeira essência, por meio dessa melancolia] e a morte está sempre próxima. Mas o que é essa atração por imagens da morte? É uma atração baseada na sensação de que a morte está se aproximando não importa o que façamos? Então porque não irmos mais rápido já que nos exaurimos na espera? [...]. Porque a melhor morte é a morte cotidiana, pouco a pouco dia após dia...”. Veremos, à frente, a presença dessas pulsões de morte, descritas por Lopes, no videoclipe de Ride. A morte seria, em determinado momento, pela forma como Lana a apresenta, uma utopia para seu corpo melancólico.

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estimulante do consumo e da ilusão de poder. Tão logo, liberdade e poder são dois atributos

que se delineiam como políticos e se direcionam ao semblante melancólico, o “fim” político

desses meios e outro meio em si, que, na soma final de toda essa aritmética, alude a um “gesto

político” no qual se traduz a poética da estrada, materializada em formas audiovisuais, como o

videoclipe de Ride e o filme Easy Rider (falaremos à frente), que são políticos justamente pela

ação humana e pelos contextos sociais de que falam.

Figura 1: O semblante da melancolia na modulação lolita e pin-up de Del Rey. Foto: Reprodução/YouTube.

Curiosamente, ainda pelo que nos mostra a Figura 1, a liberdade vista na vida de antes

como garota de programa passa a ser alvo, nas retomadas da personagem de Lana dessa fase de

sua vida, do mesmo semblante melancólico verificado como reação após ingressar no pop. Isso

nos leva a crer que a personagem da artista também passa a enxergar a liberdade de antes, na

prostituição, também como uma suposta liberdade apenas ou uma liberdade falseada, dando a

entender que a liberdade total não seria e não será possível. E, se ela verificava essa liberdade

não apenas como garota de programa, mas também se jogando na estrada – como veremos a

seguir –, essa mesma estrada estará impactada, tendo, no fim das contas, seu caráter de liberdade

também falseado; tendo, em resumo, um destino fascista.

Entre Easy Rider e Ride: no frontispício de uma poética

Ainda que seja possível a verificação de um destino fascista, isso não anula a

composição inicial de uma mobilização rebelde, como se verifica na melancolia de Lana Del

Rey. Podemos interpretar essa afirmação por outro gancho analítico. Recheado de uma

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ideologia de pulsão de morte ou culto a ela e liberdade utópica (como canta Lana: “Dying young

and I’m playing hard / That’s the way my father made his life an art / Drink all day and we talk

‘til dark / That’s the way the road dogs do it, light ‘til dark”8), o semblante aciona a melancolia

em sua face política. Isso é feito ao ser acionada, em Ride, uma presença espectral ou quase

fantasmática, nos termos de Derrida (1998), dos motoqueiros do filme Easy Rider (1969), de

Dennis Hopper – uma dimensão aparentemente espectral, conquistada em Ride e que evoca a

figura dos “motoqueiros” ou “cães da estrada” (os road dogs).

Embora haja o reconhecimento dos caminhos tomados pela revolução de maio de 1968

na França, como trouxemos neste texto e da qual o ambiente do filme Easy Rider faz parte, não

obstante também os rumos fatídicos e tortuosos de uma contracultura das décadas de 1960 e

1970 (que também citamos aqui), e, mais ainda, a despeito do uso mercadológico à exaustão

desse “cult contracultural” do cinema no qual se compreende o longa de Dennis Hopper, o filme

traz cenas e falas concernentes à problematização que estabelecemos aqui, como a percepção

do personagem George Hanson (interpretado pelo ator Jack Nicholson) sobre os dois

motoqueiros que caem na estrada no filme, com os quais faz amizade: “[Os habitantes do

‘mundo lá fora’] Têm medo do que vocês [motoqueiros] representam. Para eles, vocês

representam a liberdade. É difícil ser livre quando se é comprado e vendido no mercado”. Muito

característica e também emblemática do desejo da personagem de Lana em Ride pela estrada

(Figura 2), além de responsável por denotar a rebeldia dessa mesma personagem ao se jogar na

estrada – a própria rebeldia dos road dogs e dessa “territorialidade” –, a frase acima se coaduna

ainda a outra percepção do personagem de Nicholson sobre seu tempo: “Esse país [Estados

Unidos] já foi muito bom. Não entendo o que está acontecendo com ele”.

8 Tradução livre: “Morrendo jovem, e eu estou jogando pesado / Foi assim que meu pai fez de sua vida uma arte / Beber o dia todo e conversar até o anoitecer / É isso o que os cães da estrada fazem, do amanhecer ao escurecer”.

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Figura 2: A liberdade da estrada em Ride a partir da essência de Easy Rider. Foto: Reprodução/YouTube

E, além de uma dimensão estético-discursiva de Easy Rider, pensada a partir da própria

composição imagética do filme e retomada, em seguida, em Ride, torna-se ainda mais fácil

perceber o sentimento de liberdade pela estrada, presente na obra de Hopper e deslocado para

Lana, quando o personagem Wyatt (interpretado por Peter Fonda) afirma ser alguém que não é

escravo do tempo, justamente por precisar estar sempre em movimento, sempre andar, seguir

em frente (uma tradução livre para o título da música em questão de Lana Del Rey).

Curiosamente, os momentos em que a estrada se faz presente no vídeo estão ligados aos

momentos menos arrastados ou lentos da canção. Nesses momentos, pensando numa

experiência estética em potencial a partir do ato de assistir ao videoclipe, a melodia de Ride se

eleva e, em ascensão, comunga com o ideal de liberdade, como se este fosse superior à própria

lentidão do tempo, praticamente estagnado para os personagens de Lana e de Fonda, que

precisam estar sempre em movimento, numa espécie de subversão do tempo. No geral,

instrumentos como os violinos e tambores que se ouvem mais fortemente em Ride são

responsáveis por garantirem esse feito de liberdade em ascensão, igualmente presente na

sonoridade e em todos os elementos que surgem para quem entra em contato com o videoclipe.

Mais próximo do fim do vídeo musical, Lana Del Rey retoma com outro monólogo, a

exemplo do que ocorre no início do clipe. Ela também compactua com essas visões possíveis

de liberdade que acabamos de descrever ao entoar: “Every night I used to pray that I’d find my

people / And finally I did / On the open road / We had nothing to lose, nothing to gain / Nothing

we desired anymore / Except to make our lives into a work of art / Live fast, die young, be wild

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and have fun9 / I believe in the country America used to be / I believe in the person I want to

become / I believe in the freedom of the open road / [...] Who are you? / Are you in touch with

all your darkest fantasies? / Have you created a life for yourself where you’re free to experience

them? / I have! / I am fucking crazy / But I am free!”10.

Ao juntarmos todos esses elementos, deparamo-nos, no fim da composição de Ride, com

uma assimilação sensível entre a letra de Del Rey e o filme de Dennis Hopper, a retomar a

condição que relatamos há pouco, de tentativa de subversão do tempo por atitudes

aparentemente incontroladas e sempre em mudança, inconsistentes, nunca estagnadas: “I’m

tired of feeling like I’m fucking crazy / I’m tired of driving ‘til I see stars in my eyes / It’s all

I’ve got to keep myself sane, baby / So, I just ride / I just ride”11. O ato de seguir em frente e de

estar descontente com sua própria versão atual é motivo para não se manter inerte e estar sempre

em busca de outra versão de si mesma. E esse ato de reação ou resistência a um controle ou

estagnação de si surge banhado em um azul-frio na paleta de cores de boa parte do videoclipe

e, ao mesmo tempo, trata-se de um azul que denuncia esse ato rebelde, de resistência, como

visto na figura acionada dos road dogs, que percorrem melodicamente e melancolicamente esse

azul, a partir do momento em que entendemos que o seguir sempre em frente, caindo na estrada,

pode se transformar em um ato de romper o tempo. Durante o dia ou durante a noite, imerso na

estrada, nunca se sabe que horas são ou que dia é. E a busca pela liberdade e pelo descontrole

supostamente total é dosada pelo semblante da melancolia, que combina, nesse caso, a rejeição

ao tempo (na qualidade de uma instituição da modernidade e do mundo opressor/controlador),

a liberdade proporcionada pela estrada e a destruição do poder pelo ato de não poder nada,

9 Retomando uma discussão que fizemos anteriormente neste texto, não estaria presente, nesse momento, a invocação da ideologia de pulsão de morte ou culto a ela e, consequentemente, uma apoteose à liberdade utópica por meio da morte como consequência (sendo essa morte, por si só, utópica, já que o futuro é incerto)? Não estaria aí a morte sentida e desejosamente experienciada – num futuro próximo e incerto – como a verdadeira liberdade (incapaz de se tornar, aqui, uma commodity) e como o rompimento do sistema, algo ligado à ideia de não nos resta nada e não há como lutar. Por isso, os bons morrem jovens e morreremos, pois, entoada, no início dos anos 1990, por Lobão em Décadence Avec Élégance, nos versos “[...] é melhor viver / dez anos a mil / do que mil anos a dez”? E mais: não estaria, nessa figura de Lobão, a reencenação da mesma melancolia, a compor, naquela década, outra “geração dos melancólicos”, mobilizada por questões outras, mas igualmente condenada pelo uso de referências que compuseram “ciclos melancólicos” de antes (como propusemos ao abrir este texto, em nossa Introdução)? 10 Tradução livre: “Toda noite eu rezava para encontrar pessoas como eu / E finalmente eu encontrei / Na estrada / Não tínhamos nada a perder, nada a ganhar / Nada mais a desejar / Exceto fazer de nossas vidas uma obra de arte / Viva rápido, morra jovem, seja selvagem e se divirta / Eu acredito no país que a ‘América’ costumava ver / Eu acredito na pessoa em que quero me tornar / Eu acredito na liberdade da estrada / [...] Quem é você? / Você está em contato com suas fantasias mais sombrias? / Você criou uma vida para si em que seja livre para experiênciá-las? / Eu, sim! / Eu sou louca ‘pra’ caralho / Mas eu sou livre!”. 11 Tradução livre: “Estou cansada de me sentir fodidamente louca / Cansada de dirigir até ver estrelas em meus olhos / É tudo o que tenho para me manter sã, querido / Então, eu só sigo / Apenas sigo”.

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apenas seguir em frente, sem destino, enquanto isso também não se tornar uma estratégia

midiática e mercantil. Assim, o semblante é, portanto, um “gesto político”, que faz exalar sua

politicidade no flerte discursivo de Ride com Easy Rider e faz transformar esse diálogo de

ambas as obras em uma espécie de seita para os melancólicos, passando de geração em geração.

Logo, ao estabelecer um processo comunicacional com a referência Easy Rider, o

videoclipe de Lana guia a seu semblante uma dimensão gestual, que encaminha para a estrada

esse mesmo caráter e a faz ser entendida, pelo diálogo do videoclipe de Lana e do filme Easy

Rider, como uma poética ou dimensão sensível que estabelece, nesse caminhar, que:

Para a compreensão do gesto, nada é, portanto, mais desviante do que representar uma esfera dos meios voltados a um objetivo [...] e depois, distinta desta e a ela superior, uma esfera do gesto como movimento que tem em si mesmo o seu fim... Uma finalidade sem meios é tão alienante quanto uma medialidade que só tem sentido em relação a um fim. [...]. O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal. Ele faz aparecer o ser-em-um-meio do homem e, desse modo, abre-lhe a dimensão ética. (AGAMBEN, 2015, p. 59; grifos no original)

Portanto, ainda segundo Agamben (Ibid, p. 61; grifos no original), se “a política é a

esfera dos puros meios, isto é, da absoluta e integral gestualidade dos homens”, logo, o gesto12

exprime a ação que materializa o processo comunicacional da poética em questão: conferir à

estrada – pela política de Ride e por seus flertes com Easy Rider – uma estética dosada pela

filosofia da rejeição à cultura cristalizada do capital e que tem como rompante um jogo

dialógico entre três dispositivos que, juntos, exalam o tom performático dessa estrada. Assim,

o gesto é, também, possível por uma performance de Lana e da própria estrada, que, em suma,

revela a natureza da ordem do vivido, do ontológico ou performativo – porque na performance

há um quê de performatividade, a ser sentido pela modernidade, pelo pop e por essa opressão

do “capitalismo ético” e suas rédeas – e a pragmática do próprio atributo performancial, do

imaginado (elaborado sobre o vivido, como a encenação de Lana). Essas informações podem

ser assimiladas a partir do que nos oferece epistemologicamente Brasil (2014, p. 136; grifos no

original): “a performance expõe a continuidade existente entre [...] o vivido e o imaginado: ela

12 Celeumas conceituais relativas ao “gesto político” precisam ser ponderadas nesse caso. De um lado, há, na história, como ocorrido no Brasil do período colonial, a virada para o entretenimento como “gesto político”, ainda que ele exerça, nessa configuração, papel pouco importante na compreensão da realidade, dada a concentração deste entretenimento nas mãos de uma elite – não necessariamente econômica – como atesta Serelle (2010). Entretanto, levantamos aqui a capacidade de se estar apto a se engajar politicamente nesse gesto por um semblante da melancolia não acomodado, não pessimista, não estagnado ou não apático, e sim, manuseado pelo mercado em sua medialidade – a ação do “capitalismo ético” de Žižek (2018) – e, por essa mesma medialidade, questionador, mobilizado e resistencial, como discutimos neste texto a respeito do pop de Lana Del Rey.

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é a natureza do gesto desde já artificializada e o artifício da mise-en-scène ‘naturalizado’ pela

espontaneidade e imprevisibilidade do gesto”. A estrada, por si só, é seu próprio gesto,

performancial, performativo e político. Em decorrência disso, essa poética da estrada se revela

numa sensibilidade cujo denominador comum é a síntese do teor performativo do mundo vivido

– suas opressões neoliberais –, incutido na performance da estrada, e, por conseguinte, do fator

performancial desse “gesto político” da estrada – fator este, obtido na operacionalidade entre a

ontologia e sua teatralidade em produtos audiovisuais.

Entretanto, se a estrada representa uma espécie de iconoclastia do mundo que aprisiona

os sujeitos, a própria estrada pode se demonstrar como uma armadilha desse mundo ao ter,

também, em sua incompletude, na ausência do rumo, um destino fascista, que tomaria de assalto

esse caráter e, sem se anunciar, seu lado fascista se venderia como uma commodity da estrada,

tal como pode ser visto no próprio videoclipe de Lana Del Rey, outra embalagem do pop, a

despeito de suas questões representativas e desse ato de subverter a indústria que sustenta um

cartaz midiático de linguagem videoclíptica.

Após verificar também essa possibilidade de um destino fascista na estrada, é possível

ver, no fim do videoclipe de Ride, que Lana Del Rey foge para o deserto, como se ele fosse

uma válvula de escape e outra ramificação da estrada, aparentemente sem controle, mas, ao

mesmo tempo, uma nova roupagem desse pop que também se vende por meio de suas amarras

falsamente livres, por meio de seu “não-poder-poder” (HAN, 2017, p. 21). Seria esse o

momento em que o deserto faria da personagem de Lana, novamente, após rejeitar a própria

indústria que a sustentou (como tantos outros fizeram, a exemplo de Amy Winehouse, James

Dean, Marilyn Monroe, Lady Di etc.) e na qual ela tanto desejou entrar, uma “empreendedora

da liberdade” (segundo expressões foucaultianas)? Isso porque já não há o fim da estrada, mas,

ao lado, há o deserto, como nova possibilidade de fuga – e, por conseguinte, nova armadilha de

um “capitalismo ético”, conforme termos žižekianos.

Considerações finais

Como próprio das fases ou dos ciclos melancólicos, a rejeição ao capital e, ao mesmo

tempo, a percepção de um saqueio por essa mesma organização, por meio de suas instituições

políticas e econômicas, como a indústria hollywoodiana, demonstram que os sujeitos que se

valem dessa melancolia acabam por explorar, em torno dela, refúgios, como a estrada e, mais à

frente, o deserto, suplantando a figura da estrada e exibindo uma nova saída, um novo abrigo,

ao lado. Isso porque, na mesma medida, liberdade, poder e melancolia são usados de modo

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contrário a seus usos mercadológicos, como dispositivos que nos inebriam e nos fazem buscar

uma felicidade aparentemente verdadeira, com base no que discutimos pelo discurso de Lana

Del Rey e de Easy Rider. Enquanto isso, sob outras formas de apropriação, esses mesmos

dispositivos podem exalar uma felicidade condenatória, controlada.

E é exatamente na percepção dessa felicidade, que é, igualmente, como os elementos

corrompidos que a acionam, também uma commodity, que Lana Del Rey, Easy Rider, Lobão

(em determinado momento de sua carreira e a despeito de seu segmento discursivo hoje em dia)

e tantos outros conseguem se posicionar politicamente, por meio de uma dimensão gestual,

contra o próprio espaço que ocupam, mas que, para agirem como tais, em resistência, precisam,

obrigatoriamente, antes disso, estarem conectados ao mundo opressor de alguma forma. É

possível encontrar tal temática em discussões como a conceituação de “inoperosidade” de

Giorgio Agamben – aspecto não trabalhado por nós neste momento – e, como usamos aqui, no

despertar para uma consciência do “não-poder-poder” de Byung-Chul Han.

Esses aspectos surgem operacionalizados no videoclipe pela performance de Lana Del

Rey. Igualmente, surgem no filme Easy Rider também pela performance dos personagens

centrais. Essa performance é estendida, por conseguinte, a uma composição quase performativa

da estrada, que, em ato dotado de ontologia, estabelece a dialética do “perder para se encontrar”,

no qual os sujeitos de ambos os produtos midiáticos que analisamos mergulham, fazendo

instituir, nesses mesmos objetos audiovisuais, uma poética da estrada, da busca pela liberdade

– que, no fim das contas, é uma busca por si mesmo em meio às opressões do mundo. O corpo

que se move pela estrada, o mesmo que performa, envernizando uma de suas portas de entrada

(o semblante) com a melancolia que o conduz sem rumo por essa ausência de destino e sempre

a vagar, mas nunca à deriva, estabelece um contato quase mitológico com a liberdade idílica

proporcionada pela estrada, à espera do encontro consigo – que acontece, em ambos os

trabalhos audiovisuais, no deserto. Entretanto, questionamos aqui quais os limites e fragilidades

impostos pelo deserto, ou seja: em que medida podemos dimensionar seu destino fascista, sua

aplicação em um “capitalismo ético”?

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. 1.ed. Tradução de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. 135p.

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