DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER...

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS REGIONAL JATAÍ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO VANIA GOMES CARDOSO DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL JATAÍ - GO 2019

Transcript of DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER...

  • SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

    REGIONAL JATAÍ

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    VANIA GOMES CARDOSO

    DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER EM

    LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

    JATAÍ - GO

    2019

  • VANIA GOMES CARDOSO

    DISCURSOS SOBRE A CONSTRUÇÃO CORPORAL DA MULHER EM

    LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

    Graduação em Educação, da da Universidade

    Federal de Goiás – Regional Jataí, como requisito

    para obtenção do título de Mestre em Educação.

    Linha de Pesquisa 4 – Educação e Linguagem

    Professor (a) Orientador (a): Dra. Vivianne

    Oliveira Gonçalves

    JATAÍ - GO

    2019

  • DEDICATÓRIA

    Dedico este trabalho primeiramente а Deus, pоr ser

    essencial еm minha vida, autor dе mеu destino, mеu guia,

    socorro presente nа hora dа angústia, à minha mãе Zélia

    Maria Cardoso, à quem devo minha existência.

  • AGRADECIMENTOS

    À minha orientadora, Vivianne Oliveira Gonçalves, por ter acreditado no meu

    potencial, respeitando e compreendendo minhas limitações. Sou grata pela sua generosidade,

    afinal, recebeu esta missão de caminhar comigo por oito meses, no processo de conclusão, um

    desafio tamanho, mas não mediu esforços.

    Aos meus pais, Valdeson Gomes Cardoso e Zélia Maria Cardoso, em especial à

    minha mãe, por ser exemplo de determinação e me inspirar a ser uma pessoa melhor a cada

    dia.

    À minha coordenadora de curso da Faculdade de Iporá-FAI e “Mãe”, Vilma Maria

    Soares Rodrigues, pela compreensão, força e incentivo nos desafios a que me propus vencer,

    na luta pelas minhas conquistas. Sem o seu apoio este sonho teria sido mais difícil de realizar.

    Você demonstrou um carinho verdadeiro como pessoa e profissional. A você, toda minha

    gratidão como colega de trabalho e como pessoa.

    Aos meus professores do mestrado em educação da Universidade Federal de

    Goiás/Regional Jataí, Camila Alberto Vicente de Oliveira, Elizabeth Gottschalg Raimann,

    Michele Silva Sacardo, Renata Cristina Lopes Andrade e Ari Raimann que contribuíram com

    a minha construção do conhecimento, me proporcionando novas reflexões do saber.

    Aos colegas de turma pela oportunidade de conviver e dividir experiências

    acadêmicas e de vida.

    Aos amigos: Sheule Anne Labre Titoto, a qual tive a oportunidade de conher no

    mestrado e tive o prazer de me reaproximar e nos tornarmos verdadeiras amigas para a vida,

    jamais será esquecido o carinho e acolhimento que teve comigo, sem esta amizade, muitas

    experiências não seria possível; a Juliana do Nascimento Farias que sempre demonstrou

    consideração, e carinho por mim, com quem construí uma amizade sincera, que me

    oportunizou sonhar e conquistar, desempenhou o papel de Mãe nesta caminhada, pessoa que

    tenho muita admiração e respeito; ao Rômulo Renato Cruz Santana por ser esta pessoa

    singular, capaz de tornar momentos de incertezas em verdadeiras gargalhadas e de um

    otimismo contagiante. Obrigada a todos vocês pelos momentos de aprendizado, conselhos e

    gestos de carinho!

    Aos professores Guilherme Figueira Borges, Claudionor Renato da Silva, por

    aceitarem participar da minha banca de qualificação e defesa, pelas importantes contribuições

    com meu trabalho e pela generosidade ao compartilhar os conhecimentos.

  • Ao professor Guilherme um agradecimento em especial, por me apresentar a análise

    do discurso, incentivar ir adiante no campo da pesquisa e acreditar no meu potencial, pois

    todo este percurso de pesquisadora iniciou com suas orientações na graduação e na

    especialização. É uma pessoa que admiro imensamente, tenho muito a agradecer, obrigada!

    À minha tia/ prima, Dinalva Ribeiro de Sousa por me apresentar o mundo, você foi

    peça fundante na minha formação enquanto pessoa, sem seus conselhos, carinho e incentivo,

    jamais teria chegado onde estou. Deu broncas, mas foi para o meu crescimento, me

    aconselhou da melhor forma possível, que somente mãe para fazer como fez. A você minha

    admiração e gratidão!

    Ao meu eterno amigo Dylan Ávila Alves, que me apoio durante todo este processo,

    me deu forças, aconselhou e puxou a orelha quando necessário, me fez acreditar que daria

    certo quando pensei que não seria mais possível, dividiu momentos desesperadores, me

    apresentou outra forma de pensar em relação à academia e a vida. Pessoa que ganhou minha

    admiração e respeito... Gratidão pela sua existência na minha vida.

    Ao Thiago Rocha, pessoa que o destino por alguma razão alterou a ordem dos

    fatores, saiu pela tangente, mas que nunca deixou de acompanhar, aplaudir, aconselhar e

    apoiar, foi companheiro nos bastidores, mas não impede que eu reconheça o empenho e

    carinho dedicado a minha pessoa.

    À professora Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago que em primeira mão me

    acolheu. Por questões pessoais, não pode me acompanhar no desenvolvimento deste estudo.

    Desde modo, sou grata a sua pessoa. Muito obrigada!

    A Deus! Por me permitir esta conquista e ter direcionado pessoas tão especiais para

    dividir meus anseios nos momentos de inseguranças. Obrigada Senhor!

  • “Não me pergunte quem sou e não me diga para

    permanecer o mesmo.”

    (Michel Foucault)

  • RESUMO

    No presente estudo foram considerados os discursos sobre a mulher, presentes em livros

    didáticos do ensino fundamental, partindo das materialidades linguístico-imagéticas

    observadas em obras de Língua Portuguesa, Geografia, Ciências e História pertencentes ao

    Programa Nacional do Livro Didático, triênio 2017-2019. O livro didático de História foi

    utilizado para uma análise histórica acerca da mulher dos séculos XVIII e XIX, observando

    sua contextualização e, sobretudo, sua identidade relacionada à imagem de mãe, do lar,

    envolta nos afazeres femininos. Assim, emergiu a relação entre o saber e o Biopoder. O

    Biopoder, segundo Foucault (2002), traz uma forma de poder sobrepujando a vida e as

    necessidades que atingem a população e principalmente a mulher. Destaca-se que a

    proposição da pesquisa partiu de alguns questionamentos que se tornaram a espinha dorsal do

    tema em foco, e neste aspecto, o problema de estudo se configurou nas seguintes questões: De

    que forma se dá a construção da identidade feminina, na materialidade do livro didático,

    considerando este um instrumento de biopoder? Quais os imbricamentos do corpo feminino

    da forma como é representado no livro didático? Essas problematizações balizaram o olhar de

    pesquisador para analisar os discursos que se encontram nos livros didáticos selecionados e se

    relacionam à temática do corpo da mulher. A pesquisa partiu de eixos iniciais que se

    desdobraram ao longo do percurso, sendo esses o corpo estereotipado da mulher, a veiculação

    da imagem da mulher às tarefas tipicamente femininas e por fim, as atribuições da

    maternidade, ou seja, a figura da mulher enquanto objeto de procriação. Para Foucault os

    lugares de poder, bem como suas práticas, é que alimentam o biopoder. Desse modo, no livro

    didático a identidade dos sujeitos passa a ser produzida a partir daquilo que se assume como

    verdade e assim o faz na imposição de imagens que passam a ser estereótipos e depois,

    verdades. No livro didático, o corpo emerge apresentando uma singularidade que deve ser

    levada em consideração pelo professor, de modo a explorar as particularidades do corpo em

    práticas sócio-históricas-ideológicas. Daí a importância de, com o embasamento teórico

    proposto por Foucault, analisar os discursos sobre o corpo feminino presentes no livro

    didático, sendo esse, parte do corpus da pesquisa, no intuito de compreender de que forma as

    verdades podem ser fabricadas, principalmente no que tange ao discurso sobre a mulher. Os

    livros didáticos, enquanto instrumentos ideológicos são muito bem utilizados pois reforçam,

    inicialmente pelas ideias implícitas e depois, pelo silenciamento da mulher, não apenas a

    branca, europeizada, mas as negras, pobres, velhas, gordas, indígenas ou outras que

    representam o grupo oprimido ao longo da história.

    Palavras-chave: Mulher. Construção. Livro Didático. Corpo. Ensino Fundamental.

  • ABSTRACT

    In the present study it was sought to understand speeches about woman, present in elementary

    school textbooks, considering the linguistic-imaging materialities observed in the following

    pieces: “Português Linguagens” – Portuguese languages, 8th

    grade (CEREJA;

    MAGALHÃES, 2015); “Vontade de Saber” – The will to know: geography, 8 th

    ;

    (TORREZANI, 2015); “Companhia das Ciências” – Company of sciences 8 th

    grade

    (USBERCO et al., 2015). In addition to the mentioned also it was also used the book

    “Vontade de Saber” – The will to know: history, 9th

    grade; (GRINBERG, DIAS,

    PELLEGRINI, 2015), all belonging to the “Programa Nacional do Livro Didático” – National

    Textbook Program, term 2017-2019. The history textbook was used as an instrument to a

    historical analysis about the women from the 18th and 19th centuries, appearing at their

    contextualization and, above all, their identity linked to the mother figure and housewife

    image, wrapped with the feminine tasks. Thus, emerged the relationship between knowledge

    and BioPower. According to Foucault (2002), BioPower brings a kind of power overcoming

    life and the needs that affect the population and especially adult females. The research,

    released the three axes, these being the stereotypical woman's body, the airing of the image of

    women to the tasks typically feminine and finally, the tasks of motherhood, that is, the figure

    of the woman as breeding object. Thus, in the textbook, the identity of the subjects begins to

    be produced from what is assumed to be true and so does the imposition of images that

    become stereotypes and then truths. The Portuguese Language Textbook – PLT, the body

    emerges showing a singularity that should be taken by the teacher, in parliamentary procedure

    to research the body characteristics in social-historical-ideological practices. Hence, the

    importance of, with the theoretical basis proposed by Foucault, analyze the discourses about

    the female body presented in the textbook, which is part of the corpus of research, in order to

    understand how the truth can be manufactured, especially when it comes to discourse about

    women.

    Key words: Woman. Discourse analysis. Textbook. Subjectivation. Objectification.

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Figura 1. Ilustração do texto Coquetel.............................................................................. 100

    Figura 2. Retratos de família .………………………………………….…………......... 101

    Figura 3. Pai aflito ………………………………………………………....................... 102

    Figura 4. Simpatia para “catar” namorado....................................................................... 104

    Figura 5. Comprar namorado ……..……………………………………….................... 104

    Figura 6. Sou seu e você é minha..................................................................................... 105

    Figura 7. Espaços tipicamente femininos……………………………………………..... 106

    Figura 8. Responsabilidade das tarefas domésticas I....................................................... 107

    Figura 9. Responsabilidade das tarefas domésticas II...................................................... 107

    Figura 10. A dupla jornada de trabalho feminina............................................................. 108

    Figura 11. A maternidade………………………………………………………………. 110

    Figuras 12 e 13. Mulheres em situação de consumo........................................................ 111

    Figura 14. Mulher comendo pizza…………………………………………………….... 113

    Figuras 15 e 16. Corpo gordo e corpo magro................................................................... 114

    Figuras 17 e 18. Anorexia e bulimia................................................................................ 116

    Figura 19. Mulher idosa……………………………………………………................... 117

    Figura 20. Família tradicional………………………………………………………….. 118

    Figura 21. Retrato da família Matarazzo.......................................................................... 119

    Figura 22. Mulher em frente à geladeira.......................................................................... 120

    Figura 23. Maternidade……………………………………………………………….... 121

    Figura 24. Desfile da Aliança Integralista Brasileira....................................................... 122

    Figura 25. Participação feminina no movimento feminista............................................. 122

    Figura 26. Mulher no movimento feminista..................................................................... 123

    Figura 27. Mulher negra………………………………………………………………... 124

    Figura 28. Presidente Dilma Rousseff………………………………………………….. 125

    Figura 29. Mulher no supermercado I.............................................................................. 126

    Figura 30. Saúde da mulher…………………………………………………………….. 127

    Figura 31. Mulheres de países subdesenvolvidos............................................................ 128

    Figura 32. Mulher na favela…………………………………………………………..... 129

    Figuras 33 e 34. Escravidão indígena e negra.................................................................. 130

  • Figura 35. Mulher e conhecimento……………………………………………………... 130

    Figura 36. Mulher no supermercado II............................................................................. 132

    Figuras 37 e 38. Cuidados com a família......................................................................... 132

    Figura 39. Representação da família I.............................................................................. 133

    Figura 40. Representação da família II............................................................................

    134

    Figura 41 e 42. Momentos de diversão e lazer................................................................. 138

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

    1 CAMINHOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS DA PESQUISA ................................. 16

    1.1 O sujeito nas malhas do discurso e as práticas de subjetivação e objetificação ............. 18

    1.2 Concepções foucaultianas de poder e biopoder .............................................................. 29

    1.3 Corpo, poder e gênero .................................................................................................... 33

    1.4 Relações entre verdade, saber e poder ............................................................................ 39

    1.5 Das sociedades de soberania às sociedades do controle ................................................. 40

    2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA FIGURA FEMININA .......................................... 45

    2.1 A mulher nos séculos XIX e XX .................................................................................... 45

    2.2 A construção da identidade feminina como um processo histórico ............................... 56

    2.3 Mulher e educação: preparada para a submissão, criada na passividade ....................... 63

    2.4 O lugar e o papel da mulher na sociedade moderna ....................................................... 73

    2.5 O livro didático e a produção de sentidos: um olhar para as representações sobre a

    mulher ................................................................................................................................... 80

    3 DISCURSOS SOBRE A MULHER NOS LIVROS DIDÁTICOS .................................. 84

    3.1 O corpo estereotipado da mulher .................................................................................... 88

    3.2. Imagem da mulher ligada a tarefas tipicamente femininas ........................................... 92

    3.3. Maternidade – objeto de procriação .............................................................................. 98

    3.4 Os discursos sobre a mulher nos livros didáticos de Língua Portuguesa, História,

    Geografia e Ciências: recortes e representações ................................................................. 100

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 139

    REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 141

  • 12

    INTRODUÇÃO

    O livro didático tem assumido diversos aspectos em relação ao contexto de ensino,

    pois se compreende que o discurso nele contido serve às representações esperadas e impostas

    por sistemas nos quais os sujeitos nem sempre são tidos como os agentes de construção e

    constituição crítica, isso se torna perceptível quando se trata da representação da figura

    feminina.

    As pesquisas sobre o Livro Didático (LD) remontam à década de 1970, mas se

    aprofundaram a partir da instituição do PNLD, em 1985. Com o PNLD o livro didático

    passou a ser oferecido gratuitamente nas redes públicas de ensino. Até então, os livros eram

    adotados pelas escolas, mas comercializados nas livrarias. Com o advento do PNLD diversas

    críticas começaram a ser construídas e a partir daí os mais variados estudos voltados para o

    livro didático começaram a ser fomentados. Destaca-se que nessas pesquisas, evidenciou-se

    cada área do conhecimento, mas os estudos voltados para a Análise do Discurso no Livro

    Didático logo se ampliaram, uma vez que o leque de possibilidades de uma construção crítica

    cada vez mais se ampliou.

    Dentre os estudos acerca do LD é possível citar o de Oliveira (2008), reforçando que

    o livro didático não pode ser visto como o único condutor das atividades que são aplicadas em

    sala de aula. O livro didático é considerado como uma tecnologia impregnada de discursos,

    tanto positivos quanto negativos.

    Desse modo, tornam-se discursos de imposição de imagens e conceitos que não

    correspondem às perspectivas histórico-sociais dos sujeitos, mas tornam-se presentes em seu

    cotidiano de aprendizagem, sendo representações daquilo que é cunhado por Foucault (2007a)

    como “biopoder”, ou seja, o poder sobrepujando a vida e suas necessidades, atingindo

    principalmente os sujeitos e as populações.

    Considerando a relação do livro didático com o conceito de biopoder, de imposição

    de uma identidade em uma relação de desprezo a determinados grupos é que se insere o corpo

    feminino como objeto de análise. Aqui, interessa a forma como os discursos sobre a mulher

    são entrelaçados em livros didáticos da segunda fase do Ensino Fundamental.

    De modo geral, o livro didático é visto como agente reforçador da ideologia

    dominante, e na pesquisa isso se firma quando se observa as representações, não apenas da

    mulher branca, mas de negras, índias, idosas e obesas. É esse ordenamento que suscita as

  • 13

    indagações presentes no estudo, considerando como pressuposto a ordem estabelecida na

    representação do corpo feminino, ou que ordem deve ser estabelecida neste processo.

    Para Foucault os lugares de poder, bem como suas práticas é que alimentam o

    biopoder. Desse modo, no livro didático a identidade dos sujeitos passa a ser produzida a

    partir daquilo que se impõe como verdade e assim também se faz no uso de imagens que

    passam de ser estereótipos a padrões e verdades.

    A mulher evidenciada no livro didático é aquela que se encontra presente, de certa

    forma, em um espaço de opressão. A ocupação desse espaço pode ser analisada como uma

    espécie de “concessão” dada pela figura masculina, ampla e dominante.

    Destaca-se que o livro didático é uma ferramenta de apoio ao professor em sala de

    aula e, ainda que de modo superficial, sem chamar muito a atenção, denota formas e corpos

    que são reflexos do modo como estes são representados também no ideário popular. Assim, as

    funções de classes, gêneros, profissões, são aos poucos delineadas e marcadas pelo discurso

    do biopoder.

    Desse modo, de ferramenta, o livro didático passa legitimar o discurso de imposição

    do que definitivamente não representa a maioria, mas que influencia diretamente nesta.

    Objeto de consumo, matriz reprodutora, com características que projetam o discurso que a

    própria sociedade propaga. Há no livro didático uma desconstrução da mulher. Não existe

    uma mulher em sua totalidade, mas várias mulheres descontruídas ao longo dos papéis nos

    quais se acreditava que esta deveria exercer em determinado momento histórico. Nessa

    desconstrução, há, por outro lado, a fabricação da imagem feminina. A mulher do livro

    didático é aquela que se veste de poesia para os enamorados e se traveste de dona de casa,

    procriadora, quando sai para trabalhar é para enaltecer a imagem do trabalho e não da mulher

    que trabalha.

    Assim, no livro didático, a imagem feminina é aquela que se crê possível dentro de

    uma prática de desconstrução, como uma forma de posse e posterior supressão da identidade

    feminina, presente na ideia de o homem ser dono de algo, seja do corpo feminino ou do seu

    trabalho. Isso é uma forma de mostrar a quem este pertence, primeiramente à sociedade e

    depois, ao homem, caso se digne a isso. Esse direito é denotado por Foucault como sendo

    “[...] o direito de apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e, finalmente, da vida;

    culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la” (FOUCAULT, 2004, p.

    128).

    É sob a égide dos discursos sobre o corpo feminino estereotipado, veiculado às

    tarefas tipicamente femininas e associado à maternidade é que se coloca como objetivo da

  • 14

    pesquisa delinear estes aspectos e assim, compreender a construção ou reprodução dos

    conceitos arqueologicamente constituídos, ou melhor, impostos nos livros didáticos. De modo

    específico, pretendeu-se com o estudo evidenciar a construção histórica da figura feminina,

    bem como as concepções de corpo, gênero e poder. Além disso, foi objetivo da pesquisa

    relacionar verdade, saber e poder; compreender como o corpo da mulher se torna estereótipo

    imposto pela sociedade e investigar os discursos sobre a mulher no livro didático.

    A pesquisa expôs e analisou discursos sobre a figura feminina em livros didáticos

    considerando as materialidades linguísticas observadas nos Livros Didáticos sendo

    “Português Linguagens, 8º ano” (CEREJA; MAGALHÃES, 2015); “Vontade de Saber –

    Geografia, 8º ano” (TORREZANI, 2015); “Companhia das Ciências – 8º ano” (USBERCO et

    al., 2015). Além dos mencionados utilizou-se também o livro “Vontade de saber – História, 9º

    ano” (GRINBERG, DIAS; PELLEGRINI, 2015), todos pertencentes ao Programa Nacional

    do Livro Didático, triênio 2017-2019.

    É relevante destacar que a proposição da pesquisa partiu de alguns questionamentos

    que se tornaram a espinha dorsal do tema em foco, e neste aspecto, o problema de estudo se

    configura nas seguintes questões: De que forma se dá a construção da identidade feminina, na

    materialidade do livro didático, considerando este um instrumento de biopoder? Quais os

    imbricamentos do corpo feminino da forma como é representado no livro didático? Essas

    problematizações balizaram o olhar de pesquisador para analisar os discursos que se

    encontram nos livros didáticos selecionados e se relacionam à temática do corpo da mulher.

    Foucault (2008b) menciona que o discurso não é um encadeamento lógico de

    palavras e frases que busca um significado em si mesmo, ainda que essa estratégia seja

    aplicada, ele será uma ordem de muita importância funcional em que se estrutura um

    imaginário social. Mas o discurso deixa de ser a representação de sentidos pelo que se debate

    ou se luta e passa a ser ele mesmo, o objeto de desejo que se busca, dando-lhe, assim, o seu

    poder intrínseco de reprodução e dominação dos sujeitos na sociedade. Desta forma,

    compreende-se que o “discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, de leitura, de troca,

    e essa troca, essa leitura e essa escritura, jamais põem em jogo senão os signos. Assim, pode-

    se dizer que o ‘discurso se anula assim em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do

    significante” (FOUCAULT, 2008b, p. 49).

    Vale destacar que o livro didático representa uma mistura de discursos que irão se

    materializando e formando outros contextos discursivos, impondo imagens que se fixam e

    multiplicam em uma nova série de reflexos. O corpo feminino vai de menina a mulher em

    construções que denotam a relutância social. Em tais construções inserem-se a moça, a obesa,

  • 15

    a idosa, as mulheres na rua e as de casa, as matronas e mães, bem como as mulheres que

    exercem seus papéis enquanto moventes do sistema.

    Essa perspectiva de análise vem ao encontro do que se pressupõe o trabalho com a

    abordagem materializada no Ensino Fundamental, resultante da consideração de que os livros

    didáticos são portadores de texto e como tal, imbuídos de discursos, do mesmo modo, seu

    caráter discursivo é resultante de um contexto social.

    O corpus de análise deste trabalho foram sequências discursivas, verbais ou

    imagéticas, que pretenderam criar verdades sobre a figura feminina, retiradas dos quatro

    livros didáticos escolhidos. Essas vozes traduzidas nos livros didáticos é que trazem para a

    discussão o corpo feminino presente nos textos utilizados para o trabalho. Para tanto, o

    método de abordagem foi a Análise do Discurso Foucaultiana.

    Na materialização do estudo foram analisados os textos e imagens presentes nos

    livros didáticos selecionados, na pretensão de alcançar os objetivos propostos no estudo,

    voltados aos discursos sobre a mulher no livro didático, o corpo feminino e a imposição das

    verdades cunhadas no discurso do machismo e da submissão. O olhar da pesquisa, se lançou

    para os eixos de análise do corpo estereotipado da mulher, a veiculação de sua imagem às

    tarefas tidas como tipicamente femininas, as atribuições da maternidade, mulher enquanto

    objeto de procriação. A pesquisa foi estruturada em três capítulos, sendo o primeiro a tratar

    dos caminhos teóricos-metodológicos da pesquisa, a escolha da perspectiva foucaultiana de

    análise do discurso, abordando o sujeito nas malhas do discurso, as práticas de subjetivação e

    objetificação; corpo, poder e gênero; relações entre verdade, saber e poder; as concepções

    foucaultianas de poder e biopoder; das sociedades de soberania às sociedades de controle, o

    qual finaliza com a descrição do corpus da pesquisa.

    No segundo capítulo, abordou-se a construção histórica da figura feminina e o estudo

    se remeteu à historiografia da mulher, abordando a construção de sua identidade enquanto

    processo histórico, seu preparo para a submissão e seu lugar na sociedade moderna.

    Finalizando a pesquisa, o capítulo três abordou os discursos, referindo-se à produção de

    sentidos e o olhar para as representações sobre a mulher, seu corpo estereotipado, sua imagem

    ligada às tarefas tipicamente femininas, maternidade e os discursos sobre a mulher nos livros

    didáticos selecionados para a análise.

  • 16

    1 CAMINHOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS DA PESQUISA

    Nesse capítulo, que versa sobre os caminhos da pesquisa, considerando seus aspectos

    teórico-metodológicos, serão abordados os conceitos que visam sustentar a análise do

    discurso sobre a mulher no livro didático. Partindo desse pressuposto, compreende-se que a

    representação da mulher no livro didático possa ser interligada com essa construção

    discursiva oriunda na sociedade e fomentada ao longo do tempo.

    Assim como o discurso é uma construção social permeada de saberes e poderes, o

    biopoder é conceituado como uma forma de fortalecimento e manutenção do poder. Desse

    modo, o biopoder, ou poder pela vida, regulado pelas relações de gênero, o conceito de

    homem e mulher coligado ao forte e fraco, é também utilizado para a análise das imagens das

    mulheres nos livros didáticos.

    Interessante observar que a relações de poder são complexas pois se revestem das

    diversas imposições discursivas delineadas ao longo do percurso histórico humano.

    Para melhor compreender a análise do discurso sob a perspectiva foucaultiana, abre-

    se um recorte que antecipa o conceito de sujeito nas malhas do discurso, as práticas de

    subjetivação e objetificação a fim de se analisar os dispositivos teórico-analíticos que

    fundamentam a análise do discurso.

    Sobre o discurso, Orlandi (2009) reforça que os sentidos antecedem o sujeito, ou

    seja, primeiramente assumem a perspectiva histórica ou cultural, sendo reflexos ideológicos

    exteriores que dependem da condição de produção. Por outro lado, os dispositivos teóricos,

    podem ser dispostos na paráfrase, ou seja, repetição do mesmo, e na polissemia, constituída

    enquanto meio de ruptura com o mesmo. A autora ilustra que embora um grupo social possa

    ter a mesma língua, é composto por diferentes sujeitos que, por sua vez, agregam diferentes

    sentidos ao discurso.

    Acerca do enunciado e seu conceito, a pesquisa adota o que é apresentado por

    Foucault (2008a). Para o autor, o enunciado pode ser considerado como a menor parcela do

    discurso, ou mesmo acontecimentos discursivos. Assim sendo, os livros didáticos são meios

    pelos quais os enunciados tomam forma e se agregam, relacionando-se aos sujeitos

    discursivos e suas influências históricas. Do mesmo modo, Foucault (2008) determina que o

    enunciado não precisa estar relacionado a uma condição propositiva, relacionada entre o

    sujeito e seu espaço discursivo. Entre aquilo que é firmado e o que é compreendido. Assim,

  • 17

    compreende-se que os enunciados necessitam de condições discursivas para que possam ser

    legitimados.

    Pode-se, na verdade, ter dois enunciados perfeitamente distintos que se

    referem a grupamentos discursivos bem diferentes, onde não se encontra

    mais que uma proposição, suscetível de um único e mesmo valor,

    obedecendo a um único e mesmo conjunto de leis de construção e admitindo

    as mesmas possibilidades de utilização. (FOUCAULT, 2008a, p. 91)

    O livro didático é um enunciado e uma materialidade formada por frases e imagens.

    O que não está explicito é o que forma o conjunto de saberes capazes de ilustrar a ideologia

    imposta e a forma como a identidade dos sujeitos pode ser instituída. Por outro lado, as

    ilustrações e imagens contidas em um livro didático podem assumir uma função enunciativa.

    Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em

    geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado

    fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no

    meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra

    sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e

    ínfima que seja. (FOUCAULT, 2008a, p.112)

    A história é permeada de acontecimentos discursivos, e estes, por sua vez, são

    apresentados por Pêcheux na terceira fase da análise do discurso francesa e define o

    acontecimento como o encontro entre uma atualidade, algo que acontece no momento, com

    uma memória. Nesse encontro, a memória tanto pode ser repetida, quanto ressignificada.

    Nessa perspectiva, o interesse não está no fato enquanto um simples evento, mas na

    construção de uma noção histórica relacionado ao acontecimento, nas memórias que são

    originadas desse processo. (PÊCHEUX, 2006)

    A ressignificação de aspectos discursivos que assumem outra conotação quando

    reproduzidos em outros momentos históricos. No caso dos livros didáticos, o acontecimento

    discursivo denotado pelas imagens da mulher, não somente ressignificam, como também

    reforçam o discurso do poder e da relação de gênero. As memórias e suas ressignificações são

    condicionadas ao momento histórico. Entretanto, o tempo e sua dinâmica nem sempre atuam

    nesse processo de ressignificação, e o acontecimento discursivo pode assumir a reprodução de

    ideologias e sua repetição como forma de se assegurar a instrumentalização social de poder e

    imposição.

    Os acontecimentos discursivos podem ser inseridos no que Foucault (2008) reporta

    como formações discursivas, as quais podem ser compreendidas enquanto resultado do

  • 18

    “número de enunciados, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas, considerando

    sua regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações.”

    (p.43). O autor reforça que existem regras de formação discursiva e estas dizem respeito às

    condições de existência de um enunciado, conceitos e temas.

    Na análise do discurso, o conceito de arquivo é apresentado, não como um local para

    o armazenamento de algo, tampouco o simples ato de agregar o que se creia indispensável a

    algum grupo social e sua cultura. Foucault (2008a) ressignifica o conceito de arquivo quando

    afirma que:

    O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o

    aparecimento dos enunciados com acontecimentos singulares. Mas o arquivo

    é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem

    indefinidamente em uma massa amorfa. (FOUCAULT, 2008a, p.147)

    Enquanto acontecimento discursivo, o arquivo faz com que os enunciados se

    modifiquem e coexistam de acordo com os espaços discursivos e ainda assim, não sejam

    considerados como escrita ou representação universal de determinada cultura. O arquivo é

    fragmentado, o que impede sua descrição como algo constante e coeso. É responsável por

    transformar práticas em tradições ou conforme descreve Foucault (2008a, p.148), “a descrição

    de um arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a partir

    dos discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos.”

    1.1 O sujeito nas malhas do discurso e as práticas de subjetivação e objetificação

    As questões da subjetividade emergem em Foucault e nestas perpassam as ordens do

    discurso que permeiam e fazem da pessoa um sujeito social. No envolvimento do sujeito com

    a linguagem, na apropriação da fala como meio de imposição do discurso, reside a posse e o

    controle.

    Por subjetificação, entende-se o tornar-se sujeito do discurso, como resultado de um

    complexo sistema de significantes construídos pela linguagem, bem como pelos sentidos

    determinados historicamente (MARIANI, 2003).

    Em contraponto, a objetificação é conceituada como a transformação do sujeito em

    objeto. Comumente usada sob a perspectiva sexual, tornar objeto alguém, fazer com que essa

    pessoa se anule, tanto emocional quanto psicologicamente, sendo este destituído de sua

    posição enquanto sujeito. “A objetificação, termo cunhado no início dos anos 70, consiste em

  • 19

    analisar um indivíduo a nível de objeto, sem considerar seu emocional ou psicológico.”

    (BELMIRO et. al., 2015, p. 2)

    Para compreender o sujeito nas malhas do discurso Foucault (2008b) se torna

    provocativo. Sendo assim, busca a compreensão de que, enquanto sujeito, o indivíduo precisa

    romper com a continuidade. O sujeito, para o autor, é descontínuo, produzido pelas relações

    de poder e pelo discurso. “Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se

    cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem.” (FOUCAULT, 2008b, p. 52)

    Considerar o discurso e seus sujeitos, sob a perspectiva de Foucault significa, de

    acordo com Fischer (2001), observar com cuidado as palavras, principalmente como

    representação do que foi dito. Desse modo, o discurso deve ser manuseado, e não manipulado,

    dentro de sua complexidade e particularidade, considerando isso enquanto uma tarefa

    cansativa, pois o discurso também se reveste de ideologia.

    Fischer (2001) defende que o discurso vai além da composição de signos e atribuição

    de significados. Analisar o sujeito na perspectiva discursiva exige uma ação de

    desprendimento do que já foi aprendido.

    É tentar desprender-se de um longo e eficaz aprendizado que ainda nos faz

    olhar os discursos apenas como um conjunto de signos, como significantes

    que se referem a determinados conteúdos, carregando tal ou qual significado,

    quase sempre oculto, dissimulado, distorcido, intencionalmente deturpado,

    cheio de reais intenções conteúdos e representações escondidos nos e pelos

    textos, não imediatamente visíveis. (FISCHER, 2001, p. 198)

    Compreende-se, portanto que o discurso se reveste de significados que dependem do

    sujeito no momento de sua produção. Para Foucault discurso e poder são as partes

    constituintes do sujeito e este, por sua vez, torna-se resultado do mesmo processo.

    Destaca-se que Foucault (2008b) reforça que o discurso não pode ser visto apenas

    como uma correlação entre as palavras e frases que tem como pressuposto a construção de um

    significado em si. Mesmo que essa estratégia seja aplicada, será uma ordem de muita

    importância funcional em que se estrutura um imaginário social. Mas o discurso deixa de ser a

    representação de sentidos pelo que se debate ou se luta e passa a ser ele mesmo, o objeto de

    desejo que se busca, dando-lhe, assim, o seu poder intrínseco de reprodução e dominação dos

    sujeitos na sociedade. Desta forma, compreende-se que o “discurso nada mais é do que um

    jogo, de escritura, de leitura, de troca, e essa troca, essa leitura e essa escritura, jamais põem

    em jogo senão os signos. Assim, pode-se dizer que o discurso se anula assim em sua

    realidade, inscrevendo-se na ordem do significante” (FOUCAULT, 2008b, p. 49).

  • 20

    Segundo Fischer (2001):

    Ao analisar um discurso - mesmo que o documento considerado seja a

    reprodução de um simples ato de fala individual - , não estamos diante da

    manifestação de um sujeito, mas sim nos defrontamos com um lugar de sua

    dispersão e de sua descontinuidade, já que o sujeito da linguagem não é um

    sujeito em si, idealizado, essencial, origem inarredável do sentido: ele é ao

    mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros se dizem.

    (FISCHER, 2001, p. 204)

    Foucault (2008b) busca revelar a relação entre as práticas discursivas e os poderes

    que as permeiam, com artifícios que moldem e controlam os discursos na sociedade e nos

    sujeitos, sejam de forma individual ou em sua atuação frente à sociedade. No ponto de vista

    do autor, o discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de

    dominação, mas aquilo pelo que se luta, bem como o poder de que queremos nos apoderar.”

    (FOUCAULT, 2008b, p. 10).

    Por meio do discurso, nas práticas sociais, o mundo pode ser compreendido,

    interpretado, reorganizado, dessacralizado. Assim como tudo se reorganiza e se renova, o

    discurso também pode ser refeito cada vez que é anunciado ou produzido, pois conforme

    evidencia, Foucault (2008b):

    Uma cumplicidade primeira com o mundo fundaria para nós a possibilidade

    de falar deles, nele; de designá-lo e nomeá-lo, de julgá-lo e de conhecê-lo,

    finalmente, sob a forma da verdade, é o discurso ele próprio que se situa no

    centro da especulação, mas este logo na verdade, não é se não um discurso já

    pronunciado, ou antes, são as coisas mesmas ou os acontecimentos que se

    tornam insensivelmente discurso, manifestando o segredo de sua própria

    essência. O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade

    nascendo diante de seus próprios olhos; e quando tudo pode enfim, tomar a

    forma do discurso, quando tudo pode ser dito a propósito de tudo, isto se dá

    porque todas as coisas, tendo manifestado intercambiado seu sentido, podem

    voltar à interioridade silenciosa de consequências de si (FOUCAULT,

    2008b, p. 48-49).

    O discurso é capaz de ter a força criadora, produtiva e possibilita que as ideologias se

    materializem como verdades. Por outro lado, pode se tornar perigoso na medida em que serve

    a interesses, é capaz de consolidar estratificações sociais, pode ser usado para marginalizar e

    discriminar o sujeito.

    Quando se considera o contexto de produção (inserção) dos textos dos livros

    didáticos, ou nas mídias sociais, isso fica ainda mais evidenciado. Há uma clareza na

    imposição ideológica e isso pode ser reconduzido a partir da análise dos textos veiculados em

  • 21

    determinados momentos históricos. Assim, os textos são selecionados ou produzidos com a

    firme intenção de se reproduzir outros discursos, configurando-se na ideia imposta, ainda que

    de forma minimizada, constituindo objetos de poder.

    Nas malhas do discurso os sujeitos se encontram propensos ao domínio e ao mesmo

    são invadidos pelo desejo de se apoderar de determinados objetos e dominar outros sujeitos.

    Para Foucault (2008b):

    [o] discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo

    que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do

    desejo; é visto que isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é

    simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mais

    aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual podemos nos apoderar,

    permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo (FOUCAULT, 2008b,

    p. 10-11).

    Para Foucault, existem diversos procedimentos que são vistos de forma a repreender

    o discurso. A princípio é exposto que todo discurso é controlado pela interdição, que por sua

    vez, é vista como um recurso capaz de limitar a enunciação do discurso. Mesmo no discurso

    existem resistências, uma vez que nem tudo que pode ser dito por qualquer pessoa, em

    qualquer lugar ou circunstância.

    É preciso que se considere que o sujeito no discurso é histórico. Influencia e é

    influenciado pelas proposições que sua historicidade carrega. Há uma tendência na repetição

    dos discursos, e, portanto, atribuir importância, às vezes exagerada, à esses discursos. A

    proliferação dos discursos é questionada por Foucault (2008b), ao: questionar: “Mas, o que

    há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem

    indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” (p.8)

    Por certo, o perigo não reside no fato de as pessoas produzirem seus discursos, mas

    nos significados que estes possam assumir em sua proliferação. Basta que se observe a

    realidade atual na qual as denominadas fake news têm chamado a atenção, tanto por sua

    multiplicação, quanto pelo número de pessoas que nelas creem a ponto de terem se

    transformado nas maiores aliadas do sistema político vigente. Essa atribuição de significados

    torna o sujeito discursivo um portador, ele carrega consigo as ideologias nas quais acredita e

    busca pelo convencimento fortalecê-las e torná-las perenes.

    Por outro lado, os sujeitos vivenciam uma espécie de sociedade na qual não se

    permite que os discursos sejam materializados em sua totalidade. A fala, a escrita, as

    manifestações discursivas, passam pelo processo de exclusão ou de interdição. Isso significa

  • 22

    que a liberdade de manifestar o pensamento em forma de linguagem em qualquer momento e

    sobre todos os assuntos, precisa ser dirigida, controlada. Do mesmo modo, a manifestação do

    pensamento só é livre se estiver em acordo com a ideologia dominante.

    Sobre a exclusão e interdição do discurso, Foucault ressalta:

    Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de

    tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de

    qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado

    ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições

    que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade

    complexa que não cessa de se modificar. (FOUCAULT, 2008b, p. 9)

    Nesse não dizer, ou melhor, na interdição do discurso é que se compreende como o

    discurso é materializado nas relações de poder. Fischer (2001) reforça que o discurso se insere

    nas relações de poder e saber, tanto pelos enunciados quanto pela visibilidade destes. Assim

    como falar e observar são consideradas como práticas sociais, é importante o entendimento de

    que essas mesmas práticas que podem ser responsabilizadas pelas prisões em que os discursos

    podem se tornar. É mais do que se referir a coisas ou à sua temporalidade. Não é

    simplesmente a emissão do pensamento e seu registro em forma de letras, palavras ou frases.

    O discurso emana do sujeito, por ele é produzido e para tanto, se constitui em “regularidades

    intrínsecas a si mesmo, através das quais é possível definir uma rede conceitual que lhe é

    própria.” (FISCHER, 2001, p. 200)

    Foucault (1999) pondera a política e a sexualidade como sendo os dois principais

    tabus presentes na sociedade e diz mais, que os discursos são marcados pela busca de desejo e

    de poder pelo controle daquilo que enunciam, e “por mais que o discurso seja aparentemente

    bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o

    desejo e com o poder” (FOUCAULT, 2008b, p. 10).

    Nas malhas do discurso torna-se objeto da ausência de conhecimento com a qual os

    sujeitos passam a conviver. Isso significa que na contramão da ideologia dominante, pensar

    diferente pode ocasionar problemas. Ter um discurso diferente daquele que se espera dos

    sujeitos significa novas formas de pensamento e como tal, representa perigo para aqueles que

    se aproveitam da passividade dos sujeitos para impor e construir as relações de poder. Como

    exemplo, basta observar os discursos de influenciadores que “fazem” a cabeça de jovens e

    adolescente de hoje. Sem qualquer pausa para uma análise do contexto discursivo e de suas

    condições de produção, milhares de pessoas passam a “seguir” outras, legitimam seus

  • 23

    discursos e se colocam abaixo da escala de produção dos discursos. São vistos como “servos

    obedientes” das ideias difundidas como verdades.

    Em relação aos sujeitos do discurso imposto nas relações de poder, Foucault (2008b)

    reforça que a sociedade se reveste de hipocrisia, uma vez que se utiliza de relações

    antagônicas para definir, combater e reivindicar papéis que a ela não compete.

    Trata-se, em suma, de interrogar o caso de uma sociedade que desde há mais

    de um século se fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala prolixamente

    de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os

    poderes que exerce e promete liberar-se das leis que a fazem funcionar.

    Gostaria de passar em revista não somente esses discursos, mas ainda a

    vontade que os conduz e a intenção estratégica que os sustenta.

    (FOUCAULT, 2008a, p. 14)

    Os objetos do discurso vão sendo lapidados ao longo do tempo e precisam dos

    sujeitos em sua legitimação. Nenhum discurso de poder toma forma sem a anuência dos

    sujeitos. Do mesmo modo, não haveria a hipocrisia do discurso se não houvessem sujeitos à

    espera ou submisso a eles. Tais afirmativas podem se tornar contundentes a partir do

    momento em que se evidencia a fragilidade dos sujeitos oprimidos por discursos opressores.

    Ora, se levantar contra tais efeitos corresponderia a uma organização ideológica que os

    sujeitos que emanam do discurso não ousam ter. O repúdio ao discurso de poder tem escassos

    espaços, pois a própria sociedade precisa de controle, sem o qual os sujeitos teriam as rédeas

    de sua própria vida e errariam mais em seus conflitos sociais e individuais.

    Ao afirmar que a sociedade incorre à hipocrisia para reforçar suas ideologias,

    Foucault deixa clara uma posição dos sujeitos que se calam mediante diversas situações e

    depois utilizam o próprio silêncio como justificativa às suas fraquezas. O sujeito do discurso

    é, antes de tudo, histórico e depende de suas condições. Sendo assim, Foucault (2008b), ao

    discorrer sobre o(s) objeto(s) de discurso reforça que:

    [...] as condições para que apareça um objeto de discurso, as condições

    históricas para que dele se possa "dizer alguma coisa" e para que dele várias

    pessoas possam dizer coisas diferentes, as condições para que ele se

    inscreva em um domínio de parentesco com outros objetos, para que possa

    estabelecer com eles relações de semelhança, de vizinhança, de afastamento,

    de diferença, de transformação - essas condições, como se vê, são numerosas

    e importantes.(FOUCAULT, 2008b, p. 50)

    As condições para que um objeto de discurso emerja do sujeito e do grupo social no

    qual se insira, faz com que as convenções sociais passem a regular o discurso. Há uma

  • 24

    profanação da liberdade individual, uma vez que historicamente demarcado o espaço

    constitutivo dos sujeitos discursivos demandam o poder e a vontade dos quais o poder emana.

    Para Foucault (2008b) os discursos se repetem à exaustão, de uma época à outra,

    séculos, décadas, anos, meses, dias...e não há nada de novo nos discursos produzidos, pois

    estes são reflexos do que já foi dito, vivenciado ou produzido. “Isto significa que não se pode

    falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta

    abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se

    iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade.” (FOUCAULT, 2008b, p.

    50)

    Nas malhas do discurso emerge o sujeito que, por meio dos enunciados, denota sua

    prática social. Do mesmo modo, reconhece seu lugar no contexto das relações de poder. O

    discurso pode ser antagônico e contraditório, mas denota um posicionamento em meio a uma

    complexa relação de produção e reprodução dos discursos de poder. Há que se reforçar que os

    sujeitos não são passivos nessa relação, pelo contrário, uma vez que a própria historiografia

    descreve como são os movimentos de resistência à imposição dos discursos de poder, da

    subjetivação e submissão.

    Para Foucault o discurso de poder pressupõe a liberdade, uma vez que é preciso que

    os homens sejam livres para que possam ser governados. Os não libertos já experimentam um

    forma de entrelace, de prisão, seja com as convenções sociais, seja com seus próprios

    propósitos. Do mesmo modo, Foucault reforça que as apropriações sociais, bem como os

    rituais da palavras e as sociedades do discurso não podem ser separadas dos sujeitos do

    discurso, bem como de seus objetos. Isso ocorre devido a uma estreita ligação entre os

    sujeitos, seus discursos, suas produções e apropriações.

    Bem sei que é muito abstrato separar, os rituais da palavra, as sociedades do

    discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais. A maior parte do

    tempo, eles se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes

    edifícios que garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes

    tipos de discurso e a apropriação dos discursos por certas categorias de

    sujeitos. Digamos em uma palavra que são esses os grandes procedimentos

    de sujeição dos discursos. (FOUCAULT, 2008b, p. 44)

    Embora pareça, em primeiro plano, que os sujeitos do discurso são objetos passivos

    do poder, é preciso que se ressalte que não é essa uma realidade geral. Ora, é preciso que o

    olhar retome a história, para que se compreenda melhor tal perspectiva. São diversos os

    registros em toda a história da humanidade das lutas pela resistência ao discurso do poder. As

  • 25

    minorias, em quase toda a história, deixaram registradas os movimentos contra a imposição

    do discurso de poder e da sujeição ou submissão.

    Nesse aspecto, Foucault bem ressalta, afirmando que no contexto dos sujeitos é

    possível distinguir três tipos de lutas.

    Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as formas

    de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que

    separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga

    o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a

    sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão). Porém mesmo

    quando estão misturadas, uma delas, na maior parte do tempo, prevalece.

    (FOUCAULT, 2008b, p. 235)

    Discurso e poder andam juntos. Isso se torna evidente quando se analisa a realidade

    ou mesmo as perspectivas históricas desde a Antiguidade. O poder sempre foi imputado

    àquele que melhor construiu, significou, trabalhou com as palavras. Poderosos foram os que

    conseguiram constituir no imaginário popular a necessidade de ser comandado, lapidado e

    construído. Partindo de tal perspectiva, desse olhar para a aceitação (imposição) da

    subjetivação e da submissão dos sujeitos do discurso, é que se compreende também as

    resistências.

    Muito se fala sobre a sujeição, submissão dos sujeitos do discurso. Mas, o que é

    sujeição?

    Considerando o léxico, por sujeição compreende-se o ato de subjugar, tornar alguém

    dependente, obediente, subordinado. Como por exemplo em “A ida da mulher para o mercado

    do trabalho não conseguiu livrá-la da sujeição ao homem”. Na sujeição discursiva, o sujeito se

    torna cativo dos discursos impostos, precisa seguir regras que normatizam sua vida em

    sociedade e, por vezes, passa a experimentar uma falsa liberdade, cerceada pelas convenções

    sociais. Desse modo, é possível destacar as sujeições pelo gênero, pelas condições

    econômicas, pelas hierarquias de poder, pela religiosidade, ou seja, por todos os aspectos que

    se configuram na imposição de um discurso hierarquicamente instituído, ainda que sem

    legitimidade.

    A sujeição remonta à forma com que os discursos são recebidos. Por outro lado, na

    subjetivação espera-se atividade, resistência, consciência de si e de pertencimento a uma

    identidade cultural e individual. Para Foucault (2008b) os discursos seguem alguns princípios

    e dentre esses, o da especificidade. Isso significa que o discurso não pode antecipar suas

  • 26

    significações de forma precoce, nem se impor como simples decifração de enigmas formados

    pelas palavras, registradas, ditas ou não.

    Ele [o discurso] não é cúmplice de nosso conhecimento; não há providência

    pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber o discurso

    como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes

    impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do

    discurso encontram o princípio de sua regularidade. (FOUCAULT, 2008b, p.

    53)

    A prática de subjetivação sob a vertente foucaultiana, reforça a ideia de construção

    do sujeito discursivo e parte da perspectiva do cuidado de si, do homem consigo mesmo.

    Foucault (2005) provoca ao questionar quais foram as razões que justificaram a concepção de

    um sujeito no qual o conhecimento de si teve preponderância sobre o cuidado de si? Suas

    justificativas assomam à antiguidade clássica e a dualidade entre religiosidade e filosofia.

    Para bem compreender a noção de conhecimento e subjetivação, é preciso que se

    retome o que Foucault denominou “saberes sujeitados”.

    [...] por ‘saberes sujeitados’, acho que se deve entender outra coisa e, em

    certo sentido, uma coisa totalmente diferente. Por ‘saberes sujeitados’, eu

    entendo igualmente uma série de saberes que estavam desqualificados como

    saberes não conceituais, como saberes insuficientemente elaborados:

    saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do

    nível de conhecimento ou da cientificidade requeridos. (FOUCAULT,

    2008b, p. 12)

    Na imposição do saber de si em contraponto ao cuidar de si, os saberes sujeitados

    servem como suporte aos discursos de poder. Na prática de subjetivação proposta por

    Foucault se volta para as técnicas de si. Estas, por sua vez, representam uma forma de

    fortalecimento das identidades discursivas. De acordo com Foucault (1997)

    [...] poderia se chamar de ‘técnicas de si’, isto é, os procedimentos, que, sem

    dúvida, existem em toda civilização, pressupostos ou prescritos aos

    indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de

    determinados fins, e isso graças a relações de domínio de si sobre si ou de

    conhecimento de si por si. (1997, p. 109).

    Foucault, no vislumbre da subjetivação, passa a descrevê-la desde a antiguidade.

    Nesse período, de acordo com o autor, o exame de si pode ser favorecido pela adoção de três

    técnicas, sendo estas, a escuta, a memorização e a escrita.

  • 27

    Por outro lado, apresenta-se no discurso foucaultiano aquilo que é tido como

    apropriação do discurso verdadeiro. Para sua existência, é necessária a existência de um

    mestre. Assim, segundo Foucault “[...] a escuta será o primeiro momento deste procedimento

    pelo qual a verdade ouvida, a verdade escutada e recolhida como se deve, irá de algum modo

    entranhar-se no sujeito, incrustar-se nele e começar a tornar-se suus (tornar-se sua) e a

    constituir assim a matriz do êthos” (FOUCAULT, 2006, p. 402).

    Além da técnica de escuta, Foucault ressalta a importância de outra técnica de si, a

    memorização. Na subjetivação dos sujeitos discursivos, a memorização tem o papel

    fundamental na reflexão que o sujeito fizer de si. Examinando sua consciência faz com que o

    sujeito se aproprie de sua conduta e de tal forma, reforça os princípios adquiridos. Na

    memorização, retoma-se o que se encontra marcado no consciente dos sujeitos. Segundo o

    autor, é imprescindível que os sujeitos façam um exame de consciência, não para detectar e

    vigar as culpas, mas como um meio de “volta-se para si mesmo e fazer um exame das

    riquezas que aí foram depositadas.” (FOUCAULT, 1997, p. 129). Destaca-se que esse exame

    tem a função de fazer com que os sujeitos novamente se adaptem às normas de conduta, bem

    como possam retomar o que, em determinado momento, foi desejado ter sido feito.

    A última técnica de si, como subjetivação dos sujeitos do discurso e citada por

    Foucault, é a escrita. Embora na Antiguidade Clássica à escrita não tenha sido atribuída maior

    importância, uma vez que se valorizava a oralidade como meio de se buscar as melhorias no

    governo. Mais adiante, já nos séculos I e II é que as notas sobre si passaram a ser valorizadas.

    [...] dentre as tarefas de que definem o cuidado de si há aquelas de tomar

    notas sobre si mesmo – que poderão ser relidas - , de escrever tratados e

    carta aos amigos, para os ajudar, de conservar os seus cadernos a fim de

    reativar para si mesmo as verdade [sic] da qual precisaram. (FOUCAULT,

    2006, p. 792)

    Essas práticas de subjetivação são, na concepção foucaultiana, como formas de

    construção da verdade. De acordo com Foucault, por meio da subjetivação, os sujeitos

    passavam a compreender o que era a verdade, e como o conhecimento verdadeiro poderia ser

    instituído. Do mesmo modo, por meio das práticas de subjetivação, a conduta teria seu

    controle creditado pela escuta, memória e escrita e não mais somente pela oralidade.

    Foucault também descreve as práticas de subjetivação no Cristianismo. As práticas

    da Antiguidade são utilizadas também no cristianismo. Além de preconizar a verdade, o

    cristianismo prega a obediência como forma de manter essa verdade. A subjetivação dos

    sujeitos torna obrigatória a obediência à verdade que é produzida. Interessante compreender

  • 28

    que o discurso do cristianismo reforça as relações de poder, aqui o poder sacralizado se

    sobrepõe ao poder do povo.

    O cristianismo exige uma outra forma de obrigação com a verdade, diferente

    da fé. Requer de cada um que saiba o que é, quer dizer, que se empenhe em

    descobrir aquilo que passa em si mesmo, que reconheça suas faltas, admita

    suas tentações, localize seus desejos; cada um deve em seguida revelar essas

    coisas, seja a Deus, seja aos outros membros da comunidade, conduzindo

    desta maneira a um testemunho, público ou de caráter privado, contra si

    próprio. (FOUCAULT, 2006, p. 802)

    No cristianismo, a subjetivação se constrói a partir de um sistema ritualístico,

    definido pelo reconhecimento do sujeito de seu pecado, antes original, e depois do batismo

    relacionado à sua vivência social. O ritual pressupõe dois passos: primeiro o reconhecimento

    público do pecado e em seguida o cumprimento da penitência comutada. No cristianismo a

    verdade é constituída por meio da revelação.

    Existem [...] duas grandes formas de revelação de si, de expressão da

    verdade do sujeito, no cristianismo dos primeiros séculos [...] o

    exomologêsis, ou seja, a expressão teatralizada da situação de penitente que

    torna manifesto seu estatuto de pecador. A exagoreusis é a verbalização

    analítica e contínua dos pensamentos que o sujeito pratica nos moldes de

    uma relação de obediência absoluta a um mestre. (FOUCAULT, 2006, p.

    809)

    O exame de si, da própria consciência não é mais utilizado como retomada de ações,

    de organização do conhecimento adquirido. No cristianismo, o exame de si serve para reforçar

    a necessidade de penitência de um sujeito pecador. A verdade é somente ascendida quando os

    sujeitos passam pelos rituais de purificação, que requer destes o comportamento abnegado,

    visto como primeiro passo para um bem maior, sacralizado e incorruptível.

    No cristianismo os sujeitos são submetidos ao próprio juízo, manifesto na análise dos

    próprios atos, bem como dos pensamentos, expostos na confissão de seus pecados. Nos rituais

    cristãos, a subjetivação depende do desprendimento de bens materiais e apego na salvação de

    sua própria alma. Por outro lado, conforme descreve Foucault “[...] não somente os

    pensamento, mas também os movimentos mais íntimos da sua consciência e das suas

    intenções.” (FOUCAULT, 2006, p. 809)

    Foucault considera também que a escrita seja uma prática fundamental na

    subjetivação. Pela escrita ocorre uma materialização do pensamento e como tal, exige-se do

    sujeito um comportamento ético. A ética, nesses casos, serve para guiar aquilo que o sujeito

  • 29

    pensa e regular o que é escrito. Por outro lado, na escrita de si o sujeito tem a oportunidade de

    registrar aquilo que é ouvido e retomado. Pela escrita o sujeito também pode se apropriar das

    verdades expressas nas leituras escolhidas ou impostas. A escrita, segundo Foucault, “[...] é

    uma maneira de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade que

    nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam o uso.” (2004, p. 151)

    1.2 Concepções foucaultianas de poder e biopoder

    Para Foucault, verdade e poder, poder e discurso, verdade e discurso possuem uma

    sistemática própria e como tal, inserem se nas relações do sujeito discursivo com a sociedade

    no qual se encontra inserido, bem como sua historicidade. Entretanto, o autor julga que a

    historicidade não tem compromisso com o sentido e sim, com o poder. “A historicidade que

    nos domina e nos determina é belicosa e não linguística, relação de poder, não relação de

    sentido. A história não tem ‘sentido’ o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente.”

    (FOUCAULT, 2007a, p. 6)

    Paniago (2005) declara que a preocupação de Foucault não está em constituir um

    conceito fechado, indistinto sobre o poder,

    [...] mas refletir sobre os mecanismos, os efeitos, em suas relações, dos

    diversos dispositivos de poder que são exercidos nos diferentes níveis da

    sociedade. Ele preocupa-se em responder se se pode dizer que a análise do

    poder (ou dos poderes) pode ser deduzida da economia. (PANIAGO, 2005,

    p. 86)

    Foucault considera que o sujeito do discurso participa do que denomina relações de

    poder. Estas, por sua vez, são descritas como complexas, pois se revestem das diversas

    imposições discursivas delineadas ao longo da história humana. Partindo das relações de

    produção, as quais eram mediadas pela linguística1, as relações de poder não possuem uma

    instrumentalização que possa ser considerada efetiva em sua análise.

    O único recurso que temos são os modos de pensar o poder com base nos

    modelos legais o poder com base nos modelos legais, isto é: o que legitima o

    poder? Ou então, modos de pensar o poder de acordo com um modelo

    institucional, isto é: o que é o Estado? (FOUCAULT, 2007b, p. 232)

    Linguística: é a ciência que se ocupa em estudar as características da linguagem humana.

  • 30

    Com base na questão sobre o que legitima o poder, é possível tentar compreender

    como Foucault determina as relações de poder. De modo geral, o poder é legitimado no

    discurso. Na construção de relações, poder e força podem ter a mesma destinação, no contexto

    discursivo dos sujeitos, a força é utilizada de uma maneira mais sutil, mas influenciando,

    construído concepções do que se impondo mais bruscamente.

    O poder emana do discurso, isso é inegável. As relações de poder legitimam os

    discursos que são impostos, seja por meio da oralidade ou pela escrita, mas para Foucault as

    relações de poder servem tanto à análise quanto à compreensão de como os sujeitos são

    constituídos.

    Sobre a visão foucaultiana do poder, Paniago (2005) reforça que:

    O poder, para Foucault, não é algo que se possa possuir, porque não é um

    bem alienável do que se possa ter a propriedade. Por isso, qualquer que seja

    a sociedade, não existe divisão entre os que tem e os que não tem poder [...]

    embora não haja um titular, um dono do poder, o poder é exercido sempre

    em determinado sentido, não necessariamente de cima para baixo. O poder,

    em outras palavras, não se possui, o poder se exerce ou se pratica.

    (PANIAGO, 2005, p. 81-82)

    Foucault reforça que nas relações de poder, a resistência ao poder deve ser analisada

    concomitantemente à sua racionalidade interna, utilizando para isso “as relações de poder

    através do antagonismo das estratégias.” (FOUCAULT, 2007b, p. 234). Por outro lado, o

    autor reforça que para compreender as relações de poder, seria necessário antes, analisar o que

    se denominou de lutas antiautoritárias. Pela ótica foucaultiana as lutas servem para que o

    poder mude de lugar, de discurso e de mãos.

    Assim, de acordo com Foucault (2007b) as lutas antiautoritárias possuem alguns

    traços em comum, sendo estes:

    São lutas ‘transversais’; isto é, não são limitadas a um país. Sem dúvida

    desenvolvem-se mais facilmente e de forma mais abrangente em certos

    países, porém não estão confinadas a uma forma política e econômica

    particular de governo; o objetivo destas lutas são os efeitos de poder

    enquanto tal, por exemplo, a profissão médica não é criticada essencialmente

    por ser um empreendimento lucrativo, porém porque exerce um poder sem

    controle, sobre os corpos das pessoas, sua saúde, vida e morte.

    (FOUCAULT, 2007b, p. 234)

    Considerando que em relação ao poder, as lutas são para que este não se extinga e

    sim mude de mãos, Foucault reforça que as lutas antiautoritárias se revestem de imediatismos

  • 31

    e como tal, as instâncias mais próximas do sujeito são as mais criticadas, pois exercem maior

    poder e maior ação sobre os sujeitos.

    Elas não objetivam o ‘inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam

    encontrar uma solução para seus problemas no futuro (isto é, liberações,

    revoluções, fim da luta de classe). Em relação a uma escala teórica de

    explicação ou uma ordem revolucionária que polariza o historiador, são lutas

    anárquicas. (FOUCAULT, 2007b, p. 234)

    Acerca do modo como Foucault descreve o poder, consignando-o ao saber, Deleuze

    (2008) reforça que o poder é fruto do saber. Saber e poder caminham nas mesmas direções.

    No entanto, conforme menciona o autor, sob a ótica foucaultiana o saber se constrói por meio

    de formas, daquilo que é visível e enunciável, enquanto o poder se constitui na força e em

    suas relações. “Foucault parte de uma concepção original que ele faz do saber, para inventar

    uma nova concepção do poder.” (DELEUZE, 2008, p. 115)

    “Ao poder não interessa a simples repressão ou dominação dos homens. Ao invés

    disso, importa que suas mais detalhadas atividades sejam geridas, para fazer com que se

    tornem sempre mais úteis.” (PANIAGO, 2005, p. 87)

    Essa nova concepção de poder remete ao que Foucault denominou de biopoder.

    Antes do conceito de biopoder, compreende-se o homem é dominado, principalmente, pelo

    poder biológico. O poder imposto às minorias raciais, ou ao gênero pode ser considerado

    como mostra do poder biológico, ou seja, justifica-se pela teoria da soberania, ligada ao

    direito de vida e de morte.

    Em certo sentido, dizer que o soberano tem direito de vida e de morte

    significa, no fundo, que ele pode fazer morrer e deixar viver; em todo caso,

    que a vida e a morte não são desses fenômenos naturais, imediatos, de certo

    modo originais ou radicais, que se localizariam fora do campo do poder

    político. (FOUCAULT, 2005, p. 286)

    Quando o autor se refere ao soberano, denota-se a ideia de poder emanado,

    instituído. O soberano é aquele que detém o poder sob duas perspectivas, a de quem se crê

    ocupe um lugar mais alto na escala biológica, que perpassa pela ideia de superioridade, seja

    pela raça, pelo gênero ou pela sexualidade. A outra perspectiva é a de que o soberano

    experimenta o poder tomado, abstraído, ou instituído em instâncias maiores e mais

    sacralizadas. Ao se compreender melhor a ótica foucaultiana sobre o poder, é possível migrá-

    lo para o sujeito do discurso. O soberano seria, então, aquele que impõe o discurso do poder, e

  • 32

    seu direito de vida e de morte, irá depender de quanta ideologia consegue difundir e quantos o

    seguem.

    Por outro lado, Foucault institui outro poder a partir da “tecnologia de poder”,

    instrumentalização das relações sociais a partir de suas técnicas de poder não disciplinares.

    Reside aí os pressupostos do que o autor passou a denominar “biopoder”. Esse poder não é

    mais exercido sobre a disciplina dos homens, mas sobre suas vidas. Não se materializa no

    homem-corpo, mas no homem enquanto ser vivo. De uma forma mais simples, biopoder nada

    mais é do que o exercício do poder sobre o direito de vida e de morte dos sujeitos, não

    somente sobre o corpo, mas sobre sua formação biológica.

    O biopoder é representado como uma forma de controle dos sujeitos. Como tal se

    impõe por meio das questões biológicas. Corpos, enquanto objetos do discurso, são

    considerados como instrumentos de dominação. Relembrando, para Foucault, o poder não

    existe e sim, as práticas de poder. Ou seja, para que haja a imposição do discurso de poder é

    preciso que haja um sujeito do poder. No biopoder, é priorizado o controle do corpo, objeto de

    discurso. Quando o corpo pode ser controlado, os sujeitos se submetem às práticas de poder.

    Foi a partir da constatação da articulação entre os dois mecanismos que

    Foucault pode perceber por que a sexualidade havia se tornado tão

    importante no século XIX. Para ele, a sexualidade está justamente no

    entremeio do corpo e da população. Por um lado, a sexualidade carece de

    mecanismos disciplinares de controle; por outro, depende de mecanismos

    regulamentadores. (PANIAGO, 2005, p. 101)

    O biopoder, para Foucault pode ser considerado como tecnologia de poder, que tem

    o centro na vida dos sujeitos. Sem sua existência, a sociedade perderia sua capacidade

    normatizadora. E sem essa capacidade, as relações e práticas de poder perderiam a força.

    Analisando essa possibilidade, gênero, corpo e sexualidade não poderiam ser limitados pela

    ordem ou controlados pelo Estado. O biopoder:

    Trata de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos

    óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses

    processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na

    segunda metade do século XVIII constituíram, os primeiros objetos de saber

    e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (FOUCAULT, 2005, p.

    290)

  • 33

    Acerca do biopoder, Foucault constrói uma comparação na qual poder da soberania,

    tido como absoluto, dramático e sombrio e o biopoder, o poder sobre a população, as massas,

    sobre o homem como ser vivo. Biopoder é, então, conceituado como o poder “fazer viver”.

    A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder

    que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer

    viver e em deixar morrer. [...] a manifestação desse pode aparece

    concretamente nessa famosa desqualificação progressiva da morte. [...] a

    morte era o momento em que se passava de um poder, que era soberano aqui

    na terra, para aquele outro poder, que era o do soberano do além.

    (FOUCAULT, 2005, p. 295)

    Em resumo, biopoder é o controle do sujeito a partir de uma perspectiva biológica

    que tem como função justificar a imposição do discurso de poder.

    1.3 Corpo, poder e gênero

    Conforme mencionado, o corpo é discurso, e como tal, objeto das técnicas de poder.

    O corpo discursivo representa ideologias, sofre influências, é contido, controlado,

    normatizado. Portanto, o corpo é considerado o lugar de resistências, bem como da imposição

    de forças. Le Breton (2007) reforça que o corpo é o que ancora o sujeito em sua visão e

    vivência de mundo, sendo construído e transformado a partir de seu contexto social e cultural.

    Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é o

    vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída:

    atividades perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais

    dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência,

    jogos sutis da sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a

    dor, com o sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal.

    (LE BRETON, 2007, p. 7)

    Sobre corpo, poder e gênero, Fischer (1996) discorre que o corpo e o gênero são

    instrumento das técnicas de poder, sendo o corpo um lugar do qual emanam as identidades.

    “Porém, se efetivamente os corpos são constituídos como efeitos de poder, não há como

    ignorar que a histórica desigualdade nas relações entre homens e mulheres constitui

    profundamente não só o corpo feminino como as identidades de gênero.” (FISCHER, 1996, p.

    94)

  • 34

    É sob a perspectivas das desigualdades nas relações de gênero é que se torna possível

    compreender os discursos que são construídos na sociedade, expressos, tanto na oralidade

    quanto na escrita. Aqui, é repousado o olhar para os meios de representação do corpo da

    mulher nesse antagonismo desperto pela sexualidade, e pelo homem enquanto sujeito de

    poder.

    O discurso de Le Breton (2007) vem de encontro com as formas de representação do

    corpo da mulher. De acordo com o autor, em relação ao corpo há uma dualidade, uma vez que

    esse é uma expressão social. O ato de nomear o corpo, seria o cumprimento de um fetiche e

    alimentação de uma dualidade. Quando a sociedade “nomeia” o corpo feminino, chamando-o

    de “belo”, “feio”, “idoso”, “obeso” há a omissão daquelas que o encarnam, do que há além

    dos estereótipos ligados à mulher.

    É preciso ressaltar a ambiguidade que consiste em evocar a noção de um

    corpo que só mantém relações implícitas, supostas, com o ator com quem faz

    indissoluvelmente corpo. Qualquer questionamento sobre o corpo requerente

    a construção de seu objeto, a elucidação daquilo que subentende. O próprio

    corpo não estaria envolvido no véu das representações? O corpo não é uma

    natureza. Ele nem sequer existe. Nunca se viu um corpo: o que se vê são

    homens e mulheres. Não se vê corpos. Nessas condições o corpo corre o

    risco de nem mesmo ser um universal. (LE BRETON, 2007, p. 24)

    O corpo feminino, objeto dos discursos de poder, passa a ser considerado não apenas

    sob a perspectiva biológica, mas compreendido a partir das diferenças, principalmente as

    sexuais. De acordo com Fischer (1996) a partir de tais diferenças que se torna possível

    compreender como a desigualdade de gênero é legitimada.

    [...] todo o investimento que as diferentes sociedade fizeram sobe as

    mulheres, amarrando-as a seus corpos, como naturalmente deficientes, em

    falta, doentes, frágeis – e tantas outras qualificadas através da concretude

    biológica -, é hoje investigado justamente a partir das categorias como a de

    gênero, pelo qual distinguimos o corpo sexuado e o gênero socialmente

    construídos ( o modo de comportar-se, os papéis que cabem ao homem e à

    mulher, as disciplinas à que cada um deve submeter-se e assim por diante) e,

    sobretudo, pela qual expomos, cristalizadas e naturalizadas relações de

    poder entre os sexos. (FISCHER, 1996, p. 95, grifos nossos)

    Nos dizeres de Fischer, o que se destaca é a forma mais contundente de denotar as

    técnicas de biopoder sendo exercidas sobre os gêneros, principalmente sobre a mulher. O

    corpo feminino, o templo do machismo, uma prisão, construída nas malhas do discurso social,

  • 35

    da classificação do certo e errado, do santificado e pecador. Corpo esse que migra nas

    dicotomias que criam estereótipos e classificam.

    O estereótipo, conforme menciona Brito e DallaBona (2014), se origina do grego

    steros + typos e até a década de 1920 era utilizado para nomear uma forma de impressão que

    se utilizava de placas em uma técnica denominada estereotipia. A partir de 1920 é que o termo

    deixou de ser usado no contexto da imprensa e assomou o âmbito social. Assim, o estereótipo

    é definido como “uma impressão que marca determinantemente as relações sociais. Eles

    podem e devem, porém ser reavaliados e remodulados, pois sofrem alterações de acordo com

    o contexto e com a intenção de quem o cria ou que dele se apropria.” (BRITO;

    DALLABONA, 2014, p. 17)

    O corpo feminino é, ao mesmo tempo, origem do prazer e fonte de pecado. Enquanto

    gênero socialmente construído, os olhares para as épocas anteriores comprovam o poder que o

    discurso social exerce sobre a construção da identidade feminina. Nessas relações de poder,

    aqueles que representam o discurso regulador social, os homens, exercem o poder sobre as

    mulheres. Esse poder é instituído desde o nascimento e se legitima em diversas fases da vida

    social feminina, continua no matrimônio e se transfigura na maternidade.

    A imagem do corpo é aqui a imagem em si, alimentada pelas matérias

    simbólicas que mantêm sua existência em outros lugares e que cruzam o

    homem através de uma fina trama de correspondências. O corpo não se

    distingue da persona e as mesmas matérias-primas entram na composição do

    homem e da natureza que o cerca. (LE BRETON, 2007, p. 30)

    Entre homens e mulheres existem distinções que vão além do contexto biológico,

    mas perpassam pela cultura, como constituinte do gênero e da identidade.

    Muitas teorias foram construídas e multiplicadas, pretendendo comprovar

    “cientificamente” tais distinções. No “padrão científico”, o homem ou o

    masculino tem sido a “norma” e isso se evidencia desde as elaborações

    linguísticas nas quais tradicionalmente se toma o masculino como sinônimo

    de humanidade. Também na produção de conhecimento, na área da

    biomedicina, por exemplo, o corpo feminino é tomado como um apêndice ou

    uma versão menos desenvolvida do masculino “padrão”, passando por

    muitas outras simbologias. (SAYÃO, 2003, p. 122)

    O peso simbólico dessas concepções fortalece o discurso sobre a ‘fragilidade’

    feminina em relação à força masculina. Como as relações de gênero, são, antes de tudo, de

    poder, as forças femininas e masculinas passam a compor uma dualidade antagônica,

    construída na supervalorização do papel masculino e subvalorização da mulher. O discurso de

  • 36

    poder da hegemonia masculina fundamenta-se, essencialmente na fragilização do corpo

    feminino. Corpo e gênero coexistem em uma sociedade na qual as manifestações de poder são

    proclamadas a partir da ideia de posse sobre o corpo, no caso, o feminino.

    A forma de posse do corpo feminino que primeiro é legitimada pela sociedade é a do

    casamento. Foucault (2005) reforça que para o homem, o matrimônio é, antes de tudo, uma

    obrigação social, que embora possa ser visto como um ato aborrecedor, é um dever que pode

    abrir as portas da política, cumpre os preceitos religiosos, proporciona continuidade pela

    prole, é uma forma de honrar a Deus. Por outro lado, por meio do casamento, o homem

    poderá ter ao seu lado uma serva, pronta para responder à natureza ardente de seu esposo, sem

    deixar de honrá-lo nos espaços sociais.

    Como vemos, o princípio de ter que se casar está fora do jogo comparativo

    entre as vantagens e os aborrecimentos do casamento: ele se expressa como

    a exigência para todos de uma escolha de vida que se dê a forma do

    universal porque é conforme à natureza e útil a todos. O casamento liga o

    homem a si próprio enquanto ser natural e membro do gênero humano.

    (FOUCAULT, 2005, p. 157)

    Um dos grandes exercícios do poder se dá pelo casamento. O corpo feminino deixa a

    posse paterna, e migra à posse do marido. O matrimônio, para o homem, não deixa de ser uma

    obrigação vantajosa, uma vez que nesse espaço discursivo, o poder é reiterado. O corpo

    feminino é mais para o uso e subordinação do que para as próprias vivências. Nas rela�