Discurso sobre Lourenço de Médici

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  • Discurso sobre as coisas florentinasDiscurso sobre as coisas florentinasDiscurso sobre as coisas florentinasDiscurso sobre as coisas florentinasDiscurso sobre as coisas florentinasdepois da morte de Loureno Medici o jovemdepois da morte de Loureno Medici o jovemdepois da morte de Loureno Medici o jovemdepois da morte de Loureno Medici o jovemdepois da morte de Loureno Medici o jovem11111

    Nicolau Maquiavel2

    1. A razo pela qual Florena mudou freqentemente de governo porque nela jamais houve nem repblica nem principado com as qualidadesdevidas. No se pode, pois, chamar de principado estvel aquele onde as coisasso feitas segundo o que quer um nico homem, e so deliberadas com oacordo de muitos. E no se pode crer que deva durar uma repblica onde nose satisfaz aqueles humores que, no sendo satisfeitos, so a runa dasrepblicas. Que isto seja verdadeiro se pode verificar dos regimes (stati) quehouve naquela cidade de 1393 at aqui. E iniciando pela reforma feita nestapoca por messer Maso degli Albizzi, se ver como ento se queria dar a ela aforma de uma repblica governada pelos optimates; e como ela teve tantosdefeitos que no ultrapassou quarenta anos, e teria durado menos, se as guerrascom os Visconti no tivessem vindo em seguida, as quais a mantiveram unida.Os defeitos foram, entre outros, que ela fazia escrutnios por um tempo muitolongo, onde se podia facilmente fraud-los e onde a eleio podia no ser boa.Porque como os homens mudam facilmente e transformam-se de bons em maus,e de outro lado, como se davam os cargos aos cidados por um longo espaode tempo, podia facilmente ocorrer que a eleio tivesse sido boa, e mau a osorteio. Alm disso, no se havia institudo um meio que provocasse medo aosgrandes a fim de que no pudessem criar faces, que so a runa de umEstado. A Senhoria tinha tambm pouca reputao e excessiva autoridade, poispodia dispor sem apelao da vida e dos bens dos cidados, e chamar o povo assemblia. De modo que vinha a ser no a defensora do Estado, mas uminstrumento de sua perda, cada vez que um cidado respeitado pudesse govern-la ou ludibri-la. Ela tinha, de outro lado, como dissemos, pouca reputao,porque, encontrando-se nela freqentemente homens desprezveis e jovens epor um curto espao de tempo, e no se ocupando de tarefas importantes, elano podia ter reputao.

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    2. Havia ainda neste regime (stato) uma desordem que no era de poucaimportncia, qual seja que os homens privados se encontravam nos conselhos dascoisas pblicas, o que mantinha a reputao dos homens privados, mas a tiravados pblicos e chegava a tirar autoridade e reputao dos magistrados: coisa que contrria a toda instituio [ordine] civil. A essas desordens se acrescentavaoutra, que importava grandemente, qual seja que o povo no tinha nela nenhumpapel. Todas essas coisas juntas provocavam infinitas desordens. Se, como jdisse, as guerras externas no tivessem sido paradas, este regime teria se arruinadoantes do que o foi. Outrossim, depois deste foi edificado o regime (stato) deCosimo, o qual pendeu mais ao principado do que repblica. Se ele durou maistempo que o outro, se justifica por duas razes: uma foi que ele foi criado com ofavor do povo; a outra foi por ter sido governado pela prudncia de dois homens,os quais foram Cosimo e Loureno, seu neto. No obstante, aquilo que Cosimoqueria realizar era fortemente enfraquecido por estar submetido deliberao demuitas pessoas, o que muitas vezes lhe fez correr o risco de perder o poder. Dissonasceram as freqentes discusses e os freqentes exlios, que tiveram lugar sobeste regime (stato). Enfim, devido passagem do rei Carlos o perdeu. Depoisdisso, a cidade quis tomar uma forma de repblica e no conseguiu escolher umaque fosse durvel, porque aquelas instituies (ordini) no satisfaziam a todos oshumores dos cidados; e de outra parte no podia castig-los. Este regime era todefeituoso e distante de uma verdadeira repblica que um gonfaloneiro da vida, seele fosse hbil e mau, facilmente podia se tornar prncipe; e se ele fosse bom efraco, facilmente podia ser caado, arrastando com ele a runa do regime (stato)inteiro.

    3. Porque seria longa matria apresentar todas as razes dele, direiapenas uma: que o gonfaloneiro no tinha ao redor quem o pudesse defender,sendo bom; nem quem, sendo mau, o freasse ou corrigisse. A razo pela qualtodos esses governos foram defeituosos porque as reformas deles foram feitasno para a satisfao do bem comum mas para reforo e segurana de uma faco:esta segurana tambm no foi obtida, porque sempre existia uma facodescontente, o que foi um poderoso instrumento queles que desejaram mudar oregime.

    4. Resta-nos agora discorrer sobre o que foi o regime (stato) de 1512 athoje, e quais foram suas fraquezas ou pontos fortes; mas por ser coisa nova equalquer um conhece, no falarei delas. verdade que, chegando s coisas, comoo foram, situao presente devido morte do duque, se h que discutir novosmodos de governo. Parece-me que, para mostrar meu devotamento a VossaSantidade, no posso me enganar dizendo o que penso. Direi primeiramente aopinio de muitos outros, segundo aquilo que me parece ter entendido expor;depois acrescentarei minha opinio, a qual, se eu errar, Vossa Santidade me perdoe

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    Discurso Sobre as Coisas Florentisnas Depois da Morte de Loureno Medici o Jovem

    por ser levado mais pela dedicao do que pela sabedoria.5. Digo, portanto, que alguns julgam que no se pode criar (ordinare)

    governo mais seguro do aquele que existiu na poca de Cosimo e Loureno; algunsoutros o desejariam mais aberto participao popular. Estes que quereriam governosimilar quele de Cosimo dizem, portanto, que as coisas facilmente retornam sua prpria natureza. Tambm, por ser natural aos cidados florentinos honrarvossa casa, de gozar os benefcios que dela procedem, de amar as coisas que porela so amadas, e como eles esto acostumados a isto durante sessenta anos, no possvel que, vendo as mesmas formas de governo, no retornem ao mesmoesprito; e crem tambm que restam poucos de nimo contrrio, e estes poucospodem facilmente desaparecer por um hbito contrrio. E acrescentam a estasrazes a da necessidade, mostrando como Florena no pode ficar sem chefe.Devendo ter um, muito melhor que seja daquela casa que costumam adorar doque, no tendo chefe, viver em confuso, ou em tendo um, tratar de tomar outro,onde haveria menos reputao e menos satisfao para todos.

    6. Responde-se a esta opinio que semelhante regime (stato) perigosono por outra razo, do que por ser fraco. Com efeito, se o regime (stato) deCosimo tivesse naqueles tempos todos os pontos fracos quanto os acima alegados,nestes tempos um regime (stato) semelhante os teria em dobro, porque a cidade,os cidados e os tempos so diferentes daqueles que eram ento, de sorte que impossvel criar em Florena um regime (stato) que possa permanecer e sejasemelhante quele.

    7. Em primeiro lugar, aquele regime (stato) tinha a massa do povo(universale) por amigo; o presente regime a tem como inimiga. Os cidados deento no tinham jamais conhecido em Florena um regime (stato) que parecessemais popular (universale) do que aquele; os cidados de hoje conheceram dele umque lhes parece mais civil e no qual tm mais contentamento. Na Itlia no haviaento nem foras militares nem potncia aos quais os florentinos no tivessemsido capazes de resistir com suas prprias armas, mesmo permanecendo semaliados. Presentemente, como existem a Espanha e a Frana, lhes preciso seramigo de uma delas; se ocorrer de uma perder, logo ficam refns do vencedor;algo que ento no ocorria. Os cidados estavam ento acostumados a pagar muitosimpostos; agora ou por incapacidade ou por falta de hbito, esto desacostumados;querer reacostum-los a isto coisa odiosa e perigosa. Os Medici que governavamento, porque eram educados e cuidadosos com seus cidados, governavam comtanta familiaridade que isso lhes atraa a simpatia; agora, se tornaram to grandesque, sendo claramente superiores aos seus concidados e at mesmos estranhos vida de cidadania, no pode mais existir aquela familiaridade e, por conseguinte,aquela simpatia. Desta sorte, consideradas as diferenas das pocas e dos homens,no pode haver erro maior do que crer que numa matria to diferente se possa

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    NICOLAU MAQUIAVEL

    imprimir uma forma idntica. Se ento, como acima se disse, a cada dez anoscorriam o risco de perder o poder (stato), hoje o perderiam seguramente. No sedeve acreditar que seja verdadeiro que os homens facilmente retornem ao modo deviver antigo e habitual, porque isso se verifica quando o modo de viver antigoagrada mais que o novo; mas, quando ele agrada menos, no retorna a ele a noser forado; e vive assim apenas enquanto dura aquela coao.

    8. Alm disso, mesmo que seja verdade que Florena no pode ficar semchefe e que, se tivesse que escolher entre um chefe particular e outro, ela amariamais um chefe sado da casa dos Medici do que de alguma outra casa, no obstante,se deve escolher entre um chefe eleito e um outro, o chefe eleito sempre agradamais do que o particular, seja do lugar que ele vier.

    9. Julgam alguns que no se poder perder o poder (stato) sem um ataquede fora, e crem que se pode sempre ter tempo de fazer amizade com quem osassalta. Nisso se enganam fortemente, porque no mais das vezes no se faz amizadecom quem mais poderoso do que a si mesmo, mas com aquele que tem entomais possibilidade de ofender-te, ou com aquele que o esprito e a imaginao teinclinam a amar. Pode facilmente ocorrer que aquele teu amigo perca e que,perdendo, fique merc do vencedor; e que este no queira acordo convosco, oupor no ter o tempo de pedi-lo, ou porque o dio que ele nutre por vs por causada amizade que tendes com os seus inimigos.

    10. Ludovico [Sforza], Duque de Milo, teria feito acordo com o rei LuisXII da Frana, se o tivesse podido fazer. O rei Frederico [de Arago] teria feito omesmo com aquele soberano se tivesse tido ocasio; mas ambos perderam o poder(stato) por no terem podido entrar em acordo, pois sobreveio uma massa deacontecimentos que os impediram de firmar tais acordos. De modo que, dito tudoisso, por haver tantas razes de instabilidade, no se pode considerar semelhantegoverno (stato) nem como seguro nem como solidamente fundado, o que no deveagradar nem Vossa Santidade nem aos vossos amigos.

    11. Quanto queles que queriam um governo mais amplo que este, digoque, se no se amplia de modo que se transforme em uma repblica bem ordenada,ento semelhante ampliao ter por efeito faz-la arruinar-se mais cedo. Se elesdissessem em detalhes como gostariam que fosse feito, eu lhes responderia emdetalhes; mas se eles se limitarem s generalidades, eu no posso responder-lhesseno por generalidades. Quero unicamente me limitar a essa resposta. Quanto apresentar objees ao regime (stato) de Cosimo, e a este, no se pode fundar(ordinare) um regime (stato) que seja estvel, se no ou verdadeiro principadoou verdadeira repblica, porque todos os regimes (governi) situados entre estesdois so defeituosos e a razo clarssima: porque o principado s tem uma sadapara sua extino, que descer rumo a repblica, e do mesmo modo a repblica stem uma sada para sua extino, que se elevar rumo ao principado. Os regimes

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    Discurso Sobre as Coisas Florentisnas Depois da Morte de Loureno Medici o Jovem

    (stati) intermedirios possuem duas sadas, pois podem se elevar ao principadoou descer repblica: disso nasce a sua instabilidade.

    12. Se deseja criar em Florena um regime (stato) estvel para glria suae para sade de seus amigos, Vossa Santidade no pode, pois, estabelecer (ordinar)nela outra coisa que um verdadeiro principado ou uma repblica dotada de todasas suas atribuies. Todas as outras coisas so vs e de brevssima durao. Quantoao principado, eu no o debaterei em detalhes tanto devido s dificuldades que euteria para faz-lo, quanto pelo desaparecimento do instrumento para faz-lo. VossaSantidade haver de entender que em todas as cidades onde h grande igualdadeentre os cidados, somente se pode fundar (ordinare) um principado com a mximadificuldade e que, nas cidades onde h grande desigualdade entre os cidados,no se pode fundar (ordinare) repblica. Com efeito, ao querer criar uma repblicaem Milo, onde h uma grande desigualdade entre os cidados, precisaria acabarcom toda aquela nobreza e reduzi-la igualdade com os outros, porque existementre eles tantos extraordinrios, que as leis no bastam para reprimi-los, masprecisam de uma autoridade e um poder rgio para os reprimir. Ao contrrio, paraquerer um principado em Florena, onde h uma grandssima igualdade, seriaprimeiramente necessrio introduzir (ordinare) nela a desigualdade e criar umgrande nmero de senhores de castelos e vilas, os quais, em acordo com o prncipe,pudessem sufocar com suas armas e com os protetores deles a cidade e toda aprovncia. O prncipe sozinho, privado do apoio da nobreza, no pode sustentar opeso do principado: necessrio que exista entre ele e a massa do povo (universale)um meio que o ajude a sustent-lo. V-se isso em todos os Estados (stati)pertencentes a um principado e, sobretudo, no reino da Frana, onde os gentis-homens dominam a populao; os prncipes, os gentis-homens; e o rei, os prncipes.Mas, porque criar um principado onde ficaria bem uma repblica, e uma repblicaonde ficaria bem um principado, coisa difcil, desumana e indigna de qualquerum que deseja ser reputado piedoso e bom, deixarei de refletir sobre o principadoe falarei da repblica; tanto porque Florena mais apta para adotar esta forma degoverno, quanto porque se sabe que Vossa Santidade est a isso muito disposto. Ese pensa que Vossa Santidade demoreis a faz-lo, porque vos agradaria encontrarinstituies (una ordine) graas s quais vossa autoridade permanecesse grandeem Florena e vossos amigos vivessem em segurana. E parecendo-me t-laspensado, desejei que Vossa Santidade conhecesse minhas concepes a fim deque, se encontrar nelas alguma coisa verdadeiramente boa, vos sirvais delas e quepossais ainda conhecer meu devotamento a vosso respeito. Vereis como no meuprojeto de repblica vossa autoridade no somente se mantm, mas aumenta; vossosamigos permanecem honrados e seguros nela; e todos os outros cidados possuemevidentes razes de contentar-se.

    13. Rogo com ardncia e reverncia Vossa Santidade que no critique e

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    NICOLAU MAQUIAVEL

    nem louve meu discurso antes de hav-lo lido completamente: vos rogo igualmenteque no vos assusteis com algumas modificaes que introduzi sobre asmagistraturas, pois onde as coisas no esto bem ordenadas, menos permanece dovelho e tanto menos permanece do mau.

    14. Aqueles que ordenam uma repblica devem dar lugar a trs categoriasdiferentes de homens, que existem em todas as cidades; isto , os primeiros, osmdios e os ltimos. Mesmo que exista em Florena a igualdade que acima foimencionada, no obstante existem nela alguns cidados de esprito elevado, aosquais parece que merecem preceder aos outros. necessrio satisfaz-los ao ordenara repblica: o regime (stato) anterior arruinou-se por nenhuma outra razo senoporque no satisfez tal humor.

    15. A estes homens assim feitos no possvel satisfazer se no se lhesconfere a majestade aos primeiros cargos da repblica, uma majestade que sejasustentada por suas pessoas.

    16. No possvel conferir esta majestade aos primeiros cargos do Estadode Florena, a no ser mantendo a Senhoria e os Colegiados nos termos em queestavam antes. Como, devido maneira pela qual so eleitos, nestes organismosno podem tomar assento seno raramente homens sbios e reputados, convmque esta majestade do Estado seja colocada mais abaixo e em posies laterais, ouque seja devolvida aos homens privados: o que, contudo, contrrio a toda ordempoltica. Tambm necessrio corrigir estas disposies e satisfazer ao mesmotempo por esta correo as mais altas ambies que se encontram na cidade. E omodo este.

    17. Extinguir a Senhoria, os Oito da Prtica e os Doze Bons Homens; e,para dar mais dignidade ao governo, no lugar daqueles colocar sessenta e cincocidados com idade de quarenta e cinco anos completos, dos quais cinqenta etrs seriam tomados dos ofcios maiores e os outros doze dos ofcios menores.Eles seriam encarregados de dar vida ao governo, da maneira que explicarei.

    18. Nomear entre eles um Gonfaloneiro da Justia por dois ou trs anos,se no se quiser cri-lo por toda vida e os sessenta e quatro cidados outroscidados se dividiriam em duas partes: a metade governaria um ano com oGonfaloneiro; a outra metade no outro ano; e eles exerceriam assim sucessivamentesuas funes na ordem que indicarei: eles seriam chamados de Senhoria.

    19. Os trinta e dois cidados que governariam um ano se dividiriam emquatro partes; os oito de cada parte residiriam trs meses no palcio com oGonfaloneiro e assumiriam as magistraturas com as cerimnias costumeiras ecumpririam os encargos que a Senhoria faz hoje sozinha e depois, com os outros,em conjunto com os trinta e dois, teriam toda aquela autoridade e exerceriamtodos aqueles encargos que cumpre hoje a Senhoria, os Oito da Prtica e osColegiados que acima foram abolidos: este, como disse, seria o chefe supremo, e

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    Discurso Sobre as Coisas Florentisnas Depois da Morte de Loureno Medici o Jovem

    a primeira magistratura do Estado. Se considerarmos com ateno esta instituio(ordine), se reconhecer que devolvi aos altos funcionrios da repblica a dignidadee a reputao que lhes convm. Se ver que os homens poderosos e respeitadosocuparo sempre os primeiros cargos e que tambm preveni as intrigas dos homensprivados, o que eu disse acima que o perigo mais pernicioso em uma repblica.Com efeito, os trinta e dois que no ocupariam naquele ano as magistraturas,poderiam sempre governar atravs de seus conselhos e sua vigilncia e VossaSantidade teria o meio, nesta primeira eleio, de introduzir nela todos os seusamigos e partidrios, como abaixo se dir. Mas vamos agora ao segundo nvel doscargos do governo (stato).

    20. Eu creio que necessrio que, do mesmo modo como existem trscategorias dos homens, como acima se disse, existam trs nveis de cargos emuma repblica, e no mais. por isso que creio que seja bom extinguir estaconfuso de Conselhos que existiam outrora na vossa cidade. Estes foram criados,no porque eram necessrios para a vida civil, mas para ocupar mais cidadosentretendo-os com coisas que, de fato, no importavam coisa alguma ao bem-estarda cidade, porque todos podiam ser corrompidos pelas faces.

    21. Querendo, portanto, reduzir a repblica a apenas trs classes, meparece que se deve abolir os Setenta, os Cem e o Conselho do Povo e da Comuna;e estabeleceria no lugar deles o Conselho dos Duzentos, no qual cada membroteria no mnimo quarenta anos completos; as artes maiores forneceriam para elecento e sessenta, e as artes menores quarenta e nenhum membro poderia ser dossessenta e cinco. Eles seriam nomeados por toda vida e se chamaria Conselho dosEleitos. Este Conselho seria encarregado junto com os Sessenta e Cinco de todasaquelas funes atribudas hoje aos conselhos dos quais acabei de falar, e queseriam abolidos em virtude desta nova instituio. Este segundo conselho do Estadoseria nomeado inteiramente por Vossa Santidade. Para fazer isto, e para manter eorganizar as supracitadas instituies (ordini) e aquelas das quais falarei abaixo,e para assegurar enfim em Florena a autoridade de Vossa Santidade e de seusamigos, a assemblia extraordinria [Bala] conferiria Vossa Santidade e aoreverendssimo cardeal Medici, durante a vida de ambos, o exerccio completo dosmesmos direitos que os de todo povo de Florena.

    22. Vossa Santidade teria o direito de convocar de tempos em tempos aAssemblia Extraordinria [Balia], e de nomear os Oito da Guarda.

    23. Alm disso, para maior segurana do regime [stato] e dos amigos deVossa Santidade, que se divida a ordenana da infantaria em duas companhias,junto s quais Vossa Santidade nomearia de sua autoridade dois comissrios acada dois anos, um por companhia.

    24. V-se, assim, pelas coisas supracitadas, como se deu satisfao aduas categorias de homens; como se reforou vossa autoridade e a de vossos

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    NICOLAU MAQUIAVEL

    amigos naquela cidade, uma vez que tendes nas mos as foras militares e ajustia criminal, porque vs inspirais as leis e porque os chefes do Estado sointeiramente vossos.

    25. Fica ainda por satisfazer a terceira e ltima categoria de homens,que composta da massa [universalit] dos cidados. A esta no se dar jamaissatisfao (e quem pensa de outro modo no sbio), a menos que se entregue ouse prometa entregar a eles sua autoridade. Uma vez que, entregando-a de uma svez, no existiria mais segurana para vossos amigos nem a manuteno daautoridade de Vossa Santidade, necessrio entreg-la em parte, e em parte prometerentreg-la, de modo que estejam inteiramente certos de a recobrar. Julgo, pois,que seja necessrio reabrir a sala do Conselho dos Mil; ou ao menos a dosSeiscentos, os quais distribuem, naquele modo que j o distribuam outrora, todosos ofcios e magistraturas, exceto os pr-nomeados Sessenta e Cinco, os Duzentos,e os Oito da Guerra: estes devem ser nomeados por vs durante a vida de VossaSantidade e do Cardeal. A fim de que os vossos amigos estejam seguros, ao seapresentar votao do Conselho, de ser eleitos, que Vossa Santidade designeoito escrutinadores que, em segredo, possam dar seus votos a quem quiserem, eno o tirar de ningum. Para que a massa [universale] acredite que foram colocadosnas listas aqueles que ela elegeu, que se permita que o Conselho mande de direitodois cidados eleitos para ele, para serem testemunhas da confeco das listas.

    26. Sem satisfazer a massa [universale], jamais se fez qualquer repblicaestvel. No se satisfar jamais a massa dos cidados florentinos, se no se reabrira sala. Assim convm, se quiser fazer uma repblica em Florena, reabrir esta salae restituir esta coordenao massa. Que Vossa Santidade saiba que qualquer umque pensar em lhe tomar o poder [stato] pensar antes de qualquer outra coisa emreabri-la. Por isso, o melhor partido que vs a abris nos termos e na maneirasegura e retirar a quem seria vosso inimigo a ocasio de reabri-la para vossodesprazer, para a destruio e runa de vossos amigos.

    27. Organizando desta maneira o regime [stato], no seria necessrioprever outras se Vossa Santidade e monsenhor reverendssimo vivessem para sempre;mas, como havereis de terminar um e outro, e para que permanea uma repblicaperfeita e consolidada em todas as suas partes, e que cada um entenda que venhaa ser assim, a fim de que a massa se satisfaa (por isto que se lhe deve entregar, eque por isto que se lhe deve prometer), necessrio que as coisas se organizemdo seguinte modo:

    28. Os dezesseis gonfaloneiros das companhias do povo seriam eleitosdo mesmo modo e pelo tempo que o foram at agora; eles seriam nomeados porVossa Santidade ou pelo Conselho, como a eles agradar mais; se estabeleceriamdiferentes excluses a fim de que existisse um maior nmero de cidados quepudesse pretend-lo; nenhum dos gonfaloneiros, por exemplo, poderia ser tomado

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    Discurso Sobre as Coisas Florentisnas Depois da Morte de Loureno Medici o Jovem

    entre os Sessenta e Cinco. Uma vez eleitos, se nomearia entre eles quatro prepostosque estariam em funo por um ms, de tal modo que ao fim de sua magistraturatodos os gonfaloneiros tivessem sido prepostos. Dito de outro modo: destes quatro,haveria um que faria residncia por uma semana no palcio com os nove Senhoresresidentes; e assim, ao final do ms, tivessem feito residncia todos os quatro. OsSenhores residentes no palcio no poderiam fazer coisa alguma com um delesausente; este preposto no teria voz deliberativa, e seria unicamente testemunhadas deliberaes deles; mas ele teria o direito de oposio, e poderia exigir quequesto fosse submetida deliberao dos trinta e dois senhores. Estes igualmenteno poderiam deliberar coisa alguma sem a presena de dois dos ditos prepostos,que teriam de outro lado o direito de parar uma deliberao que tratasse deles, eexigir que fosse levada ao Conselho dos Eleitos. O Conselho dos Duzentos tambmno poderia fazer coisa alguma sem a presena ao menos de seis dos dezesseis,com dois prepostos, os quais, ali ainda, no teriam qualquer autoridade, e teriamunicamente o direito, desde que trs dentre eles fossem da mesma opinio, delevar a questo deste Conselho dos Eleitos ao Grande Conselho; e este ltimoconselho se reuniria apenas enquanto se encontrassem presentes dozegonfaloneiros, e entre estes ao menos trs prepostos. Estes iriam ento ao votocomo todos os outros cidados.

    29. H duas razes que tornam necessrio que, aps a morte de VossaSantidade e monsenhor reverendssimo, se estabelea esta ordem de deliberao:se acontecer que a Senhoria ou outro Conselho, no deliberando por desunio oupraticando coisas contra o bem comum por malcia, til que tenha depois delesum poder que possa lhes tomar a autoridade da qual abusaram e a confira a outros,pois no bom que uma nica espcie de magistrados ou de Conselho possadecidir uma ao sem haver quem possa corrigir aquela mesma ao. No bomtambm que os cidados que tm o governo [stato] nas mos, no tenham quem osvigie e os faam desistir das obras no boas, cortando deles aquela autoridade queusaram mal. A outra razo que, abolindo a eleio da Senhoria tirando da massa[universalit] a esperana de chegar a esta dignidade, necessrio compensar estaperda dando-lhe um poder semelhante quele que lhe foi retirado: e este poder quelhe atribuo mais real, mais til repblica e mais honroso do que aquele que elatinha. Seria til, de fato, j no presente nomear estes gonfaloneiros a fim de habituara cidade s novas leis [ordini], mas no lhes permitir que exeram seu direito deoposio sem a permisso de Vossa Santidade, que se serviria deste meio pararealizar com mais segurana aquelas aes do governo [stato] necessrias manuteno de sua autoridade.

    30. Alm disso, para consolidar a repblica depois da morte de VossaSantidade e do monsenhor reverendssimo, para no deixar nenhuma parte daconstituio imperfeita, necessrio instituir um rgo de apelao, que seria

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    levado diante dos Oito da Guarda e da Guerra e diante dos trinta cidados extradosao mesmo tempo dos duzentos e dos sessenta e cinco; em virtude deste apelo, oacusador e o acusado seriam obrigados a comparecer num tempo limitado. No sepoderia recorrer a ele durante vossa vida sem vossa permisso.

    31. Este recurso necessrio em uma repblica onde um pequeno nmerode juzes no ousa punir os homens poderosos; necessrio, pois, fazer concorrerao seu julgamento muitos cidados, para que os autores do juzo sejam ocultadospelo nmero, e que cada um possa assim negar que tenha tomado parte dele.Serviria ainda tal recurso, durante as vossas vidas, a fazer com que os Oitoexpedissem as causas e julgassem com mais eqidade, por medo de que vs nopermitireis o recurso. Para evitar que se recorresse por qualquer coisa, se poderiadeterminar que no se poderia recorrer por coisa pertinente a fraudes, que noimportasse no mnimo em cinqenta ducados e nem por coisa pertinente violnciaque no fosse seguido ou de fratura de membros ou efuso de sangue, ou que aperda acarretasse dano de no mnimo cinqenta ducados.

    32. Parece-nos, considerando essas instituies [ordine], que comorepblica, sem a Vossa Autoridade, no lhe falta coisa alguma, em funo do queacima foi longamente discutido e exposto. Se as considerarmos vivendo VossaSantidade e Monsenhor Reverendssimo, uma monarquia; pois vs comandais asforas armadas, comandais os julgamentos criminais, inspirais as leis; eu novejo nada que se pode desejar a mais em uma cidade. No se v ainda o que osvossos amigos, bons e desejos de viver de suas rendas, poderiam temer, poisVossa Santidade conserva uma grande autoridade e porque eles ocupam os primeiroscargos do governo. No vemos ainda como a massa [universalit] dos cidadosno deveria estar satisfeita, uma vez que a ela foi entregue parte da distribuiodas magistraturas porque ela v cair a outra parte pouco a pouco em suas mos.Vossa Santidade poderia algumas vezes entregar ao Conselho e algumas vezesreservar a si mesmo a nomeao dos lugares vagos nos Sessenta e Cinco e Duzentos.Estou certo que em pouco tempo, graas sua autoridade, Vossa Santidadecomandaria tudo; que o regime [stato] atual tomaria neste ponto a forma do antigoe esta a forma do novo, que assim se transformariam em uma mesma coisa e tudoisso em um corpo, para a paz da cidade e glria perptua de Vossa Santidade, poisvossa autoridade poderia sempre remediar os defeitos que pudessem surgir.

    33. Eu creio que a maior honra que podem obter os homens aquela quesua ptria lhes confere voluntariamente: creio que o maior bem que se possa fazer,e o mais agradvel a Deus, aquele que se faz sua ptria. Alm disso, nenhumhomem mais exaltado por alguma ao sua, do que o so aqueles que tmreformado as leis e as instituies das repblicas e dos reinos. Depois dos deuses,estes so os primeiros dignos de louvor. E justamente porque foram poucos osque tiveram ocasio de faz-lo e muito raros os que souberam faz-lo, pouqussimos

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    Discurso Sobre as Coisas Florentisnas Depois da Morte de Loureno Medici o Jovem

    so aqueles que o fizeram. Esta glria foi to estimada pelos homens que noalmejavam outra coisa seno esta glria, que no tendo podido fazer uma repblicaem ato, a puderem fazer por escrito, como Aristteles, Plato e muitos outros.Eles quiseram mostrar ao mundo que, se eles no puderam, como Slon e Licurgo,fundar uma sociedade civil, no foi por causa da ignorncia deles, mas devido impotncia de coloc-lo em ato.

    34. O cu no d, portanto, maior dom para um homem, nem lhe podemostrar via mais gloriosa do que esta. E entre tantas felicidades que Deus conferiu vossa casa e Vossa Santidade em pessoa, esta a mais elevada, pois vos d opoder e a ocasio de vos tornar imortal, e superar largamente por esta via a glriade vosso pai. Considere, portanto Vossa Santidade que ao manter a ordem dascoisas que subsiste atualmente, ao primeiro acidente, ela expe vossa autoridadea mil perigos e mesmo mil incmodos insuportveis, dos quais o MonsenhorReverendssimo Cardeal, que acaba de passar vrios meses em Florena, podervos dar alguma idia. Os incmodos nascem de uma parte do fato de muitoscidados serem presunosos e insuportveis em seus pedidos, e de outra parte dofato de que a muitos cidados no lhes parece viver seguros no estado atual dascoisas e no fazem outra coisa seno tentar organizar o governo. Alguns gostariamque se alargasse e outros que se restringisse o nmero de governantes, e ningumd os meios de o alargar ou restringir. Jamais se viu uma mistura de idias maisconfusa; eles sentem que a ordem atual no assegura sua salvao; eles no sabemcomo poderiam regul-la, e desconfiam de quem poderia ensin-los. Com a confusoque eles fazem esto prontos para confundir qualquer crebro bem-dotado.

    35. Para querer, portanto, fugir de todos estes incmodos, existem apenasduas maneiras: ou deixar de dar audincia a estas pessoas e no as encorajandonem a reclamar, mesmo ordinariamente, nem de falar sobre o que no soperguntados, como fazia o duque de ilustre memria; ou ento ordenar o Estadode tal modo que ele se administre por si mesmo, e que basta Vossa Santidadevigi-lo com apenas um olho. Quanto a estes modos, este ltimo vos libera dosperigos e das preocupaes; o primeiro, das preocupaes unicamente. Mas pararetornar aos perigos a que se expe permanecendo assim, eu quero fazer umprognstico. Que sobrevindo um incidente e que a cidade no esteja reordenadade uma outra maneira, advir uma ou outra das coisas seguintes, ou as duas aomesmo tempo. Ou aparecer um chefe proveniente repentinamente das desordens,para defender o Estado pelas armas e a violncia; ou uma parte correr para abrira sala do Conselho e tomar a outra parte como sua presa. Qualquer que sejadestas duas partes que advier (que Deus nos guarde), que Vossa Santidade penseem quantas mortes, em quantos exlios, em quantas extorses resultariam dela, oque faria morrer de dor o mais cruel dos homens, para no falar de Vossa Santidade,que muito misericordiosa. No h outra via para fugir destes males, do que fazer

  • 20 T R A D U O Tempo da Cincia (15) 30 : 9-20, 2 semestre 2008

    NICOLAU MAQUIAVEL

    com que as instituies [ordini] da cidade possam consolidar-se por si mesmas; eestaro consolidadas quando todos colocaram as mos nelas; e quando cada umsouber aquilo que tem a fazer e em quem confiar; e quando nenhuma categoria decidados desejar mud-las, seja por medo de si ou por ambio.

    NOTAS

    1 Ttulo original: Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medices. Autor:Nicolau Maquiavel. Para facilitar a localizao, introduzimos a numerao dos pargrafos. Amotivao de Maquiavel para a redao deste trabalho foi a morte do neto de Loureno Medici omagnfico e herdeiro da dinastia Loureno Medici o jovem - Duque de Urbino -, a quemMaquiavel dedicara sua obra O Prncipe. A poderosa famlia Medici contava com ele para acontinuidade da influncia sobre a poltica florentina. Em 1519, com a morte acidental do Duque, todo o sistema mediciano que entra em crise. A famlia consulta, ento, alguns intelectuaisflorentinos com o objetivo de lhes solicitar sua opinio sobre o regime que seria necessrioadotar em Florena. O Discursus a resposta que, em 1520, Maquiavel dirige ao papa Leo X(Giovanni Medici) a pedido do cardeal Julio Medici, futuro papa Clemente VII.

    2 Traduo: Joel Csar Bonin/Unioeste. Reviso: Jos Luiz Ames/Unioeste.