Discurso do Paraninfo - UFRGS [Direito Diurno 2013/2] [07 de fevereiro de 2014]
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Transcript of Discurso do Paraninfo - UFRGS [Direito Diurno 2013/2] [07 de fevereiro de 2014]
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Sr. Diretor da Faculdade de Direito, representando o Magnífico Reitor
Estimados professores homenageados [profa. Judith, profa. Marta, prof. Sérgio,
prof. Moysés, prof. Sami]
Querida Ana, funcionária homenageada
Amigos e familiares
Meus queridos amigos Alessandra Alexandre Alexsander Alice André Bruna Amaral Bruna Becker Bruna Canavezi Bruna Silveira Ciça Portugal Dani Denise Douglas Emília Felipe
Fernanda Bonotto Fernanda Machry Filipe Chico Gabriel Guilherme Dutra Guilherme Seibert Ismael João Anilton João Pedro Kenny Larissa Laura Lotti Laura Schossler Letícia Salvador Letícia Zenevich
Lucas Lucien Luísa Luiz Edmundo Luíza Leão Mariana Matheus Dresch Matheus Silvera Morgan Rafael Taga Régis Verônica Yago
1. Confesso que por tudo aquilo que vivi, nestes últimos anos na
Faculdade de Direito da UFRGS, foi extremamente difícil escrever este discurso.
Assim como está sendo difícil proferi-‐lo.
Por isso sinto, ainda mais, a falta, neste momento, da Mari e da Inês, as
mulheres da minha vida, que me aguardam na fria e chuvosa Cità Rossa, e que,
pelas suas virtudes inconfundíveis, possuem a incrível capacidade de me
apaziguar. Mais ainda em situações extraordinárias.
Os sentimentos que emergem são absolutamente ambíguos, pois, se me
sinto, por um lado, extremamente violentado por práticas antirrepublicanas de
um obtuso controle que a racionalidade não alcança – práticas que maculam a
imagem de um Departamento que teve como protagonistas Salgado Martins
(nosso ícone do causalismo) e Luiz Luisi (nosso mestre do finalismo), como
testemunham Nilo Batista e Miguel Reale Júnior ao narrar a história do Direito
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Penal brasileiro –; por outro me sinto carinhosamente acolhido nesta
homenagem prestada por vocês, queridos amigos.
Aliás, é importante que se diga, desde o início desta fala, que se houve (e
ainda há) uma resistência bélica, racional ou irracionalmente programada contra
a remota possibilidade de que eu exerça a docência na Faculdade de Direito; em
sentido e com força diametralmente opostas está o acolhimento que recebi dos
estudantes, mais especificamente desta turma, a primeira turma que lecionei, no
distante 2010.
Esta homenagem, trazida a público na noite de lançamento do meu mais
recente livro, é mais do que um presente. Creio que se constitui em uma espécie
de sopro de esperança em um desgastado espírito que, por muito pouco, não
perdeu totalmente a vontade fazer o que mais ama: estar em sala de aula com os
alunos. Mas a força que vocês me transmitiram, desde a manifestação contra o
meu afastamento forçado em novembro de 2011 até o momento da escolha do
meu nome como Paraninfo, renovou a minha vontade de seguir em frente,
empunhando armas contra Moinhos de Vento (ou seriam Castelinhos de Areia?).
2. No primeiro dia de aula enfrentei a tensão de estar em um local que se
mostrava, desde o concurso, arredio. Um lugar em que eu sabia que não era
“bem-‐vindo”, que não era “desejado” por parte do corpus do Departamento de
Ciências Penais.
Porém, ao longo da caminhada, no dia a dia, foi sendo construída, com
vocês, uma saudável cumplicidade. Uma cumplicidade verdadeiramente
acadêmica, naquilo que se expressa de mais nobre, honesto e verdadeiro na
palavra “academia”. E foi nesta caminhada, nos frios corredores do Castelo, que
pude compreender uma lição, proferida em forma de alerta pela Profa. Judith,
igualmente homenageada pela turma: “a virtude da Faculdade de Direito da
UFRGS está nos seus alunos; a Faculdade se constrói de baixo para cima.”
E esta é uma verdade inalienável. Todo o resto é acessório. Embora em
determinados momentos, em um surto narcisista e megalômano, o acessório se
veja como principal e tente sabotar quaisquer possibilidades de crescimento,
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quaisquer manifestações autênticas daquilo que efetivamente importa: os
alunos.
3. Ao preparar este difícil discurso, lembrei de quando me formei, em
1993. Toda a minha graduação foi marcada por uma espécie de isolamento,
provavelmente decorrente do medo do encontro com a diversidade.
O pânico do encontro com o outro igualmente marcou o início da minha
carreira docente. A minha postura arrogante, como professor, logo após o
Mestrado, refletia uma evidente fragilidade e uma notória insegurança. Nada
mais óbvio ao ser inseguro do que se proteger na arrogância. Infelizmente
demorei muito tempo para notar isso e, se não fosse a psicanálise,
provavelmente ainda não teria notado.
Em janeiro de 2008, quando discursei para a primeira turma que me
homenageou – turma que reúne grandes amigos meus e do prof. Moysés –, disse
aos alunos que eu me sentia, naquele momento, também um formando. E ao
repetir a Oração do Paraninfo, de João Mangabeira, proferida na Universidade
de Salvador em 1944, me senti contemplado: “a oração do vosso paraninfo, meus
jovens colegas, a bem dizer, vós a fizestes. Porque lhe destes a fórmula, o conteúdo e
a diretriz, na formosa mensagem que transmitistes quando da minha escolha (...).”
Forma, conteúdo e diretriz dados como um presente a um professor que,
naquele momento, depois de 15 anos, descobria que é no encontro com os alunos
que a academia se realiza.
Hoje o meu sentimento é diferente. Sinto-‐me mais legítimo neste papel.
Ocupá-‐lo não é um fardo, não me é estranho. Pelo contrário, é confortável. E creio
que vocês podem dimensionar a importância desta homenagem neste momento
da minha vida.
4. Boaventura de Souza Santos, em um memorável discurso em uma
Universidade norte-‐americana, fala sobre o difícil papel do professor. Ensina que
os professores deveriam tentar formar rebeldes competentes: “try to form
competent rebels”, indica Boaventura.
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Não tenho quaisquer dúvidas de que vocês, formandos desta turma da
Faculdade de Direito da UFRGS, são extremamente competentes. Digo mais: sem
receio afirmo que estão entre os alunos mais competentes com quem tive o
prazer de trabalhar.
Mas competência – ou seja, domínio da dogmática – não basta. Esta
competência deve ser revolucionária, crítica, inovadora, ou, nas palavras do
mestre lusitano, rebelde.
A propósito, este deve ser o papel de uma Universidade: formar um
pensamento crítico e inovador, “rebelde”. A Universidade não pode ser o local da
estagnação, do carreirismo de conquista de cargos a qualquer preço, do elogio à
burocracia, da falta de tomada de posição, da lógica eficientista.
A Universidade deve ser o local onde habitam pensamentos divergentes e
dissidentes, onde os dogmas são superados (e não cultivados). Em hipótese
alguma pode ser espaço de aniquilação da alteridade. A Universidade, nas
palavras de Ricardo Timm de Souza, deve ser o local em que a crise se
transforma em crítica.
E este é o desafio que se impõe a vocês, formandos. Aprimorar as
habilidades técnicas (competência dogmática), mas cultivar e manter acesa a
rebeldia que vocês demonstraram ao longo da Graduação: rebeldia contra a
estagnação do pensamento e a tentativa de aniquilar o pensamento divergente;
rebeldia contra a mediocridade
"O papel do intelectual – ensina Foucault, em ‘Os Intelectuais e o Poder’
(1972) – não é mais o de se posicionar 'um pouco à frente e um pouco ao lado'
para dizer a verdade muda de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder
ali onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento disso: na ordem do 'saber',
da 'verdade', da 'consciência', do 'discurso'. É nisso que a teoria não expressará,
não traduzirá, não aplicará uma prática, ela é uma prática."
Adotar uma postura crítica implica em correr riscos. O principal, de estar
com a cabeça sempre a prêmio, sempre na guilhotina, pois sempre existirão
carrascos tecnocratas dispostos a conduzir a lâmina.
Ao escrever este parágrafo, lembrei de uma inscrição, aposta no Teatro
Odeon, em Paris, em maio de 1968, reproduzida por Foucault em um dos seus
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seminários no Collège de France: "arrisca teus passos por caminhos que ninguém
passou; arrisca tua cabeça pensando o que ninguém pensou."
E tenho certeza de que vocês tem absoluta consciência de que é preciso
“(...) salvar os búfalos; [Mas] o pensamento também; Vamos salvar o pensamento
de alianças com carrascos”, na bela poesia de Nei Lisboa.
E a lâmina? Com o tempo a lâmina deixa de ser uma ameaça; com o tempo
nos acostumamos à sua temperatura e aprendemos a lhe retirar o fio.
Neste sentido, peço que olhem para os professores homenageados e
vejam o significado da escolha: dentre os seus homenageados não há nenhum
conformista, não há nenhum carreirista tecnocrata, não há nenhum formatador
de pensamento. Vejo, nos meus queridos colegas, verdadeiros educadores, cuja
responsabilidade é com os seus alunos – e não com as instituições (de ensino) ou
com o poder. Que a escolha destes livres pensadores como homenageados fique
presente na memória desta turma e guie os formandos nas decisões que em
breve deverão ser tomadas.
Lembrem-‐se sempre da postura que vocês adotaram ao longo do curso.
Esta turma manifestou-‐se expressamente contra uma espécie de “pedagogia do
terror”, ainda nutrida por algumas mentes totalitárias. Vocês lutaram contra a
colonização da Faculdade pelo pensamento único. Isto porque vocês são
conscientes de que pedagogia é o oposto do escárnio e que a Universidade não
pode ser o espelho da decadência das capitanias hereditárias.
6. Zaratustra ao contemplar admirado a multidão, falou:
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-‐homem – uma
corda sobre o abismo. Perigosa a travessia, perigoso o percurso, perigoso olhar para trás, perigoso o tremor e a paralisação.
A grandeza do homem está em ser ponte e não meta: o que nele se pode amar é o fato de ser ao mesmo tempo transição e declínio.
Amo os que só sabem viver em declínio, pois são os que transpõem. (...) Amo o que ama a sua própria virtude, pois que a virtude é vontade de
declínio e flecha do desejo. (...) Amo o que faz da virtude inclinação e destino, pois ele, por amor à sua
virtude, quer viver ainda e não mais viver. Amo o que não quer virtudes em demasia. Uma única virtude é mais
virtude do que duas, pois ela é o nó mais forte onde se ata o destino. (...)
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Amo o que se envergonha quando o dado cai a seu favor, e então pergunta: serei um trapaceiro? (...)
Amo o que, mesmo ferido, tem a alma profunda, e que um simples acaso pode fazer perecer. Assim, ele atravessa de bom grado a ponte. (...)
Amo todos aqueles que são como pesadas gotas caindo uma a uma da negra nuvem que paira sobre os homens; anunciam a chegada do raio e perecem como anunciadores (...).”
Amo vocês, pois com vocês e por vocês derramei publicamente minhas
lágrimas. Lágrimas que procuram expressar a retribuição pelo reconhecimento.
Lágrimas que expressam minha gratidão.
Mas para além das lágrimas, este é um momento de celebração da vida.
Vivam em declínio e em constante transposição.
Façam das suas vidas inclinação e destino.
Não queiram virtudes em demasia.
Cumpram a promessa de segurar a primavera entre os dentes.
Prodigalizem a alma.
Vivam em competente rebeldia.
Porto Alegre, 07 de fevereiro de 2014.
Salo de Carvalho
Paraninfo da turma do curso diurno, ano acadêmico 2013, da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul