Discurso Lacan aos AE e AME

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DISCURSO DE JACQUES LACAN AOS AE E AME DA ECOLE FREUDIENNE DE PARIS, EM 6 DE DEZEMBRO DE 1967 (VERSÃO ORAL)I Tradução: Analucia Teixeira Ribeiro. A imisção, operada no ano passado, da função do ato no que eu teria chamado de nossa rede, se o termo não parecesse agora reservado a um outro emprego: digamos no texto de que é tramado meu discurso, essa imisção do ato era pois necessária para que fosse publicada minha Proposição de 9 de outubro, que só será um ato a partir de suas conseqüências. As primeiras a serem produzidas são de natureza a esclarecê-Ia, se se proceder por ordem. Eu o enderecei a um círculo, o dos presentes, não escolhidos ad hoc, mas já constituído segundo aquilo que preside a qualquer agregação social: toda classe caracteriza-se aí pelo fato de que nela se é mais igual do que em outros lugares. O humor que se encontra nessa maneira de se exprimir, deveria eliminar uma desvantagem prática. Qualquer que seja a aproximação da triagem da qual saíram as duas classes dos AE e AME, é preciso aceitá-Ia, para que elas funcionem como tais. Tanto mais que essa triagem, ou seja, o anuário de 1965, é o primeiro produto da Escola tomada como tal, aquele sobre o qual cabe a pergunta se deve permanecer o único a trazer sua marca. Essa triagem supõe uma referência à experiência de cada um, enquanto avaliada pelos outros. Uma vez operada essa triagem, qualquer uso dessas classes implica a igualdade suposta e a equivalência eventual, qualquer uso cortês, bem entendido. É inútil pois nos enchermos os ouvidos com os direitos adquiridos na "escuta", como se diz, com as virtudes do controle e com o respeito pela clínica. Qualquer um que pretenda representá-Ios, não pode se vangloriar disso, pelo menos aqui, mais do que qualquer outro do seu nível. Em que (que as pessoas me desculpem por associar a isso iniciais fáceis de serem preenchidas), em que a Sra. A. e a Sra. D. seriam desiguais do Sr. P. e do Sr. V, no que se refere à escuta, aos controles e à experiência clínica que têm em seu ativo? Se isso, penso eu, que ninguém sonharia em contestar aos outros, admite que prevaleça em alguns uma estruturação mais analítica, é preciso saber dizer de onde parte essa estruturação que ninguém poderia pretender que seja um dado - primeiro ponto; e segundo ponto: fazer com que essas classes sirvam, elas próprias, para pôr à prova essa repartição - de modo que seu efeito prevaleça para o que virá no futuro. Que a distinção desses tempos não tenha sido respeitada até agora, é precisamente o que prova que se possa levantar a questão de uma experiência qualificada. E dizer que isso é privilégio de nossa Escola é, evidentemente, falso. 23

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DISCURSO DE JACQUES LACAN AOS AE EAME DA ECOLE

FREUDIENNE DE PARIS, EM 6 DE DEZEMBRO DE 1967(VERSÃO ORAL)I

Tradução: Analucia Teixeira Ribeiro.

A imisção, operada no ano passado, da função do ato no que eu teria chamadode nossa rede, se o termo não parecesse agora reservado a um outro emprego:digamos no texto de que é tramado meu discurso, essa imisção do ato era poisnecessária para que fosse publicada minha Proposição de 9 de outubro, que só seráum ato a partir de suas conseqüências. As primeiras a serem produzidas são denatureza a esclarecê-Ia, se se proceder por ordem.

Eu o enderecei a um círculo, o dos presentes, não escolhidos ad hoc, mas jáconstituído segundo aquilo que preside a qualquer agregação social: toda classecaracteriza-se aí pelo fato de que nela se é mais igual do que em outros lugares. Ohumor que se encontra nessa maneira de se exprimir, deveria eliminar umadesvantagem prática.

Qualquer que seja a aproximação da triagem da qual saíram as duas classesdos AE e AME, é preciso aceitá-Ia, para que elas funcionem como tais. Tanto maisque essa triagem, ou seja, o anuário de 1965, é o primeiro produto da Escola tomadacomo tal, aquele sobre o qual cabe a pergunta se deve permanecer o único a trazersua marca.

Essa triagem supõe uma referência à experiência de cada um, enquantoavaliada pelos outros. Uma vez operada essa triagem, qualquer uso dessas classesimplica a igualdade suposta e a equivalência eventual, qualquer uso cortês, bementendido.

É inútil pois nos enchermos os ouvidos com os direitos adquiridos na "escuta",como se diz, com as virtudes do controle e com o respeito pela clínica. Qualquerum que pretenda representá-Ios, não pode se vangloriar disso, pelo menos aqui,mais do que qualquer outro do seu nível.

Em que (que as pessoas me desculpem por associar a isso iniciais fáceis deserem preenchidas), em que a Sra. A. e a Sra. D. seriam desiguais do Sr. P. e do Sr. V,no que se refere à escuta, aos controles e à experiência clínica que têm em seu ativo?

Se isso, penso eu, que ninguém sonharia em contestar aos outros, admite queprevaleça em alguns uma estruturação mais analítica, é preciso saber dizer de ondeparte essa estruturação que ninguém poderia pretender que seja um dado - primeiroponto; e segundo ponto: fazer com que essas classes sirvam, elas próprias, para pôr àprova essa repartição - de modo que seu efeito prevaleça para o que virá no futuro.

Que a distinção desses tempos não tenha sido respeitada até agora, éprecisamente o que prova que se possa levantar a questão de uma experiênciaqualificada. E dizer que isso é privilégio de nossa Escola é, evidentemente, falso.

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A invocação maciça de não sei qual garantia superficial (não me chegou oeco de que venham a fazer a ameaça de algum incidente próprio a repercutir naimprensa? Saibam pois que se a coisa ocorrer, ela não terá surpreendido todo omundo), essa invocação só tem alcance como intimidação, não como ordem.

O que é impróprio não é que se atribua a si mesmo, em particular, umasuperioridade de escuta, nem que se entenda as costas aos ataques a que todaterapêutica está exposta, por suas margens legais, é que essas pretensões e essestemores sirvam de argumentos. Quando aquilo de que se trata é da experiência, pelaqual temos de responder, como também pelo estatuto legal, com o qual entendemosnos cobrir.

Denunciarei, nesse desvio, essa maneira de embromar desse "ser o único"que é a enfatuação mais comum em qualquer experiência e familiar ao médico,cobrindo-o com o estar só, que para o analista constitui propriamente o despojamentoque ele renova a cada vez que começa seu ofício, ou melhor, fazendo como se ser oúnico não fosse senão a casula digna de revestir sua solidão oficiante.

Ora, não é nada disso, o que quer dizer que ele não é mais do que o i(a), quefunda o eu e toda relação narcísica, capa desse objeto a, onde o sujeito descobresua miséria essencial. Isso, mesmo que o a se precipite aí por Ocasião dodesalojamento, fonte de angústia, como faria o bernardo-eremita, procurandoqualquer concha que lhe sirva de camuflagem e abrigo.

Esta é uma função que não é orgânica, e pergunto-me que distração, oumesmo que astúcia pode animar uma homilia que joga com o apelo ad hominem,tão pouco digno de nosso contexto. Talvez a intenção de me proteger, a mim mesmo,quem sabe? Contra mim mesmo ou contra a comunidade, afetando-me com o malde todos. Porque eu me proclamei só numa ocasião, nomeadamente no ato defundação desta escola: só, escrevi, como sempre estive em minha relação à causapsicanalítica.

E então? A partir do instante em que um só outro se juntou a mim, como poracaso aquele cujo discurso interrogo hoje, eu não estava mais só: aqueles que estãoaqui ainda me dão testemunho disso.

O que esse único de um ato decisivo tem a ver com o único que se crê estarpara valer na experiência? Eu não utilizaria a dos outros? Quem pode crer até mesmoque eu me julgue o único a saber o que é a psicanálise? Justamente, o fato de eu meexplicar prova o contrário. Habitualmente, é por ter a boca cheia da escuta que se éO único a apreciar corretamente, que não se pode mais dizer nada além disso.

Não há nem mesmo homossemia entre le seul (o único), e seul (só). Quantoà solidão, à qual justamente eu renunciava, ao fundar a Escola, o que tem ela a vercom a solidão com a qual se purifica sempre, de novo, o ato psicanalítico, senão porencontrar aí exemplo para se dispensar do exame de sua relação a esse ato.

Pois esse ato do qual, na semana passada, no local público onde tem lugarmeu discurso, sem mais delongas eu tracei o que entendo comunicar, interrogando-o por seu fim, nos três sentidos que dá a esse termo: visada ideal, conclusão e aporiade seu relato, não é um fato notável - ter sido notado pelo mais ínfimo dosinteressados, que os mais eminentes a terem criado um hábito, entendo aí um hábitopara os outros, de sua presença nesse discurso, se tenham ausentado em conjunto?

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Enquanto ao menos aqueles a quem minha proposição apaixona, ao ponto de fazê-los apelar para recursos que chegam até ao indistinto que acabo de desenhar, teriaminteresse em entender o que de uma articulação patente poderia constituir a fraquezaou o ponto de refutação.

Desta vez, é por eu não ser o único a me inquietar com esse ato, que merecusam o que é devido, ao único que corre o risco falar sobre isso. Só perguntei asrazões na proporção de uma sondagem. Que me poupem de falar dos resultados: érealmente de um ato que se trata, de um ato tão psicanalítico quanto pode ser um atofalho, se eu abrir a questão de saber se a recusa de prestar contas dele lhe é ou nãoinerente.

Questão que eu deixo aberta em meu discurso até à conclusão, que tambémé prova. Pois não creio que se possa me retorquir dizendo que por estar aqui presentese consagraria um ato, aquele do fato de eu articulá-lo aqui. Um ensinamento não éum ato, como o é minha Proposição. Isso porque ele só se dirige a vocês por seruma tese publicamente aberta. O ato começa com aqueles que se esquivam depoderem apresentar aí a antítese.

Minha Proposição de 9 de outubro foi ato, por requerer de vocês uma resposta,e sem demora. Pode-se lamentar essa pressa e ver nisso um vício de forma, se foresquecido o que eu disse da função da pressa em lógica.

Ela revela a necessidade de um certo número de efetuações para que umaconclusão seja válida. E demonstra até mesmo que a própria legitimidade dessaconclusão não pode ser abstraída dos fracassos que lhe oferecem de fato os temposde sua efetuação.

Será fácil aplicar, quando vocês quiserem, sobre a situação presente, meusofisma dito da asserção da certeza antecipada - sustentado pela fábula de meus'três prisioneiros submetidos à prova de justificar de qual referência trazem a marca(disco branco: disco negro? um dos três, um dos dois), depois de terem feito aaposta sobre o que trazem os outros.

Isso não tem nada de sadiano, pois não respondendo ao desfio, não se expõea nenhum dano maior do que o do personagem distraído da história, que depois deter contado as barras da grade que o separavam do Obelisco, numa noite, na praçada Concorde, e de ter encontrado aquela que ele tinha marcado no início, exclamou:"Aqueles sacanas me trancaram aqui".

Onde está o dentro e onde está o fora? os prisioneiros, quando saem, fazema mesma pergunta, vocês sabem disso.

Eu a proponho a alguém que, numa distração análoga (bem antes de minhaProposição) me fez a confidência da vantagem que ele teria no mundo apenas porinformar por que ele se teria separado de mim, caso esse seu desejo prevalecesse.

Que ele saiba, nessa sua dificuldade, que eu gosto o bastante de sua pessoapara pensar nele quando deploro, como me aconteceu recentemente, ter tão poucagente com quem compartilhar minhas alegrias, quando me acontecem algumasnovas.

Isso não é nenhuma digressão. Mas sim uma maneira de reduzir minhaProposição à sua medida, que não é fina, pode-se dizer, mas tratando-a como tal,deixa-se escapar justamente Sua finura, que faz toda a diferença.

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Considerando-a como ato, ela não tem nenhuma pretensão a ser psicanalíticaem segundo grau ... Não é inútil usar aqui essas fórmulas que, como balizas em meudiscurso, encontram seu fio em sua seqüência - colocando-se de tal modo que nolimiar deste ano lembrei que se não há Outro do Outro ( Outro, com maiúscula,entenda-se), como não há verdadeiro sobre o verdadeiro, também não poderia haverato do ato.

Minha Proposição reside na articulação de um ato cuja dimensão, não nosesqueçamos disso, revelou-se por ele nunca ter tanto êxito como quando fracassa, oque não implica que todo fracasso assinale essa dimensão num ato.

Minha Proposição não ignora que o discernimento a que faz apelo essa não-reversibilidade, só pode operar-se submetendo-se a essa própria dimensão, e bemse vê, pela acolhida que ela recebe, que ela não escapa à sua questão de base.

Que ela a leve para o ato psicanalítico, tomado no sentido de que é o atoinstituidor do psicanalista, pouco muda, se vocês me seguirem nessa observação deque esse ato não difere do primeiro senão por manter sua falta, justamente por tertido êxito. Pois não é o caso de ter tido êxito como psicanalisante que é supostolevar ao desejo do psicanalista, com os paradoxos que ele demonstra.

Esses paradoxos são os que meu falso desvio acima perfilou como um lugardo qual se está fora, sem pensar, mas onde se reencontrar é ter saído de vez, isto é,essa saída, não tê-Ia tomado senão como entrada, e ainda não qualquer uma: esselugar que traça bem a via do ato psicanalítico. E ainda, sua descrição no infinitivoindica que ele deixa em suspenso o desejo, desejo que no entanto se define pelosentido desses infinitivos, pelo menos tão longe quanto eu pude dizê-lo.

É aí que um controle não é demais: não controle de caso, mas do sujeito (eusublinho) único em causa no ato, enquanto o desejo (do psicanalista) se deveinteiramente ao suporte da demanda que o assedia, a fim de nela se encontrar.

Desse desejo, só podemos teorizar a necessidade. Ele deve ser tomado naprática para satisfazer a essa necessidade. Sua correção permanece à vontade dosujeito, que pode submeter-se de novo ao fazer do psicanalisante.

O controle que eu evoco não poderia pôr quem quer que seja de novo naberlinda, onde obteve seus galões. No entanto, aparentemente, é o fantasma contrao qual parecem ter-se edificado os primeiros impulsos de instituição, de onde secristalizaram aquelas geralmente aceitas.

Apenas isso pode explicar que nossa Escola, que se julga liberada disso, doconsentimento afirmado no que alguns só consideram como aforismos, conserveuma posição de se fechar, que parece ser a regra tão característica das manifestaçõesde uma opinião sobre um produto analítico em nossos círculos, sendo isso altamentenotável em qualquer debate, ainda que se qualificasse de científico ou fosse atémesmo probatório.

Daí esse estilo de invectiva, no sentido menos regulado, que tomam aí asintervenções, e o alvo aberto que aí se tornam aqueles que ainda não têm territórioreconhecido. Costumes tão incômodos para o trabalho quanto repreensíveis, dianteda idéia de uma escola, por mais simplória que ela se pretenda. Se aderir a umaEscola quer dizer alguma coisa, ela se acrescenta à cortesia que eu disse ser o laçomais estrito das classes, a confraternidade que faz sua reunião.

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É perfeitamente sensível, a partir do momento em que se está advertido, quenão só o ato psicanalítico se traduza aí em nota de hostilidade, mas que o tom seeleve, à medida de qualquer abordagem onde se pressinta, se ouso dizer, a retirada ...

O que minha proposição introduz nesse ato, é que se é notório que sair deleé entrar de novo, poderíamos certamente avançar mais, se nos fiássemos em suaestrutura.

Para isso bastaria, penso eu, prendê-I o numa rede mais séria. Vocês vêemem suma o quanto eu estou de acordo com essas palavras que pensam ser más paramim. Eu sustento a aposta desse uso - possível de desarmar. Pois não é a mim queele fere. Não falo do retomo do que chamam de meus aforismos, senão para assinalarque o autor da operação desperdiça aí uma palavra que eu julgava prometida porele a levar mais longe seu gênio.

Enquanto isso, é realmente em nome da garantia que ela acredita dever à suarede, no segundo sentido aqui em causa, isto é, àqueles cujo encargo didático elaassumiu, que num primeiro impulso, uma pessoa a quem devemos homenagempelo lugar que ela soube ocupar no meio psiquiátrico em nome da Escola, declaroudever considerar as seqüências que ela poderia dar à minha proposição. Aargumentação que se seguiu não passa de um parti pris: ela considera como certoque a didática será afetada com isso, mas por que no mau sentido? Ainda nãosabemos.

Não vejo nenhum inconveniente em que a coisa (a coisa da rede) seja clara,tanto mais que ela é reconhecida por toda parte como a praga da didática: consultemsua corajosa denúncia na literatura internacional, é uma coragem que não devetemer ter conseqüências.

Precisamente, parecia-me que minha proposição, em suas mais minuciosasdisposições, fazia obstáculo a isso. De modo que não me espanto com seu resultadonesse plano. O que deveria ser motivo de espanto é que não seja minha rede que meestrangule.

A "transferência plena", uma das palavras-chaves desse alarido, deve sertratada com um sorriso. Pois ela dá margem a tudo, e na verdade de negativo, e jádeu provas nesse campo onde o interesse não é de brincadeira.

Quando se está de fora, percebe-se só de ler tal libelo, que a rede, a minha,tem um sentido bem diferente e é o que me ajuda a retomar alegremente esse termo.Porque essa rede é armada, é escrita, preto no branco, da rue de Lil1e à rue d'Ulm.E então?

Não acredito no mau gosto de uma alusão a minha rede familiar. Falemosentão do meu bout d'Oulm' (pronunciado assim, faz pensar em Lewis Carroll).Será que estou propondo instalar meu bout d'Oulm no seio dos AE? E por que não?Se por acaso um bout d'Oulm se fizesse analisar? Nesse sentido, posso afirmar-Ihesque nenhum faz parte ainda da minha rede, nem está em instância.

Mas, evidentemente, a rede que existe aqui é de uma outra trama, e nãodepende nada menos de minha Proposição a expansão a ser obtida do atopsicanalítico.

Que meu discurso tenha retido sujeitos que não preparam nenhumaexperiência analítica, mostra que ele sustenta a prova de exigências lógicas, pelas

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quais esses sujeitos são formados. Isso sugere que aqueles que têm essa experiêncianão perderiam talvez nada em se formar pelas mesmas exigências, para com elasarmar sua "escuta", ou mesmo seu olhar clínico. A experiência, sobretudo, que saitão assegurada de seu eixo, estaria com isso talvez reforçada, mas ao mesmo tempomais manejável, mesmo que fosse apenas para a transmissão, ou quem sabe para amodificação, mas em todo caso para a discussão.

Não Ihes farei a injúria de acreditar que aqui possa ser evocado o interesseque meu discurso recebe de um público mais vasto ainda, em nome do benefícioque a Escola poderia tirar disso. Não é diante de vocês que vou me vangloriar deum sucesso cuja impureza eu fiz tudo para afastar de meu trabalho e que agora nãopode afetá-lo em nada. Mas esse interesse poderia inspirar-lhes a idéia de que aexpansão do ato analítico poderia, um dia, se fosse dissimulada a herança freudiana,tomar um efeito de rejeição numa região imprevista, onde os direitos de prioridadede nossa experiência não seriam automaticamente preservados. E de que é aindaisso que minha proposição previne mais depressa.

Pois a palavra não-analista volta à superfície para um ofício que eu conheço.Ela aponta aqueles que me ouvem, cada vez que meu discurso, numa encruzilhadada prática, precisa ter efeito sobre o ato psicanalítico. O "bando-de-Moebius", parachamá-Io pelo nome, é por enquanto um amontoado de não-analistas. Isso não égrave. Assim que a questão tiver sido resolvida pelo afastamento da ameaça, elenão terá mais do que um pequeno prêmio a pagar: não tentar dizer mais nada sobreo que quer que seja de analítico. De agora em diante, ele será formado de analistas.Se ele se separar de mim, poderá entrar para a IPA e continuar a usar meus termos,doravante desprovidos de qualquer conseqüência. Um pequeno voto, que digo eu,uma abstenção, uma desculpa dada no momento certo e ele entrará ali com todas asvelas desfraldadas. Nem mesmo é necessário um chefe. Poderiam todos já estar lá.

Mas que eles me desculpem. Eu Ihes darei daqui a pouco um meio bastanteseguro de voltarem a ser analistas e que terá a vantagem de ser inédito. Ele não seráreservado a eles: só penso neles por causa de seu infortúnio atual.

Quanto aos "não-analistas", aos quais minha Proposição teria por objetivoentregar o controle da Escola - escreveram isso - farei o mesmo que em relação àrede: aceitarei o desafio.

Na verdade, é bem esse o sentido de minha Proposição: quero colocar não-analistas no controle do que resulta do ato analítico, isso para detectar como, qualquerque seja seu talento, os "analistas" se arranjam para que não saia de sua experiêncianada além de uma produção estagnante, incomestível do lado de fora, uma teoriasempre mais regressiva, ou mesmo involutiva, no sentido de que ela evoca amenopausa de ambos os sexos, a mais perfeita fuga de todos os problemas do ato:na medida em que aí reside a chave de seu término e o fim a ser dado à psicanálisedidática, e que fora dessa abordagem é inútil esperar que ela estabeleça suaepistemologia.

Já disse o bastante nestas linhas para que se saiba que não se trata de modoalgum de analisar o desejo do analista, mas de registrar os efeitos de sua condiçãoprofissional sobre o ato fundamental onde esse desejo se manifesta, que é de aíentrar. Daí decorre que a primeira condição é decisiva, por ela interferir, desde a

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demanda inicial, de onde esse desejo tem de proceder, em sua procedência mesma:é o ideal representado pelo estatuto presente do analista.

A primeira análise didática que se apresentar sob esses auspícios de crítica,se encontrará abreviada da desvantagem que constitui sua atual demanda, pois aqueleque a empreender não terá como fim senão entender, no final, o que pode levaralguém até o ato psicanalítico, certo que estará de que por não estar ali, ele s6 terá,para cumprir sua tarefa, os pressupostos de ficção que o reduzirão à inoperância dopsicossociólogo e ao nível do estudo de mercado. Aquela demanda, o analista nãotinha de preocupar-se de frustrá-Ia. Ele terá muito a fazer gratificando-a em seufim, que é antes mítico. .

Mas a maneira pela qual, de acordo com essa tarefa, ele acumular experiência,escutar, clinicar, tomará para ele um outro valor.

Vocês vêem que não é para amanhã que se deve esperar a aproximaçãodesse ponto absoluto. Mas só o fato de colocá-lo introduz uma dimensão onde odesejo do analista, por suspender seu ato - pois é somente a falácia de sua satisfaçãoque ele tomará como referência - fará do não-analista o garante da psicanálise.Como ele deve sê-lo, nesse sentido. Eu espero dos não-analistas, na verdade, pelomenos que distingam o que são os psicanalistas hoje, isto é, que não usem o recursode serem analistas ao preço que mencionei acima.

Será impossível responder a uma tal demanda? que o digam, isso esclareceráo alcance das outras demandas, para elas mesmas. E isso remete a outros a criaçãode seu emprego.

No entanto, só o fato de que uma tal demanda possa ser fundada no exercíciode tal emprego bastaria para que todas as demandas de psicanálise didática sofressemuma correção inicial, pois se saberia que é em função de uma psicanálise em instânciade exame, e também ávida de renovação, que o psicanalista, mesmo consideradocomo entravado por um desejo desigual à prova do analisante, seria distinguido porjuízes advertidos sobre o estilo de sua prática e o horizonte que ele sabe reconhecerali, ao demonstrar seus limites: é o que eu chamo de AME.

Contudo, meu bando guarda um recurso aberto, do qual, espero, tiraráproveito: dar seqüência a meu discurso, isto é, ultrapassá-lo, ao ponto de torná-Ioobsoleto. Eu saberei enfim que o que fiz não foi em vão.

Enquanto isso, tenho de aturar estranhas músicas. É o caso da fábula quecorre por aí, do candidato que passa um contrato com seu psicanalista: "Você meaceita como me convier e eu o ajudo a subir. Tão forte quanto matreiro (quem sabeum desses normalistas? que "desnormalizariam" toda uma sociedade com seustruques clichês que têm todo o tempo de cozinhar em fogo brando, durante seusanos de indolência), ninguém viu nada, eu os embromo e você passa sem problemas".

Mirabolante! minha proposição não teria engendrado apenas essecamundongo, eu espero, em seu trabalho de roedor. Eu pergunto: esses cúmplicesque poderão eles fazer, a partir de então, a não ser uma psicanálise onde nem umapalavra poderá se furtar ao toque do verídico, pois qualquer enganação por sergratuita não dura muito? Em resumo, uma psicanálise sem meandros. Sem osmeandros que constituem o curso de toda psicanálise, pelo fato de que nenhumamentira escapa à vertente da verdade.

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Mas o que isso quer dizer, quanto ao contrato imaginado, se ele não mudanada? Que ele é fútil, ou então que mesmo quando ninguém fica sabendo, é tácito.Pois o psicanalista não está sempre, afinal de contas, à mercê do analisante, tantomais que o analisante não pode lhe poupar nada se ele tropeçar como psicanalista,e se ele não tropeçar, menos ainda. Pelo menos, é o que nos ensina a experiência.

O que ele não pode poupar-lhe é esse "des-ser" que o afeta ao término de cadaanálise, e que me espanta reencontrá-lo em tantas bocas desde a minha Proposição,como atribuído ao que conotei no passe com o termo "destituição subjetiva".

No entanto somos muito mais duros no ser, ninguém aqui sabe disso portanto,quando se abdica de ser sujeito. Vê-se que vocês nunca estiveram na guerra, vocêssão todos, num certo grau, filhos de Pétain, não tinham ainda nascido em 1914.Para vocês, isso é imemorial: resta porém um testemunho à altura, por não ser nemde um futurista que leu sua poesia, nem de um publicitário safado, reunindo umagrande tiragem: é Le guerrier appliqué, de Jean Paulhan. Leiam isso para saberqual o acordo do ser com a destituição do sujeito.

Eu perdi isso por muito pouco, mas tive vocês comigo do ano 60 a 63. Agente se sente bastante bem em nosso ser, quando alguém chamado peru (em inglês)"destaca do nosso discurso de dez anos, como se fosse a música de flauta destinadaa induzir nossos alunos à marca de identificação que sua perspicácia não deixouescapar: ou seja, o uso da gravata borboleta (sic, tenho testemunhas disso). Parauma destituição subjetiva, esta é uma que suscita o ser, podem crer. Provavelmente,também o ser daqueles que assistiam a isso, impávidos.

As referências que eu evoco não têm nada a ver com o desejo de ser analista.Eu não dou aqui o segredo da lábia a ser usada com os passadores.

Mas a segunda talvez exija um exame sobre a natureza do "des-ser" que seapresenta na ocasião. Pois não penso em extraí-lo do desejo do analista, mesmo queseja uma falsa dobra.

Vimos psicanalistas trempésí , como se exprimia esse psico-sociólogo - poisnão fui eu quem fez um tal ser funcionar em nosso meio - trempés no caldo de Kapo,provavelmente. Mas evocar os campos de concentração é grave, disseram-me.

Isso devolve ao seu lugar o discurso de Nacht sobre o ser e minha razão deobjetar a ele.

Fora isso, minha proposição é fascista, pelo menos a metáfora de alguémque tem essa experiência, ela trazia isso escrúpulos.

Acabemos com essas ninharias e com a admissão de Fliess, que minha idéiaimplicaria. O raciocínio ad absurdum tem seu preço.

Que Freud tenha feito o passe, este é um caso fora de controle e que pode,sem inconveniente, ser posto em dúvida. Ele não podia ser seu próprio passador.

Embora eu acredite nas lembranças tão precisas que a Sra Blanche Reverchon-Jouve às vezes me dá a honra de me confiar, tenho o sentimento de que, se os primeirosdiscípulos tivessem submetido a algum passador escolhido dentre eles, digamos, nãoseu desejo de serem analistas - noção que nem mesmo era perceptível então - se é quealguém a percebe ainda, mas somente seu projeto de sê-lo, o protótipo dado por Rankem sua pessoa do "eu não penso" poderia ter sido situado muito mais cedo em seu lugar,na lógica do fantasma. E a função do analista da Escola teria vindo à luz desde o início.

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Pois, afinal, é preciso que uma porta esteja aberta ou fechada, assim nosencontramos na via psicanalisante ou no ato psicanalítico. Pode-se fazer com quese alternem como uma porta bate, mas a via psicanalisante não se aplica ao atopsicanalítico, que é julgado em sua lógica por suas conseqüências.

Estou demonstrando que, cada vez que o psicanalista se interessa por umobjeto que lhe parece prevalente, ele é levado a declarar que esse objeto escapa àvia da análise (cf. Winnicott). Isso só é pensável, por causa do único ponto em queé legítimo: o psicanalista, enquanto tal, o ato psicanalítico.

A função, por exemplo, do narcisismo da pequena diferença, que Freudarticula como sendo por sua experiência irredutível, é perfeitamente analisável sefor relacionada com a função do objeto (a). O psicanalista, como se diz, aceita sermerda, mas não sempre a mesma. Isso é interpretável, com a condição de que eleperceba que ser merda é realmente o que ele quer, a partir do momento em que sefaz testa de ferro do sujeito-suposto-saber.

O que importa, portanto, não é esta ou aquela merda. Também não é qualqueruma. É que ele entenda que essa merda não vem dele, como também não vem daárvore que ela recobre no país abençoado dos pássaros. É o Peru" , dizem.

O pássaro de Vênus é cagão, isso é sabido. A verdade porém nos vem daspatas da pomba? , idéia engraçada. Não é razão para que o psicanalista se tome pelaestátua do Marechal Ney. Não, diz a árvore. Ela diz não, para ser menos rígida, efazer com que o pássaro descubra que ela continua sendo sujeito de uma economiaanimada pela idéia da Providência.

Vocês vêem que sou capaz de adotar o tom em uso numa assembléia deanalistas, quando se trata de assunto vital. Tomei um pouco de cada um daquelesque manifestaram sua opinião, com exceção da raiva, se ouso dizer - vocês verãocom o tempo: é o que permite ver se, como o lobo, ela está ali ou não está.

E concluindo, minha proposição adotada não teria mudado mais do que umfio de cabelo o eixo da formação do psicanalista. Ela teria sido suficiente, bastariaque fosse publicada. E permitiria um controle absoluto de seus resultados. Elarespeitava absolutamente os direitos da experiência.

Opõem-se a ela, não posso impô-Ia.Fina como um fio de cabelo, ela não terá de medir-se com a amplidão da

aurora. Bastaria que a anunciasse. Pois ela comporta, de suas dezessete páginas,quatorze (não sei por que esses números pareceram a alguém terem um sentidomístico), quatorze, eu dizia, de teoria da psicanálise didática, sobre as quais eu nãopeço outra opinião que não seja para uma réplica eventual, equivalente ou não.

Eu abro prioritariamente as cartas da Escola para a publicação desses enunciados- que constituirão, não a abertura, ela está feita, mas a entrada em funcionamento docartel sobre o qual puderam ironizar. Entretanto, eu asseguro que aqueles que fazemseus os fins que minha Proposição visava, podem contar com meu apoio.

Ouvi dizer que ela não tinha outro alcance além do político, e que era umaquestão de força entre alguns e eu. Não poderia ser questão de força para mim,como analista. Cabe àqueles que caem sob o golpe dessa força, se ela se persiste,saber se a aceitam ou se a recusam. Não estou aqui senão para manter a primaziados fins de minha Proposição, e opor-me ao que lhes fechasse qualquer acesso.

Documenros para uma Escola 111- um percurso de vinte anos

Há outros meios de prevenir isso.Anuncio a vocês a publicação de uma revista aberta a todos aqueles da Escola

que quiserem participar dela, nas condições que lhes serão apresentadas em seuprimeiro número. Essas condições, novas em nossa comunidade, parecem-me denatureza a eliminar o obstáculo grave à produção científica, cuja origem tentocircunscrever em meu discurso deste ano sobre o ato psicanalítico. Desde já, aqueles.em cujo trabalho tenho confiança - e nenhuma manifestação de opinião constituipara mim objeção - terão ai seu Jugar, se o õcseiercm.

O que é da ordem da informação que eu esperava dos passadores, não éimpossível de ser recolhido ao lado do funcionamento estatutário dos júris.

Estes começarão a funcionar segundo o procedimento anterior, com adiferença que, provisoriamente, a conjuntura presente torna o sorteio o modo deescolha menos discutível, e que minha presença, que eu havia proposto reduzida àconsulta, terá direito a voz.

O júri de aceitação (agrément) será composto de cinco membros.Eu sempre fui parcimonioso em apelos pessoais, deixando aqui o campo

livre às mais diversas iniciativas, a bem dizer, esperando antes que elas semanifestassem. É preciso acreditar que o apelo é necessário, pois parece ter causadoespanto que no ano passado, quanto aos seminários de textos, ele não tenha sidovão.

Dirijo-me hoje a todos, em prol de uma reflexão amadurecida e de umacompetição proveitosa. Este texto, tal como está, escrito para vocês esta semana, eonde vocês só devem ver todo o meu empenho, será distribuído a todos. É o sinal deminha confiança.

A data, a ser fixada, de nossa próxima reunião, depende de suas respostas.Tenham a bondade de adiá-Ias para que as coisas voltem aos seus devidos lugares.

*

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Este discurso durou quarenta e cinco minutos. O presidente da sessão, XavierAudouard anuncia: "A sessão está encerrada".

1. Lacan publicou, em 1970, no número 2-3 de Scilicet, p. 7-29, Paris, Le Seuil,uma versão aumentada e mais "escrita" de seu discurso de 1967, com otítulo "Discurso à E.F.P.", traduzida e publicada naRevista da Escola LetraFreudiana, Documentos para uma escola lI, Ano XIV, n° O:, publicaçãointerna.O texto que aqui apresentamos corresponde à transcrição da versão oraldesse discurso, pronunciado por Lacan em Paris, no dia 6 de dezembro de1967, em resposta aos comentários recebidos sobre sua Proposição de 9de outubro do mesmo ano. Ele testemunha um momento histórico, no qualLacan precisa a direção a ser tomada para a formação dos analistas e seu

Discurso de Lacan aos AE e AME da École Freudienne de Paris ... 33

laço social. Será muito interessante para o leitor comparar as duas versões,a escrita e esta, transcrita sob os cuidados de Solange Faladé, publicada naFrança com sua autorização por Analyse freudienne presse I, e aqui pornós traduzida (N.T).

2. Segundo nota da tradutora de ROUDINESCO, E., Hist. da Psicanálise na França,A Batalha dos 100 anos, Vol 11, 1925-1985, Rio de Janeiro, Jorge ZaharEd., 1988, p. 484, esta seria uma resposta velada a Valabrega, onde aassonância obtida entre bout = pedaço e Ulm, nome da rua onde se reuniao grupo, evocaria o verbo bouder = ficar amuado (N.T.).

3. Em francês: "normalien", aluno da Ecole Normale Supérieure, uma das grandesescolas de prestígio na França, aqui tratada ironicamente (N.T.).

4. Alusão a Pierre Turquet, ex-major do exército inglês, e na época negociador daIPA, no caso da expulsão de Lacan. Turquet soa como Turkey, "peru" eminglês, ave que é lembrada para ilustrar o enfatuamento, a presunção (N.T.).

5. Trempés tem duplo sentido: "temperados" (aço) e "molhados" (N.T.).6. Alusão ao guano, adubo rico em fosfato e nitrogênio, proveniente dos excrementos

de aves marinhas, uma das riquezas do Peru (N.T.).7. Segundo a mitologia, a pomba é o pássaro que puxa o carro de Afrodite, nome

grego de Vênus (N.T.).