Direitos Sociais em Juízo: Da falta de efetividade à falta ... · direitos sociais, inicialmente...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Fernando de Almeida Prado Sampaio Direitos Sociais em Juízo: Da falta de efetividade à falta de parâmetros de julgamento Mestrado em Direito SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fernando de Almeida Prado Sampaio

Direitos Sociais em Juízo: Da falta de efetividade à falta de parâmetros

de julgamento

Mestrado em Direito

SÃO PAULO

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fernando de Almeida Prado Sampaio

Direitos Sociais em Juízo: Da falta de efetividade à falta de parâmetros

de julgamento

Mestrado em Direito

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica, como exigência

parcial para a obtenção do título de Mestre em

Direito do Estado, subárea de Direito

Constitucional, sob orientação da Professora

Doutora Silvia Pimentel.

SÃO PAULO

2014

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, com justiça, gostaria de agradecer ao meu avô, DÉCIO DE

ALMEIDA PRADO, por ser o primeiro incentivador de minhas leituras, por ser um crítico

e, ao mesmo tempo, preciso e divertido. Ainda sinto falta de suas conversas.

Com grande carinho, à Professora Orientadora SILVIA PIMENTEL, que

graciosamente, por muitas vezes, dedicou seu tempo para me auxiliar, dando luz e

direção a este trabalho. Com sua sabedoria, em muito auxiliou nesta trajetória

acadêmica.

Aos meus pais, ALUIZIO e SILVIA , por toda a educação e carinho concedidos ao

longo das últimas três décadas, e ao meu irmão MATEUS, por seu incentivo acadêmico

de quem está concluindo o Doutorado e pôde exercer o papel de “irmão mais velho”.

À REGINA, como desculpas pelos períodos ausentes, e como agradecimento por

seu amor, carinho e paciência.

Aos amigos do escritório, um sincero agradecimento pelo suporte em minhas

ausências e apoio incondicional na condução dos trabalhos.

A todos os professores que ao longo de minha vida incentivaram o meu

crescimento intelectual e moral, não só para a elaboração desta Dissertação, mas em

toda a vida. Agradeço, especialmente, aos Professores ANDRÉ RAMOS TAVARES,

MARCELO FIGUEIREDO, LUIZ GUILHERME CONCI, FLÁVIA PIOVESAN, AKEMI, ROBERTO

DIAS, PEDRO PAULO MANUS, CARLA ROMAR, GUILHERME DE ALMEIDA , SILVIO LUIS

FERREIRA DA ROCHA e LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO.

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RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar o problema da efetividade (ou falta de

efetividade) de direitos econômicos e sociais no Brasil à luz do entendimento

jurisprudencial de nossos Tribunais.

O trabalho é dividido em cinco capítulos, sendo o segundo referente ao

surgimento e à evolução histórica dos direitos econômicos e sociais; o terceiro

demonstra a busca de efetividade e possibilidade de judicialização dos mesmos

(especialmente pelo Comitê DESC); o quarto mostra a possibilidade de judicialização

no Brasil, bem como os problemas de natureza operacional e interpretativa dessa

possibilidade e, por fim, o quinto capítulo, a conclusão.

Palavras-chave: Direitos sociais; efetividade; ADPF n.º 45; Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; parâmetros de julgamento.

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ABSTRACT

The objective of this study is to analyze the problem of the effectiveness (or

ineffectiveness) of economic and social rights in Brazil considering the legal

understanding of our Courts.

The work is divided into five chapters, the second being related to the

emergence and historical development of economic and social rights; the third showing

the search for effectiveness and possible legalization of same (especially by CESCR);

the fourth showing the possibility of legalization in Brazil, as well as operational

problems and interpretative nature of this possibility and, by last, a concluding fifth

chapter.

Keywords: Economic and Social rights; efficacy; ADPF 45; International Covenant on

Economic, Social and Cultural Rights; judgment rules.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7

2. DOS DIREITOS SOCIAIS ........................................................................................ 10 2.1 O nascimento dos direitos sociais ........................................................................ 10 2.2 Conceito e regime jurídico dos direitos sociais ................................................... 30 2.3 Direitos sociais como fundamento do Estado Contemporâneo ........................... 36

3. O PROCESSO DE DESCONSTRUÇÃO E DE RECONSTRUÇÃO DO PARADIGMA SOBRE A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS .................. 41 3.1 O antigo paradigma: deveres estatais que não geram direitos subjetivos. Os

direitos econômicos, sociais e culturais como direitos marginais ....................... 42 3.1.1 Ausência de força jurídica efetiva das normas principiológicas .............. 46 3.1.2 Da falta de legitimidade democrática ....................................................... 56 3.1.3 Da violação ao princípio da separação dos poderes ................................. 59 3.1.4 O princípio da reserva do possível............................................................. 62 3.1.5 Falta de mecanismos processuais adequados ........................................... 64

3.2 Início de um novo paradigma: o caráter universal e indivisível dos direitos fundamentais ........................................................................................................ 68 3.2.1 A reaproximação dos direitos fundamentais ............................................ 68 3.2.2 Determinando os direitos sociais .............................................................. 78 3.2.3 Os núcleos essenciais e obrigações nucleares dos direitos sociais ........... 83

4. BUSCA PELO NOVO PARADIGMA: NECESSIDADE DE PARÂMETROS E RACIONALIZAÇÃO DA DEFESA JUDICIAL DOS DIREITOS SOCIAIS .......... 97 4.1 O novo paradigma judicial sobre a efetividade dos direitos sociais: a ADPF n.º

45 e o MI n.º 670 ................................................................................................. 97 4.2 A prática jurisprudencial incerta. Insegurança jurídica e busca por parâmetros

precisos .............................................................................................................. 108

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 119

6. REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 121

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1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é analisar o problema da efetividade (ou falta de

efetividade) de direitos econômicos e sociais no Brasil à luz do entendimento

jurisprudencial de nossos Tribunais, bem como da interpretação autorizada realizada

pelo Comitê DESC da ONU. Apesar de não se tratar de um tema inédito ou novo, a falta

de efetividade dos direitos sociais ainda é um assunto relevante em nosso país, e os

problemas enfrentados neste estudo estão longe de ser solucionados. Portanto,

almejamos revisitar um tema ainda sujeito a novidades.

O ponto de partida do estudo, visto no Capítulo 2, é o surgimento histórico dos

direitos sociais, inicialmente por meio de normas esparsas vinculadas ao direito civil,

que somente a partir da segunda metade do século XX foram consagradas em sua

plenitude, tanto no plano internacional (por meio do PIDESC) como nas ordens

constitucionais locais (especialmente dos países denominados de Segundo e Terceiro

Mundo).

No Brasil, os esforços do poder constituinte originário de 1987 permitiu a

promulgação de uma Constituição Federal que incorporou ao nosso ordenamento

jurídico uma série, até então inédita, de direitos fundamentais de 1.ª dimensão (direitos

civis e políticos) e de 2.ª dimensão (direitos econômicos, sociais e culturais), ampliando

significativamente esse catálogo. Além disso, já no início dos anos 1990 nosso Estado

reconheceu e aderiu ao Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais e ao Pacto internacional sobre Direitos Civis e Políticos, consolidando um

vasto arcabouço normativo para a proteção dos direitos fundamentais em nosso país.

Como consequência da infeliz tradição política brasileira, que trata com

insinceridade as promessas e obrigações legais assumidas, todavia pouco se fez para o

concreto cumprimento das normas constitucionais e internacionais protetivas dos

direitos fundamentais. Esse grande hiato entre a previsão constitucional e efetiva prática

governamental comprova a falta de compromisso democrático de nossos governantes,

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que usualmente atuam de acordo com interesses de caráter político, ainda que

desprovidos de interesse social.

A reiterada e injustificada omissão estatal deu razão à judicialização das

políticas públicas, como resposta da população insatisfeita com o tratamento despendido

a eles, pelos governos. Buscou-se, por meio da intervenção judicial, o efetivo

cumprimento dos direitos sociais assegurados, especialmente no art. 6.º de nossa

Constituição.

No Capítulo 3 será visto que a inicial reação do Poder Judiciário foi negar força

jurídica a esses preceitos, deixando os direitos sociais à mercê de defesa judicial. Por

uma série de argumentos jurídicos, tais como a visão tradicional do princípio da

separação dos poderes e a visualização das normas garantidoras dos direitos econômicos

e sociais como normas principiológicas e destituídas de efetiva força jurídica, a defesa

em juízo dos direitos sociais era limitada e desprovida de sucesso. A judicialização das

políticas públicas, de início, era mal vista pelo Poder Executivo e Legislativo, na mesma

medida em que não era bem recebida pelo Poder Judiciário.

No plano internacional, a melhor definição dos direitos econômicos e sociais,

por meio da consolidação do núcleo essencial e, posteriormente, das obrigações

nucleares das obrigações estatais relacionadas ao cumprimento dos direitos previstos no

PIDESC, serviu de norte para a concretização desses direitos no plano interno dos

países aderentes ao Pacto. A determinação dos direitos passa a ser mais previsível.

No Capítulo 4 poder-se-á observar que o ponto de virada do entendimento

tradicional em prol da possibilidade de concretização, pela via judicial, dos direitos

econômicos e sociais deu-se com o julgamento da ADPF n.º 45, por meio do qual o

Min. Celso de Mello sedimentou entendimento em prol da possibilidade de utilização

da via judicial para “tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se

identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou

concretas”1

1 “Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação

de prejudicialidade da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, não posso

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Esse precedente jurisprudencial consolidou-se como fundamento de decisão das

instâncias inferiores, e tornou concreta a possibilidade do Poder Judiciário determinar –

peremptoriamente – a realização de condutas específicas pelos demais poderes. Por fim,

serão vistos os problemas de natureza operacional e interpretativa dessa possibilidade,

tal como a alegada falta de parâmetros para atuação judicial, em muitos casos pautada

por uma dose elevada de casuísmo.

deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. Celso de Mello) –, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional.”

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2 DOS DIREITOS SOCIAIS

2.1 O nascimento dos direitos sociais

Definir direitos é sempre algo que implica grande dificuldade. A existência de

um direito pressupõe, de um lado, uma norma jurídica (regra ou princípio) que o

constitua e, de outro lado, um juízo de interpretação que determine a aplicação da

norma em face de um fato específico, por meio da subsunção da lei ou da ponderação de

princípios. A existência de um direito demanda não somente a existência de legislação

textual, mas também a produção da norma – pelo intérprete – a partir do texto da lei e

da realidade fática. Mais além, a concretização de um direito exige, por fim, a aplicação

da legislação criada (pelo texto da norma e pelo intérprete) em casos concretos.2

Alimentação, água, moradia, educação e saúde sempre foram elementos

fundamentais para uma vida digna e para que haja efetiva liberdade do ser humano. São

os recursos mais basilares e essenciais para a vida, e sua existência e defesa representam

o anseio mais natural e inerente ao ser humano. São elementos naturais e essenciais tão

básicos que é até estranho – no atual contexto mundial – imaginarmos a existência de

um Estado despreocupado com essas questões. Até recentemente, todavia, esses

elementos indispensáveis para a vida humana digna não eram objeto de direitos,

tampouco regulamentados por lei.3

A partir do final do século XVIII, esses recursos humanos fundamentais foram

paulatinamente objeto de legislação específica, ainda que incipiente e tímida. Oriundos

2 A diferença entre o texto normativo e a efetiva norma jurídica foi objeto do voto do Ministro Eros

Grau quando do julgamento da ADPF n.º 153 (Lei da Anistia):

“Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida” (ADPF n.º 153, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 29.04.2010, DJe 145).

3 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 1.

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de origens diversas e distintas entre si, os direitos econômicos, sociais e culturais4 foram

moldados ao longo dos três últimos séculos, e atualmente possuem a natureza de direito

fundamental.5

A definição desses direitos varia substancialmente entre as culturas e ideologias

de quem os conceitua: no século XX (época em que ganharam maior destaque até serem

inequivocadamente elencados como direitos humanos e positivos) esses direitos

sofreram influência dos mais diversos pensamentos e realidades econômicas,

defendidos pelos países de “Primeiro Mundo” (com ideais sociais das democracias

desenvolvidas e ricas), pelos países de “Segundo Mundo” (com pilares dos países

comunistas e socialistas), e pelos países de “Terceiro Mundo” (com urgência de

necessidades econômicas). Cada uma dessas culturas os definia de uma forma.

Sob grande influência da Segunda Guerra Mundial e sua barbárie, atualmente

esses direitos estão consolidados em declarações, tratados internacionais e no texto

positivado das novas constituições e emendas. Em suma, encontra-se consolidada no

meio jurídico positivo. Não se trata mais de uma aspiração, mas sim de um direito

consagrado, ainda que existam grandes dificuldades práticas para sua implementação.

O paradigma clássico do Estado liberal, focado na proteção de direitos de cunho

negativo (pautados pela abstenção estatal em face do particular) e pela promoção do

bem-estar pelo mercado, não mais subsiste. Ainda que a contragosto, a existência de

4 Neste trabalho, utilizaremos tantos os termos “direitos econômicos, sociais e culturais” como “direitos

sociais” como sinônimos. A esse respeito, nos reportamos à visão de Paulo O’Connel: “Existe pouca ou nenhuma razão explícita para escolher uma nomenclatura em face de outras, e as preferências tendem a ser condicionadas por questões geográficas ou de disciplina acadêmica: entre os juristas norte-americanos, e cientistas sociais em geral, o termo preferido é direitos sociais; e os mais familiarizados com os direitos humanos internacionais optam pelo termo expansivo direitos econômicos, sociais e culturais” (Paul O’Connell, Vindicating socio-economic rights: international standards and comparative experiences, pos. 302. Tradução livre).

5 Existe uma ideia de que o conceito de “direitos fundamentais” é sinônimo do conceito de “direitos humanos”, havendo somente a diferença de que estes últimos são aplicados em patamar internacional, ao passo que os primeiros seriam positivados na ordem interna.

Essa concepção é correta, mas dá a falsa impressão de que somente seriam direitos fundamentais os expressamente positivados na Constituição, o que não é verdadeiro: além dos direitos expressamente positivados na ordem interna, são considerados direitos fundamentais todos os tratados internacionais recepcionados em nosso ordenamento jurídico.

Neste trabalho utilizaremos a expressão “direitos fundamentais” para se referir aos direitos econômicos e sociais, tanto no plano internacional como no plano interno.

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governos efetivamente democráticos obrigou a coexistência do pensamento liberal e

voltado ao mercado, com direitos econômicos e sociais consolidados (ou em busca de

consolidação). Os direitos econômicos e sociais buscam reduzir o mal que a política

mercantilista perpetrou na maior parte das pessoas. É uma promessa que, se cumprida,

pode ser parte da resposta da lei à indignidade e aos danos causados, ao menos em

parte, pela própria lei.6

Todavia, o processo de positivação dos direitos sociais foi lento: diferentemente

dos direitos civis e políticos, que tiveram marcos jurídicos relativamente precisos, os

direitos econômicos e sociais foram consagrados de modo paulatino e sutil. Os direitos

econômicos e sociais não nasceram de modo preconcebido, mas foram criados por um

longo processo de luta e conflito.

Segundo Henry Steiner, Philip J. Alston e Ryan Goodman, a origem histórica do

reconhecimento dos direitos sociais e culturais é difusa. Um ponto de erupção foram as

tradições religiosas, que possuem como caráter universal a defesa e o cuidado com os

que necessitam. No Catolicismo, por exemplo, inúmeras encíclicas papais promovem a

importância do direito a uma subsistência digna. Da mesma forma, algumas correntes

religiosas se fundem na defesa e preferência pelos pobres.

Focando-se em aspectos não religiosos, os direitos sociais se alicerçam nas mais

diversas visões filosóficas e teorias políticas, por exemplo, Thomas Paine, Karl Marx,

Immanuel Kant e John Rawls; os programas políticos do século XIX (como o

socialismo dos Fabian na Grã-Bretanha e as noções de seguridade social introduzidas

nos anos de 1880 por Bismarck na Alemanha) e os new dealers nos Estados Unidos; e

os precedentes constitucionais como a Constituição Mexicana de 1919, a primeira

constituição soviética e a Constituição de Weimar de 1919.7

São tantas as fontes que influenciaram a consagração dos direitos sociais e

econômicos que não é possível, nesse plano de grande diversidade, estabelecer um

momento único para a “erupção” de tais direitos. A existência de desigualdade entre as

6 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 1-2. 7 Henry Steiner, Philip J. Alston e Ryan Goodman, Human rights in context: law, politics, morals, p.

269.

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pessoas é uma das mais antigas certezas da humanidade, e a busca pela igualdade, ou

pelo menos justiça social, entre os homens é anseio tão antigo quanto a história das

sociedades.

A definição do que são os direitos sociais também não é tarefa fácil. Katharine

G. Young entende que, durante o século XVIII, os direitos econômicos e sociais eram

associados com o direito à propriedade, pois estes eram então considerados essenciais

para a liberdade do ser humano, que provavelmente vivia em situação de penúria

material extrema. Posteriormente, a primazia do direito à propriedade foi abalada com o

surgimento da preocupação sobre o uso adequado das propriedades e sobre o conflito

entre direitos privados e responsabilidades públicas (nascendo daí a preocupação com a

saúde, a educação e o trabalho). Isso fez surgirem, no século XIX, sistemas públicos de

educação e higiene em muitos Estados. No século XX, a segurança social foi criada

para proteger indivíduos dos males da incapacidade e desemprego.8

Do ponto de vista do direito positivo, o constitucionalismo moderno possui

como marcos iniciais as primeiras declarações de direitos, escritas sob influência do

pensamento liberal burguês predominante no século XVIII, as quais alicerçam-se sobre

o conceito de igualdade de todos perante a lei, presente nas Declarações de Direitos do

Povo da Virgínia (de 1776), na Constituição Americana (de 1787) e na Declaração

Francesa (de 1789).9 Esses instrumentos objetivavam organizar o Estado e os direitos

individuais dos cidadãos em face do Estado, mas não se preocuparam em buscar a

igualdade real entre as pessoas.

Buscando frear as arbitrariedades perpetradas pelos governantes, essa primeira

fase do constitucionalismo buscou – de acordo com o pensamento liberal-burguês do

século XVIII, de cunho individualista e de defesa do cidadão em face do Estado – a

demarcação de uma zona de não intervenção, muitas vezes com inspiração

jusnaturalista, na qual o cidadão estaria seguro para atuar sem sofrer intervenção estatal.

A lógica desse primeiro modelo constitucional traduzia-se na “não atuação” do Estado-

8 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 27. 9 André Ramos Tavares, Curso de direito constitucional, p. 32-33.

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inimigo, por meio de direitos oponíveis em face deste (liberdade, vida, propriedade e

igualdade perante a lei).10

Ainda que o mote da Revolução Francesa preveja o ideal de “liberdade,

igualdade e fraternidade”, esses três valores não possuíam a mesma medida: a liberdade

era prioritária; a igualdade era entendida de um modo eminentemente formal, lastreada

em relações privadas entre pessoas supostamente iguais; e a fraternidade seria o

resultado do processo revolucionário. Tem-se o direito à igualdade “como ponto de

partida, não como ponto de chegada”.11

A Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), marco do

constitucionalismo moderno, adotou em seu artigo 2.º a defesa dos direitos “naturais e

imprescindíveis ao homem. Esses direitos são liberdade, propriedade, segurança e

resistência a opressão”.12 Em momento algum se reportou às condições econômicas do

povo francês, que à época vivia em situação de miséria.

Apesar do contexto feudal e das duríssimas condições econômicas que deram origem à Revolução Francesa, é notável que a Declaração não contém nenhum direito à alimentação ou moradia, ou previsão referente às dificuldades econômicas dos indivíduos [...] De modo similar, a Constituição Americana emergiu de um contexto histórico em que pessoas foram obrigadas a escapar de repressão religiosa na Europa. As emendas constitucionais americanas são predominantemente focadas em direitos civis e políticos, com forte garantia, por exemplo, a liberdade de expressão e religião.13

O resultado dessa igualdade como ponto de partida foi o entabulamento de

contratos civis para as relações de trabalho e comerciais, embasados no princípio do

pacta sunt servanda e na ideia de igualdade formal entre partes cujo poder de

10 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 9-10. 11 Alessandra Gotti Bontempo, A eficácia e acionabilidade dos direitos sociais: uma análise à luz da

Constituição de 1988, p. 834. 12 “Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão.”

13 David Bilchitz, in Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: the Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, p. 45-46.

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negociação era manifestamente desigual. A concepção formal da igualdade apenas

serviu para fomentar o aumento da desigualdade real entre as diversas camadas sociais.

Tal situação foi ainda mais agravada pelo contexto econômico da sociedade europeia,

que vivia um intenso processo de industrialização, novidade da época, que fez surgir

graves problemas sociais.

Nesse contexto histórico-social, o direito civil vigorante, de formação liberal-

individualista, foi incapaz de dar respostas jurídicas adequadas para os conflitos sociais

que se iniciavam. A matriz civilista clássica tendia a reduzir todos os conflitos jurídicos

a questões típicas e próprias do velho modelo de contrato bilateral, tratando conflitos

coletivos como se fossem questões de natureza civil e contratual, tratadas sob a ótica

individual dos sujeitos.14

Esse cenário deixou claro que, sem igualdade de condições, o direito à liberdade

se convertia em uma mera formalidade e não era capaz de solucionar os problemas

enfrentados pela parcela mais pobre da população, inclusive da classe trabalhadora e

dos que demandavam de assistência. Para que houvesse melhora nas condições de vida

das classes mais carentes, era imprescindível a reivindicação de igualdade de

oportunidades, que viesse a assegurar efetivamente a liberdade social.15

A princípio, todavia, o Estado viu-se alijado de regulamentar esse conflito

econômico, na medida em que o modelo constitucional de Estado Liberal, idealizado

por Locke, Montesquieu e Rousseau, era fundado na limitação e controle do poder

estatal. A inércia do Estado era sinônimo de liberdade, ao menos para a burguesia, que

nesse momento histórico acumulava os privilégios de controle da política e da

economia.

Essa inércia neutra teve de ser abandonada, aos poucos, pois a crescente

opressão causada pela liberdade e a ausência de leis regulamentando as relações

14 Maurício Godinho Delgado, Curso de direito do trabalho, p. 90. 15 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 12.

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sociais16 fomentaram uma crescente tensão social. Como resposta, o Estado passou a

intervir na economia, a princípio, por meio da edição de leis esparsas de cunho social

(ainda que para regular apenas o mínimo do mínimo das relações de trabalho), sendo

recorrentemente mencionada como a primeira legislação a regular o trabalho o Health

and Morals of Apprentices Act, lei inglesa de 1802 que criou regras de higiene e de trato

para as crianças que trabalhavam em moinhos de algodão. No mesmo sentido, em 1819

o Cotton Mills and Factories Act, também inglês, proibiu o labor em moinhos de

algodão de crianças com menos de nove anos (!) e limitou o trabalho das crianças entre

nove e dezesseis anos a doze horas diárias.17

A organização da classe trabalhadora, ocorrida no século XIX, especialmente

por movimentos anarquistas e comunistas, fez com que os conflitos trabalhistas e

sociais extrapolassem a questão meramente econômica, ganhando o campo ideológico,

por meio da rediscussão do papel do Estado e da superação das tradicionais teorias

liberais. Buscava-se um novo “tipo” de Estado, preocupado com a solução da

denominada “questão social”, mediante políticas públicas de atuação em face de

problemas das camadas mais pobres. Esse Estado ficou conhecido como Estado Social.

O Estado Social é um Estado intervencionista por sua própria natureza, em

busca da igualdade material ou fática, para assegurar a liberdade social e real.18 Como

resultado da mudança do papel do Estado, passou a existir uma dicotomia filosófica e

política sobre o valor primordial de sua defesa: o grande conflito entre os valores da

liberdade, representado pela inércia e ausência de regulamentação estatal, e da

igualdade, em oposição, centrado na intervenção estatal.

Até o início do século XX, todavia, a regulação dos fenômenos econômicos e

sociais foi realizada de modo tímido e por meio de normas específicas de direito

nacional, usualmente de caráter restritivo das liberdades individuais dos empregadores

16 Conforme célebre frase de Henri Lacordaire: “entre o rico e o pobre, entre o forte e o fraco, é a lei que

liberta e a liberdade que oprime”. 17 Maurício Godinho Delgado, Curso de direito do trabalho, p. 105-114. 18 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 13.

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(com o escopo limitado a impedir situações que nos dias de hoje são consideradas

bárbaras) ou com incipientes legislações de caráter de seguridade social.

Como resume Flávia Piovesan, no final do século XVIII, as Declarações de

Direitos (Declaração francesa de 1789 e Declaração americana de 1776) consagravam a

ótica contratatualista liberal, pela qual os direitos humanos se reduziam aos direitos à

liberdade, segurança e propriedade, complementados pela resistência à opressão.

Posteriormente, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, ao lado do discurso

liberal da cidadania, fortalece-se o discurso social da cidadania, e, sob influência da

concepção marxista-leninista, é elaborada a Declaração dos Direitos do Povo

Trabalhador e Explorado da então República Soviética Russa, em 1918. Do primado da

liberdade transita-se ao primado do valor da igualdade. O Estado passa a ser visto como

agente de processos transformadores, e o direito à abstenção do Estado, nesse sentido,

converte-se em direito à atuação estatal, com a emergência dos direitos à prestação

social.19

Fugindo-se de ótica socialista da Declaração soviética, ainda no início do século

XX, a Constituição mexicana (de 1917), a Constituição alemã da República de Weimar

(de 1919) e a Constituição espanhola (de 1931) são consideradas como pioneiras na

defesa dos direitos sociais e do direito à liberdade.

Os belos ideais e aspirações dessas constituições, infelizmente, não tiveram

perenidade: (i) os governos soviéticos ignoraram os direitos de igualdade previstos em

sua Declaração soviética; (ii) a Constituição mexicana, a mais perene destas, continua

vigente até hoje (com diversas emendas), mas desde 1929 teve sua aplicação limitada

pela falta de alternância partidária no poder (de 1929 a 2000 o mesmo partido elegeu

todos os Presidentes da República); (iii) a Constituição alemã da República de Weimar

foi atacada até colapsar em 1933; e (iv) a Constituição espanhola teve sua vigência

interrompida em 1936, pela eclosão da Guerra Civil espanhola, e foi definitivamente

abandonada em 1939.

19 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 205-206.

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O resultado da dicotomia filosófica entre os valores da liberdade e igualdade fez

com que os direitos oriundos de cada um fossem considerados de modo fracionado, de

acordo com o período histórico de seu surgimento. Usualmente, entende-se que os

direitos fundamentais foram consagrados ao longo de gerações de direitos, admitindo-se

usualmente que os direitos civis e políticos são direitos de “1.ª geração”, e que direitos

sociais, econômicos e culturais são direitos de “2.ª geração”.

Há algumas críticas a essa denominação. Do ponto de vista semântico, critica-se

a utilização do termo “gerações”, pois ele dá a falsa impressão de que existe sucessão de

uma geração de direitos pelas gerações mais recentes. Essa ideia é obviamente

equivocada, uma vez que os direitos de inúmeras gerações convivem harmoniosamente

e, pelo contrário, se complementam e se fundamentam reciprocamente, por serem

direitos indivisíveis e inter-relacionados. Por isso, entende-se que o correto seria

denominar os diferentes ramos de direitos como “dimensões dos direitos

fundamentais”.20

Do ponto de vista cronológico, outrossim, alguns entendem que não é adequado

dizer que os direitos civis e políticos sejam anteriores aos direitos econômicos e sociais.

Explica-se: é fato que os ideais de liberdade remetem à antiga cultura grega, e são tão

antigos quanto o pensamento ocidental. Ainda, a Magna Carta, de 1215, é considerada

o primeiro documento moderno de limitação do poder estatal (representado pelo

monarca). Portanto, do ponto de vista filosófico e jurídico, as aspirações a direitos civis

e políticos seriam, de fato, anteriores às aspirações a direitos econômicos e sociais.

Por outro lado, a constituição de um direito, de modo limitado, a um grupo

determinado e específico de pessoas não permite que esse direito possa ser considerado

geral e válido, senão a esse grupo específico de pessoas. Por isso, se é correto

entendermos que os direitos civis e políticos são antecessores aos direitos econômicos e

sociais para um determinado padrão de pessoas (ex.: homem europeu branco), o mesmo

20 “Assim, partindo do critério metodológico que classifica os direitos humanos em gerações,

compartilha-se o entendimento de que uma geração de direitos não substituía outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a equivocada visão da sucessão ‘geracional’ de direitos, na medida em que se acolhe a ideia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação” (Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 209).

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pode não se aplicar a outro padrão de pessoas (ex.: homem africano negro). Por

exemplo, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) assegura

a liberdade como um valor primordial, ao passo que o Governo francês somente aboliu

a escravidão em suas colônias em 1848.21 Portanto, se a liberdade civil era inexistente

para grande parte do povo regido pelo governo francês, não podemos utilizar a

Declaração Francesa como um marco jurídico universal de liberdade.

Pensando-se no Brasil como um segundo exemplo, as mulheres possuem o

direito à assistência médica e sanitária (direitos de cunho econômico e social),

assegurado desde 1934.22 Todavia, somente com a edição do Estatuto da Mulher casada

(Lei n.º 4.121/1962) é que passaram a ter personalidade jurídica plena, na medida em

que foi alterado o art. 6.º do Código Civil vigente,23 que dispunha que as mulheres

casadas eram relativamente incapazes para negócios civis. Portanto, na realidade

brasileira, as mulheres detiveram o direito à assistência médica (um direito econômico e

social básico) por quase 30 anos antes de obterem o direito pleno de dispor de sua

propriedade (que pode ser considerado um direito civil basilar).

Esses exemplos mostram que o estabelecimento de um critério cronológico para

o nascimento dos direitos fundamentais pode ser tormentoso, a depender do país e

grupo de pessoas focadas no estudo.

As duas críticas mostradas (crítica semântica e crítica cronológica) apenas

reforçam a terceira crítica que trazemos, aquela concernente à própria divisão dos

direitos fundamentais em dimensões. Partindo-se do pressuposto de que os direitos

fundamentais representam a base jurídica de proteção aos seres humanos, não se pode

pensar na prevalência de um tipo de direito sobre outro: ou os direitos fundamentais são

adimplidos ou inadimplidos; o sucesso de um tipo de direito não autoriza o fracasso do

outro tipo.

21 A escravidão havia sido abolida e reinstituída algumas vezes entre 1794 e 1848, quando foi abolida

em definitivo. 22 Conforme art. 121, 1.º, “h”, da Constituição Federal de 1934. 23 Além do art. 6.º, a lei alterou os arts. 233, 240, 242, 246, 248, 263, 269, 273, 326, 380, 393, 1.579 e

1.611 do Código Civil e 469 do Código do Processo Civil então vigentes.

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Os interesses protegidos por direitos sociais e econômicos não são menos fundamentais do que os protegidos por direitos civis e políticos. Sem o respeito aos dois grupos de direitos, uma sociedade não pode tratar todos os indivíduos com igual importância – que é a medida de qualquer política decente. A revisão judicial também é justificada, eu entendo, com relação aos dois grupos de direitos, dado o ponto central de interesses que eles protegem [...]24

Esclarecidas as críticas à nomenclatura utilizada, o ponto de partida para o

estudo da concepção moderna dos direitos econômicos e sociais, denominados “direitos

de 2.ª dimensão”, é a fundação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por

meio do Tratado de Versailles (1919).

O advento da Organização Internacional do Trabalho, da Liga das Nações e do Direito Humanitário registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocas entre os Estados; visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam os interesses exclusivos dos Estados contratantes.25

Desde sua fundação até a aprovação, em 1966, do Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), foi a OIT quem regulou as

condições para um trabalho “justo e humano”, como contraposição aos movimentos de

cunho socialista que ocorriam na Europa. Nesse período, a OIT estabeleceu os

patamares mínimos para o trabalho digno e criou os padrões que hoje estão sob

regulamentação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Nesse sentido, estabeleceu a normas sobre Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de

Sindicalização (Convenção n.º 87, de 1948), sobre Abolição do Trabalho Forçado

(Convenção n.º 29, de 1930), sobre Proteção do Salário (Convenção n.º 95, de 1949) e a

respeito de muitos outros temas.

24 David Bilchitz, in Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: The

Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, p. 53. 25 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 180-181.

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A principal diferença entre a legislação da OIT e a legislação social esparsa até

então existente se dá exatamente pela dimensão transnacional nata da OIT. Ainda que

alguns assuntos já fossem regulamentados pelas normas internas de alguns países, o

objetivo explícito da OIT é a “adoção de um regime de trabalho realmente humano”26

por todas as nações. As normas da OIT, portanto, já nasceram com o objetivo de serem

globais, o que as distingue de todas as normas anteriormente editadas.

A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas. [...] O processo de internacionalização dos direitos humanos – que, por sua vez, pressupõe a delimitação da soberania estatal – passa, assim, a ser uma importante resposta na busca da reconstrução de um novo paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas no holocausto.27

O trabalho normativo da OIT, da mesma forma, influenciou a elaboração da

Carta das Nações Unidas (ONU – 1945), na medida em que muitos Estados,

especialmente os de governo socialista, objetivavam a incorporação de direitos sociais

na Carta. Apesar dos apelos, os Estados Unidos se opuseram de modo veemente à

questão, por receio de acarretar interferência em “assuntos internos” dos países.28

Assim, a defesa dos direitos sociais restou aprovada somente no art. 55 da Carta, que

trata dos direitos sociais em termos genéricos e abertos.29

26 Preâmbulo da Constituição da Organização do Trabalho. 27 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 184-185. 28 A concepção de “assuntos internos” diz respeito à ideia da época de que qualquer interferência

externa, ainda que para fins de defesa de direitos humanos, violaria a soberania nacional. A principal proposta foi denominada de “Australian Pledge”, a qual incitava os membros da ONU a tomar iniciativa em busca de “melhores padrões de trabalho, avanço econômico, seguridade social e emprego para todos” (Henry Steiner, Philip J. Alston e Ryan Goodman, Human rights in context: law, politics, morals, p. 270).

29 “Art. 55. Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos devida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter

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Embora a Carta das Nações Unidas seja enfática em determinar a importância de defender, promover e respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, ela não define o conteúdo destas expressões, deixando-as em aberto.30

Três anos depois, a Assembleia-Geral da ONU, de 10.12.1948, aprovou a

Declaração Universal dos Direitos Humanos como instrumento para estabelecer um

“padrão comum de realização para todos os povos e nações”.31 A Declaração Universal

dos Direitos Humanos foi “concebida como a interpretação autorizada dos arts. 1.º e 55

da Carta da ONU”,32 tendo sido aprovada por unanimidade, mas com abstenções da

África do Sul, Arábia Saudita, Bielorrúsia, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia,

Ucrânia e União Soviética. As abstenções mostram que a Declaração foi produto de

grandes divergências, a ponto de a União Soviética, insatisfeita com a preponderância

das liberdades civis e políticas (tidas como “ocidentais”), deixar de comparecer na

Assembleia designada para aprovação.

A Declaração de 1948 introduz extraordinária inovação ao conter uma liguagem de direitos até então inédita. Combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social, a Declaração passa a elencar tanto direitos civis e políticos (arts. 3.º a 21) como direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 a 28). Duas são as inovações introduzidas pela Declaração: a) parificar, em igualdade de importância, os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais; e b) afirmar a inter-relação, indivisibilidade e interdependência de tais direitos.33

Grande parte da unanimidade da Declaração, todavia, foi resultado da visão

jurídica tradicional de que a Declaração – diferentemente dos Tratados, Convenções,

Pactos e Acordos – não possuía força jurídica vinculante. Isso permitiria – em tese –

que seu conteúdo fosse ignorado pelos Estados signatários dela. Pelo entendimento

dessa doutrina tradicional, o texto da Declaração Universal poderia se resumir a um

artigo com boas intenções.

cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.”

30 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 198. 31 Conforme declarado na 3.ª sessão ordinária da Assembleia-Geral da ONU (1948). 32 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 204. 33 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 207-208.

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O fato de sequer haver disposição expressa obrigando os Estados a assumir tais

compromissos era um indício de que os próprios Estados não levam os direitos de

cunho social tão a sério como os direitos civis e políticos, considerados de natureza

superior.

Enquanto o compromisso com os direitos econômicos e sociais era inquestionável, ao menos pelos delegados responsáveis pela redação da Declaração Universal, sua conceituação e aceitação legal não era tão forte.34

Apesar das ressalvas, todavia, a Declaração Universal jamais foi entendida de

modo leviano. Em primeiro lugar, porque possuía o “poder de constranger”, comum aos

tratados internacionais. Em segundo lugar, a sua formação peculiar – na qualidade de

“interpretação autorizada dos artigos da Carta das Nações Unidas relativos aos direitos

humanos” – levou alguns a entender que ela teria efeitos legais típicos de um tratado

internacional e, portanto, com força vinculante para os Estados.35

Atualmente, não há como negar o caráter de norma consuetudinária da

Declaração, na medida em que mesmo os países violadores de suas normas não refutam

seu caráter normativo e vinculante.

A natureza jurídica vinculante da Declaração Universal é reforçada pelo fato de que – na qualidade de um dos mais influentes instrumentos jurídicos e políticos do século XX – ter se transformado, ao longo dos mais de cinquenta anos de sua adoção, em direito custumeiro internacional e princípio geral do Direito Internacional.

Com efeito, a Declaração se impõe como um código de atuação e de conduta para os Estados integrantes da comunidade internacional. Seu principal significado é consagrar o reconhecimento universal dos direitos humanos pelos Estados, consolidando um parâmetro internacional para a proteção desses direitos.36

34 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 28. 35 José Augusto Lindgren Alves, Os direitos humanos como tema global, p. 48. 36 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 214.

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A Declaração Universal buscou ainda eliminar, ou ao menos atenuar, o grande

conflito ideológico entre os valores da liberdade e da igualdade. Segundo seu texto, os

direitos civis e políticos, de cunho individual, e os direitos sociais, econômicos e

culturais, de cunho coletivo, são inter-relacionados e indissociáveis entre si, em uma

relação de complementaridade recíproca. Busca-se, assim, vincular a defesa dos direitos

de 1.ª dimensão ao acesso aos mais basilares direitos de 2.ª dimensão. Se o direito à

propriedade, considerado típico direito civil de 1.ª dimensão, é muito importante para

quem possui bens, este mesmo direito não possui nenhuma utilidade para um sem-teto,

que está privado do direito à moradia, considerado de 2.ª dimensão. Por isso, mais do

que a divisão de direitos, busca-se a “remoção de fontes de privação de liberdades”

(Amartya Sen).37

No tocante aos direitos econômicos e sociais, de modo mais específico, a

Declaração Universal positivou uma linha de conduta geral, pouco específica e de difícil

adjudicação em situações particulares e concretas. Apesar de a visão “oficial” ser

cristalina no sentido de que os Direitos Humanos são “universais, indivisíveis,

interdependentes e inter-relacionados [e que] a comunidade internacional deve tratar os

direitos humanos globalmente de maneira justa, e equânime...”,38 a positivação jurídica

com maior grau de detalhamento dos princípios da Declaração Universal somente se

deu quase vinte anos depois, com a assinatura de dois pactos distintos (PIDCP e

PIDESC), como veremos a seguir.

Outro fruto direito da Declaração Universal é a influência de seus valores e

princípios em todas as constituições ocidentais que foram reescritas no pós-guerra,

como será visto adiante. A dignidade da pessoa humana passou a ser um fator de

legitimidade dos governos e Estados, como resposta ao profundo desrespeito à vida e

aos direitos basilares do ser humano, verificado nos anos que antecederam a Segunda

Grande Guerra:

37 Amartya Sen, Desenvolvimento como liberdade, p. 56. 38 Declaração e Programa de Ação de Viena, Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 14-

25 de junho de 1993, § 5.º.

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A Declaração ainda exerce impacto nas ordens jurídicas nacionais, na medida em que os direitos nela previstos têm sido incorporados por Constituições nacionais e, por vezes, servem como fonte para decisões judiciais nacionais.39

O conflito ideológico, entre os valores da liberdade e da igualdade, e o conflito

político, entre o socialismo e capitalismo, pesaram de forma a tornar impossível uma

solução diplomática que levasse à adoção de um pacto único para os dois conjuntos de

valores.

Segundo Thomas Buergenthal, a justificativa jurídica para a separação era

fundada na premissa de que a proteção dos direitos civis e políticos requer poucos (ou

nenhum) recursos financeiros, pois estes seriam atingidos pela simples atuação

legislativa e pela decisão de não realizar certas condutas ilegais (ex.: não torturar

pessoas, não aprisionar arbitrariamente etc.), ao passo que os direitos econômicos,

sociais ou culturais obrigariam o Estado a assumir custosas obrigações “progressivas”

ou “programáticas”, uma vez que seria fantasioso requerer o cumprimento imediato

desses direitos, dada a natureza deles e os problemas específicos que cada Estado deve

encarar para assegurar seu cumprimento integral. Vale lembrar que essa premissa é

exposta como incorreta pelo autor.40

Flávia Piovesan complementa, informando que se alegava que havia distinção

entre a exigibilidade de cada direito, e os direitos civis e políticos seriam autoaplicáveis

e passíveis de cobrança imediata, ao passo que os direitos sociais, econômicos e

culturais seriam de natureza programática e, portanto, impossíveis de ser cobrados de

plano e demandantes de realização progressiva. Apesar de se tratar de direitos

indivisíveis, a necessidade de procedimentos de controle distintos seria a justificativa

para a adoção de dois pactos diversos: para os direitos civis e políticos, o melhor

mecanismo seria a criação de um comitê que apreciasse petições contendo denúncias de

39 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 214. 40 Thomas Buergenthal, International Human Rights in a nutshell, p. 45.

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violações de direitos; para os direitos econômicos, sociais e culturais, esse mecanismo

seria a princípio equivocado.41-42

Jamais houve consenso dentro das Nações Unidas sobre a extensão dos direitos

humanos: as nações ocidentais acreditavam que os direitos econômicos e sociais eram

um risco ao sistema individualista liberal inerente ao capitalismo, e se opuseram à

assinatura de um documento único, que contemplasse tanto os direitos civis e políticos

como os direitos econômicos, sociais e culturais. A proposta de separação obteve êxito

na Assembleia-Geral da ONU de 1951.43

Contaminado pela ideologia capitalista que primava pela liberdade em face da

igualdade, a maior parte dos países representados na ONU visualizava os direitos

econômicos e sociais como uma espécie de direito de segunda linha, que jamais teria a

mesma importância dos direitos civis e políticos. Assim, a divisão dos instrumentos –

apesar de paradoxal ao conceito de indivisibilidade dos direitos humanos – foi aceita.

Esta divisão se fundamentou em distinções atualmente criticadas. Três características dos direitos econômicos e sociais, em particular, produziram a distinção desta categoria de direitos com relação à categoria mais privilegiada, dos direitos civis e políticos. Em primeiro lugar, direitos econômicos e sociais foram vistos como inapropriados

41 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 229.

42 É no mínimo curioso notar que em 10.12.2008, na ocasião do 60.º aniversário da assinatura da

Declaração Universal de Direitos Humanos, foi aprovado o “Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” pela Assembleia-Geral da ONU. O protocolo adicional entrou em vigor em 05.05.2013 (após receber dez ratificações), e permite quatro formas de denúncias de descumprimento do PIDESC, inclusive peticionamento individual, que se alegava ser incompatível com o mesmo.

43 “[...] os opositores à proposta de uma única convenção, que nela viam uma ameaça a noção

individualista dos direitos humanos, arrolavam três argumentos substantivos. O primeiro era o de que os direitos correspondiam a espécies distintas: os civis e políticos seriam jurisdicionados, passíveis de cobrança, o que não se aplicaria aos direitos econômicos e sociais. O segundo era o de que os direitos civis e políticos seriam de aplicação imediata, enquanto os econômicos, sociais e culturais somente poderiam ter realização progressiva. O terceiro dizia respeito ao acompanhamento: para os direitos civis e políticos o melhor mecanismo seria um comitê que atendesse a petições e queixas através de investigação e bons-ofícios, instrumento inadequado para os direitos econômicos e sociais. [...] A posição ocidental prevaleceu, ficando a noção de realização progressiva incorporada ao artigo 2.º, parágrafo 1.º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (José Augusto Lindgren Alves, Os direitos humanos como tema global, p. 49).

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para adjudicação judicial. Em segundo lugar, foram vistos como necessitados de atuação positiva e custosa para seu cumprimento. E, em terceiro lugar, foram tratados como “secundários”, em termos de gerações, com relação aos direitos civis e políticos historicamente protegidos pela Magna Carta e outros documentos fundamentais da cultura ocidental.44

Além do confronto entre o modelo capitalista e socialista, a elaboração dos dois

Pactos foi igualmente marcada por um confronto entre nações desenvolvidas e em

desenvolvimento (confronto “Norte x Sul”), especialmente entre ex-colônias e os

antigos países exploradores. Nesse conflito, prevaleceu a visão terceiro-mundista, que

exigiu a inclusão do direito à “autodeterminação dos povos”, direito este não

contemplado na Declaração Universal.

Quinze anos depois de aprovada a criação de dois instrumentos separados, na

Assembleia-Geral da ONU, de 10.12.1966, foram aprovados os dois pactos: o Pacto

Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Apesar das críticas sobre a divisão, os dois

Pactos apresentam diferenças:

[...] por exemplo, o PIDCP contém termos como “todos têm direito a...” ou “ninguém será...”, enquanto o PIDESC usualmente utiliza-se da fórmula “Estados Partes reconhecem o direito de todos a...”. Duas grandes diferenças devem ser notadas [...]. Primeiro, a obrigação dos Estados Parte é reconhecida sujeita à disponibilidade de recursos (“até o máximo de seus recursos disponíveis”). Segundo, a obrigação está sujeita a cumprimento progressivo.

Esta linguagem foi objeto de críticas conflitantes. Por um lado, usualmente sugere que a natureza das obrigações do PIDESC são tão onerosas que virtualmente nenhum Estado seria capaz de cumpri-los. Países em desenvolvimento, em particular, parecem enfrentar um desafio impossível. Por outro lado, alega-se que o caráter relativamente aberto do conceito de realização progressiva, particularmente à luz da possibilidade de cumprimento progressivo, deixa a obrigação desprovida de efetivo conteúdo. Governos podem se apresentar como defensores dos DESC sem nenhuma imposição internacional sobre suas políticas e comportamentos. Uma crítica relacionada é que a Convenção impõe somente obrigações “programáticas” sobre os governos – isto é, obrigações a serem cumpridas ao longo de execução de seus programas

44 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 5. Tradução livre.

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políticos. Assim, fica difícil ou impossível determinar quando estas obrigações devem ser cumpridas ou se já foram cumpridas.45

Destaca-se que o PIDESC não apenas lista os direitos econômicos, sociais e

culturais, como também os descreve e conceitua (ainda que de modo geral), como

consta, por exemplo, em seus artigos 7.º (direitos dos trabalhadores)46 e 8.º (liberdade

sindical).47 Somente após a formulação de instrumentos internacionais específicos, por

exemplo, o Protocolo de San Salvador, foi possível melhor determinar o conteúdo dos

direitos.

45 Henry Steiner, Philip J. Alston e Ryan Goodman, Human rights in context: law, politics, morals, p.

275. 46 “Artigo 7.º Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar de

condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem em especial:

a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores;

i) Um salário equitativo e uma remuneração igual para um trabalho de valor igual, sem nenhuma distinção, devendo, em particular, às mulheres ser garantidas condições de trabalho não inferiores àquelas de que beneficiam os homens, com remuneração igual para trabalho igual;

ii) Uma existência decente para eles próprios e para as suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;

b) Condições de trabalho seguras e higiénicas;

c) Iguais oportunidades para todos de promoção no seu trabalho à categoria superior apropriada, sujeito a nenhuma outra consideração além da antiguidade de serviço e da aptidão individual;

d) Repouso, lazer e limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas pagas, bem como remuneração nos dias de feriados públicos.”

47 “Artigo 8.º 1. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a assegurar:

a) O direito de todas as pessoas de formarem sindicatos e de se filiarem no sindicato da sua escolha, sujeito somente ao regulamento da organização interessada, com vista a favorecer e proteger os seus interesses econômicos e sociais. O exercício deste direito não pode ser objeto de restrições, a não ser daquelas previstas na lei e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos e as liberdades de outrem;

b) O direito dos sindicatos de formar federações ou confederações nacionais e o direito destas de formarem ou de se filiarem às organizações sindicais internacionais;

c) O direito dos sindicatos de exercer livremente a sua atividade, sem outras limitações além das previstas na lei, e que sejam necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança social ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades de outrem;

d) O direito de greve, sempre que exercido em conformidade com as leis de cada país.

2. O presente artigo não impede que o exercício desses direitos seja submetido a restrições legais pelos membros das forças armadas, da polícia ou pelas autoridades da administração pública.

3. Nenhuma disposição do presente artigo autoriza aos Estados Partes na Convenção de 1948 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, a adotar medidas legislativas, que prejudiquem ou a aplicar a lei de modo a prejudicar as garantias previstas na dita Convenção.”

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Ambos os Pactos são amplos em termos de direitos albergados. O PIDESC peca,

todavia, por não permitir determinar quais os sujeitos específicos que detêm aquele

direito, tampouco qual a obrigação estatal específica e quais os agentes e órgãos

responsáveis para a concretização do direito. Esse caráter aberto foi uma acertada

estratégia política para obtenção do consenso, exigido para a aprovação do instrumento.

Em que pesem as diferenças entre os Pactos, ambos entraram em vigor somente

dez anos após sua aprovação: o PIDCP, em 23.03.1976; e o PIDESC, em 03.01.1976,

após conseguirem as necessárias 35 ratificações.

O PIDCP proclama, de modo autoaplicável, o dever dos Estados-Partes de

assegurar uma série de direitos nele previstos, para todos os indivíduos, tanto em defesa

do próprio Estado como em relação a terceiros. O catálogo de direitos civis e políticos é

mais amplo do que os previstos na Declaração Universal, tanto do ponto de vista

quantitativo (por abranger direitos anteriormente não previstos) como do qualitativo

(por melhor descrever os direitos previstos).48

O PIDESC, por sua vez, elenca deveres endereçados aos Estados-Partes,

referentes a um extenso catálogo de direitos relacionados ao trabalho; segurança social;

proteção social às mães, crianças e adolescentes; nível suficiente de vida; medidas para

melhora de higiene e doenças relacionadas; saúde; educação, participação cultural; e

48 Flávia Piovesan resume as principais diferenças entre a Declaração e o PIDCP: Quanto ao catálogo de

direitos civis e políticos propriamente dito, o pacto não só incorpora inúmeros dispositivos da Declaração, com maior detalhamento, como ainda estende o elenco destes direitos. Os principais direitos e liberdades cobertos pelo Pacto dos Direitos Civis e Políticos são: o direito à vida; o direito de não ser submetido a tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o direito a não ser escravizado, nem submetido a servidão; os direitos à liberdade, e à segurança pessoal e a não sujeito a detenção ou prisão arbitrária; o direito a um julgamento justo; a igualdade perante a lei; a proteção contra a interferência arbitrária na vida privada; a liberdade de movimento; o direito a uma nacionalidade; o direito de casar e de formar família; as liberdades de pensamento, consciência e religião; as liberdades de opinião e de expressão; o direito à reunião pacífica; a liberdade de associação; o direito de aderir a sindicatos e o direito de votar e tomar parte no Governo. Ainda, o PIDCP abrange direitos não incluídos na Declaração Universal, tais quais o direito de não ser preso em razão de descumprimento de obrigação contratual; o direito da criança ao nome e à nacionalidade; a proteção dos direitos de minorias à identidade cultural, religiosa e linguística; a proibição da propaganda de guerra ou de incitamento a intolerância étnica ou racial; o direito à autodeterminação e outros. Seu mecanismo de controle é por meio de relatórios, comunicações interestatais (desde que o Estado-Parte tenha reconhecido tal competência) ou mesmo petições individuais (caso o Estado-Parte tenha aderido ao Protocolo Facultativo) (Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 230-234).

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30

outros. A sistemática de controle se dava somente por meio de relatórios, sendo

permitido o controle por petições individuais, comunicações interestatais, investigações

in loco e adoção de medidas de urgência, somente a partir da adesão ao Protocolo

Facultativo ao PIDESC, de 2008.

[O propósito dos direitos econômicos e sociais] é assegurar que o Estado continue a adotar medidas legislativas razoáveis e outras medidas progressivas para atingir o cumprimento dos direitos necessários às necessidades básicas da vida. Não foi esperado, nem poderia ser, que o Estado poderia dar aos cidadãos, imediatamente, todas as necessidades básicas da vida. Direitos econômicos e sociais permitem aos cidadãos demandarem do Estado que ele aja de modo razoável e progressivo para permitir que todos obtenham as necessidades básicas da vida. Assim fazendo, os direitos econômicos e sociais permitem aos cidadãos responsabilizar o governo pelo modo em que este busca o atingimento dos direitos econômicos e sociais.49

O Brasil ratificou ambos os Pactos em 24.01.1992, época em que muitos de seus

ideais – por exemplo, a defesa da dignidade da pessoa humana, proibição da tortura,

liberdade de expressão etc. – já haviam sido incorporados à nossa Constituição vigente.

2.2 Conceito e regime jurídico dos direitos sociais

Demonstrada a origem histórica internacional dos denominados direitos sociais,

faz-se necessário entender a relação desses direitos com o gênero “direitos

fundamentais”, da qual os direitos econômicos, sociais e culturais são espécies. A

utilização da expressão “direitos fundamentais” é precisa: em primeiro lugar, por sua

abrangência, uma vez que o termo “direito” serve para indicar tanto a defesa da

população em face do Estado como os interesses jurídicos que envolvem prestações

sociais, políticas ou difusas; em segundo lugar, o termo fundamental demonstra que se

trata de um direito imprescindível à condição humana. Em outras palavras, “os direitos

49 Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of

India, South Africa, and Colombia, p. 72.

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fundamentais podem ser conceituados como a categoria jurídica instituída com a

finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões”.50

Historicamente, os direitos sociais foram definidos como direitos de cunho

prestativo, caracterizados por obrigações positivas estatais, que exigem uma atividade

prestacional do Estado, com o objetivo declarado de buscar a superação das carências

sociais. Por isso, em contraposição aos direitos fundamentais de primeira geração –

chamados de “direitos negativos” –, os direitos fundamentais de segunda geração são

denominados “direitos positivos”, pois clamam pela presença do Estado em ações

voltadas à minoração dos problemas sociais. Também são designados de “direitos de

crença”, pois trazem a esperança de uma participação ativa do Estado.51 São direitos a

prestações positivas por parte do Estado, vistos como necessários para o

estabelecimento de condições mínimas de vida digna para todos os seres humanos.52

Alerta-se que nem todo direito à prestação é um direito social, uma vez que

também as liberdades públicas e os direitos políticos exigem uma prestação estatal. A

diferença entre os direitos prestacionais e os direitos sociais, portanto, é mais tênue do

que o defendido inicialmente. Deveres estatais necessários ao exercício de direitos

políticos, por exemplo, são prestacionais, mas não sociais. A diferença entre ambos

ocorre na medida em que os direitos políticos não têm por objetivo a realização da

igualdade material entre indivíduos, sendo este o escopo intrínseco aos direitos

sociais.53

A visão meramente prestacional, no sentido de que direitos sociais são sempre

dependentes de uma atuação do Estado, não mais se sustenta.54 Os direitos sociais são

vistos não só como posições jurídicas prestacionais (direito à saúde, educação, moradia,

seguridade social, assistência social, entre outros), mas também por uma gama de

50 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, p. 80-81. 51 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, p. 88. 52 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de direito constitucional, p. 306. 53 Virgílio A. Silva, Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, p. 79. 54 “Cabe ressaltar que tanto os direitos sociais, econômicos e culturais como os direitos civis e políticos

demandam do Estado prestações positivas e negativas, sendo equivocada e simplista a visão de que os direitos sociais, econômicos e culturais só demandariam prestações positivas, enquanto direitos civis e políticos demandariam prestações negativas ou a mera abstenção estatal” (Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 244).

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direitos de defesa (limitação de jornada de trabalho, igualdade de direitos entre

trabalhadores, liberdade de associação sindical, direito de greve, proibição de

discriminação etc.). As duas espécies são endereçadas principalmente ao Estado,

visando à melhoria das condições de vida e à promoção da igualdade material dos

cidadãos. A igualdade material, a ser prestada, se daria por meio da disponibilização de

condições fáticas pelos agentes do Estado, como forma de assegurar igualdade de

oportunidades de desenvolvimento pessoal e de participação na vida política da

sociedade, com o consequente exercício dos direitos fundamentais.55

Os direitos sociais, como espécie do gênero “direitos fundamentais”,

compartilham com estes suas características de historicidade, inalienabilidade,

imprescritibilidade e irrenunciabilidade. Historicidade, pois – como qualquer direito –

nascem, modificam-se e desaparecem; Inalienabilidade, pois não possuem conteúdo

econômico-patrimonial e, logo, são direitos intransferíveis, inegociáveis, e

indisponíveis; Imprescritibilidade, na medida em que seu exercício é sempre possível,

não havendo lapso de tempo apto a aniquilar o seu exercício; e Irrenunciabilidade, uma

vez que, ainda que não sejam exercidos, não podem ser renunciados.56

Além dessas características, os direitos econômicos e sociais possuem um

regime jurídico próprio, que lhes serve como vetor interpretativo para uma

hermenêutica diferenciada relativamente aos demais direitos. A existência de um regime

jurídico específico para os direitos econômicos e sociais é defendida por Alessandra

Gotti Bontempo, tendo em vista as peculiaridades ímpares que justificam uma

hermenêutica diferenciada. As balizas interpretativas específicas seriam: (i) a

observância do núcleo essencial dos direitos sociais; (ii) o princípio da utilização do

máximo dos recursos disponíveis; (iii) o princípio da implementação progressiva e da

55 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 24-25. 56 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 181.

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proibição do retrocesso social; e (iv) o princípio in dubio pro justitia socialis. Esse

regime jurídico específico será brevemente apresentado.57

O princípio da observância do núcleo essencial dos direitos sociais, que será

estudado de modo mais aprofundado no Capítulo 3 deste trabalho, impõe a observância

de uma efetividade mínima e inderrogável de direitos sociais, abaixo da qual a indevida

omissão estatal é considerada ilícita e, inequivocadamente, sujeita a tutela judicial.

Outrossim, o núcleo essencial dos direitos sociais possui importante papel de definir e

conceituar direitos usualmente positivados de modo aberto e impreciso nas

constituições e pactos internacionais.58

O estabelecimento do que se encontra dentro desse núcleo mínimo implica, na

realidade, a própria luta pela defesa dos direitos econômicos e sociais. Incluir uma

prestação como inerente ao núcleo mínimo significa, na realidade, dar-lhe concretude

imediata. De modo contrário, a não inclusão de um direito no rol do núcleo mínimo

importa em deixar-lhe aguardando o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais,

em um futuro incerto.

O princípio da utilização do máximo dos recursos disponíveis, previsto no art.

2.º, § 1.º, do PIDESC, impõe uma restrição jurídica à arbitrariedade política dos

governantes, no tocante à alocação de recursos públicos. A restrição à alocação de

recursos direciona o Estado a um sério comprometimento com o planejamento na

utilização dos recursos públicos, por meio de metas de curto, médio e longo prazo. Esse

princípio questiona a concepção de reserva do possível, muitas vezes utilizada como

barreira à implementação de direitos.59

Os recursos disponíveis, nesse caso, não se limitam a recursos financeiros para

as mais variadas políticas públicas, mas igualmente recursos judiciais aptos a permitir

que os cidadãos questionem e reivindiquem direitos sociais por meio do Poder

57 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 45-84. 58 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 47-56. 59 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 57-60.

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Judiciário, ainda que seja necessário respeitar as particularidades dos sistemas judiciais

de cada país.60

O princípio da implementação progressiva e o da proibição do retrocesso

social, previstos no art. 2.º, § 1.º, do PIDESC,61 determina um duplo comando:

fundamenta a obrigação de adotar medidas visando à implementação gradual dos

direitos sociais; e a obrigação de não retroceder no nível de fruição dos direitos

conquistados. A obrigação da progressividade pressupõe a adoção de medidas positivas

(fáticas ou normativas) e também o dever de atuar (fática e normativamente) em face da

deterioração do nível de gozo desses direitos pela população. Assim, ambos os

princípios são facetas de uma mesma situação, de modo complementar.62

Conforme Victor Abramovich e Cristian Courtis, por meio da ideia de

progressividade de implementação dos direitos sociais, vinculada à noção de núcleos

mínimos para os direitos sociais, podemos determinar quais as obrigações estatais já

concretas e aptas a serem adjudicadas (ou revisadas) pelo Poder Judiciário em caso de

descumprimento. E, pela proibição de retrocesso, proíbe-se que o Estado piore

deliberadamente os patamares de direitos econômicos e sociais de sua população.63

Do ponto de vista do cidadão, a obrigação [da implementação progressiva e proibição do retrocesso] é uma garantia da manutenção dos direitos econômicos e sociais, existentes no momento da adesão ao PIDESC, e de manutenção de seus níveis de gozo, a partir de sua adoção e a paritr de todas as melhorias que tenham exprimentado desde então. Se trata de uma garantia material, ou seja, de uma garantia que tende a proteger o conteúdo os direitos vigentes no momento da adoção da obrigação internacional, e o nível de gozo atingido a cada vez que o

60 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 85-86. 61 “Artigo 2.º 1. Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu

próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas.”

62 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e controle do retrocesso social, p. 68-79.

63 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 93-94.

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Estado, em cumprimento de sua obrigação de progressividade, haja produzido uma melhora.64

A implementação progressiva e a proibição do retrocesso social trazem consigo

algumas questões tormentosas para a aplicação efetiva dos princípios, mas talvez a mais

importante seja a grande dificuldade a respeito da qualificação de uma norma como

retrógrada em face de outra, substituída, que seria mais progressiva e favorável aos

direitos econômicos e sociais.

Para a verificação do caráter retrógrado da norma, uma sugestão é a utilização

do critério justrabalhista para a constatação da norma mais benéfica, que é realizada por

meio das teorias da acumulação e do conglobamento. A diferença entre as duas teorias

diz respeito ao escopo analisado: pela teoria da acumulação, as normas (regressiva e

não regressiva) devem ser confrontadas em cada ponto específico; pela teoria do

conglobamento, o confronto deve ser entre a integralidade dos conjuntos normativos

(ou, ao menos, pelo conjunto de normas sobre cada tópico, denominado teoria do

conglobamento mitigado). Entendemos que a análise em conjunto dos institutos é o

modo mais adequado, da mesma forma como ocorre no direito do trabalho.

No tocante ao processo de hierarquização de normas, não poderá o operador jurídico permitir que o uso do princípio da norma mais favorável comprometa o caráter sistemático da ordem jurídica, elidindo-se o patamar de cientificidade a que se deve submeter todo processo de interpretação e aplicação do Direito. Assim, o encontro da regra mais favorável não se pode fazer mediante uma separação tópica e casuística de regras, acumulando-se preceitos favoráveis ao empregado e praticamente criando ordens jurídicas próprias e provisórias em face de cada caso concreto – como resulta do enfoque proposto pela teoria da acumulação.65

O princípio in dubio pro justitia socialis busca resguardar a interpretação

jurídica mais benéfica ao ideário da justiça social. Assim, em caso de dúvida na

aplicação de normas jurídicas, devem-se interpretá-las de modo que favoreça à justiça

social. Alessandra Gotti Bontempo, ainda, entende que esse princípio pode ser utilizado

64 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 96. 65 Maurício Godinho Delgado, Curso de direito do trabalho, p. 200.

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na apreciação de provas em determinado processo,66 o que discordamos por

entendermos ser causador de insegurança jurídica.

Esse breve resumo do regime jurídico dos direitos sociais deve ser considerado

quando da análise de casos concretos que envolvam tais direitos. No tocante à busca

pela efetividade dos direitos sociais, os princípios da observância do núcleo mínimo de

direitos e o da utilização do máximo dos recursos disponíveis são de suma importância,

conforme veremos.

2.3 Direitos sociais como fundamento do Estado Contemporâneo

Historicamente, os direitos econômicos e sociais foram positivados de modo

lento e gradual, no início ainda sob a denominação genérica de direitos civis, para

depois se tornarem o que hoje é consagrado como direitos econômicos e sociais,

impulsionados especialmente pelo clima político após a 2.ª Guerra Mundial.

Ademais, desde a entrada em vigor do PIDESC, esses direitos passaram a ser

incorporados internamente pelos Estados, por meio da promulgação de novas

constituições (nas novas democracias) ou pela ratificação do Pacto pelas democracias

consolidadas.

É justamente sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos que é possível compreender, no Pós-Guerra, de um lado, a emergência do chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, de outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, em resposta ao impacto das atrocidades então cometidas. No âmbito do Direito Constitucional ocidental, são adotados Textos Constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições europeias do Pós-Guerra.67

66 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 84. 67 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 85.

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O PIDESC se irradiou a ponto de ser classificado, por Víctor Abramovich e

Christian Courtis, como “norma universal” sobre direitos econômicos e sociais, em

razão da identidade entre a estrutura dos direitos previstos no Pacto e nas constituições,

e também pela semelhança de problemas de exigibilidade, tão comuns à esfera mundial

e local, a ponto de a análise dos problemas e questões relacionadas ao PIDESC poder

ser transpassada posteriormente à esfera local.68

Dessa forma, em adição ao plano normativo internacional, os direitos

econômicos e sociais foram incorporados às ordens jurídicas internas, nas novas

constituições promulgadas. De modo semelhante, as obrigações referentes a direitos

econômicos e sociais, em geral, foram encaradas no plano interno de modo a serem

progressivamente realizáveis, por meio de medidas legislativas razoáveis e possíveis.69

Esse processo político de constitucionalização de direitos sociais e econômicos,

como autênticos direitos positivos, reforçou o caráter inter-relacionado e indivisível dos

direitos humanos: do ponto de vista constitucional, os direitos e garantias de cunho

individual somente possuem sentido existencial se os direitos de natureza social e

econômicos forem efetivos, a ponto de cada indivíduo possuir uma garantia, ainda que

mínima, de recursos.

“É interessante notar que, ao longo do último século, o modo como direitos

sociais e econômicos foram positivados nas constituições foi fortalecido, e a grande

divisão entre direitos civis e políticos foi reduzida.”70

No atual momento histórico, os direitos econômicos e sociais (com os direitos

civis e políticos) são usualmente direitos positivados em âmbito constitucional: sob

influência dos Pactos Internacionais sobre direitos humanos (PIDCP e PIDESC), é

comum que os países do denominado “Terceiro Mundo” – que usualmente passaram

por processos constituintes originários após a celebração dos instrumentos – possuam

em suas constituições extensos direitos de índole econômica ou social, diferentemente

68 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 21. 69 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights. 70 David Bilchitz, in Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: The

Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, p. 47.

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dos países tradicionalmente denominados “Primeiro Mundo”, cujas constituições são

omissas relativamente a esses direitos (como regra geral).

Isso porque, do ponto de vista cronológico, os países desenvolvidos possuem

textos constitucionais consolidados desde antes da consagração e definição desses

direitos de 2.ª dimensão e, por esse motivo, eles não fizeram parte do constituinte

originário. De outro lado, a maior parte dos países subdesenvolvidos elaborou suas

constituições após essa consagração, o que levou à positivação expressa desses direitos.

Trata-se de uma quase ironia, na medida em que os países que mais dispõem de

recursos e efetivamente cuidam melhor das questões sociais são os que, do ponto de

vista do texto jurídico-constitucional, estariam menos obrigados a isso (ressalve-se que

isso é dito apenas do aspecto textual das constituições, sem qualquer análise mais

aprofundada sobre indicadores econômicos).

Os Estados que constitucionalizaram direitos econômicos e sociais, na segunda

metade do século passado, assim fizeram por meio de termos gerais, abstratos e de

conteúdo flexível, que possam ser utilizados como “denominador comum” para se obter

o consenso. Ou seja, a atuação dos constituintes ocorreu de modo semelhante à forma

de positivação realizada no âmbito internacional: a busca pelo consenso razoável, por

meio de termos gerais para as obrigações sociais.

“Pessoas de diferentes culturas podem continuar a discordar sobre o que é bom,

mas ainda assim concordar sobre o que é insuficiente, notoriamente ruim.”71

Apesar de possuírem conteúdo e alcances incertos, a positivação (e defesa, ao

menos teórica) dos direitos econômicos e sociais passou a ser fundamento para a

legitimidade do ordenamento jurídico como um todo, tanto no plano interno como no

plano externo. Não mais se admite, ou ao menos não é bem visto, do ponto de vista

político, que um Estado possua uma política oficial omissa ou anuente com a violação

de direitos humanos, tanto na esfera civil e política como de natureza econômica e

social. Situações vivenciadas, por exemplo, pelo Estado da África do Sul, em regime de

71 Apud Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 66.

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apartheid até 1994, com relação aos negros, se tornam ilegítimas do ponto de vista

jurídico e cultural.

Um texto constitucional omisso no tocante a garantias para os direitos sociais e

econômicos significa uma constituição incapaz de proteger seus cidadãos de um dos

maiores males da atualidade, que é a proteção contra a pobreza extrema e,

especialmente, a proteção contra a falta de condições dignas de vida. Sem proteção para

os direitos sociais e econômicos, as relações econômicas e a real distribuição de

recursos tendem a se desenvolver de modo que os indivíduos mais vulneráveis fiquem

incapazes de sobreviver ou somente sejam capazes de sobreviver em condições

terríveis.

Em circunstâncias em que milhões de pessoas vivem em miserabilidade, a exclusão no texto constitucional de garantias endereçadas aos que vivem em condições econômicas desfavoráveis teria impacto na própria legitimidade do sistema. Isso deixa claro o fato de que, quando o Poder Judiciário impõe tais garantias em face de outros Poderes, ele não está agindo, como muitos poderiam pensar, de maneira antidemocrática; ao contrário, está defendendo as condições necessárias para a própria legitimidade da ordem constitucional, da qual nenhuma pessoa pode ser excluída. As constituições do Global South corrigem o desbalanceamento das Northen Constituitions72 e nos ajudam a entender os princípios e garantias que devem ser elementos essenciais de qualquer constituição respeitável. Do ponto de vista da filosofia política, a inclusão de direitos econômicos e sociais nas constituições do Global South não são apenas uma reação destes países a suas particularidades históricas, usualmente talhadas por grande disparidade econômica e de oportunidades entre os ricos e pobres, mas sim a expressão de princípios universais imensamente desejados e de difícil contestação ideológica.73

Os ideais instituídos nessas novas constituições, por exemplo, os ideais de

igualdade econômica, pleno emprego, igualdade de oportunidades para o acesso a

cargos públicos ou universidades, direito à educação e proteção de minorias, são mais

do que aspirações de um Estado: são aspirações de todos os Estados modernos (ainda

72 O autor se utiliza da expressão Global South para se referir à Índia, África do Sul e Colômbia, como

representantes do modelo constitucional presente nas constituições democráticas modernas; e os termos Northern Constitutions para se referir às constituições das democracias consolidadas.

73 David Bilchitz, in Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, p. 53-54.

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que o significado de cada um desses direitos possa variar de acordo com a cultura de

cada povo).

Se os direitos econômicos e sociais estão devidamente consagrados na maior

parte dos ordenamentos jurídicos (nacionais e internacionais, seja pela positivação de

seu conteúdo ou pela aderência aos Pactos Internacionais), existem ainda inúmeros

problemas, jurídicos ou extrajurídicos (por exemplo, falta de recursos financeiros, falta

de definição de direitos etc.), que impedem a efetiva concretização dos direitos

econômicos e sociais.

A situação atual dos direitos fundamentais (inclusive os econômicos e sociais)

“não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”.74 A atual luta é para a

consagração da efetividade das normas positivas, o que exige a superação de alguns

paradigmas que impedem a ampla consagração destes, conforme será visto no capítulo a

seguir.

Dados concretos comprovam que ainda há muito o que ser feito quanto aos

direitos econômicos e sociais. Segundo o Relatório Nacional de Acompanhamento dos

Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, elaborado pelo IPEA a pedido da

Presidência da República, problemas sociais básicos, como a extrema pobreza e a fome,

falta de educação primária, falta de igualdade de gêneros e mortalidade infantil, ainda

representam um grande problema no Brasil e no mundo. Apesar dos avanços recentes,

especialmente no Brasil, em 2013 havia mais de 1,2 bilhão de pessoas no mundo

aferindo renda mensal abaixo de R$ 71,75 por mês, e por isso são consideradas pessoas

sujeitas à pobreza extrema.

74 Norberto Bobbio, A era dos direitos.

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3

O PROCESSO DE DESCONSTRUÇÃO E DE RECONSTRUÇÃO DO PARADIGMA SOBRE A EFETIVIDADE DOS DIREITOS

SOCIAIS

Entre a consagração, no plano internacional, das normas protetivas dos direitos

econômicos e sociais (demonstrada no capítulo anterior) e a caracterização destas no

Brasil como normas jurídicas “autênticas” e efetivas (e, portanto, aptas a gerar direitos

subjetivos), tivemos um hiato de quase 40 anos.

Nesse período, podemos delimitar a existência de ao menos três fases distintas,

de acordo com o grau de efetividade dos direitos sociais reconhecidos: em um primeiro

momento, os direitos econômicos e sociais eram relegados a um segundo plano, sendo

considerados como um direito marginal e secundário. Nesse período, os direitos

fundamentais de 2.ª dimensão tinham pouca, ou nenhuma, efetividade; em um segundo

momento, os direitos econômicos e sociais passaram a ser entendidos como direitos de

cunho subjetivo (ainda que com restrições), aptos a serem pleiteados judicialmente, de

modo individual ou coletivo. A partir dessa virada de entendimento, a maioria dos

direitos sociais passou a ser judicialmente tutelada.

No momento atual, que será estudado no próximo capítulo, vemos que

carecemos de técnicas jurídicas e entendimentos jurisprudenciais precisos para

estabelecer quais os limites e parâmetros para a adjudicação dos direitos sociais. Nas

palavras de Luís Roberto Barroso, vivemos uma fase de “judicialização excessiva”.75

Vejamos.

75 Luis Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,

fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 160: “O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal – União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e

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3.1 O antigo paradigma: deveres estatais que não geram direitos subjetivos. Os

direitos econômicos, sociais e culturais como direitos marginais

Ao analisarmos, de modo histórico, a eficácia (e efetividade) dos direitos

fundamentais no Brasil, vemos uma grande distinção entre os direitos de 1.ª e de 2.ª

dimensão, como resultado da visão jurídica tradicional que privilegiava o pensamento

liberal pautado na abstenção do Estado, supostamente em defesa dos direitos de 1.ª

dimensão, em detrimento de uma efetiva atuação estatal em prol dos direitos de 2.ª

dimensão e de sua população.76

Apesar de a Constituição brasileira de 1988 ter positivado uma série, até então

inédita, de deveres do Estado vinculados a uma extensa gama de direitos, de natureza

civil e política e também de natureza econômica, social e cultural, a interpretação

jurídica realizada sobre o texto constitucional não permitia que concluíssemos pela

efetiva existência de direitos subjetivos para a população. Estranhamente, o Estado

estava incumbido de deveres, mas a população estava desprovida do direito de exigir o

adimplemento desses deveres.

Talvez como medida de proteção contra o alto grau de insinceridade do legislador, o constituinte brasileiro, ao lado da prevalência dos direitos fundamentais, tenha buscado assegurar sua independência (conceito correlato) em relação ao Legislativo, ao próprio Judiciário e ao Executivo. Se lermos com atenção o § 1.º do artigo 5.º da Constituição Federal, veremos que exige o constituinte a “aplicação imediata” das normas garantidoras de direitos e garantias fundamentais. Ou seja, estas

mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestação jurisdicional.

3. Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo”.

76 Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, p. 207-208.

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não podem ter a sua aplicação retardada por inexistência de lei ou qualquer ato normativo.77

Ainda assim, de acordo com a interpretação jurídica inicialmente predominante,

a simples existência de um dever, no texto da Constituição, não correspondia a um

autêntico direito subjetivo. Essa interpretação sobre a eficácia dos direitos sociais

comprova que, em certa medida, a distinção dos direitos fundamentais em 1.ª e 2.ª

gerações representa, ainda que veladamente, uma distinção entre a qualidade de ambas

as espécies de direitos:

Enquanto a retórica internacional dos direitos humanos sustenta que todos os direitos fundamentais são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados e, consequentemente, merecem o mesmo respeito, a realidade é que os direitos econômicos e sociais foram tradicionalmente encarados e tratados como “a Cinderela dos direitos humanos”, honrada mais “na transgreção do que no respeito”. Este status de segunda classe teve, entre outras coisas, um impacto negativo na possibilidade de busca da efetiva implementação destes direitos, tanto em nível internacional como doméstico.

E apesar de um certo grau de otimismo gerado nos últimos anos por uma jurisprudência emergente, internacional, regional e nacional, para o trato dos direitos socioeconômicos, uma combinação de acontecimentos políticos globais e hostilidade contínua para a proteção de tais direitos por tribunais nacionais tem assegurado aos direitos socioeconômicos esse status de segunda classe.78

Entre a inclusão de uma norma jurídica, válida e efetiva, no ordenamento

jurídico e a aplicação desta, com razoável grau de amplitude para todas as situações por

ela reguladas, existe um grande hiato, que pode ser causado por fatores sociais,

culturais, políticos ou jurídicos. Nesse ponto, distingue-se a eficácia da aplicabilidade

das normas jurídicas: uma norma pode ser juridicamente apta a produzir efeitos, sendo

eficaz, mesmo que – por motivos sociais, econômicos, culturais ou políticos – ela não

seja efetivamente aplicada no dia a dia das pessoas (carecendo, portanto, de

aplicabilidade).

77 O. V. Vieira, Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF, p. 50. 78 Paul O’Connell, Vindicating socio-economic rights: international standards and comparative

experiences, pos. 265. Tradução livre.

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A eficácia da norma jurídica diz respeito à existência de condições técnicas (ou

possibilidade teórica) de gerar efeitos, ainda que não seja observada por seus

destinatários em casos concretos.79

Sendo a norma eficaz, cabe a verificação da sua aplicabilidade. A aplicabilidade

de uma norma independe – a princípio – de quaisquer outras condições jurídicas (que

não seja a eficácia da própria norma). Assim, a aplicabilidade depende da existência de

condições fáticas (e não mais jurídicas) que a implementem no mundo real. Essas

condições podem estar relacionadas a motivos sociais, econômicos, culturais e políticos,

por exemplo, falta de recursos humanos para adimplir lei municipal que limita tempo de

espera em fila de banco (fator econômico)80.

Ademais, a partir do texto da norma, caberá ao intérprete torná-la efetiva a ponto

de obter seu caráter constitutivo a ser aplicado para a solução de um caso concreto, uma

vez que o texto da norma difere da norma efetiva.81

Em um segundo momento, caso a norma – de eficácia jurídica incontestável –

não seja aplicada em situações concretas na quais deveria ser, cabe ao Poder Judiciário

impor a aplicação dela, em substituição à vontade das partes que a ignoraram, por

diversos mecanismos de cunho processual (condenação em reparação de danos,

determinação de obrigação de fazer ou não fazer, emissão de declaração de vontade, por

exemplo). Portanto, como regra geral, é função do Poder Judiciário tornar uma norma

dotada de eficácia, em uma norma que seja efetivamente eficaz e aplicada.

No caso brasileiro (e na grande maioria dos países com história constitucional

semelhante),82 os direitos econômicos e sociais permaneceram à margem de aplicação,

79 Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, p. 44. 80 “Ação de indenização. Espera em fila de banco por mais de uma hora. Tempo superior ao fixado por

legislação local. Insuficiência da só invocação legislativa aludida. Padecimento moral, contudo, expressamente assinalado pela sentença e pelo acórdão, constituindo fundamento fático inalterável por esta corte (Súmula 7/STJ). Indenização de R$ 3.000,00, corrigida desde a data do ato danoso (Súmula 54/STJ). […] (STJ, 3.ª Turma, REsp n.º 1218497/MT 2010/0184336-9, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 11.09.2012, DJe 17.09.2012).”

81 Ministro Eros Grau, ADPF n.º 153, Tribunal Pleno, j. 29.0.2010. 82 “No ‘ciclo curto da história’, os últimos 30 anos assistiram à cristalização de regimes democráticos

em nossa região. O movimento de democratização foi acompanhado por intensa atividade constituinte. Uma pesquisa breve entre os países representados ao redor desta mesa demonstra que a

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ao menos como autênticos direitos subjetivos, por quase 15 anos após a promulgação da

Constituição Federal, como decorrência da visão clássica sobre os direitos econômicos e

sociais (tradicionalmente encarados como direitos secundários, conforme visto

anteriormente) e também da visão clássica de que estes seriam “apenas” princípios

jurídicos (tradicionalmente entendidos como normas de interpretação).

Os direitos econômicos e sociais consagrados (tanto em instrumentos

internacionais como nas constituições), em muitas vezes, eram entendidos como

documentos de caráter político, e não efetiva obrigação jurídica para os Estados

(conforme ocorria com os direitos de natureza civil e política). Por essa visão, os

direitos econômicos e sociais não geravam quaisquer obrigações para os Estados em

face dos particulares.83

Inúmeras foram as barreiras para vislumbrar os direitos econômicos e sociais

como direitos inaptos de serem adjudicados judicialmente para particulares. Em linhas

gerais, as críticas mais consistentes para fundamentar a ausência de aplicabilidade

forçada dos direitos sociais foram as seguintes: (i) ausência de força jurídica efetiva das

normas principiológicas; (ii) falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário;

(iii) violação ao princípio da separação dos poderes; (iv) princípio da reserva do

possível; e (v) falta de mecanismos processuais adequados.

Explicaremos, nas linhas que seguem, os principais argumentos, favoráveis e

contrários, a cada uma dessas teorias. A importância da análise destas se dá como

introdução ao assunto, na medida em que – pelo menos do ponto de vista judicial –

nenhuma das teorias mencionadas obstaculiza atualmente o exercício de direitos

econômicos e sociais por meio do Poder Judiciário.

maioria dos nossos países adotou novas Constituições do final da década de 1980 para cá. Na esteira da cronologia proposta por Giuseppe de Vergottini (Diritto Costituzionale Comparato, 2004), alguns estudiosos chegaram referir-se a uma ‘terceira onda’ do constitucionalismo latino-americano” (Pronunciamento do Ministro Cezar Peluso na Abertura do VIII Encontro de Cortes Supremas do Mercosul e Associados. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/ portalStfInternacional/portalStfCooperacao_en_us/anexo/discurso_de_abertura.doc&sa=U&ei=8YjGU_-7FazjsATs1YL4Dw&ved=0CBoQFjAB&usg=AFQjCNGY3DiJesCrfdH-NVFpIYzK_0wA6A>. Acesso em: 14 maio 2014).

83 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 19.

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Ainda que vencidas, se assim podemos dizer, as teorias que obstaculizavam o

questionamento judicial das políticas públicas sobre direitos econômicos e sociais

possuem importância história. Por outro lado, como veremos, apesar de o acesso ao

Poder Judiciário ser possível, ainda que se trata de direitos econômicos e sociais, este

ainda se dá de modo tormentoso, e muitas vezes produz soluções jurídicas inadequadas

do ponto de vista econômico e sistêmico.

Conforme será observado no item a seguir, o reconhecimento da força normativa

de todas as normas da constituição superou as teses contrárias à adjudicação de direitos

econômicos e sociais, pelo Poder Judiciário. O Poder Judiciário, em sua função

específica de apreciar “lesão ou ameaça a direito”, está assumindo sua função

institucional principal, ainda que o direito lesionado ou ameaçado seja um direito de

cunho econômico, social ou cultural.84 Ao assumir essa “nova função”, por outro lado,

começa a se debruçar sobre dificuldades, técnicas e operacionais, para o cumprimento

de seu papel.

3.1.1 Ausência de força jurídica efetiva das normas principiológicas

O primeiro óbice apontado – a ausência de força jurídica dos princípios e

normas principiológicas – nos remete à concepção positivista das normas jurídicas,

segundo a qual – em linhas gerais – as normas devem necessariamente prescrever

condutas, de modo determinado e específico.

Com base nessa visão tradicional da norma, José Afonso da Silva alicerçou sua

teoria sobre aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais, que restou consagrada

e de vasta aceitação pela doutrina e jurisprudência do final do século XX e início do

século XXI. Segundo essa teoria, as normas constitucionais se distinguiriam em três

categorias distintas, de acordo com o grau hipotético de produção de efeitos concretos:

as normas de eficácia plena, normas de eficácia contida e normas de eficácia limitada.85

84 J. C. Dias, O controle judicial de políticas públicas, p. 110. 85 José Afonso da Silva, A aplicabilidade das normas constitucionais, p. 13.

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As normas de eficácia plena são as que possuem conteúdo e alcance

previamente determinado pelo Poder Constituinte. Portanto, estão aptas, desde o início,

a produzir todos os efeitos jurídicos nelas previstas, independentemente de qualquer

regramento posterior. São normas que, por essa ideia, nasceram perfeitas e vinculantes.

As normas de eficácia contida igualmente possuem conteúdo e alcance

previamente determinados pelo Poder Constituinte e, da mesma forma, estão aptas a

desde o início produzir todos os efeitos jurídicos nelas previstas, independentemente de

qualquer regramento posterior. Todavia, por expressa disposição no texto

constitucional, essas normas podem ter seus efeitos jurídicos posteriormente limitados

por legislação infraconstitucional. Veja-se que essas normas produzem efeitos desde a

positivação, de modo independente de qualquer norma posterior. Todavia, podem ter

seus efeitos contidos por normas posteriores.

Por fim, as normas de eficácia limitada são as que, pela indefinição sobre seu

efetivo alcance e conteúdo, dependem necessariamente de atos legislativos posteriores

para produzirem efeitos. Não se confundem as normas de eficácia limitada com as

normas de eficácia contida, pois as segundas podem ser limitadas pela atuação

legislativa posterior, ao passo que as primeiras devem ser regulamentadas pela atuação

legislativa.

Ainda, as normas constitucionais de eficácia limitada se dividem em normas

constitucionais de princípio institutivo, quando “contêm esquemas gerais, um como que

início de estruturação de instituições, órgãos ou entidades”,86 ou de princípio

programático, quando dizem respeito ao esquema geral de governo a ser observado.87

86 José Afonso da Silva, A aplicabilidade das normas constitucionais, p. 123. 87 “Este embate entre o liberalismo, com seu conceito de democracia política, e o intervencionismo ou o

socialismo repercute nos textos das constituições contemporâneas, com seus princípios de direitos econômicos e sociais, comportando um conjunto de disposições concernentes tanto aos direitos dos trabalhadores como à estrutura da economia e ao estatuto dos cidadãos. O conjunto destes princípios forma o chamado conteúdo social das constituições. [...] São estas que constituem as normas constitucionais de princípio programático” (José Afonso da Silva, A aplicabilidade das normas constitucionais, p. 137).

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Nessa linha de pensamento, caberia ao Estado a consecução imediata dos

direitos subjetivos e políticas públicas previstas em normas de eficácia plena e contida,

ao passo que os direitos e políticas públicas previstos em normas de eficácia limitada

deveriam ser entendidos como objetivos programáticos ao planejamento estatal, mas

sem efeito vinculante à administração. Esse tipo de norma produziria efeitos mínimos,88

e – caso não fosse cumprida – seria apenas uma “promessa constitucional

inconsequente”.89

Para essa teoria, as normas que versam sobre os direitos econômicos e sociais

são consideradas como normas de princípio programático, as quais somente poderiam

ser aplicadas após a efetiva regulamentação por norma infraconstitucional do direito

constitucionalmente assegurado. De modo semelhante, as normas internacionais sobre o

assunto (tal qual o PIDESC, ratificado pelo Brasil em 24.01.1992) também poderiam

ser entendidas como normas de cunho programático e, portanto, de pouca efetividade.

Como exemplo claro desse pouco compromisso inicial do Estado brasileiro com

o PIDESC, recordamos que a obrigação de apresentar Relatórios periódicos, nos termos

88 “Firmada a tese inicial de que as normas programáticas protegem interesses juridicamente relevantes,

admitimos que nem sempre têm capacidade para tutelar diretamente direitos particulares desde logo exigíveis. Mas certamente produzem situações subjetivas de vantagem que podem caracterizar simples interesses, simples expectativas, interesse legítimo e até direito subjetivo.

Normas programáticas como as do art. 170, caput (‘a ordem econômica... tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social...’); do art. 170, VII (‘a redução das desigualdades regionais e sociais’); do art. 170, VIII (‘busca do pleno emprego’); do art. 184 (possibilidade de ‘desapropriação para fins de reforma agrária’); do art. 218 (‘O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, e a capacitação tecnológica’); do art. 218, § 1.º (‘A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências’) e outras semelhantes, certamente, protegem um interesse geral, mas não conferem aos beneficiários desse interesse o poder de exigir a sua satisfação; não delimitando seu objeto, nem fixando sua extensão, não fornecem os meios para sua realização antes que o legislador cumpra o dever de completá-las com providências executivas. No máximo, aí se verifica um interesse simples, não exigível positivamente pelos eventuais beneficiários, que podem ter uma expectativa de sua concretização através da legislação integrativa ou de outra atividade do Poder Público” (José Afonso da Silva, A aplicabilidade das normas constitucionais, p. 176).

89 Conforme mencionado por Celso de Mello, por exemplo, no AGRRE n.º 271.286-8/RS.

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dos artigos 16 e 17 do Pacto,90 somente foi cumprida pelo Brasil em 21.08.2001, com

sete anos de atraso com relação à data inicialmente prevista (30.06.1994).91

Da mesma forma como ocorreu relativamente a outros países, a ratificação do

PIDESC pelo Estado brasileiro não implicou necessariamente um efetivo compromisso

do Estado na defesa e proliferação dos direitos econômicos e sociais. Ainda assim, se o

reconhecimento dos direitos do PIDESC pelo Brasil pouco fez para a efetiva

concretização desses direitos, a ratificação do Pacto foi ao menos uma demonstração de

boa-fé do Estado, em prol da consecução dos direitos albergados.

Não é raro enfrentar opiniões que negam qualquer valor jurídico aos tratados referentes a direitos econômicos, sociais e culturais, entendendo-os como meras declarações de boas intenções e de compromisso político (ou ainda, no cenário mais pessimista, como engano ou fraude apaziguadora de conflitos). Nessa visão, os instrumentos que estabelecem direitos econômicos, sociais e culturais são considerados documentos de caráter político, e não como autêntico rol de obrigações jurídicas para o Estado, como é o caso da grande maioria dos direitos civis e políticos. De acordo com essa visão, somente

90 “Artigo 16.º 1. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a apresentar, em conformidade

com as disposições da presente parte do Pacto, relatórios sobre as medidas que tiverem adotado e sobre os progressos realizados com vista a assegurar o respeito dos direitos reconhecidos no Pacto.

2. a) Todos os relatórios serão dirigidos ao Secretário-Geral das Nações Unidas, que transmitirá cópias deles ao Conselho Econômico e Social, para apreciação, em conformidade com as disposições do presente Pacto;

b) O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas transmitirá igualmente às agências especializadas cópias dos relatórios, ou das partes pertinentes dos relatórios, enviados pelos Estados Partes no presente Pacto que são igualmente membros das referidas agências especializadas, na medida em que esses relatórios, ou partes de relatórios, tenham relação a questões relevantes da competência das mencionadas agências nos termos dos seus respectivos instrumentos constitucionais.

Artigo 17.º 1. Os Estados Partes no presente Pacto apresentarão os seus relatórios por etapas, segundo um programa a ser estabelecido pelo Conselho Econômico e Social, no prazo de um ano a contar da data da entrada em vigor do presente Pacto, depois de ter consultado os Estados Partes e as agências especializadas interessadas.

2. Os relatórios podem indicar os fatores e as dificuldades que impedem estes Estados de desempenhar plenamente as obrigações previstas no presente Pacto.

3. No caso em que informações relevantes tenham já sido transmitidas à Organização das Nações Unidas ou a uma agência especializada por um Estado Parte no Pacto, não será necessário reproduzir as ditas informações e bastará uma referência precisa a essas informações.”

91 Informação disponível em: <http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/TreatyBodyExternal/Countries.aspx?CountryCode=BRA&Lang=EN>. Acesso em: 12 mar. 2014.

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direitos civis e políticos geram prerrogativas para os particulares e obrigações para o Estado.92

Segundo Flávia Piovesan, “a ideia da não acionabilidade dos direitos sociais é

meramente ideológica e não científica”, fruto de uma preconcepção equivocada de que

os direitos de 1.ª dimensão mereceriam mais reconhecimento e respeito do que os de 2.ª

dimensão, que ficariam relegados a um segundo plano.93

No Brasil, todavia, a visão jurídica tradicional, ora representada pelo

entendimento de José Afonso da Silva, predominava à época da constituinte (e década

seguinte), sendo comum o entendimento de que mesmo as normas constitucionais que

versam sobre direitos econômicos, sociais e culturais teriam “eficácia limitada”, uma

vez que somente seriam eficazes após a edição de norma infraconstitucional que lhe

regulasse. Assim, por muitos anos os direitos fundamentais de 2.ª dimensão foram

relegados a um segundo plano de eficácia dos direitos.

A falta de efetividade das normas constitucionais de princípio programático

passou a ser questionada quando, decorridos já alguns anos, a regulamentação dos

deveres constitucionais (ou dos Pactos internacionais) não era feita. Nesses casos, o

entendimento esposado de início pelo STF foi no sentido de que os preceitos

constitucionais garantidores de direitos econômicos e sociais somente poderiam ser

adimplidos mediante a edição de legislação que os regulamentasse.94

92 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Hacia la exigibilidad de los derechos económicos, sociales y

culturales. Estándares internacionales y criterios de aplicación ante los tribunales locales. p. 1. Disponível em: <http://www.observatoridesc.org/sites/default/files/Exigibilidad_de_los_DESC_-_Abramovich.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2012.

93 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 250-252. 94 Por exemplo, conforme Mandado de Injunção n.º 369-6/1992, no qual questionou-se a falta de edição

de lei regulamentando a proporcionalidade do Aviso Prévio Indenizado. Este MI foi julgado parcialmente procedente, para os fins de declarar a mora do Congresso Nacional:

“Mandado de injunção. Artigo 7.º, XXI, da Constituição. Aviso prévio proporcional ao tempo de serviço. Situação de mora do legislador ordinário na atividade de regulamentar o aviso prévio, como previsto no artigo 7.º, XXI, da Constituição. Falta de perspectiva de qualquer benefício ao peticionário, visto que dispensado em perfeita sintonia com o direito positivo da época. Circunstância impeditiva de desdobramentos, no caso concreto, em favor de impetrante. Mandado de injunção parcialmente deferido, com o reconhecimento da mora do congresso nacional” (DJ 26.02.1993, p. 2354, Ement. 1693-01/15).

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A inércia se dá, uma vez que a atuação legislativa é pautada por fatores políticos,

e não jurídicos, que muitas vezes entende que a não regulamentação de um direito

(ainda que constitucionalmente assegurado) é mais conveniente e oportuno do que sua

efetiva regulamentação e consagração.

Por força da inércia dos poderes políticos, muitos dos direitos

constitucionalmente assegurados (especialmente direitos econômicos e sociais) restaram

inadimplidos por longos anos, com a chancela do Poder Judiciário.95 Por esse

entendimento, caberia ao legislador infraconstitucional um grande grau de liberdade,

tanto para adimplir e regulamentar como para não regulamentar e não adimplir um

direito social, ainda que assegurado previamente pelo poder constituinte.

Com o passar do tempo, e o aumento da inércia dos Poderes Políticos, essa visão

tradicional que limitava a aplicação das normas de princípio programático passou a ser

revista e criticada.

Segundo Virgílio Afonso da Silva, a classificação das normas em programáticas

dá a falsa impressão de que existem diversos graus de importância das normas, e que as

normas de eficácia plena não poderiam jamais sofrer nenhuma restrição, o que não é

verdadeiro.96 Se até mesmo as normas definidoras de direitos fundamentais podem ter

sua eficácia restrita em um caso concreto, em que haja conflito com outra norma

garantidora de direito de mesma natureza, com mais certeza sabemos que as demais

normas constitucionais, ainda que de eficácia plena, igualmente podem ter sua eficácia e

aplicabilidade restritas em situações específicas, uma vez que não existem direitos

absolutos.

95 Nesse sentido, por exemplo: “Mandado de segurança. Impetrantes portadores de insuficiência renal

crônica. Fornecimento de remédio (CELLCET) pelo Estado. As normas programáticas estabelecidas pela Constituição Federal não conferem ao cidadão o direito subjetivo de exigir do Estado o fornecimento de remédios de alto custo, em detrimento de outros doentes, igualmente carentes. Na consecução de sua obrigação de saúde pública a administração há que atender aos interesses mais imediatos da população. Impropriedade da via mandamental para atendimento do direito reclamado” (MS 220/98, TJRJ 17.12.1998).

96 Virgílio A. Silva, Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, p. 223.

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Sobre a aplicação das normas, essa visão tradicional não se mostra adequada.

Nenhuma norma, constitucional ou não, é positivada de modo completo e acabado a

ponto de poder ser aplicada independentemente de qualquer norte de interpretação, seja

por parte de seus destinatários (administração pública ou particulares) ou pelo Poder

Judiciário. Sempre será necessária a definição do sentido e alcance do texto positivo: o

que existe são diferentes graus de dificuldade para a definição do sentido do direito.

Veja-se, por exemplo, que uma das expressões do direito à integridade física é o

direito de não ser torturado ou sofrer tratamento degradante, conforme claramente

previsto no art. 5.º, III, CF.97 Apesar da clareza do texto constitucional, a incerteza

sobre os dois conceitos fez necessária a promulgação de lei ordinária para definir o que

seria tortura para fins penais, conforme art. 1.º da Lei n.º 9.455/1997.98 E, antes da

criminalização dessa conduta específica, podemos dizer que o direito à integridade

física não estava sendo plenamente defendido pelo Estado brasileiro, em violação à

determinação constitucional expressa.

A adoção do entendimento de que todas as normas constitucionais possuem

força normativa e efetividade, mesmo que somente prevejam direitos sociais por meio

de princípios ou normas programáticas, é uma conquista recente no Brasil. O

reconhecimento da força normativa plena da Constituição procurou “superar algumas

crônicas disfunções da formação nacional que se materializavam na insinceridade

97 “Art. 5.º [...] III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.” 98 “Art. 1.º Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.”

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normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de

determinação política em lhe dar cumprimento”.99

As normas constitucionais que versam sobre direitos sociais, portanto, devem ser

interpretadas como normas definidoras de direitos fundamentais, que impõem ao Estado

o adimplemento de tais direitos tanto por meio de condutas comissivas como omissivas,

da mesma forma com o que se dá quanto às normas garantidoras de direitos civis e

políticos.

Os preceitos normativos de direitos fundamentais possuem um mínimo de eficácia, podendo se extrair que o Poder Público deve retirar das normas que consagram tais direitos a eficácia maior possível, destacando-os em relação aos demais preceitos constitucionais, amparado pelo conteúdo do próprio § 1.º do artigo 5.º da Constituição Federal.100

Nesse ponto, a doutrina jurídica moderna, denominada pós-positivista, 101 e

focada na reaproximação do direito e ética, alicerçou-se na valoração efetiva dos

princípios jurídicos, conferindo-lhes autêntica força jurídica, e não somente como regras

de interpretação de outras regras jurídicas, as quais teriam efeito vinculante. Essa

alteração de paradigma se tornou a base da dogmática constitucional atual, como

fundamento para a superação do positivismo legalista, que pouco valorava os princípios

e limitava as normas jurídicas à categoria das regras.

De acordo com Marcelo Neves, Hart apontou, em meados dos anos 1970, para

uma mudança na teoria do direito, alicerçada especialmente pelas teorias de John Raws,

99 Luis Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,

fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 161. 100 Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 260. 101 “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para

um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética” (Luis Roberto Barroso, A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 336).

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Robert Nozick e Ronald Dworkin, no sentido de negar o utilitarismo e a tese positivista

de separação estanque de moral e direito. Tal conceito foi posteriormente recepcionado

internacionalmente por meio da doutrina de Robert Alexy.102

A forma de reaproximação escolhida é pela especificação de “normas jurídicas”

como gênero que possui duas espécies, as regras e princípios. Ambas possuem força

vinculante, mas métodos diferentes de aplicação. As regras são relatos objetivos e

descritivos de uma (ou mais de uma) situação fática que, acaso aconteça, traz como

consequência a incidência dos efeitos estabelecidos. Caso não haja a ocorrência dos

fatos previstos, nenhum efeito será produzido (pelo menos por essa regra).

Para as regras aplica-se o mecanismo clássico da subsunção, segundo o qual

existe uma relação binária, de tudo ou nada: ou a regra é aplicável por inteiro ou

inaplicável por inteiro. Jamais uma mesma situação fática implicará a incidência de

múltiplas normas (salvo quando normas de áreas diversas tiverem como suporte a

mesma situação fática),103 e, em caso de conflitos entre normas, somente uma poderá

prevalecer.104

De forma distinta, os princípios não possuem um conteúdo fechado e

previamente determinado, mas sim uma aspiração de cunho geral, cujo conteúdo muitas

vezes se altera de acordo com a visão do intérprete ou cada situação concreta. A

estrutura normativa de um princípio envolve um sentido e alcance mínimos, sobre os

quais cabe ao intérprete a determinação de seu efetivo conteúdo, de acordo com

concepções filosóficas ou ideológicas do intérprete.

Os princípios, de natureza aberta, não são aplicados da mesma forma que as

normas (fórmula tradicional da subsunção), mas sim um juízo de ponderação: a cada

caso concreto, o aplicador irá aferir o peso dos princípios envolvidos, e, em vez de

102 Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal

do sistema jurídico, p. 44-45. 103 Por exemplo, quando um mesmo fato gera ato ilícito em várias áreas distintas (civil, criminal,

administrativo etc.). 104 Por meio das regras clássicas de solução de antinomias aparentes (critério cronológico, critério

hierárquico e critério da especificidade).

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buscar o “correto” para aquele caso, visará a máxima aplicação possível de cada um e,

ao mesmo tempo, o ponto em que cada um poderá ceder, mediantes concessões

recíprocas para que, ao final, um incida com maior força e prevaleça sobre o outro.

A aplicação não segue um modelo binário, de tudo ou nada, mas sim um modelo de incidência graduada. Apesar de sua aplicação se dar de forma distinta das regras, destaca-se que ambos, regras e princípios, desfrutam do mesmo status de norma jurídica e integram o ordenamento jurídico sem distinção de hierarquia.105

Essa nova concepção sobre a função dos princípios e normas programáticas

retirou dos Poderes Executivo e Legislativo parte de seus papéis centrais na solução de

problemas sociais e definições de políticas públicas, e colocou o Poder Judiciário no

centro das lutas sociais. A atuação judicial não se limita a uma intermediação e

convocação do Poder Legislativo e Executivo, mas sim como órgão interventor e

garantidor de direitos subjetivos, a serem adimplidos por meio de tutelas judiciais

específicas.

Essa nova forma e possibilidade de atuação do Poder Judiciário, portanto,

eliminou o óbice da ausência de força jurídica dos princípios e normas principiológicas,

restando superado como empecilho para a concretização dos direitos sociais, pela

adoção do caráter normativo pleno dos princípios, na qualidade de espécie do gênero

norma jurídica.

Todavia, a caracterização de princípios como autênticas normas subjetivas está

longe de eliminar os problemas (práticos e teóricos) para a concretização desses

direitos. Ao contrário, apenas ressalta a complexidade inerente às políticas públicas e

questões sociais.106

105 Luis Roberto Barroso, A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e

relações privadas, p. 339-340. 106 Nesse sentido, Marcelo Neves possui entendimento crítico severo com relação ao tema: “No final do

século XX e início do século XXI, a doutrina constitucional brasileira foi tomada por um fascínio pela principiologia jurídico-constitucional e, nesse contexto, pela ponderação de princípios, uma atitude que, com destacadas exceções, tem contribuído para uma banalização das questões complexas referentes à relação entre princípios e regras. [...] O que se desenvolve nesse contexto é uma

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3.1.2 Da falta de legitimidade democrática

A segunda crítica concernente à impossibilidade de adjudicação direta, pelo

Poder Judiciário, de direitos sociais estabelecidos na Constituição diz respeito à suposta

falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário para escolher prioridades de

gestão do orçamento público.

Essa teoria se alicerça na visão de que as decisões tomadas pelos entes políticos

seriam, a priori, mais acertadas e corretas na medida em que derivassem diretamente da

vontade da expressão popular.

O argumento se centra na ideia de que somente os representantes eleitos por voto popular é que seriam legitimados a determinar, de acordo com suas ideologias, quais seriam os gastos prioritários para a concretização de todas as promessas constitucionais. Por se tratar de escolhas difíceis e recursos escassos, somente o povo, por meio de seus representantes, poderia tomar a decisão de direcionamento da escolha dos gastos: o povo poderia, por exemplo, preferir medidas preventivas de saúde do que concentrar recursos em educação.107

Essa visão assume que o Poder Legislativo e o Executivo seriam os únicos aptos

a formular políticas públicas, uma vez que seus representantes são constantemente

avaliados pela opinião pública nos períodos eleitorais e, em tese, as políticas podem ser

alteradas de acordo com o anseio popular. Os julgadores, por não terem sido submetidos

à votação popular, não poderiam exercer essa mesma função.

ponderação ad hoc, sem perspectiva de longo prazo, dependente da constelação concreta de interesses envolvidos em cada caso [...] em síntese: a invocação retórica dos princípios como nova panaceia dos problemas constitucionais brasileiros, seja na forma de absolutização de princípios ou na forma da compulsão ponderadora, além de implicar um modelo simplificador, pode servir para o encobrimento estratégico de práticas orientadas à satisfação de interesses avessos à legalidade e à constitucionalidade e, portanto, à erosão continuada da força normativa da constituição” (Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico, p. 171, 196-197).

107 Luis Roberto Barroso, A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, p. 176.

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Se é verdade que o povo detém legitimidade para a escolha de seus

representantes (e políticas públicas), é igualmente verdade que a ordem política possui

prioridades e demandas próprias, muitas vezes vinculadas a interesses pouco nobres.

Não é incomum que o representante popular, após eleito, priorize seus próprios

interesses do que os interesses de seus eleitores. Muitas vezes, isso ocorre por meio do

direcionamento dos escassos recursos públicos para demandas ou políticas públicas que

privilegiem uma parcela pequena da população em detrimento da maioria. Outras vezes,

isso ocorre por meio de privilégio de eventos de grande apelo popular, em detrimento

dos gastos direcionados à solução de problemas básicos, mas de difícil percepção pelos

eleitores.108

Imagina-se, por essa teoria, que uma sociedade democrática não permite que o

Poder Judiciário defina e imponha aos demais poderes qual seria a solução “correta”

para o problema de falta de recursos e para a definição das políticas públicas do País.

Ao romper essa barreira, e realizar um ato que, na visão dos demais Poderes, viola sua

legitimidade democrática, o Poder Judiciário é usualmente taxado de “ativista”.109 Esse

termo é polêmico em essência, mas é utilizado em tom pejorativo e depreciativo quando

vindo por parte dos outros Poderes, que se sentem invadidos pelo Judiciário. Três são as

maiores críticas contra o ativismo político: a parcialidade do Juízo, a contestação à lei e

a intromissão em funções de outros poderes.110

108 Por exemplo, o fato de o Governo do Ceará ter pago R$ 650 mil à cantora Ivete Sangalo para um

show de inauguração do Hospital Regional Norte, em Sobral (cidade localizada a 233 km de Fortaleza) foi considerado ato imoral, e levou o MPF a ajuizar ação civil pública buscando a devolução dos valores pagos (http://www.conjur.com.br/2013-jan-29/pedido-governador-ce-devolver-cache-ivete-sangalo-rejeitado).

109 “Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos e foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais [...] Todavia, depurada dessa crítica ideológica – até porque pode ser progressista ou conservadora –, a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios” (Luis Roberto Barroso, disponível em: <http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_11/artigos/constituicaodemocraciaesupremaciajudicial.pdf>, p. 9. Acesso em: 20 mar. 2014).

110 Celso F. Campilongo, Política, sistema jurídico e decisão judicial, p. 57.

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A primeira crítica (parcialidade do juízo) discorre que o juiz perderia sua natural

e desejada imparcialidade ao julgar demandas de cunho político, uma vez que é vedado

ao Juízo participar de tais atividades e o julgamento de tais demandas poderia levar a

um Poder Judiciário ideologicamente vinculado a partidos e a governos. Essa crítica não

se sustenta, pois está comprovado que as decisões com maior caráter político não

possuem vinculação clara com nenhuma ideologia ou partido político específico, mas

sim com o caso em debate.111

A crítica da contestação à lei, da mesma forma, não se sustenta: há muito está

superada a visão positivista, de cunho meramente legalista, de que a atividade do Juízo

está vinculada à aplicação da lei desprovida de qualquer interpretação teleológica ou

axiológica. A função natural do Poder Judiciário é interpretar e aplicar a lei. Sua

interpretação pode ser questionada em seu mérito (por sua abrangência ou

inadequação), mas não pelo simples fato de ter ocorrido. Afinal, a prática interpretativa

é inerente à aplicação de qualquer norma.

Por fim, conforme será explanado no item a seguir, seria simplista e inadequado

tachar de “intromissão” a atuação do Poder Judiciário em esfera usualmente reservada a

outros poderes, o que esvazia a terceira crítica da alegada falta de legitimidade

democrática do Poder Judiciário.

111 Lênio Streck faz menção ao livro de Thamy Pogrebinschi (Judicialização ou representação? Política,

direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, Konrad Adenauer e Ed. Campus, 2012), dizendo que: “Com efeito, parece não haver dúvidas de que o STF vem julgando por argumentos de políticas e não por princípios (o que, por si, já demonstra um elevado grau de ativismo da Suprema Corte). Na verdade, ele atende aos vários segmentos, numa espécie de ‘presidencialismo de coalizão judicial’. Vejamos: os segmentos a favor das cotas raciais não manifestaram sua vontade política; pelo contrário, foram direto ao Supremo Tribunal reivindicar sua legitimidade. Do mesmo modo, agiu o segmento que pediu a equiparação das uniões estáveis homoafetivas ao casamento, que seguiu na cauda dos que clamavam pela constitucionalidade das atividades de pesquisa com células-tronco embrionárias, dos governadores, no caso das guerras fiscais, dos que pediam a descriminalização do parto antecipado de fetos anencefálicos, e até mesmo os moralistas, que fragilizaram a democracia pela defesa da Lei da Ficha Limpa e os parlamentares, que, pedindo ao Supremo, validaram quase 500 medidas provisórias inconstitucionais por consequência de uma modulação de efeitos” (Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-out-26/observatorio-constitucional-isto-ativismo-judicial-numeros>).

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3.1.3 Da violação ao princípio da separação dos poderes

Com linha de raciocínio semelhante à exposta referente à falta de legitimidade

democrática do Poder Judiciário, alega-se que a determinação pelo Poder Judiciário de

uma forma de conduta a ser adotada pelo Poder Executivo ou Legislativo violaria o

princípio da separação dos poderes, alicerce de uma sociedade democrática. Essa

crítica é notadamente realizada por parte de representantes do Poder Executivo e

Legislativo, que entendem que não cabe ao Poder Judiciário atuação com conteúdo

político. Todavia, não merece prosperar.

A maior preocupação com a proteção dos direitos sociais e econômicos é o medo de que, garantindo proteção constitucional para estes direitos irá resultar em fragilização da separação dos poderes, pela transferência de muita autoridade para os Tribunais.112

A teoria da separação dos poderes, conforme positivada em nossa constituição,

não adotou a divisão estanque das funções de cada um dos três poderes, mas sim a

harmonização deles. Apesar de cada um dos três poderes possuir uma função principal e

predominante, também realizará – de modo complementar – funções que são da

essência dos outros poderes. Por exemplo, cabe ao Poder Legislativo, representado pelo

Senado, a função de julgador na hipótese de crimes de responsabilidade cometidos pelo

Presidente, Vice-Presidente (art. 52, I, CF). Não se trata de violação ao princípio da

separação dos poderes, mas sim de um instrumento para o melhor afinamento do

sistema político, por meio dos célebres mecanismos de freios e contrapesos idealizados

por Montesquieu.

Dentre a função julgadora inerente ao Poder Judiciário, está o controle da

legalidade dos atos administrativos, a qual pode ser aferida em face de ação ou de

omissão estatal. O Poder Judiciário possui competência constitucional para apreciar

toda violação de direito, independentemente da natureza jurídica do direito

pretensamente violado. Não existe no Brasil, por força de nosso ordenamento

constitucional, uma separação estanque entre os poderes e, ainda, a impossibilidade

112 Paul O’Connell, Vindicating socio-economic rights: international standards and comparative

experiences, pos. 281. Tradução livre.

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material de controle de ilegalidades (omissivas ou comissivas) realizadas pela

administração pública (Poder Executivo) ou pelo legislador (Poder Judiciário).

Não pode o Poder Judiciário atuar no papel de legislador, mas certamente pode

controlar a legalidade dos atos, e igualmente das omissões do Poder Legislativo ou do

Poder Executivo. Um conceito tradicional e rígido de separação dos poderes minimiza o

Poder Judiciário e seu papel natural de conceituar e definir os ideais e direitos elencados

na Constituição, conforme entendimento atualmente pacífico no STF.113

Particularmente nos países em desenvolvimento, onde existe instabilidade

política e a cultura democrática ainda é incipiente, as determinações rígidas sobre os

papéis dos poderes e instituições governamentais podem ser um entrave para a

aplicação dos princípios programáticos referentes a direitos econômicos e sociais.

Assim, a divisão dos poderes não deve ser encarada como uma barreira, e sim como o

caminho a ser trilhado para se atingir os ideais constitucionais: o objetivo primordial é

assegurar que os direitos econômicos e sociais, e outros direitos previstos na

Constituição, sejam efetivamente concretizados.114

Constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo de maioria. Mas pode acontecer de a maioria política vulnerar direitos fundamentais. Quando isso ocorre, cabe ao Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade presente no Estado Constitucional democrático que se coloca a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas – isto é, o Legislativo e o Executivo –, impondo ou invalidando ações administrativas e políticas públicas? A resposta será afirmativa sempre que o Judiciário estiver atuando, inequivocadamente, para preservar um direito fundamental

113 A predominância da “harmonia” em detrimento da “separação” é constante na jurisprudência do STF.

Por exemplo: (i) “É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo” (AI n.º 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 03.08.2010, 2.ª Turma, DJE 20.08.2010); (ii) “Separação dos Poderes. Possibilidade de análise de ato do Poder Executivo pelo Poder Judiciário. [...] Cabe ao Poder Judiciário a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos dos três Poderes constitucionais, e, em vislumbrando mácula no ato impugnado, afastar a sua aplicação” (AI n.º 640.272-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02.10.2007, 1.ª Turma, DJ 31.10.2007).

114 David Bilchitz, in Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa, and Colombia, p. 80.

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previsto na Constituição ou para dar cumprimento a alguma lei existente. Vale dizer, para que seja legítima, a atuação judicial não pode expressar um ato de vontade própria do órgão julgador, precisando sempre reconduzir-se a uma prévia deliberação majoritária, seja do constituinte, seja do legislador.115

Quando o Poder Judiciário defere um direito de natureza social, de modo a

promover ou resguardar direitos sociais expressamente previstos em nossa Constituição,

nada mais está a realizar do que o efetivo cumprimento da norma editada pelo

constituinte originário. Não se trata de inovação, de violação ao princípio da separação

dos poderes ou de atuação “política” ou “ativista”.

A nosso ver, quando julga esse tipo de conflito, o Poder Judiciário está, em

essência, julgando se existe uma omissão do Poder Público relativamente à

concretização de direitos sociais, já previamente consagrados e positivados na

Constituição, tais quais direito à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia, ao lazer,

entre outros. Ou seja, é uma atividade jurídica nata, constituída na verificação de

ocorrência de uma omissão, ainda que existam peculiaridades interpretativas para a

aferição da omissão em relação a direitos sociais.

A peculiaridade dessa situação é que, para a verificação da omissão do Poder

Público, é necessário previamente definir o conceito e a extensão de um direito social,

que muitas vezes é positivado em nossa constituição de modo muito sucinto e

impreciso, por meio de cláusulas gerais.

Mais do que “independência”, os conflitos envolvendo direitos sociais devem

buscar a “harmonização” na relação entre os Poderes, conforme previsto no art. 2.º da

CF: se não é cabível ao Poder Judiciário assumir funções preponderantes dos Poderes

Executivo ou Legislativo, da mesma forma não se mostra razoável que o princípio da

separação dos poderes impeça que alegadas omissões do Poder Executivo ou

Legislativo sejam julgadas pelo Poder Judiciário.

115 Luis Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,

fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 166.

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Isso não significa que o Judiciário será o único poder incumbido de concretizar

os direitos sociais (pelo contrário, somente atuará em caso de injustificada omissão ou

equívoco inegável no tocante às políticas públicas). Todavia, especialmente nas

democracias jovens, os direitos sociais são adimplidos em maior grau quando o Poder

Judiciário tem o poder de interpretar e de adjudicá-los.116

O respeito ao princípio da separação e harmonização dos poderes impõe que a

atividade judicial seja realizada com parcimônia e de modo a respeitar as opções

legislativas e administrativas formuladas sobre a matéria discutida.

Em resumo, onde não houver lei ou ato administrativo implementando a constituição, deve o Judiciário agir. Havendo leis ou atos administrativos, e estes não sendo devidamente cumpridos, cabe ao Judiciário intervir. Porém, havendo leis e atos administrativos, e sendo estes aplicados, o Judiciário deverá restringir sua atuação.117

Portanto, a alegada violação ao princípio da separação dos poderes não pode ser

entendida como óbice para a defesa de direitos sociais constitucionalmente assegurados.

3.1.4 O princípio da reserva do possível

Outra tese para barrar a adjudicação de direitos sociais aos particulares, que teve

grande força até a primeira metade dos anos 2000, diz respeito à aplicação do princípio

da reserva do possível.

A expressão “reserva do possível” foi utilizada pela primeira vez em 1972 pelo

Tribunal Constitucional alemão, em julgamento sobre a constitucionalidade de normas

estaduais que restringiam a admissão aos cursos superiores de Medicina nas

Universidades de Hamburgo e da Baviera.118 Ao analisar o caso, o tribunal entendeu

116 Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: the Activist Tribunals of

India, South Africa, and Colombia, p. 42.

117 Luis Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde,

fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 174. 118 Ricardo Lobo Torres, O direito ao mínimo existencial, p. 103.

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que a restrição era admissível, uma vez que os direitos sociais se encontram sob a

“reserva do possível”, não se podendo exigir que a sociedade cumpra com todas as

vontades dos particulares. Sob essa ótica, o princípio da reserva do possível se mostra

como uma face do princípio da proporcionalidade e razoabilidade.

A ideia de reserva do possível está intrinsecamente relacionada à alegação de

insuficiência de recursos, apresentada pelo Estado como forma de se eximir do

cumprimento de alguma de suas obrigações relacionadas aos direitos econômicos e

sociais, quando a questão encontra-se submetida a juízo. Assim, o descumprimento de

direitos sociais era justificado, de modo genérico, por essa escusa.

Pela forma que foi aplicada no direito interno, o princípio da reserva do possível

servia de fundamento para não acolher pedidos individuais de efetivação de direitos

sociais, sob o argumento de que – tratando-se de recursos escassos – não poderia o

Poder Judiciário determinar a aplicação em prol de uma pessoa, pois esse

direcionamento acarretaria falta do mesmo recurso para outras pessoas, que não

buscaram a tutela judicial.

De fato, o problema é complexo e a dificuldade de escolher a destinação de

recursos escassos para questões graves ainda persiste, mesmo pelas mais atuais formas

de soluções de conflitos. A ponderação de princípios não elimina o conflito moral que é

intrínseco à situação.

Se a dificuldade para a solução da questão se mantém, a reserva do possível não

mais pode ser aplicada como um autêntico álibi da inércia estatal de outrora: bastava ao

Estado alegar a ausência de recursos financeiros, como fato impeditivo do direito do

autor, que tal argumento (muitas vezes destituído de efetiva comprovação) era o

fundamento para a improcedência do pedido.

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3.1.5 Falta de mecanismos processuais adequados

Por fim, um dos argumentos contrários à possibilidade de adjudicação pelo

Poder Judiciário de direitos econômicos e sociais diz respeito à alegada falta de

mecanismos processuais adequados para o julgamento desses conflitos. É corriqueira a

crítica de que o Poder Judiciário – tradicionalmente aparelhado para solucionar lides

individuais – não possuiria mecanismos adequados para resolver lides complexas que

versem sobre direitos de índole essencialmente coletiva, como é o caso dos direitos

econômicos, sociais e cultuais. Abramovich concorda com essas críticas:

Cabe outorgar razão a algumas das tradicionais objeções realizadas nesta mateéia: o Poder Judiciário é o menos adequado para realizar o planejamento de políticas públicas, o escopo de um processo judicial é pouco apropriado para discutir medidas de alcance geral, a discussão processual gera problemas de desigualdade ante as pessoas afetadas pelo descumprimento e que não participam do julgamento, o Poder Judiciário carece de meios compulsórios para a execução forçada de uma sentença que condene o Estado a cumprir com a prestação omitida para todos os casos invocados, ou para determinar a regulamentação omitida, a substituição de medidas gerais por decisões ad hoc efetuadas pelo juiz no caso particular podem resultar igualmente em fonte de desigualdades indesejadas etc.119

A crítica procede, em parte. Por sua origem histórica, o Poder Judiciário possui

cultura e aparelhamento voltado à solução de conflitos jurídicos individuais ou, ao

menos, relacionados a partes determinadas e devidamente representadas

processualmente. A via processual levará em conta apenas as manifestações das partes

diretamente envolvidas (incluindo auxiliares judiciais), e a solução do conflito se dará

pela substituição da vontade de ambas as partes pelo entendimento do julgador,

mediante entrega do bem da vida tutelado. Esse cenário, de fato, não permite a efetiva

solução de problemas de natureza social.

O direito processual tradicional envolve uma pretensão resistida e a substituição

da vontade das partes. No caso dos direitos econômicos e sociais, isso nem sempre

ocorre. Imagine, por exemplo, que em um processo judicial um menor, assistido por

119 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 13.

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seus representantes, requeira uma vaga em creche pública. Nessa situação, não existe

fundamento jurídico para o Estado alegar que o bem da vida pleiteado (vaga em creche)

é indevido: afinal, o direito à educação básica é determinado por lei. A pretensão

resistida, nesse caso, diz respeito à falta de recursos ou de possibilidades para

implementar o direito, mas não ao direito em si (que, nessa situação, é previsto tanto na

Constituição como em lei ordinária). Mostra-se incabível, nesse sentido, esperar uma

decisão judicial que substitua a vontade do Estado e, em um passe de mágica, crie a

vaga pleiteada.

Todavia, essa visão do Poder Judiciário espelha apenas uma de suas possíveis

funções. Para uma visão mais completa, faz-se necessário explicar, dentre os inúmeros

conceitos possíveis de Justiça, os conceitos de justiça comutativa e justiça distributiva

(ou retributiva), que são especialmente importantes para o estudo da justiciabilidade dos

direitos sociais e econômicos.

A justiça comutativa é aquela que soluciona conflitos bilaterais, por meio da

substituição da vontade das partes pela do ente julgado. Dessa forma, o Poder Judiciário

solucionará o conflito das partes por meio da entrega do bem da vida tutelado (ainda

que seja apenas a declaração de direito) a uma das partes em detrimento da outra. É uma

relação, via de regra, essencialmente de “ganha ou perde” para cada uma das partes,

sem meio-termo entre os dois extremos. Esse é o modelo tradicional de justiça, sobre o

qual se debruçaram nossas normas processuais gerais.

A justiça distributiva parte de uma concepção distinta, e presume desde o início

que o bem da vida discutido possui relevância e interesse para além das partes

individualmente consideradas no processo, por envolver uma demanda vinculada a um

bem comum e que interessa à sociedade (ou parcela dela) como um todo. Esse ponto de

partida traz como consequência que o julgador deverá, em suas razões de decidir,

entender que o julgamento da demanda produzirá impactos em pessoas que não litigam

no processo.

Segundo José Reinaldo Lopes, a justiça distributiva nada mais é do que a divisão

ou repartição do fundo social comum, concedidas a uma pessoa ou pessoas

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determinadas que integrem aquele organismo social de onde esse fundo de benefícios e

de custos é retirado.120

Quando um litígio versa sobre direitos sociais, econômicos e culturais, mostra-se

necessário que o julgador tenha plena consciência de que esse conflito implica,

necessariamente, uma solução que vislumbre o problema sob o paradigma da justiça

distributiva: qualquer que seja a solução escolhida pelo julgador, esta terá repercussão

para além das partes do processo.

Os direitos sociais, econômicos e culturais são direitos positivados no âmbito

constitucional de modo independente de titularidade específica e, por conseguinte,

pertencem a toda a sociedade de modo indistinto. A justiça distributiva busca distribuir,

de modo proporcional aos indivíduos específicos, direitos que por essência são de

titularidade comum.

O desafio da justiça distributiva é permitir acesso, ainda que no menor grau

possível, a direitos de titularidade comum e sobre os quais existe muita indefinição

conceitual. Deverá permitir que a população concretize esses direitos em um patamar

geral mínimo, como forma de igualdade e de afirmação da dignidade humana dos

beneficiários. Busca o equilíbrio entre o sistema produtivo capitalista e a defesa dos

direitos sociais básicos.

Quando o julgador, em uma demanda individual, julga se uma pessoa tem o

direito de receber do Estado um medicamento de alto custo que alegadamente irá

assegurar seu direito à saúde e, indiretamente, seu direito à vida, deve ter consciência de

que essa decisão produzirá impactos que transcendem os envolvidos no processo. Por

exemplo, caso o juiz conceda o direito ao recebimento do medicamento é provável que

o órgão que custeará a decisão sofrerá um abalo orçamentário que, por óbvio, poderá

reduzir outras políticas de saúde pública que beneficiariam pessoas que sequer têm

conhecimento da existência do processo. Caso não conceda, a princípio o orçamento do

órgão ficará intacto, mas o requerente sofrerá prejuízos individuais. Nenhuma escolha é

fácil.

120 José Reinaldo Lopes, Direitos sociais: teoria e prática, p. 125.

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Feita a distinção entre esses dois modelos distintos de justiça, podemos dizer que

– ainda que o problema da adjudicação judicial dos direitos econômicos e sociais seja

sempre complexo e tormentoso (pelo problema social em si e também pela usual falta

de recursos para solucioná-lo) – os mecanismos processuais brasileiros, da forma como

são atualmente interpretados (como veremos), são relativamente avançados e

relativamente adequados para solucioná-los.

Ainda que não seja o foro ideal para a implementação dos direitos econômicos,

sociais e culturais, é inegável que o Poder Judiciário atua – no mínimo – como

instrumento de pressão e de constituição em mora do Poder Público faltoso, o que é

positivo na busca pela efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Ademais, nosso ordenamento jurídico prevê a possibilidade de ajuizamento de

ação civil pública, apta a abranger interesses difusos ou coletivos (portanto, um número

possivelmente ilimitado de pessoas) e que pode ser ajuizada por uma vasta gama de

legitimados ativos.121 Se o Estado for condenado a alguma obrigação de fazer ou não

fazer (por exemplo, a construção de creches, melhorar atendimento de hospital etc.), o

STF já decidiu que será possível a imposição de multa diária para impor seu

cumprimento.122 É lógico que nesses casos haverá uma natural dificuldade para o

efetivo adimplemento da obrigação (isto é, efetiva construção de creche ou melhoria de

serviço), mas essa dificuldade não é de natureza processual.

Outro grande problema envolvendo a falta de efetividade de direitos econômicos

e sociais dá-se pela falta de regulamentação de um direito previamente assegurado pela

121 “Lei n.º 7.347/1985. Art. 5.º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;

III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V – a associação que, concomitantemente: […]” 122 Nesse sentido: “Esta Corte já firmou a orientação de que é possível a imposição de multa diária contra

o poder público quando esse descumprir obrigação a ele imposta por força de decisão judicial. Não há falar em ofensa ao princípio da separação dos Poderes quando o Poder Judiciário desempenha regularmente a função jurisdictional” (AI n.º 732.188-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 12.06.2012, 1.ª Turma, DJE 1.º.08.2012). Igualmente, no mesmo sentido: ARE n.º 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.08.2011, 2.ª Turma, DJE de 15.09.2011.

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Constituição ou tratado internacional. Nesses casos, da mesma forma, nosso

ordenamento jurídico possui mecanismos adequados para a superação do problema, tais

quais a ADI, ADPF e MI.

Portanto, vimos que os entendimentos jurídicos que retiravam do Poder

Judiciário o papel de legitimamente dar efetividade aos direitos sociais e econômicos

não se sustentaram.

3.2 Início de um novo paradigma: o caráter universal e indivisível dos direitos

fundamentais

3.2.1 A reaproximação dos direitos fundamentais

No Brasil, a partir da segunda metade da década de 2000, os direitos econômicos

e sociais passaram a ser entendidos como direitos subjetivos, aptos a serem pleiteados

judicialmente, ainda que de titularidade individual.

Essa virada de entendimento ocorreu em razão de uma reaproximação com os

valores de universalidade e indivisibilidade dos direitos fundamentais, minando a

outrora forte distinção entre direitos fundamentais de 1.ª e 2.ª dimensões, que não mais

se sustenta com vigor. Pelo contrário, a busca é pela reaproximação e

complementaridade de ambas as espécies de direitos. Essa visão de uma unicidade de

direitos fundamentais apresenta-se na Constituição da África do Sul, que talvez

represente o mais claro texto em que direitos econômicos e sociais não estão separados

dos direitos civis e políticos, mas são parte de um único catálogo de direitos, todos com

status similar.123-124

123 Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: the Activist Tribunals of

India, South Africa, and Colombia, pos. 1017. Tradução livre.

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Por uma análise ideologicamente neutra da questão, vemos que não existem diferenças estruturais de tamanha magnitude que façam completamente diferentes os direitos econômicos e sociais dos direitos civis e políticos. Não se pode dizer que existe uma diferença, genética ou estrutural, entre os dois tipos de direitos. Se, no início do Estado Social, a principal função do Estado era a de proteger os Direitos Humanos, nas democracias modernas, esta visão está superada: atualmente, o Estado não deve somente proteger os Direitos Humanos, mas sim deve criar os mecanismos necessários para torná-los efetivos.125

A necessidade de efetiva concretização dos direitos sociais é ainda maior nos

países de Terceiro Mundo, como o Brasil, uma vez que – por nossa cultura – a diferença

entre a teoria da lei e a realidade diária é maior. Apesar de estarmos submetidos a uma

Constituição Cidadã, a realidade da imensa maioria dos brasileiros é uma vida longe da

civilidade. A grande carga de normas não cumpridas, em detrimento do reconhecimento

formal de direitos, dificulta a concretização dos direitos econômicos e sociais, na

medida em que o fosso entre a teoria e o real é imenso.

A distinção firme entre as duas dimensões de direitos fundamentais, utilizada

para justificar a diferença de tratamento entre ambos, não mais se sustenta. Melhor

observado, vemos que tanto os direitos civis e políticos como os direitos econômicos,

sociais e culturais representam complexos de obrigações, positivas e negativas, por

parte do Estado. Ainda que haja uma inegável diferença de enfoque entre ambas as

dimensões de direitos, uma vez que os direitos civis e políticos possuem uma maior

carga de “abstenção”, e os direitos econômicos, sociais e culturais uma maior carga de

“realização”, não existe nenhuma diferença existencial a ponto de serem consideradas

espécies distintas.

Nas discussões internacionais, é quase natural tratar sobre “direitos civis e políticos” e “direitos econômicos, sociais e culturais”. Apesar de eu ocasionalmente usar essas categorias, elas são profundamente enganosas. Uma divisão dicotômica de qualquer realidade complexa

124 Ainda, a Constituição da África do Sul requer expressamente que sua interpretação seja realizada à

luz dos tratados internacionais, e permite o uso do direito comparado, tornando-a aberta aos novos paradigmas.

125 Miguel Carbonell, Eficacia de la Constitución y derechos sociales: esbozo de algunos problemas.

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provavelmente será rude e tendenciosa, ao engano de que as duas categorias são antitéticas. Isso é especialmente verdadeiro, nesta dicotomia em particular, que nasceu de controvérsias políticas, inicialmente oriunda da luta de classes do século XIX e início do século XX e depois da rivalidade ideológica da Guerra Fria. Os argumentos contrários aos direitos econômicos e sociais, todavia, são também de natureza filosófica.126

Não se justifica, juridicamente, diferença de tratamento e justiciabilidade tão

gritante entre as duas espécies de direitos de direitos fundamentais, e tal distinção

passou a ser entendida como jurídica e politicamente equivocada.

Não mais basta ao Estado positivar direitos, ele deverá concretizá-los, torná-los eficazes e efetivos em um ordenamento jurídico. É diferente de “constitucionalizar” direitos, ainda que os dois processos estejam relacionados e se apoiem mutuamente. “Constitucionalizar” é o ato de positivar o direito no texto constitucional, de modo abstrato e de forma a maximizar o consenso e minimizar o dissenso sobre o sentido dos direitos elencados, de modo que o governo deva obedecer ao mesmo. Concretizar é realizar a norma na sociedade, tornando concretos os compromissos realizados no texto constitucional.127

Pela semelhança das duas categorias de direitos fundamentais, Víctor

Abramovich e Christian Courtis alertam que a estrutura dos direitos fundamentais,

sejam eles direitos civis e políticos ou direitos econômicos e sociais, é similar, na

medida em que ambas podem ser caracterizadas como um complexo de obrigações

positivas e negativas por parte do Estado.

No caso dos direitos civis e políticos, a obrigação principal seria de abster-se de

atuar em certos âmbitos e de realizar uma série de funções e condutas positivas, de

modo a garantir a autonomia e a liberdade de sua população. No tocante aos direitos

econômicos e sociais, da mesma forma, estes serão praticados por meio de uma série de

abstenções em certos âmbitos e pela realização de funções positivas, em busca da

126 Jack Donnelly, Universal Human Rights: in theory and practice, pos. 918. Tradução livre. 127 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 6.

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melhora das condições sociais da população. Não há, portanto, grande distinção

essencial entre as duas espécies de direitos.

Dada a coincidência histórica, estas condutas positivas nasceram com a própria ideia de Estado Moderno, e a caracterização dos direitos civis e políticos tende a “naturalizar” esta atividade estatal, e enfatizar os limites de sua atuação. Nesta perspectiva, as diferenças entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais são diferenças de grau, mais do que de diferenças de essência: os direitos econômicos e sociais também podem ser caracterizados como um complexo de obrigações positivas e negativas por parte do Estado, ainda que neste caso as obrigações positivas possuam uma importância simbólica maior para sua identificação.128

A teoria pode ser facilmente comprovada pela observação formulada pelo

Comentário Geral n.º 18 do Comitê, adotado em 24.11.2005, sobre o direito ao trabalho,

direito tradicionalmente considerado de natureza econômica e social. Ainda assim, o

Comitê concluiu que a principal obrigação relacionada ao direito ao trabalho é uma

obrigação de cunho negativa, que é a permissão da ampla liberdade de escolha de

trabalho e a liberdade de não ter que se submeter a trabalho injusto.129 No mesmo

sentido, o direito à liberdade sindical se constitui essencialmente em obrigações

negativas. Mostra-se, assim, a fragilidade da distinção clássica entre os direitos civis e

políticos e os direitos econômicos e sociais.

Outro ponto de fragilidade da separação radical das duas categorias de direitos

fundamentais diz respeito à noção de que os direitos econômicos e sociais, na qualidade

128 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 24. 129 “4. The right to work, as guaranteed in the ICESCR, affirms the obligation of States parties to assure

individuals their right to freely chosen or accepted work, including the right not to be deprived of work unfairly. This definition underlines the fact that respect for the individual and his dignity is expressed through the freedom of the individual regarding the choice to work, while emphasizing the importance of work for personal development as well as for social and economic inclusion. International Labour Organization Convention No. 122 concerning Employment Policy (1964) speaks of “full, productive and freely chosen employment”, linking the obligation of States parties to create the conditions for full employment with the obligation to ensure the absence of forced labour. Nevertheless, for millions of human beings throughout the world, full enjoyment of the right to freely chosen or accepted work remains a remote prospect. The Committee recognizes the existence of structural and other obstacles arising from international factors” (Comentário Geral n.º 18, adotado em 24.11.2005, pelo Comitê DESC).

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de obrigações positivas, seriam somente realizáveis mediante a utilização de recursos

públicos.

Nesta noção está imbuída a ideia de realização dos direitos sociais na medida da “disponibilidade” do Estado, argumento este que sempre foi o impeditivo para uma ampla judicialização da questão. Todavia, em muitos casos a obrigação positiva estatal poderá ser atingida por outros meios, que não implicam em utilização de recursos públicos.130

Ainda que muitos dos direitos sociais dependam de atuação e disponibilidade

financeira estatal, isso não é necessariamente uma verdade, na medida em que as

obrigações estatais relativas a direitos sociais, positivas e negativas, podem ser

classificadas por três categorias distintas: (i) obrigações que exijam regulação estatal

para dar sentido ao direito; (ii) obrigações que exijam regulação estatal para limitar a

atuação particular; e (iii) obrigações que demandam a prestação de serviços.131

No caso das obrigações que exijam regulação estatal para dar sentido ao direito,

a obrigação estatal se vincula à criação de normas que organizem uma atividade

determinada. São obrigações que pressupõem a criação de normas permissivas e que

estabeleçam as consequências jurídicas da atividade, não bastando a mera ausência de

proibição em sua realização. De nada vale o Estado não proibir (conduta somente

negativa) a criação de sindicatos se não torna obrigatório o respeito pelas normas

negociadas (regulação estatal).

Utilizando-se, como exemplo, o direito de se associar em sindicatos, a obrigação

positiva estatal implica conferir consequências jurídicas para sua atuação. No caso

brasileiro, isso se dá pela previsão legal da possibilidade de realização de acordos e

convenções coletivas de trabalho, pelos entes sindicais e empresas, conforme positivado

nos art. 611 a 625 da CLT. Da mesma forma, ocorreu relativamente aos Mandados de

Injunção n.º 943, n.º 1.010, n.º 1.074 e n.º 1.090,132 julgados procedentes pelo STF para

130 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 8. 131 Classificação proposta por Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como

derechos exigibles, p. 8-10 e 32-37. 132 “Mandado de injunção. Aviso prévio proporcional ao tempo de serviço. Art. 7.º, XXI, da CF.

Ausência de regulamentação. Ação julgada procedente. Indicação de adiamento com vistas a

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o fim de estabelecer a proporcionalidade do aviso prévio previsto no art. 7.º, XXI, da

CF, dispositivo que aguardava regulamentação legal desde a promulgação da

Constituição.

As obrigações que exijam regulação estatal para limitar a atuação particular

demandam a criação de normas que limitem a atividade dos particulares ou lhes

imponham obrigações diversas. As normas trabalhistas em geral pertenceriam a essa

categoria,133 na medida em que determinam obrigações gerais – a serem adimplidas

pelos particulares – por exemplo, um valor mínimo de salário, jornada diária limitada,

descansos obrigatórios (intrajornada, interjornadas e semanais, no caso do direito

brasileiro). Da mesma forma, mesmo as obrigações negativas exigem, na maior parte

das vezes, a criação de normas permissivas que gerem consequências jurídicas para o

descumprimento do comando de não intervenção estatal.

Por último, as obrigações que demandam a prestação de serviços determinam

que o Estado cumpra com sua obrigação promovendo a prestação de serviço à

população, ainda que indiretamente ou por meio da regulação dos serviços públicos

pelos particulares. Ainda assim, nesses casos, nem sempre haverá a utilização de

recursos públicos, a depender da forma de custeio do serviço (por exemplo, os custos

com saneamento básico podem ser recuperados por meio da cobrança de tarifas públicas

correspondentes).

Portanto, reiteramos, a ideia de uma íntima ligação entre direitos sociais e

prestações públicas custosas mostra-se equivocada e retratante de uma visão superficial

sobre a natureza dos direitos econômicos e sociais: não necessariamente a defesa de

consolidar proposta conciliatória de concretização do direito ao aviso prévio proporcional. Retomado o julgamento. Advento da Lei 12.506/2011, que regulamentou o direito ao aviso prévio proporcional. Aplicação judicial de parâmetros idênticos aos da referida legislação. Autorização para que os ministros apliquem monocraticamente esse entendimento aos mandados de injunção pendentes de julgamento, desde que impetrados antes do advento da lei regulamentadora” (MI n.º 1.090, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 06.02.2013, Plenário, DJE 23.04.2013).

133 Relembramos que, diversamente do entendimento desses autores, a Recomendação Geral n.º 18 do Comitê entendeu que o direito ao trabalho se caracteriza por uma obrigação negativa, no sentido de conceder às pessoas a liberdade para trabalhar da forma desejada e para não ser obrigado a realizar trabalho injusto ou forçado.

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direitos econômicos e sociais dependerá da utilização de recursos públicos, o que

novamente torna frágil a distinção relativa à essência dos direitos civis e políticos.

Não mais se pode considerar intocável a concepção de que os direitos da

denominada 1.ª dimensão exigem somente a abstenção do Estado, ao passo que os

direitos de 2.ª dimensão exigem atuações positivas. Essa distinção entre obrigações

positivas e negativas, amplamente utilizada para a defesa da inexigibilidade judicial dos

direitos sociais, é uma falácia nos ordenamentos jurídicos atuais.

À guisa de exemplo, podemos analisar a situação dos direitos políticos,

indubiamente direitos de 1.ª dimensão. Para a defesa e manutenção desses direitos, em

primeiro lugar, exigiu-se a criação de um ramo especializado da Justiça, a Justiça

Eleitoral, com uma série de órgãos peculiares (especialmente, Tribunal Superior

Eleitoral e Tribunais Regionais Eleitorais). Além disso, a cada dois anos são realizadas

eleições, com altos custos para os contribuintes.

Ou seja, a existência da democracia e do sistema político brasileiro se dá

mediante uma série de medidas positivas do Estado, as quais acarretam um custo

significativo para os contribuintes. Não se mostra verdadeira, portanto, a concepção de

que cada dimensão de direitos fundamentais envolve um enfrentamento distinto por

parte do Estado.

Pelo contrário, em muitos casos os gastos com direitos de 1.ª dimensão superam

os gastos com direitos de 2.ª dimensão: por exemplo, o mais caro direito fundamental

relacionado ao direito do trabalho, que é o direito à liberdade sindical, poderia ser

adimplido no Brasil apenas com medidas legislativas, e custo financeiro próximo de

zero.

Quando nos focamos no caráter axiológico dos direitos de melhor forma verificamos que as alegadas diferenças essenciais entre as suas espécies de direitos são atenuadas. Por exemplo, usualmente diz-se que alguns direitos civis e políticos, como o direito à liberdade de expressão ou o direito ao voto, são relevantes e merecem ser justificados em prol da preservação da democracia. No entanto, o direito à educação – clássico direito econômico e social – é igualmente importante para a democracia e para a existência de votos conscientes e um maior atingimento das responsabilidades democráticas por parte da população. Da mesma

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forma, a segurança (física, material e psicológica) causada por uma moradia digna implica em um voto mais livre e “sem cabresto”. Não se imagina um sem-teto como grande partícipe da democracia. Sob esta ótica, o direito à educação e o direito à moradia poderiam ser classificados como direitos civis e políticos, em oposição à terminologia atual. Com relação aos valores defendidos por cada categoria de direitos, portanto, não há uma razão clara para esta separação.134

Da mesma forma, o fim da antiga divisão política global, representada pela

antítese entre governos socialistas e capitalistas, serviu para reforçar o caráter

complementar e de indivisibilidade entre as dimensões de direitos fundamentais, e

mostrar que direitos usualmente classificados como direitos civis e políticos (como o

direito à liberdade de expressão, o direito ao voto e à privacidade) podem ser

igualmente protetores de interesses econômicos. Usualmente, a miserabilidade não

acontece nas democracias plenas e, de modo inverso, atrocidades e genocídios já

ocorreram em sociedades com alto grau de desenvolvimento social.

Uma nova leitura dos direitos civis e políticos tradicionais os aproximou dos

direitos econômicos e sociais a ponto de a noção de indivisibilidade dos direitos

humanos, por meio da vinculação intrínseca de direitos econômicos e sociais com

direitos civis e políticos, ganhar uma nova dimensão. Direitos outrora absolutos, como o

direito à propriedade, não mais possuem a mesma força: no Brasil, por exemplo, o

direito à propriedade poderá ceder por não exercer sua função social (art. 5.º, XXIII) ou

por interesse social (art. 5.º, XXIV, CF). Novamente, o caráter universal e indivisível

dos direitos fundamentais prospera sobre as distinções naturais destes.

O direito à liberdade de expressão, de cunho individual, extravasou seu conceito clássico e atualmente se apresenta vinculada ao direito à informação, de cunho social. A liberdade à livre-iniciativa, de cunho individual, encontra-se restrita por direitos vinculados ao meio ambiente saudável e direito à saúde, ambos de cunho social. Em resumo, muitos dos direitos tradicionalmente entendidos como direitos civis e políticos foram reinterpretados em uma dimensão social, de modo que a separação absoluta das duas categorias de direito perdeu o sentido em muitos casos.135

134 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 4. Tradução livre. 135 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 26.

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De todos os direitos fundamentais, talvez o direito à saúde seja o melhor e mais

inquestionável exemplo do caráter indivisível destes: o direito à saúde pode ser

concedido judicialmente por sua vinculação com o princípio da dignidade humana, com

o valor da vida, da liberdade, da integridade física, da isonomia, entre outros.136

Em essência, não se podem mais encarar os direitos econômicos e sociais como

obrigações completamente distintas dos direitos civis e políticos. Ambos os tipos de

direitos possuem um núcleo em comum, que exige a atuação tanto positiva como

negativa dos Estados, por meio de relações jurídicas complexas e interligadas. Não

existem diferenças ontológicas entre ambos os grupos de direitos, não havendo escusas

para limitar os remédios judiciais somente para a defesa dos direitos civis e políticos,

em detrimento dos direitos econômicos e sociais.

A fragilidade da separação entre as duas categorias de direitos implicou na fragilização da tese de que a judicialização dos direitos econômicos e sociais não seria possível pela ausência de força vinculante destes, uma vez que sua satisfação dependeria sempre de recursos financeiros do Estado.137

Superada a ideia simplista de que direitos civis e políticos seriam autênticos

direitos, judicializáveis quando violados, e de que direitos econômicos e sociais não os

seriam (nem autênticos direitos e tampouco judicializáveis), é preciso aprofundar a

136 Por esse caráter múltiplo, o direito à saúde é um direito social de ampla judicialização e usualmente é

satisfeito sob alegação de violação ao direito à vida. Nesse sentido, exemplificativamente: “Processo civil e administrativo. Recurso especial. SUS. Custeio de tratamento médico. Moléstia grave. Direito à vida e à saúde. Bloqueio de valores em contas públicas. Possibilidade. Art. 461 do CPC. 1. A Constituição Federal excepcionou da exigência do precatório os créditos de natureza alimentícia, entre os quais incluem-se aqueles relacionados com a garantia da manutenção da vida, como os decorrentes do fornecimento de medicamentos pelo Estado. 2. É lícito ao magistrado determinar o bloqueio de valores em contas públicas para garantir o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde. Nessas situações, a norma contida no art. 461, § 5.º, do Código de Processo Civil deve ser interpretada de acordo com princípios e normas constitucionais, sendo permitida, inclusive, a mitigação da impenhorabilidade dos bens públicos. 3. Recurso especial não provido” (REsp n.º 824.164/RS (2006/0043680-8), Rel. Min. João Otávio de Noronha).

137 Víctor Abramovich e Christian Courtis, Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 32.

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análise sobre qual seria o conjunto de obrigações vinculadas aos direitos econômicos e

sociais. Essas obrigações serão, por óbvio, obrigações negativas e positivas.

A interpretação autorizada do PIDESC pelo Comitê, por meio das diversas

Recomendações Gerais sobre temas específicos, deixa claro que todos os direitos

econômicos e sociais devem ser tutelados por meio de um misto de condutas

relacionadas a obrigações positivas e negativas por parte do Estado, caracterizadas por

três níveis de obrigações estatais: obrigações de respeitar, proteger e adimplir (“the

obligations to respect, protect and fulfil”).138

A obrigação de respeitar é de caráter essencialmente negativo e endereça à não

intervenção, direta ou indireta, do Estado; a obrigação de proteger requer medidas

estatais para que terceiros não prejudiquem os direitos; e a obrigação de promover

requer – como típica obrigação positiva – a realização pelo Estado de atos concretos

para o adimplemento do direito, por meio de atos legislativos, administrativos,

orçamentários, judiciais etc.

As obrigações de respeitar possuem semelhanças com o conceito clássico dos

direitos civis e políticos, e se materializam pela não intervenção do Estado em prejuízo

de um direito econômico e social. Portanto, o Estado deverá se abster de realizar atos

que prejudiquem um direito. Por exemplo, em nossa opinião, não poderá o Estado

simplesmente desabrigar pessoas que morem precariamente em local público (sem

fornecer um local mais adequado e menos precário); não pode realizar condutas que

prejudiquem a saúde de terceiros; não pode impedir que alguém acesse um órgão

educacional, entre outros.

De modo específico, dentre as obrigações negativas relacionadas aos direitos

econômicos e sociais, a mais importante é a obrigação de não descriminar, prevista no

artigo 2.2 do PIDESC.139 Conforme exposto anteriormente, o conceito de obrigações

138 Os três níveis de proteção de direitos são inerentes a todos os direitos humanos e constantemente

assinalados nas Recomendações Gerais do Comitê. 139 “2. Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados

serão exercidos sem discriminação alguma baseada em motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento, qualquer outra situação.”

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negativas é entendido pelo Comitê de forma abrangente. Por exemplo, o direito ao

trabalho, historicamente visualizado como um direito social de cunho positivo, é visto

pelo Comitê como um direito que alberga obrigações positivas, mas possui essência

negativa, a liberdade de trabalho, “especialmente para indivíduos ou grupos em situação

de desvantagem ou marginalização, inclusive prisioneiros e detentos, membros de

minorias e imigrantes”, bem como jovens e mulheres.140

A obrigação de proteger requer medidas estatais para que terceiros não

prejudiquem os direitos. Essas medidas serão essencialmente obrigações de cunho

legislativo (ex.: edição de lei impedindo violação de direito) ou executivo

(regulamentação de matéria ou fiscalização do efetivo cumprimento das leis), de forma

a restringir a liberdade dos particulares para impedir a violação de direitos de outros

particulares.

Por fim, a obrigação de adimplir requer – como típica obrigação positiva – a

realização pelo Estado de atos concretos para o adimplemento do direito (por meio de

atos legislativos, administrativos, orçamentários, judiciais etc.). É a efetiva prestação

material, consubstanciada pela entrega, pelo Estado, dos direitos sociais reconhecidos.

Das três formas de obrigações (respeitar, proteger e adimplir), a obrigação de adimplir é

a de maior controvérsia e de difícil aplicação.

3.2.2 Determinando os direitos sociais

O ponto de partida para a aplicação de uma norma jurídica positiva, seja de

modo espontâneo pelas partes ou por meio da substituição de suas vontades por uma

decisão judicial, é a definição do conteúdo e alcance da norma. Obviamente, para se

140 No original: “23. States parties are under the obligation to respect the right to work by, inter alia,

prohibiting forced or compulsory labour and refraining from denying or limiting equal access to decent work for all persons, especially disadvantaged and marginalized individuals and groups, including prisoners or detainees, members of minorities and migrant workers. In particular, States parties are bound by the obligation to respect the right of women and young persons to have access to decent work and thus to take measures to combat discrimination and to promote equal access and opportunities” (Recomendação Geral n.º 18, adotada em 24.11.2005, pelo Comitê DESC).

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aplicar uma norma é preciso saber qual é exatamente a obrigação ou direito por ela

albergado (conteúdo) e quais pessoas estão submetidas a ela (alcance). Na maior parte

dos casos, essas duas questões são relativamente simples de ser respondidas, ainda que

seja sempre necessária a ação de interpretar o texto legal.

No tocante às normas definidoras de direitos econômicos e sociais, todavia, a

definição do conteúdo e alcance das normas é tormentosa e complexa. Esse primeiro

empecilho já é um grande óbice para a concretização dos direitos. , pois, como visto, as

normas definidoras de direitos fundamentais foram positivadas (no plano internacional e

no plano interno dos países) por meio de conceitos abertos e imprecisos,141 o que torna

seu processo interpretativo mais complexo: além de definir qual seria o direito garantido

por cada norma, faz-se necessário estabelecer a extensão em que a concessão desse

direito é razoável e, em última instância, justa.

A positivação dos direitos sociais por meio de normas abertas, consagradas

internamente por princípios jurídicos e cláusulas gerais,142 deixa a interpretação desses

direitos imprecisa. Não se trata de um demérito dos direitos sociais, mas sim uma

imposição necessária em razão da complexidade dos problemas que as normas visam

solucionar. Todavia, a imprecisão dos conceitos acarreta menor aplicabilidade deles.

Em uma sociedade democrática, o significado destes direitos não pode depender da busca de uma única e determinada verdade, mas sim do esforço coletivo da comunidade em busca de um acordo provisório. A provisoriedade é determinada pelo contexto dos direitos [...] e também apoia a ideia de interdependência de todos os grupos de direitos fundamentais.143

No caso brasileiro, por exemplo, são incontestáveis direitos “a educação, a

saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a

141 Reiteramos que isto se deu por estratégia política para permitir a aprovação dos instrumentos

internacionais. 142 Cláusulas podem ser conceituadas como: “Normas que não prescrevem uma certa conduta, mas,

simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para a aplicação de demais disposições normativas” (Gustavo Tepedino, Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002, p. 19).

143 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 4.

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proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (art. 6.º, CF), bem

como a “proteção do mercado de trabalho da mulher” (art. 7.º, XX, CF),

“aposentadoria” (art. 7.º, XXIV, CF), “proibição de distinção entre trabalho manual,

técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos” (art. 7.º, XXXII, CF), e ainda

o direito a uma ordem econômica “fundada na valorização do trabalho humano e na

livre iniciativa, [que] tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os

ditames da justiça social” (art. 170, caput, CF).

Pergunta-se: o que seria, precisamente, o direito “a educação, a saúde, a

alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção

à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” previstos em nossa

Constituição Federal? Esta pergunta é difícil de ser respondida com precisão, uma vez

que esses conceitos são gerais e abertos à definição pelo aplicador da norma, seja no

âmbito do Poder Executivo e Legislativo (como entes políticos), como no âmbito do

Poder Judiciário, como intérprete da Constituição. Aliás, a definição do alcance e

sentido da norma, na maior parte das vezes, depende de legislação infraconstitucional e

constitui o principal entrave para a efetivação de um direito social.

A utilização de conceitos amplos e sujeitos a múltiplas interpretações, todavia, é

vista como a forma mais adequada de positivação destes direitos, levando-se em conta a

grande diversidade, econômica e cultural, dos países que os adotam. A ideia de uma

constituição rígida e especifica, no que diz respeito a direitos econômicos e sociais não

se mostra adequada. Em termos concretos, do ponto de vista do individuo, os direitos

econômicos e sociais são aqueles que buscam conceder aos indivíduos uma “quantidade

satisfatória” de recursos (ex: educação, saúde, trabalho) para uma vida digna e

respeitável.

Se a existência desses direitos é incontestável, a adjudicação deles em casos

concretos é tormentosa e incerta. Para isso, é preciso definir claramente qual a extensão

dos direitos previstos, e em que medida eles podem ser diretamente outorgados aos

particulares pela via judicial. Em outras palavras, o primeiro grande problema a respeito

da falta de efetividade dos fundamentais, e especialmente dos direitos econômicos e

sociais, consiste em determinar o que é apto de proteção jurídica imediata (e, portanto,

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pode ser adjudicado pela via judicial) e o que está fora desse âmbito, aguardando seu

“desenvolvimento progressivo”.

Existem várias formas de buscar o conteúdo de um direito, conforme

tradicionalmente estudado na hermenêutica.144 No tocante ao significado e alcance dos

direitos econômicos e sociais, por sua natureza diferenciada, estes podem obedecer

regras de hermenêutica igualmente diferenciadas. Nesse sentido, Katharine Young

sugere a existência de duas linhas de teorias interpretativas sobre a definição dos

direitos de 2.ª dimensão: o racionalismo e o consensualismo. Não se trata de teorias

excludentes, mas somente da demonstração de dois pontos de vista, em parte

complementares.145

O racionalismo seria a busca do conteúdo por meio de roteiros lógico-formais,

de vinculação de ideias conexas, originando-se de um ponto comum (para alguns, a

dignidade humana ou, para outros, a sobrevivência humana). O consensualismo, de

modo distinto, sugere que o significado adequado de cada direito seria o consenso

atingido pela maioria dos Estados sobre o assunto, independentemente de sua

vinculação com uma origem comum.

Ambas as posições são importantes para o entendimento do significado dos

direitos econômicos e sociais e para dar-lhes sentido nos ordenamentos jurídicos. A

adoção de pontos de vista filosóficos do racionalismo ou do consensualismo visam

apresentar um significado e determinação aos direitos fundamentais de cunho social e

econômico.

De acordo com o ponto de vista chamado de racionalista, o significado dos

direitos econômicos e sociais deriva de um processo racional de justificação: o

racionalismo busca o significado dos direitos econômicos e sociais por meio do uso da

144 Os métodos tradicionalmente concebidos são: Autêntico (que demonstra no texto legal qual a mens

legis); Doutrinário (sentido determinado pelos cientistas jurídicos dos dispositivos legais); Jurisprudencial (sentido determinado pelo conjunto de sentenças e acórdãos); Literal (busca o sentido do texto normativo, com base nas regras comuns da língua); Histórico (busca o contexto fático da norma, recorrendo aos métodos da historiografia para retomar o meio em que a norma foi editada); Sistemático (considera o sistema em que a norma se insere); Teleológico (busca os fins sociais e bens comuns da norma) (Miguel Reale, Lições preliminares de direito).

145 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 33.

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razão e da lógica, sendo este o processo mais comum para os aplicadores da lei

(operadores do direito em geral). Essa interpretação busca um alicerce ético (talvez

extrínseco ao texto da lei, como a importância da dignidade humana) para achar o

“melhor” sentido de cada direito.

Um exemplo de racionalismo é o direito à moradia. Henry Shue justifica este direito com base na importância do direito a um abrigo que proteja a pessoa dos males da natureza, o que vincula este direito com o direito à vida. Jeremy Waldron, por outro lado, justifica o direito à moradia com ênfase no direito à liberdade, que determina o direito de ter acesso a um lugar para realizar atividades privadas (tais quais dormir, tomar banho etc.), que são proibidas em lugares públicos. Outros dão importância ao direito à moradia para tornar autênticos os direitos civis e políticos, como o voto livre. Ainda, a falta de moradia limita o exercício da liberdade, que é necessária para a legitimidade do ordenamento jurídico. Todas estas teorias dependem de uma cadeia de justificativas racionais que usualmente acompanham argumentos jurídicos.146

O segundo ponto de vista filosófico para a determinação dos direitos

econômicos e sociais, denominado consensualismo, privilegia o consenso atingido entre

os Estados sobre o que é cada direito. Essa visão não busca selecionar a origem ou

valores prioritários para cada direito, mas sim se existe algum consenso sobre o seu

conceito e qual seria este. A visão consensualista busca por um consenso sobre direitos

econômicos e sociais que seja apoiado por diversas fontes do direito internacional:

costumes internacionais (por sua natureza, dependente do consenso), convenções e

tratados e princípios gerais.

Ambas as teorias são, na realidade, caminhos distintos para se chegar ao mesmo

objetivo. Não existe um conflito excludente entre ambas, mas sim dois pontos de vista

filosóficos e dois métodos interpretativos distintos para se alcançar o mesmo fim, que é

dar sentido e alcance aos direitos econômicos e sociais.

A percepção da autora de que existem dois caminhos distintos para obter o

mesmo resultado explica a grande divergência doutrinária e jurisprudencial sobre os

direitos econômicos e sociais e nos ajuda a entender o porquê disso.

146 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 33-34. Tradução livre.

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A percepção dessa visão denominada racionalista nos faz perceber por que é

comum que os direitos econômicos e sociais sejam, em muitos casos, somente exigíveis

de modo indireto, por meio da percepção de violação de um direito acessório de

natureza civil ou política.147 Veja-se que, para os que possuem uma visão denominada

racionalista, o argumento natural de defesa dos direitos econômicos e sociais é a íntima

vinculação destes com direitos fundamentais de 1.ª dimensão (no caso do exemplo

transcrito, seria o direito à vida, para Henry Shue; e o direito à liberdade, para Jeremy

Waldron). Isso se dá porque os direitos de 1.ª dimensão ainda são considerados “mais

fortes” do que os de 2.ª dimensão, e, portanto, a invocação desses direitos é um

argumento de autoridade para a defesa dos direitos “mais fracos”. Essa relação de

dependência, todavia, não precisa ser considerada como algo negativo, na medida em

que serve para reforçar o caráter de indivisibilidade dos direitos humanos.

Mais prática, a análise consensualista dos direitos econômicos e sociais

consolida e define o conteúdo aceito sobre cada direito, com a preocupação de não

restringir ou eliminar outras possibilidades interpretativas. A visão consensualista

aspira dar legitimidade política (e não somente jurídica) para a concretização dos

direitos econômicos e sociais, o que falta ao racionalismo, que é focado em aspectos

eminentemente jurídicos.

No tocante ao PIDESC, a busca pelo consenso se dá por duas maneiras: pelas

Observações Finais do Comitê, direcionadas a cada Estado; e por meio de seus

Comentários Gerais, nos quais esclarece, com característica de generalidade e abstração

(ainda que sem caráter coercitivo), o que entende pelos direitos econômicos e sociais, e

quais providências espera dos Estados para sua defesa.

3.2.3 Os núcleos essenciais e obrigações nucleares dos direitos sociais

Um ponto em comum para as linhas de pensamento denominadas racionalistas é

que os direitos econômicos e sociais a que se pretendem dar efetividade derivam, de

147 Usualmente, busca-se a exigibilidade de direito social por meio da comprovação de violação do

princípio da legalidade ou do devido processo legal, como acessório à violação ao direito social.

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uma ou outra maneira, de uma construção expansiva do direito à vida, de modo que esse

direito, de cunho universal, irradie para proteger indiretamente os direitos econômicos e

sociais que lhes seriam conexos.

O direito à vida, porém, não é limitado somente em sua dimensão física e

biológica, mas especialmente em caráter moral, calcado no conceito de vida digna. A

alocação de direitos econômicos e sociais não visa a manutenção, pura e simples, da

sobrevivência humana, mas sim a busca dos recursos fundamentais para uma vida com

dignidade. O valor da dignidade humana é um vetor de justificativa da imposição de

prestações positivas relativas a direitos sociais por parte do Estado. Da mesma forma

que os tratados internacionais sobre direitos humanos, a maior parte das constituições

positivadas após a Segunda Guerra Mundial dá maior ênfase à dignidade humana.

O fundamento da dignidade humana é usualmente vinculado aos princípios

éticos de Immanuel Kant, autor clássico que retirou das pessoas qualquer característica

comercial, ao desvinculá-las de qualquer preço. Para Kant, em sua obra Fundamentação

da metafísica dos costumes, a dignidade é descrita como um valor incondicional e

incomparável, porque seu valor é absoluto, e não depende de fatos ou de situações

específicas para serem estabelecidos.148

A dignidade, como característica incondicionada do ser humano, independe de

qualquer utilidade ou vantagem, pois é um fim em si mesma. A sua característica de

incomparável diz respeito à sua situação de valor único e sem equivalência. O conceito

de dignidade é utilizado por Kant para dar ênfase ao ser humano, na medida em que a

humanidade é um fim em si mesmo, e não pode ser tratado como meio. Por esse

argumento, distingue os bens e coisas em geral, consideradas úteis e vinculadas a preços

(um valor dependente de sua utilidade), das pessoas, que são vinculadas ao valor

incondicional da dignidade.149

Do ponto de vista jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana irradia

como vetor de otimização e fundamento decisório para a mais distinta gama de direitos,

148 Paulo Gustavo Gonet Branco e Gilmar Ferreira Mendes, Curso de direito constitucional. 149 Milene Consenso Tonetto, Sobre a caracterização do conceito de dignidade em Kant, p. 182-194.

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inclusive os direitos econômicos e sociais. Seu escopo é tão amplo e as decisões que se

fundamentam no mesmo são tão diversas que a dignidade humana pode ser considerada

como um “superprincípio”.150 No Brasil, a dignidade da pessoa humana é considerada

princípio fundamental do Estado brasileiro (art. 1.º, III, CF). No plano internacional, a

dignidade humana é reconhecida nos principais tratados internacionais, por exemplo, no

preâmbulo do PIDESC.151

É na dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito Internacional e Interno.152

O caráter normativo da dignidade da pessoa humana se desenrola em múltiplas

funções: orienta o intérprete na aplicação, interpretação e integração do ordenamento;

garante sua unidade e coerência interna; e fundamenta a atuação estatal em prol da

defesa de direitos humanos, tanto em suas obrigações de respeito (de cunho negativo)

como em obrigações de promoção (de cunho positivo).153

Como vetor interpretativo, o princípio da dignidade da pessoa humana é o

vínculo necessário para estabelecer o limite abaixo do qual a inexistência de uma

condição material (ex.: determinado tipo de moradia, acesso à escolaridade etc.) implica

desrespeito aos direitos fundamentais positivados. Em seu esforço de aumentar a

150 Por outro lado, como crítica, percebe-se que existe no Brasil uma cultura jurisdicional em que o

princípio da dignidade humana é utilizado para justificar, de modo raso, toda e qualquer decisão jurídica. De modo exemplificativo, o princípio da dignidade humana foi utilizado pela Justiça Eleitoral para impedir que o TRE do Ceará exija prova de alfabetização de candidatos (Acórdão n.º 285, TSE); foi utilizado pelo TRT-SP para determinar a liberação de penhora incidente sobre poupança (Acórdão n.º 11197200900002008) e também para justificar a condenação subsidiária da Administração Pública (Autos n.º 00096.2009.079.02.00-0); para justificar a condenação (TRF3, APELREEX n.º 123.173.420.064.036.100) ou absolvição em danos morais praticados pela administração (Acórdão TRF3, AC-7.809.020.104.036.006).

151 “Considerando que, em conformidade com os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (Preâmbulo do PIDESC).

152 Flávia Piovesan, Direitos humanos e o princípio da dignidade humana, p. 194. 153 Alessandra Gotti Bontempo, A eficácia e acionabilidade dos direitos sociais: uma análise à luz da

Constituição de 1988, p. 34.

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efetividade dos direitos fundamentais de natureza econômica e social, o Comitê

estabeleceu, ao longo dos anos, quais os núcleos essenciais dos direitos econômicos e

sociais.

A violação do mínimo existencial – isto é, a não garantia de tais condições elementares – importa o desrespeito do princípio da dignidade da pessoa humana sob o aspecto material, ou seja, uma ação ou omissão institucional. Em suma: o mínimo existencial e núcleo material do princípio da dignidade humana descrevem o mesmo fenômeno.154

A fixação de núcleos essenciais é uma das formas de eliminar (ou reduzir) a

imprecisão terminológica causada pelo uso de normas principiológicas e termos abertos.

Considera-se, para fins de defesa dos direitos em Juízo, o núcleo essencial dos direitos

sociais como a quantidade mínima necessária para que o direito possa ser reputado

existente em uma denominada situação concreta. Podemos equiparar o núcleo mínimo

dos direitos sociais à própria noção de existência do direito.

Em razão do amplo escopo dos direitos econômicos e sociais, surge a

importância de desenvolver um padrão de distribuição de recursos e investimentos

públicos que seja capaz de ser concretizada, no curto prazo, e que possa ajudar a aliviar

os piores e mais graves sofrimentos dos indivíduos.155

O núcleo essencial de direitos é equivalente ao menor termo de direitos necessários para que uma pessoa viva com dignidade, de modo a ter plenamente preservado o seu bem-estar físico (ausência de danos à sua integridade), autonomia (controle mínimo sobre sua própria vida e destino) e convivência em sociedade (permitindo sua participação na família e comunidade). Em essência, é o necessário para uma vida minimamente decente.156

154 Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade

da pessoa humana, p. 230. 155 Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: the Activist Tribunals of

India, South Africa, and Colombia, p. 58.

156 Jeff King, Judging Social Rights, p. 29.

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A definição de quais os direitos albergados nesse núcleo mínimo, todavia, é

imprecisa e, felizmente, maleável de acordo com o momento histórico e econômico dos

países. A luta pelo estabelecimento de um núcleo mínimo é, assim, a luta pelo próprio

direito econômico ou social em uma sociedade: não basta que tal direito esteja

positivado, se não for possível lhe conferir ao menos um mínimo de efetividade.

A ideia do núcleo essencial busca responder à seguinte pergunta: o que é o

mínimo que um cidadão pode demandar e, de outro lado, o mínimo que se pode exigir

do governo? Respondida essa questão, tudo o que for incluso no núcleo mínimo poderá

ser judicialmente tutelado. De nada vale, por exemplo, o direito à educação estar

constitucionalmente assegurado, se, em nenhuma situação, esse direito puder produzir

efeitos concretos. Nesse caso, não seria um efetivo direito, mas sim uma promessa,

insincera e frustrante, por parte do poder constituinte originário.

O núcleo essencial busca estabelecer o padrão legal mínimo para os direitos

econômicos e sociais previstos no PIDESC. Por se focar nos níveis mínimos dos

direitos econômicos ou sociais, a existência do núcleo essencial permite que o Estado dê

maior atenção aos mais graves casos de privação de direitos. Portanto, dá-se um espírito

pragmático à busca pela efetividade dos direitos fundamentais, evitando-se eventuais

excessos deontológicos, uma vez que é difícil caracterizar as necessidades básicas das

pessoas sem cair em afirmações genéricas, tais como “uma condição mínima para a

vida” (Jeremy Waldron) ou para “uma chance real de uma vida razoavelmente saudável

e ativa” (Henry Shue).157

O estabelecimento das fronteiras do núcleo mínimo dos direitos sociais permite

realizar o necessário elo entre direito e economia, na medida em que – ao menos em um

grau avançado de satisfação – os direitos econômicos e sociais necessitam de

investimentos públicos para a sua consecução. O núcleo mínimo estabelece o limite

abaixo do qual a inexistência de proteção caracteriza o inadimplemento do direito e,

portanto, o limite que permite a reparação, pela via judicial, da injustiça.

157 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 67. Tradução livre.

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O núcleo mínimo não é a média ideal que os direitos econômicos e sociais garantem para os indivíduos em uma sociedade; ao contrário, é o concreto, o padrão realizável que precisa ser aplicado no curto prazo para assegurar que a aspiração constitucional de que todos tenham recursos suficientes possa, de fato, ser cumprida. O núcleo mínimo constitui a parte realizável, no momento, de um ideal constitucional maior e de longo prazo, que determina que os indivíduos sejam providos com as condições necessárias para que sejam livres de ameaças a sua sobrevivência.158

Assim, a partir da fixação do núcleo mínimo não mais se admite que fatores

econômicos, desprovidos de uma fundamentação adequada e concreta, sejam

reconhecidos como razão para o inadimplemento de direitos econômicos e sociais. O

custo dos direitos, usualmente utilizado como argumento do Poder Público para o

inadimplemento total deles, perde sua relevância ante o descumprimento dos níveis

mínimos dos direitos.

A grande pressão em prol da efetividade dos direitos econômicos e sociais, usualmente, dá-se pela pressão para determinar, ou expandir, o que seria o “conteúdo mínimo” destes direitos. Pergunta-se, em resumo, o que é o mínimo que precisa-se dar, do ponto de vista de recursos básicos, para um ser humano possuir uma vida digna? Ao contrário do que pareça à primeira vista, a definição de um núcleo mínimo visa aumentar a incidência dos direitos econômicos e sociais, pois esta define o limite abaixo do qual as pessoas perderiam a dignidade. Estabelecido um valor mínimo, pode ser exigido do Estado que todas as pessoas abaixo desta situação sejam elevadas de patamar. Portanto, maximiza-se a extensão dos direitos consagrados.159

Em outras palavras, a existência do núcleo essencial dos direitos fundamentais

deixa claro que há limites fundamentais que são inderrogáveis e indisponíveis: abaixo

de tal patamar, perde-se o caráter civilizatório, de modo que nenhuma norma pode

suprimir tais direitos e, mais importante, o Estado deverá adotar medidas concretas e

158 Daniel Bonilla Maldonado (Org.), Constitutionalism of the Global South: the Activist Tribunals of

India, South Africa, and Colombia, p. 59.

159 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights.

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efetivas para fomentá-los. A caracterização do núcleo essencial, em suma, ameniza o

caráter “progressivo” das obrigações do PIDESC.

A existência e definição do núcleo essencial dos direitos econômicos e sociais

foi paulatinamente sedimentada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais. Explica-se: o Comitê foi criado em 1985 pelo Conselho Econômico e Social,

como órgão subordinado a ele, com a finalidade de monitorar a implementação dos

direitos previstos no PIDESC. Suas principais atribuições eram o recebimento de

relatórios periódicos sobre a implementação dos direitos fundamentais e a análise das

informações recebidas, mediante a elaboração de pareceres técnicos, documentados por

meio de seus Comentários Finais e Recomendações Gerais (General Comments)

emitidas com a finalidade de oficializar a interpretação do Comitê.

O resultado da teoria do núcleo mínimo permitiu ao Comitê atingir quatro papéis: em primeiro lugar, dar uma solução ao problema da realização progressiva; em segundo lugar, criou uma base que perdura através de inúmeros sistemas jurídicos diversos; em terceiro lugar, estabeleceu um limite mínimo para obrigações extraestatais. Um quarto, e mais recente papel, foi de vincular a doutrina de modo mais explícito com a possibilidade de adjudicação de direitos.160

Por meio desses documentos, o Comitê realiza o consenso sobre a extensão do

mínimo dos direitos econômicos e sociais: o consenso sobre o mínimo, afinal, é mais

fácil de se obter do que o consenso sobre o total do direito. “As pessoas de diferentes

culturas podem continuar a discordar sobre o que é bom, mas ainda assim concordar

sobre o que é insuficiente, notoriamente ruim.”161

A base do núcleo essencial dos direitos econômicos e sociais foi firmada por

meio da Recomendação Geral do Comitê n.º 3, adotada na 5.ª sessão do Comitê, em

1990:

Com base na extensa experiência obtida pelo Comitê, e igualmente pelo órgão percussor, ao longo do período de mais de uma década de exames de relatórios dos Estados-Partes ao Comitê, vê-se que um núcleo

160 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 78. 161 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 66.

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essencial de obrigações que assegurem a satisfação de, ao menos, níveis mínimos essenciais de cada direito é obrigatório para cada Estado-Parte. Assim, por exemplo, o Estado-Parte em que um número significativo de indivíduos seja privado de alimentação essencial, saúde essencial, moradia essencial ou alguma forma básica de educação está, prima facie, deixando de cumprir com suas obrigações do Pacto. Se o Pacto fosse lido de modo a não estabelecer este mínimo, ele perderia sua razão de existir. Da mesma forma, deve-se notar que qualquer queixa sobre se um Estado deixou de cumprir com suas obrigações deve também levar em conta os recursos do país em referência. O artigo 2.1 do PIDESC obriga que cada Estado-Parte realize todos os passos necessários “até o máximo de seus recursos”. Para um Estado-Parte atribuir seu fracasso em atingir o núcleo essencial para a falta de recursos, ele deve demonstrar que todos os esforços foram tomados e que todos os recursos que estão a sua disposição foram direcionados, como prioridade, para às obrigações essenciais.162

Sensível ao problema da falta de efetividade dos direitos econômicos e sociais, o

Comitê, já em 1990 se preocupou em retirar dos Estados a possibilidade de alegar

descumprimento das normas sociais sem a comprovação de que medidas concretas

foram devidamente tomadas. Da mesma forma, o estabelecimento de um nível mínimo

de direitos (“núcleo essencial”) permitiu dar um viés concreto aos instrumentos

internacionais firmados, afastando-os do plano de meros pactos “de boa-vontade” e

aproximando-os dos efetivos e autênticos instrumentos jurídicos que são.

Posteriormente, na Recomendação Geral n.º 14, adotada em 11.05.2000, em seus

parágrafos 46163 e 47,164 o Comitê passou a entender ser o núcleo essencial uma

162 Recomendação Geral n.º 3, p. 85. Tradução livre, grifo nosso. 163 “46. Quando o conteúdo normativo do artigo 12 (Parte I) é aplicado às obrigações dos Estados Partes

(Parte II), um processo dinâmico é posto em movimento, o que facilita a identificação de violações do direito à saúde. Os parágrafos a seguir ilustram as violações do artigo 12.”

164 “47. Ao determinar quais ações ou omissões equivalem a uma violação do direito à saúde, é importante distinguir a incapacidade da ausência de vontade de um Estado Parte para cumprir as suas obrigações previstas no artigo 12. Isso decorre do artigo 12.1, que dispõe do mais alto padrão possível de saúde, bem como do artigo 2.1 do Pacto, que obriga cada Estado Parte a tomar as medidas necessárias de acordo com o máximo de seus recursos disponíveis. Um Estado que não está disposto a usar o máximo de seus recursos disponíveis para a realização do direito à saúde viola suas obrigações nos termos do artigo 12. Se as limitações de recursos tornam impossível para um Estado cumprir integralmente as suas obrigações do Pacto, ele tem o ônus de justificar que realizou todos os esforços, foram feitos para usar todos os recursos disponíveis, a fim de satisfazer, prioritariamente, as obrigações acima descritas. Ressalte-se, entretanto, que um Estado Parte não pode, em nenhuma hipótese, justificar o não cumprimento das obrigações fundamentais enunciadas no parágrafo 43 acima, que são inderrogáveis.”

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obrigação inderrogável, sobre a qual “o Estado-Parte não pode, em nenhuma

circunstância, justificar o descumprimento do núcleo mínimo, que é inderrogável” e

“permanece válido em situações de conflito, emergência ou catástrofes naturais”.

Passados dez anos da colocação do núcleo essencial dos direitos econômicos e

sociais, o Comitê – continuando sua busca por maior efetividade dos direitos

econômicos e sociais – colocou-o em um novo patamar de proteção, tratando-o como

direito inderrogável mesmo em situações de emergência. Portanto, o núcleo essencial

dos direitos econômicos e sociais passou a ser um conjunto de direitos cujo

descumprimento nunca poderá ser aceito ou justificado pelos Estados.

Pode parecer inadequada, à primeira vista, a existência de um núcleo essencial

único para os direitos econômicos e sociais, na medida em que os países aderentes ao

Pacto possuem grande diversidade entre si, tanto no tocante a aspectos econômicos,

culturais e políticos. A diferença das realidades econômicas e, principalmente,

disponibilidade financeiras entre os diversos Estados dá a impressão de que o núcleo

essencial dos direitos fundamentais pode se caracterizar como uma barreira muito

“elevada” (para os países pobres) ou “baixa” (para os países ricos), o que acarretaria um

esvaziamento destes.

Uma crítica antiga da doutrina da defesa do núcleo mínimo de direitos alega que ela direciona atenção somente aos Estados em desenvolvimento, e deixa os direitos econômicos e sociais inacessíveis para as pessoas carentes de países já desenvolvidos. A questão é entender como é possível conciliar o núcleo mínimo com o caráter universal dos direitos humanos, pautado por diversas realidades econômicas díspares. Uma pergunta conceitual básica resume a questão: o núcleo mínimo pode ser idêntico para os moradores de Mali ou do Canadá? A resposta a esta pergunta divide os que defendem a existência de um núcleo mínimo “relativo” (específico para cada Estado desenvolvido) e de um núcleo mínimo “universal” (respeitado por todos os Estados), dos que defendem que a existência desta distinção violaria o caráter universal dos direitos humanos.165

165 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 69.

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No tocante ao problema do caráter universal dos direitos previstos no PIDESC, o

Comitê se manifestou pelo sentido da caracterização destes direitos como obrigação

universal (e não relativa), ao menos relativamente ao núcleo essencial das obrigações

relacionadas à saúde, por meio de sua Recomendação Geral n.º 14, adotada em

11.08.2000.166

Além de se posicionar de forma universalista, nessa Recomendação Geral n.º 14

o Comitê reiterou sua busca pela maior efetividade possível dos direitos econômicos e

sociais, a partir da adoção de um novo ponto de vista para a defesa dos direitos: o foco

na defesa dos direitos econômicos e sociais, pautado desde 1990 no atingimento do

166 “43. In General Comment n. 3, the Committee confirms that States parties have a core obligation to

ensure the satisfaction of, at the very least, minimum essential levels of each of the rights enunciated in the Covenant, including essential primary health care. Read in conjunction with more contemporary instruments, such as the Programme of Action of the International Conference on Population and Development,166 the Alma-Ata Declaration provides compelling guidance on the core obligations arising from article 12. Accordingly, in the Committee’s view, these core obligations include at least the following obligations:

(a) To ensure the right of access to health facilities, goods and services on a non-discriminatory basis, especially for vulnerable or marginalized groups;

(b) To ensure access to the minimum essential food which is nutritionally adequate and safe, to ensure freedom from hunger to everyone;

(c) To ensure access to basic shelter, housing and sanitation, and an adequate supply of safe and potable water;

(d) To provide essential drugs, as from time to time defined under the WHO Action Programme on Essential Drugs;

(e) To ensure equitable distribution of all health facilities, goods and services;

(f) To adopt and implement a national public health strategy and plan of action, on the basis of epidemiological evidence, addressing the health concerns of the whole population; the strategy and plan of action shall be devised, and periodically reviewed, on the basis of a participatory and transparent process; they shall include methods, such as right to health indicators and benchmarks, by which progress can be closely monitored; the process by which the strategy and plan of action are devised, as well as their content, shall give particular attention to all vulnerable or marginalized groups.

44. The Committee also confirms that the following are obligations of comparable priority:

(a) To ensure reproductive, maternal (pre-natal as well as post-natal) and child health care;

(b) To provide immunization against the major infectious diseases occurring in the community;

(c) To take measures to prevent, treat and control epidemic and endemic diseases;

(d) To provide education and access to information concerning the main health problems in the community, including methods of preventing and controlling them;

(e) To provide appropriate training for health personnel, including education on health and human rights.

45. For the avoidance of any doubt, the Committee wishes to emphasize that it is particularly incumbent on States parties and other actors in a position to assist, to provide “international assistance and cooperation, especially economic and technical” which enable developing countries to fulfil their core and other obligations indicated in paragraphs 43 and 44 above.”

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núcleo essencial dos direitos, alterou-se para a realização de obrigações nucleares (core

obligations), novamente inderrogáveis.

O Comitê decidiu que os direitos economicos e sociais contêm uma obrigação mínima que deve ser cumprida pelos Estados Partes. Estas obrigações requerem que cada Estado Parte cumpra um certo mínimo de níveis essenciais do direito em questão, e a falha em assim fazer constitui, prima facie, na falha em cumprir com as obrigações previstas no Pacto. [...] De modo a cumprir com estas obrigações, o Estado deverá não somente legislar, mas também atuar do modo esperado para atingir o resultado esperado.167

Nos anos seguintes, as Recomendações Gerais n.º 15, adotada em 20.01.2003,

n.º 17, adotada em 12.01.2006, e n.º 18, adotada em 06.02.2006, reiteram a necessidade

de realização imediata ao menos das obrigações nucleares referentes ao direito sobre a

água (arts. 37 e 38 da Recomendação Geral n.º 15),168 sobre a propriedade intelectual

167 David Bilchitz, Poverty and fundamental rights: the justification and enforcement of socio-economic

rights, pos. 3282. 168 “37. In General Comment n. 3 (1990), the Committee confirms that States parties have a core

obligation to ensure the satisfaction of, at the very least, minimum essential levels of each of the rights enunciated in the Covenant. In the Committee’s view, at least a number of core obligations in relation to the right to water can be identified, which are of immediate effect:

(a) To ensure access to the minimum essential amount of water, that is sufficient and safe for personal and domestic uses to prevent disease;

(b) To ensure the right of access to water and water facilities and services on a non-discriminatory basis, especially for disadvantaged or marginalized groups;

(c) To ensure physical access to water facilities or services that provide sufficient, safe and regular water; that have a sufficient number of water outlets to avoid prohibitive waiting times; and that are at a reasonable distance from the household;

(d) To ensure personal security is not threatened when having to physically access to water;

(e) To ensure equitable distribution of all available water facilities and services;

(f) To adopt and implement a national water strategy and plan of action addressing the whole population; the strategy and plan of action should be devised, and periodically reviewed, on the basis of a participatory and transparent process; it should include methods, such as right to water indicators and benchmarks, by which progress can be closely monitored; the process by which the strategy and plan of action are devised, as well as their content, shall give particular attention to all disadvantaged or marginalized groups;

(g) To monitor the extent of the realization, or the non-realization, of the right to water;

(h) To adopt relatively low-cost targeted water programmes to protect vulnerable and marginalized groups;

(i) To take measures to prevent, treat and control diseases linked to water, in particular ensuring access to adequate sanitation;

38. For the avoidance of any doubt, the Committee wishes to emphasize that it is particularly incumbent on States parties, and other actors in a position to assist, to provide international assistance and cooperation, especially economic and technical which enables developing countries to fulfil their core obligations indicated in paragraph 37 above.”

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(arts. 39 e 40 da Recomendação Geral n.º 17)169 e direito ao trabalho (art. 31 da

Recomendação Geral n.º 18).170

O objetivo [do Comitê] é alterar o foco, antes centrado no resultado (núcleo essencial), para obrigações de meio (obrigações nucleares). Esta mudança de foco reflete em dois pontos. Em primeiro lugar, o foco nas obrigações requeridas para a implementação dos direitos econômicos e

169 “39. In general comment n. 3 (1990), the Committee confirmed that States parties have a core

obligation to ensure the satisfaction of minimum essential levels of each of the rights enunciated in the Covenant. In conformity with other human rights instruments, as well as international agreements on the protection of the moral and material interests resulting from one’s scientific, literary or artistic productions, the Committee considers that article 15, paragraph 1 (c), of the Covenant entails at least the following core obligations, which are of immediate effect:

(a) To take legislative and other necessary steps to ensure the effective protection of the moral and material interests of authors;

(b) To protect the rights of authors to be recognized as the creators of their scientific, literary and artistic productions and to object to any distortion, mutilation or other modification of, or other derogatory action in relation to, their productions that would be prejudicial to their honour or reputation;

(c) To respect and protect the basic material interests of authors resulting from their scientific, literary or artistic productions, which are necessary to enable those authors to enjoy an adequate standard of living;

(d) To ensure equal access, particularly for authors belonging to disadvantaged and marginalized groups, to administrative, judicial or other appropriate remedies enabling authors to seek and obtain redress in case their moral and material interests have been infringed;

(e) To strike an adequate balance between the effective protection of the moral and material interests of authors and States parties’ obligations in relation to the rights to food, health and education, as well as the rights to take part in cultural life and to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, or any other right recognized in the Covenant.

40. The Committee wishes to emphasize that it is particularly incumbent on States parties and other actors in a position to assist, to provide “international assistance and cooperation, especially economic and technical”, which enable developing countries to fulfil their obligations indicated in paragraph 36 above.”

170 “31. In general comment No. 3 (1990) the Committee confirms that States parties have a core obligation to ensure the satisfaction of minimum essential levels of each of the rights covered by the Covenant. In the context of article 6, this “core obligation” encompasses the obligation to ensure non-discrimination and equal protection of employment. Discrimination in the field of employment comprises a broad cluster of violations affecting all stages of life, from basic education to retirement, and can have a considerable impact on the work situation of individuals and groups. Accordingly, these core obligations include at least the following requirements:

(a) To ensure the right of access to employment, especially for disadvantaged and marginalized individuals and groups, permitting them to live a life of dignity;

(b) To avoid any measure that results in discrimination and unequal treatment in the private and public sectors of disadvantaged and marginalized individuals and groups or in weakening mechanisms for the protection of such individuals and groups;

(c) To adopt and implement a national employment strategy and plan of action based on and addressing the concerns of all workers on the basis of a participatory and transparent process that includes employers’ and workers’ organizations. Such an employment strategy and plan of action should target disadvantaged and marginalized individuals and groups in particular and include indicators and benchmarks by which progress in relation to the right to work can be measured and periodically reviewed.”

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sociais, ao invés do resultado esperado, permite a análise – efetiva e concreta – das políticas públicas vigentes. Em segundo lugar, o enfoque nos deveres confronta a equivocada dicotomia entre “direitos positivos” e “direitos negativos”, deixando claro que todos os direitos – civil, político, econômico, social e cultural – contêm parcelas de obrigações negativas e positivas. Esta análise se prende à equivalência entre deveres negativos e positivos, sem haver distinção de importância entre eles. Portanto, as “obrigações nucleares” envolvem tanto aspectos positivos como negativos.171

A mudança do enfoque praticado pelo Comitê, a partir de 2003, deixa claro que

a defesa dos direitos econômicos e sociais passa pela melhoria das políticas públicas

direcionadas a eles, e – consequentemente – dos indicadores humanos correspondentes.

A forma de atingir essa melhora é por meio de políticas públicas realizadas pelos

Estados-Membros e pela possibilidade de verificação – pelo Comitê – da qualidade e

efetividade dessas políticas.

A doutrina do núcleo essencial e a construção de obrigações mínimas (minimum core obligation) partem de premissas distintas para encontrarem um objetivo comum: dar fundamentalidade aos direitos de algumas prestações fáticas que não podem deixar de ser disponibilizadas pelo Estado em nenhuma hipótese (nem mesmo pela ressalva da reserva do possível), sob pena de configurar dupla violação de direitos (das normas constitucionais e internacionais). Com base no superprincípio da dignidade da pessoa humana, e dos princípios da supremacia da Constituição e da maior efetividade possível das normas constitucionais, a doutrina do ‘mínimo existencial’ busca blindar certas prestações fáticas de alguns direitos sociais – como é o caso da educação fundamental, da saúde básica, da assistência aos desamparados (aqui compreendida a alimentação, o vestuário e o abrigo).172

A atuação jurídica e política do Comitê, especialmente a partir da década de

2000, consagrou o caráter indivisível e universal dos direitos fundamentais, eliminando

– por suas interpretações sobre as normas e direitos protegidos pelo PIDESC – o

histórico confronto entre as diversas espécies de direitos fundamentais. Ainda,

conforme falamos, desde 2008 é permitida a adesão ao Protocolo Facultativo ao

171 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 74. 172 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 55.

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PIDESC, que permite ao Comitê analisar petições individuais a respeito de violações de

direitos econômicos, sociais e culturais. Até o presente momento, infelizmente, somente

onze países aderiram ao Protocolo Facultativo ao PIDESC,173 o que torna esse

mecanismo pouco eficaz. Todavia, em que pese sua pouca abrangência atual, já é

possível lograr aos direitos fundamentais de 2.ª dimensão tratamento jurídico igual, ou

ao menos muito próximo, aos direitos de 1.ª dimensão.

No plano internacional, os direitos de 2.ª dimensão não podem mais ser

encarados como direitos de segunda linha ou, menos ainda, como direitos não

adjudicáveis (pelo menos no tocante às obrigações essenciais).

173 São eles: Argentina, Bolívia, Bósnia e Herzegovina, Equador, El Salvador, Finlândia, Mongólia,

Portugal, Eslováquia, Espanha e Uruguai.

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4 BUSCA PELO NOVO PARADIGMA: NECESSIDADE DE

PARÂMETROS E RACIONALIZAÇÃO DA DEFESA JUDICIAL DOS DIREITOS SOCIAIS

4.1 O novo paradigma judicial sobre a efetividade dos direitos sociais: a ADPF

n.º 45 e o MI n.º 670

No Brasil, conforme exposto no capítulo anterior, os direitos econômicos e

sociais foram positivados, em nossa atual Constituição, de modo a serem considerados

como bens jurídicos protegidos e passíveis de tutela imediata, nos termos previstos no

art. 5.º, § 1.º, CF.174 A visão jurídica inicialmente consolidada sobre esses direitos,

todavia, os colocou em situação acessória aos direitos civis e políticos e,

consequentemente, deixou-os aguardando seu prometido, mas incerto, desenvolvimento

progressivo.

Ao longo dos 26 anos seguintes à promulgação da Constituição, os direitos

econômicos e sociais foram se desenvolvendo de modo extremamente lento e, em

alguns casos, sequer foram regulamentados. Utilizando-se como exemplo o direito do

trabalho, seus mais basilares direitos não foram regulamentados ou, quando o foram, a

regulamentação se deu por pressão do Poder Judiciário.

Nesse sentido, até hoje permanecem sem regulamentação legal: a lei

complementar que regulamentará a proteção contra demissão arbitrária ou sem justa

causa (art. 7.º, I, CF); a proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 7.º, XX, CF); o

adicional de remuneração para atividades penosas (art. 7.º, XXIII, CF); e a proteção em

face da automação (art. 7.º, VII, CF). Da mesma forma, a maior parte dos direitos

trabalhistas estendidos aos funcionários domésticos pela EC n.º 72/2013 (de abril de

2013) ainda é inexequível por falta de regulamentação legal, mesmo após mais de um

ano da promulgação da emenda. Ainda, a concessão de aviso prévio proporcional ao

174 Art. 5.º, § 1.º, CF: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação

imediata”.

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tempo de trabalho (art. 7.º, XXI, CF) e o direito de greve dos servidores públicos (art.

37, VII, CF) somente foram regulamentados no plano infraconstitucional após o STF

julgar favoravelmente mandado de injunção sobre os tópicos.

No âmbito jurisprudencial, o ponto de virada desse entendimento aconteceu

quando do julgamento da ADPF n.º 45, realizado monocraticamente pelo Min. Celso de

Mello do STF, em 29.04.2004. Esse julgamento é considerado paradigmático e

representa a ruptura com o entendimento jurisprudencial clássico, que se resignava com

a falta de efetividade dos direitos sociais.

A ADPF foi ajuizada pelo Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) para

questionar veto oposto pela Presidência da República em face do art. 55, § 2.º, da Lei de

Diretrizes Orçamentárias (LDO).175 O dispositivo vetado incluía no orçamento um valor

mínimo a ser aplicado em “ações e serviços públicos de saúde”, em atendimento ao

disposto no art. 77 do ADCT, com redação dada pela EC n.º 29/2000.176 Em suas razões

de veto, assim se pronunciou a Presidência:

Razões do veto

A exclusão das dotações orçamentárias do Ministério da Saúde financiadas com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza do montante de recursos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde cria dificuldades para o alcance do equilíbrio orçamentário, em face da escassez de recursos disponíveis, o que contraria o interesse público, motivo pelo qual se propõe oposição de veto a esse dispositivo.177

Em termos práticos, o veto presidencial diminuiu os recursos destinados às

“ações e serviços públicos de saúde”, sob alegação de falta de recursos, em

175 A medida judicial cabível era a ADPF, e não ADI, uma vez que a LDO é uma lei normativa de efeitos

concretos. 176 “Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços

públicos de saúde serão equivalentes:

I – no caso da União:

a) no ano de 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde, no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento;

b) no ano de 2001 ao ano de 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB.”

177 Mensagem n.º 357, edição extra do Diário Oficial, de 30.06.2003.

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descumprimento do art. 77 do ADCT. E, tendo em vista o descumprimento de Carta

Constitucional, tal veto foi questionado por meio de controle concentrado de

constitucionalidade.

Após o ajuizamento da ação (ocorrido em 15.10.2003), em 25.11.2003 foi

aprovada lei de iniciativa da Presidência da República com conteúdo idêntico ao

anteriormente vetado, o que acarretou perda superveniente do objeto da ação. Ainda

assim, em sua decisão monocrática, o Min. Celso de Mello fez questão de aclarar sua

posição sobre a questão, deixando evidenciar que a violação de direitos econômicos e

sociais por parte do Poder Público compromete a ordem constitucional:

Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.

Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. Celso de Mello) –, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional.178

No mesmo sentido, destacou que a não atuação estatal, no que diz respeito à

concretização de normas constitucionais positivas, implica comportamento de “maior

gravidade político-jurídica” e que impede a aplicabilidade dos princípios

constitucionais, conforme precedentes da Corte:

Desrespeito à Constituição. Modalidades de comportamentos inconstitucionais do Poder Público.

178 Min. Celso de Mello, ADPF n.º 45 MC/DF, j. 29.04.2004, DJ 04.05.2004, p. 12, RTJ 200-01/191.

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O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. [...] A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental (RTJ 185/794-796, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno).179

Em continuidade, apontou que mesmo as limitações financeiras a que estão

naturalmente sujeitos os Estados não são impeditivas para a realização dos direitos

econômicos, sociais e culturais, salvo quando objetivamente comprovadas, sendo que a

efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais deverá ser pautada pelo binômio

“razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira”. Sendo a pretensão razoável,

demanda-se uma solução jurídica igualmente razoável:

Uma decisão razoável é a que seja fundamentada na razão e nas provas, que serão racionalmente conectadas a uma finalidade, e que seja objetivamente capaz de atingir este finalidade. Uma decisão razoável geralmente se mostra proporcional entre os meios e os fins, os benefícios e malefícios.180

Quanto à disponibilidade financeira, não poderá o Poder Público manipular

indevidamente sua atividade financeira ou político-administrativa, criando empecilhos

179 Idem. Grifo nosso.

180 BILCHITZ, David. Poverty and fundamental rights: the justification and enforcement of socio-

economic rights, pos. 3282. Ed. Kindle.

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que inviabilizem o projeto constitucional. Cai por terra, em definitivo, o princípio da

reserva do possível.181

No tocante ao histórico argumento da violação ao princípio da separação dos

poderes, Celso de Mello se posicionou pela possibilidade de controle judicial sempre

que os “Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara

intenção de neutralizar, comprometendo a eficácia dos direitos sociais, econômicos e

culturais, afetando”, de modo a atingir o núcleo intangível dos direitos sociais

necessários à dignidade humana. Ainda assim, a possibilidade de controle é a exceção

que confirma a regra geral, de que as formulações de políticas públicas serão feitas por

integrantes de mandatos eletivos.182

181 “É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela

gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa –, criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. [...]

Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos” (Min. Celso de Mello, ADPF n.º 45 MC/DF, j. 29.04.2004, DJ 04.05.2004, p. 12, RTJ 200-01/191).

182 “Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo.

É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico –, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.”

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Resumindo o caráter paradigmático e inovador da decisão, Alessandra Gotti

Bontempo assim se manifestou:

Essa decisão representou um grande avanço na jurisprudência por ter enfrentado expressamente aspectos cruciais para a acionabilidade dos direitos sociais, por admitir que:

a) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é instrumento idôneo e apto para viabilizar a concretização de políticas públicas, quando previstas na Carta de 1988 e venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelo Estado;

b) o Poder Judiciário, em bases excepcionais, se e quando os órgãos estatais competentes descumprirem as normas constitucionais fundamentais, poderá formular e implementar políticas públicas;

c) a cláusula ou teoria da “reserva do possível” não pode ser usada como “escudo” para que o Estado se exonere do cumprimento de suas obrigações constitucionais;

d) presentes cumulativamente os elementos do binômio “razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado”, há o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais;

e) o princípio da separação dos poderes não resta vulnerado quando o Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelos Poderes do Estado (Legislativo ou Executivo), assume uma postura de protagonista.183

Do ponto de vista jurisprudencial, a ADPF n.º 45 comprovou a sua natureza

paradigmática, por seu grande “efeito irradiante” e fundante de decisões judiciais.

Passados pouco mais de dez anos dessa decisão, pesquisa jurisprudencial nos mostra

que o termo “ADPF 45” é mencionado em 631 acórdãos, oriundos dos Tribunais

Superiores (23 acórdãos, sendo 8 do STF e 15 do STJ), dos Tribunais Regionais

Federais (53 acórdãos, sendo 4 do TRF-1.ª Região, 28 do TRF-2.ª Região, 8 do TRF-3.ª

Região e 13 do TRF-4.ª Região), 1 acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª

Região, e 554 Acórdãos oriundos dos Tribunais de Justiça (com maior ênfase para o

TJSP, com 204 acórdãos, TJDF, com 168 acórdãos e TJRS, com 108 acórdãos)184.

183 Alessandra Gotti Bontempo, Direitos sociais em juízo: mecanismos de aferição de resultado e

controle do retrocesso social, p. 299. 184 Disponível em: <www.digesto.com.br>. Acesso em: 8 jul. 2014.

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O efeito irradiante, nesse caso, foi realizado por meio de crescimento

exponencial das referências ao julgamento da ADPF n.º 45: entre 2004 e 2008 (cinco

primeiros anos após o julgamento) localizamos um total de 122 acórdãos que fazem

remissão ao julgamento, sendo 8 dos Tribunais Superiores, 5 de Tribunais Regionais

Federais, 109 de Tribunais Estaduais. Entre 2009 a 2014 (segundo lustro após o

julgamento), foram localizados 509 acórdãos que fazem essa remissão. Desse total, 15

eram oriundos de Tribunais Superiores, 48 de Tribunais Regionais Federais, e 445 dos

Tribunais Estaduais.

O comando judicial oriundo da interpretação consagrada na ADPF n.º 45 foi

utilizado para os mais diversos fins. No STJ, por exemplo, o precedente foi usado para

justificar a possibilidade de ajuizamento de ACP para a melhoria de serviços de saúde

(Recurso Especial n.º 947.324/RJ),185 na criação de vagas para o ensino público

fundamental (Recurso Especial n.º 753.565/MS),186 e para indeferir mandado de

185 “Processual civil. Ação civil pública. Melhoria de atendimento no Hospital Municipal Souza Aguiar.

Obrigação de fazer. Prequestionamento. Súmulas 282/STF e 211/STJ. Art. 1.º da Lei n.º 7.347/1985. […]

4. É cabível o ajuizamento da presente ação civil pública que pugna pela defesa de interesses difusos, considerando-se que a tutela pretendida – direito à saúde (art. 6.º da CF) – é indivisível, pois visa atingir a um número indeterminado de pessoas, ou seja, aquelas que são atendidas pelo Hospital Municipal Souza Aguiar.

5. Apoiado na conclusão do inquérito civil, o pedido formulado pelo Ministério Público não se mostra genérico, tampouco está baseado em reparação de danos, porque consistiu na condenação do Município na obrigação de fazer novas contratações, mediante concurso, para compor os quadros do Hospital Souza Aguiar de pessoal da área médica, assim como de renovar os contratos com técnicos de manutenção dos equipamentos existentes e compra de novos, como forma de garantir atendimento adequado e satisfatório, com o que se estará cumprindo o mandamento constitucional de proteção à saúde, obrigação a que o Município vem se omitindo.

6. Recurso especial conhecido em parte e não provido” (Recurso Especial n.º 947.324/RJ 2007/0097516-9).

186 “Administrativo. Constitucional. Art. 127 da CF/1988. Art. 7.º da Lei n.º 8.069/1990. Direito ao ensino fundamental aos menores de seis anos ‘incompletos’. Norma constitucional reproduzida no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Norma definidora de direitos não programática. Exigibilidade em juízo. Interesse transindividual atinente às crianças situadas nessa faixa etária. Cabimento e procedência.

1. O direito à educação, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria. [...]

5. Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso que cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Prometendo o Estado o direito à creche, cumpre adimpli-lo, porquanto a vontade política e

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segurança que pugnava pelo suprimento judicial de falta de autorização de

funcionamento de rádio comunitária (Recurso Especial n.º 958.641/PI).187

No STF, o precedente foi utilizado para determinar autoaplicável a previsão

constitucional de transporte coletivo gratuito aos idosos (Ag. Reg. no AI n.º

707.810/RJ),188 para determinar o julgamento, em seu mérito, de ACP que pugnava pela

nomeação de delegados, investigadores e escrivães para a segurança pública do Estado

constitucional, para utilizarmos a expressão de Konrad Hesse, foi no sentido da erradicação da miséria intelectual que assola o país. O direito à creche é consagrado em regra com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.

6. Consagrado por um lado o dever do Estado, revela-se, pelo outro ângulo, o direito subjetivo da criança. Consectariamente, em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todas as crianças nas condições estipuladas pela lei encartam-se na esfera desse direito e podem exigi-lo em juízo. A homogeneidade e transindividualidade do direito em foco ensejam a propositura da ação civil pública.

7. A determinação judicial desse dever pelo Estado não encerra suposta ingerência do Judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea.

8. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar o direito à educação das crianças a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais” (Recurso Especial n.º 753.565/MS, grifo nosso).

187 “Recurso especial. Administrativo. Mandado de segurança. Rádio comunitária. Interdição. Ausência de autorização para funcionamento. Recurso provido. […]

4. Considerando que a legislação em vigor estabelece a competência do Poder Executivo para autorizar, conceder e fiscalizar o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, não pode o Poder Judiciário imiscuir-se no âmbito da discricionariedade da Administração Pública, deferindo pedido de funcionamento, ainda que a título precário, de rádio comunitária. Ao Judiciário apenas é permitido, em caso de demora na análise de requerimento administrativo de autorização para seu funcionamento, o reconhecimento de omissão por parte da autoridade competente, estipulando prazo razoável para que se pronuncie sobre o respectivo requerimento” (Recurso Especial n.º 958.641/PI).

188 “Direito administrativo. Transporte coletivo. Gratuidade para o idoso. Mandado de segurança concedido na origem. Dever de fiscalização e de expedição de norma pelo Estado. Ofensa à Constituição Federal não configurada. Eficácia plena e aplicabilidade imediata do art. 230, § 2.º, da Constituição Federal, que assegurou a gratuidade nos transportes coletivos urbanos aos maiores de 65 anos, reconhecida em precedente desta Corte (ADI n.º 3.768/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 26.10.2007).

Possibilidade de o Poder Judiciário determinar, em casos excepcionais, que o Poder Executivo adote medidas que viabilizem o exercício de direitos constitucionalmente assegurados. Ofensa ao princípio da separação de poderes não configurada. Precedentes. Agravo regimental conhecido e não provido” (Ag. Reg. no AI n.º 707.810/RJ).

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do Paraná (RE n.º 559.646/PR)189 e também para garantir o acesso à educação infantil

(Ag. Reg. no AI n.º 658.491).190

O crescimento exponencial de referências ao julgado da ADPF n.º 45, que segue

aumentando ao longo dos anos, mostra dois pontos: em primeiro lugar, que os

fundamentos da ADPF foram devidamente aceitos, especialmente pelos Tribunais de

Justiça Estaduais que utilizam largamente sua fundamentação; em segundo lugar, que o

problema enfrentado pela ADPF n.º 45 (isto é, a falta de efetividade das normas

constitucionais garantidoras de direitos econômicos e sociais) é um problema recorrente

e que, cada vez mais, é “solucionado” (na medida em que isso é possível) pelo Poder

Judiciário.

O grande número de julgamentos que fazem referência à ADPF 45, em nossa

opinião, reforça o aumento do problema (cada vez mais os direitos sociais são

vindicados em Juízo), e não a concretização da solução.

Outro julgamento paradigmático, no que diz respeito à concretização de direitos

sociais fundamentais, especialmente ao direito do trabalho, foi o julgamento do MI n.º

670,191 ocorrido em 25.10.2007, que versou sobre a edição da falta de lei ordinária

189 “[…] 5. Assiste razão à parte recorrente. O acórdão recorrido, ao concluir pela impossibilidade

jurídica do pedido, pois ‘desconforme com as normas jurídicas vigentes ou esteja expressamente vedado pelo direito positivo, mormente quando se tratar de princípio constitucional, como retrata o caso em exame – princípio da independência dos poderes –, previsto no art. 2.º da Constituição Federal, divergiu da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal’.

6. Assim, não prospera o argumento de que a imposição de obrigação de fazer ao Poder Executivo violaria o princípio constitucional da separação de poderes. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF-MC/DF 45, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 04.05.2004, assentou a legitimidade da intervenção do Poder Judiciário nos temas relativos à concretização de políticas públicas [...] Portanto, não há falar em ingerência do Poder Judiciário em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo, porquanto se revela possível ao Judiciário determinar a implementação pelo Estado de políticas públicas constitucionalmente previstas” (RE n.º 559.646/PR).

190 “Agravo regimental no agravo de instrumento. Acesso à educação. Direito fundamental. Controle judicial. Ato administrativo ilegal. Possibilidade. Precedentes. 1. A educação é direito fundamental do cidadão, assegurada pela Constituição da República, e deve não apenas ser preservada, mas, também, fomentada pelo Poder Público e pela sociedade, configurando a omissão estatal no cumprimento desse mister um comportamento que deve ser repelido pelo Poder Judiciário. 2. O Poder Judiciário pode efetuar o controle judicial dos atos administrativos quando ilegais ou abusivos. 3. Agravo regimental não provido” (Ag. Reg. no AI n.º 658.491).

191 “Mandado de injunção. Garantia fundamental (CF, art. 5.º, inciso LXXI). Direito de greve dos servidores públicos civis (CF, art. 37, inciso VII). Evolução do tema na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Definição dos parâmetros de competência constitucional para apreciação no âmbito da Justiça Federal e da Justiça Estadual até a edição da legislação específica pertinente, nos

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específica que regulamente o direito de os servidores públicos realizarem greve,

conforme previsão do art. 37, VII, da CF.

A partir deste julgamento, o STF passou a interpretar o remédio constitucional

do mandado de injunção como um instrumento de natureza concreta que permite ao

STF adotar medidas legislativas específicas para a solução do caso concreto e situação

idênticas, sem que isso acarrete violação ao princípio da separação dos poderes. Nossa

Corte Constitucional abandonou, dessa forma, o entendimento anteriormente

consagrado no MI n.º 107, que permitia ao STF somente declarar a mora do Poder

Legislativo faltoso, sem implicar nenhuma consequência concreta à parte autora.192

Isso porque, além da mudança de entendimento no tocante ao caráter não

absoluto do princípio da separação dos poderes (conforme já verificado na ADPF n.º

45), o STF viu sua atuação ser desprestigiada (ou ignorada) pelo Poder Legislativo, na

medida em que a omissão julgada já havia sido apreciada em muitas outras

oportunidades, e a mora legislativa sido declarada de modo reiterado.193 Todavia, a

termos do art. 37, VII, da CF. Em observância aos ditames da segurança jurídica e à evolução jurisprudencial na interpretação da omissão legislativa sobre o direito de greve dos servidores públicos civis, fixação do prazo de 60 (sessenta) dias para que o Congresso Nacional legisle sobre a matéria. Mandado de injunção deferido para determinar a aplicação das Leis n.º 7.701/1988 e n.º 7.783/1989. 1. Sinais de evolução da garantia fundamental do mandado de injunção na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).”

192 “1.1. No julgamento do MI n.º 107/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 21.09.1990, o Plenário do STF consolidou entendimento que conferiu ao mandado de injunção os seguintes elementos operacionais: (i) os direitos constitucionalmente garantidos por meio de mandado de injunção apresentam-se como direitos à expedição de um ato normativo, os quais, via de regra, não poderiam ser diretamente satisfeitos por meio de provimento jurisdicional do STF; (ii) a decisão judicial que declara a existência de uma omissão inconstitucional constata, igualmente, a mora do órgão ou poder legiferante, insta-o a editar a norma requerida; (iii) a omissão inconstitucional tanto pode referir-se a uma omissão total do legislador quanto a uma omissão parcial; (iv) a decisão proferida em sede do controle abstrato de normas acerca da existência, ou não, de omissão é dotada de eficácia erga omnes, e não apresenta diferença significativa em relação a atos decisórios proferidos no contexto de mandado de injunção; (v) o STF possui competência constitucional para, na ação de mandado de injunção, determinar a suspensão de processos administrativos ou judiciais, com o intuito de assegurar ao interessado a possibilidade de ser contemplado por norma mais benéfica, ou que lhe assegure o direito constitucional invocado; (vi) por fim, esse plexo de poderes institucionais legitima que o STF determine a edição de outras medidas que garantam a posição do impetrante até a oportuna expedição de normas pelo legislador.”

193 “2. O mandado de injunção e o direito de greve dos servidores públicos civis na jurisprudência do STF. 2.1. O tema da existência, ou não, de omissão legislativa quanto à definição das possibilidades, condições e limites para o exercício do direito de greve por servidores públicos civis já foi, por diversas vezes, apreciado pelo STF. Em todas as oportunidades, esta Corte firmou o entendimento de que o objeto do mandado de injunção cingir-se-ia à declaração da existência, ou não, de mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica. Precedentes: MI n.º 20/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22.11.1996; MI n.º 585/TO, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 02.08.2002; e MI n.º

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declaração da mora em nada afetou a agenda política do País, e o direito à greve dos

funcionários públicos continuava desregulamentado, por ausência de lei.

Ante a falta de respeito por suas decisões, o STF alterou seu entendimento para

dar caráter concreto e efetivo a suas decisões em mandado de injunção, inclusive com a

possibilidade de prolação de sentença que produza efeitos de ato legislativo, ainda que

temporário, ante os “riscos de consolidação de típica omissão judicial quanto à matéria

[...], pela permanência da situação de não regulamentação do direito de greve dos

servidores públicos”.

Isso porque, nos termos do Acórdão, “o legislador poderia adotar um modelo

mais ou menos rígido, mais ou menos restritivo do direito de greve no âmbito do

serviço público, mas não poderia deixar de reconhecer direito previamente definido

pelo texto da Constituição”. Trata-se, portanto, de não atuação estatal indevida e ilícita.

Essa decisão, de modo semelhante ao verificado relativamente à ADPF n.º 45,

possui caráter paradigmático para a defesa dos direitos econômicos e sociais,

especialmente para as normas relacionadas ao direito do trabalho, e também outros

direitos sociais que carecem de qualquer forma de regulamentação infraconstitucional.

Portanto, esse conjunto de decisões dá um novo corpo para a defesa em juízo

dos direitos econômicos e sociais. Em resumo, a decisão da ADPF n.º 45 determinou o

cumprimento das normas positivas relativas a direitos econômicos e sociais, ao passo

que o MI n.º 670 deu um novo tratamento à omissão legislativa, encerrando-a ainda que

por edição de norma pelo STF.

Assim, superada a fase de ausência de prestação jurisdicional que predominou

até a primeira metade da década de 2000, o momento vivenciado atualmente

(especialmente a partir de 2004) é o da busca, em Juízo, da efetividade das normas

constitucionais sobre direitos econômicos e sociais. Esse caminho é, porém, tormentoso,

conforme veremos.

485/MT, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 23.08.2002. 2.2. Em alguns precedentes (em especial, no voto do Min. Carlos Velloso, proferido no julgamento do MI n.º 631/MS, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 02.08.2002), aventou-se a possibilidade de aplicação aos servidores públicos civis da lei que disciplina os movimentos grevistas no âmbito do setor privado (Lei n.º 7.783/1989).”

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4.2 A prática jurisprudencial incerta. Insegurança jurídica e busca por

parâmetros precisos

Vimos que, em superação do entendimento jurídico anterior (que levianamente

entendia por uma grande distinção entre as “categorias” de direitos fundamentais e

pugnava pelo adimplemento dos direitos civis e políticos pela simples não interferência

do Estado, ao passo que os direitos econômicos e sociais dependeriam de recursos

financeiros deste), atualmente entende-se que direitos civis e políticos não possuem

distinções axiológicas no tocante aos direitos econômicos e sociais.

Da mesma forma, nem sempre o adimplemento de um direito econômico e

social dependerá de recursos financeiros do Estado, uma vez que existem, além das

obrigações que demandam a prestação de serviços, obrigações que exigem a regulação

(seja estatal ou limitativa à atuação do particular). 194 Nesse particular, a prática

jurisprudencial mostra-se muito distinta quanto às duas formas de adimplemento dos

direitos sociais.

No que concerne às obrigações de regulamentar um direito, o STF se consolidou

como órgão de atuação relevante e constante, ao não se omitir de julgar mandados de

injunção sobre normas protetivas de direitos econômicos e sociais, em muitos casos

atuando como autêntico legislador positivo e regulamentando as matérias postas.

Nesse sentido, no MI n.º 670, julgado em 2007, regulamentou o direito de greve

dos servidores públicos195 (que, frise-se, após sete anos de declaração da omissão do

Congresso, ainda continua regulamentado pela decisão do STF, ante a ausência de lei

específica). Da mesma forma, o STF já determinou – em mais de uma oportunidade –

que a aposentadoria especial de servidor público se balizará pelas normas próprias dos

194 A classificação original de proposta por Víctor Abramovich e Christian Courtis distingue em duas as

obrigações de regulação estatal, totalizando três espécies de obrigações: (i) obrigações que exijam regulação estatal para dar sentido ao direito; (ii) obrigações que exijam regulação estatal para limitar a atuação particular; e (iii) obrigações que demandam a prestação de serviços (Los derechos sociales como derechos exigibles, p. 8-10 e 32-37).

195 No mesmo sentido foi julgado o MI n.º 708/DF e MI n.º 712/PA.

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trabalhadores em geral (art. 57, § 1.º, da Lei n.º 8.213/1991), ante a não edição da Lei

Complementar determinada no art. 40, § 4.º, da CF (MI n.º 758196 e outros).197

Ainda, em 22.06.2011, o STF julgou procedentes os Mandados de Injunção n.º

943, 1.010, 1.074 e 1.090, declarando a mora do Poder Legislativo em regulamentar o

art. 7.º, XXI, CF, que prevê a proporcionalidade do aviso prévio. Nesse caso, ante a

falta de parâmetros para a concretização do direito ao julgamento, quanto a este ponto,

foi suspenso, e antes de ser retomado houve a promulgação da lei respectiva (Lei n.º

12.506/2011).

Portanto, vemos que a atuação judicial quanto às omissões legislativas estatais

tem funcionado de modo adequado, não havendo efetiva intromissão do Poder

Judiciário em esfera de atuação do Poder Legislativo, salvo quando há necessidade por

força da reiterada e insanável mora deste último. Eventuais discussões sobre adequação

(ou inadequação) dos parâmetros utilizados em cada julgamento seriam casuísticas, e

não uma crítica relativa ao funcionamento geral do sistema de julgamento. Ainda assim,

de modo geral, o STF tem solucionado as omissões por meio da extensão dos efeitos de

leis para situações em que, a princípio, seriam inaplicáveis.

A situação fica mais complexa e tormentosa, todavia, quando a questão levada a

juízo não diz respeito à omissão legislativa, mas sim ao efetivo descumprimento de lei,

anteriormente aprovada em regulamentação de uma norma constitucional, ou seja, nas

hipóteses de atuação judicial no tocante à não prestação de serviços públicos. É o que

196 “Aposentadoria. Trabalho em condições especiais. Prejuízo à saúde do servidor. Inexistência de lei

complementar. Artigo 40, § 4.º, da Constituição Federal. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral. Artigo 57, § 1.º, da Lei n.º 8.213/1991.”

197 MI n.º 721/DF, MI n.º 788/DF, MI n.º 795/DF, MI n.º 796/DF, MI n.º 797/DF, MI n.º 808/DF, MI n.º 809/DF, MI n.º 815/DF, MI n.º 825/DF, MI n.º 828/DF, MI n.º 841/DF, MI n.º 850/DF, MI n.º 857/DF, MI n.º 879/DF, MI n.º 905/DF, MI n.º 927/DF, MI n.º 938/DF, MI n.º 962/DF, MI n.º 998/DF, MI n.º 835/DF, MI n.º 885/DF, MI n.º 923/DF, MI n.º 957/DF, MI n.º 975/DF, MI n.º 991/DF, MI n.º 1.083/DF, MI n.º 1.128/DF, MI n.º 1.152/DF, MI n.º 1.182/DF, MI n.º 1.270/DF, MI n.º 1.440/DF, MI n.º 1.660/DF, MI n.º 1.681/DF, MI 1.682/DF; MI n.º 1.700/DF, MI n.º 1.747/DF, MI n.º 1.797/DF, MI n.º 1.800/DF, e MI n.º 1.835/DF.

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ocorre, em geral, nas demandas sociais que versam sobre saúde e educação, prestações

sociais que possuem arcabouço normativo bem claro e definido.198

Conforme exposto anteriormente, se é verdade que o Poder Judiciário possui

meios capazes de determinar o adimplemento dos direitos econômicos e sociais,

também é fato que esse Poder foi construído originalmente com base em premissas

inaplicáveis a tais julgamentos. A existência de meios processuais é real, como o são as

dificuldades processuais.

Retomando as noções de justiça comutativa e justiça distributiva, a grande

distinção quanto às demandas de natureza distributiva (como é o caso da adjudicação de

direitos econômicos e sociais) diz respeito ao fato de que toda demanda de natureza

distributiva, ainda que ajuizada individualmente, produzirá efeitos que afetem toda a

coletividade, ainda que fora do processo. É o caso, por exemplo, de uma demanda que

verse sobre a entrega de medicamento para um indivíduo: ainda que seja ajuizada

individualmente, e seja deferida a tutela apenas para o autor da demanda, essa

condenação produzirá efeitos a toda a coletividade, na medida em que será cumprida

com recursos oriundos do orçamento destinado à saúde. A ideia de justiça distributiva

implica, portanto, que todas as decisões – acertadas ou não – serão suportadas

solidariamente pela sociedade, ainda que possa beneficiar apenas um, ou alguns,

cidadãos.

O problema reside, no caso de adjudicação judicial de recursos escassos, no fato

de que a vindicação de modo individual desses direitos acaba por, paradoxalmente,

aumentar e expandir o problema. Isso se verifica especialmente quando a prestação

vindicada, por sua natureza, implica obrigatoriamente a exclusão da prestação para

outra pessoa. Se as prestações materiais relacionadas aos direitos à saúde, por exemplo,

podem ser facilmente adimplidas com recursos públicos (disponibilidade financeira), o

mesmo não ocorre quanto aos direitos relacionados à educação: sempre que o Poder

Judiciário obriga o Poder Público a matricular um ano, automaticamente estará

excluindo este direito de outro aluno (que não ajuizou medida judicial).

198 Como linhas gerais, recordamos que as diretrizes e bases da educação nacional estão previstas na Lei

n.º 9.394/1996, e que o Sistema Único de Saúde está regulado pela Lei Complementar n.º 141/2012.

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Ao se referir sobre a questão, mas voltado às demandas da saúde, assim

sintetizou Barroso:

[...] aqui se chega ao ponto crucial do debate [sobre a efetividade do direito à saúde]. Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõem, de um lado, o direito à vida e à saúde, e de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nesta questão.199

No tocante às creches municipais, por exemplo, o problema é tão grave a ponto

de as famílias serem orientadas pelos funcionários públicos das próprias creches a

ajuizar ação para conseguir a vaga, conforme noticiado no jornal O Estado de S.

Paulo.200 O número de demandas individuais registradas é assustador: conforme a

mesma reportagem, somente no que concerne a vagas em creches públicas na cidade de

São Paulo, foram registradas cerca de sete mil e quinhentas decisões favoráveis em

2012, e o mesmo número nos quatro primeiros meses de 2013. Além das ações

individuais, no final de 2013 foram julgadas procedentes duas ações civis públicas sobre

o assunto, tendo sido determinado que a Prefeitura de São Paulo crie 150 mil vagas para

educação infantil até 2016.201

199 Luis Roberto Barroso, A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e

relações privadas, p. 161. 200 “O Estado apurou que os próprios funcionários das unidades têm indicado que as famílias procurem a

Justiça. Foi o que aconteceu com a promotora de vendas Andreia de Aguiar, de 37 anos, que mora na Vila Formosa, na zona leste. Quando a filha, Bruna, nasceu em dezembro, Andreia começou a procurar vaga, ‘A recepcionista da Creche deixou claro: se não fosse na Justiça, eu não conseguiria’, diz ela, que voltou a trabalhar na sexta-feira sem uma definição sobre o caso. ‘Não tenho com quem deixá-la. Minha irmã vai me ajudar, mas ela tem a vida dela’.

O casal Joildo Santos, de 27 anos, e Luzia Rosa, de 26, já pensa nessa opção para conseguir uma vaga para Yuri, de 2. Ele é o 400.º da fila do CEU Paraisópolis, zona sul, do lado da casa deles. ‘Estamos vendo como acionar a Defensoria. Não está dando mais para pagar particular’, diz Santos” (Disponível em: <http://www.todospelaeducacao.org.br/educacao-na-midia/indice/27086/em-4-meses-justica-obriga-prefeitura-a-matricular-7.408-criancas-em-creche/>. Acesso em: 20 abr. 2014).

201 O objeto da ação se baseava na falta de cumprimento, pela Prefeitura, do Plano Plurianual 2006/2009 que previa a construção de 126 Escolas Municipais de Ensino Infantil (EMEIs) e 142 Centros de Educação Infantil (CEIs), e que não foram efetivamente construídos, apesar de o prefeito não ter utilizado integralmente as verbas destinadas ao Município pelo Fundeb para as obras. A íntegra da inicial está disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/

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O momento atual da luta pela defesa dos direitos sociais é tormentoso pela falta

de parâmetros de atuação que permitam a efetiva resolução do problema. A permissão

do ajuizamento de ações individuais para discutir e vindicar direitos econômicos e

sociais é uma conquista histórica, que não pode ser desprezada tampouco tolhida.

Todavia, especialmente no caso de demandas relacionadas à concessão de vagas em

estabelecimentos de ensino, essa “enxurrada de ações” é sistemicamente prejudicial à

solução do problema e, ao contrário, apenas serve para estimular o ajuizamento de

novas ações que, igualmente, não irão solucionar o problema.

Do ponto de vista individual, não há solução possível. Ainda assim, mais de

80% das demandas que versam sobre direitos sociais são ajuizadas de modo

individual.202 O problema é complexo.

Outra dificuldade quanto à concretização dos direitos econômicos e sociais

reside, como já alertamos, na definição desses direitos, que usualmente são positivados,

ao menos em nível constitucional, por meio de princípios ou conceitos jurídicos

indeterminados, que depois podem ser definidos por meio da legislação

infraconstitucional.

Se, por um lado, esse escopo amplo e indeterminado é ótimo para o caso de

obrigações negativas, ele se mostra tormentoso para os direitos de cunho positivo, que

exigem um detalhamento maior para serem efetivamente aplicados. Por isso, a definição

exata do conceito e alcance de cada direito, bem como do órgão ou Poder responsável

por seu adimplemento, são pressupostos necessários para a concretização dos direitos

econômicos e sociais.

Logicamente, o problema da indeterminação não é exclusiva dos direitos econômicos e sociais. Todos os direitos dependem da linguagem e, portanto, são abertos a múltiplas interpretações. Falar que os direitos civis e políticos, por exemplo, significam exatamente o que suas

portal/noticias/publicacao_noticias/2011/marco_2011/MP%20prop%C3%B5e%20a%C3%A7%C3%A3o%20civil%20contra%20prefeito%20de%20SP%20por%20falta%20de%20vagas%20em%20creches>. Acesso em: 25 jun. 2014.

202 João Paulo Mendes Neto, A tutela do direito a saúde e a integração legislativa da Constituição Federal: uma investigação da efetividade do Poder Judiciário sob a ótica do Conselho Nacional de Justiça.

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palavras dizem seria deixá-los inaceitavelmente ambíguos. O direito a um julgamento justo, por exemplo, requer julgamento de valores e o conhecimento da prática do sistema judicial. O direito à liberdade de expressão requer a interpretação do porquê este direito é valoroso para um ser humano – para sua dignidade, desenvolvimento de sua personalidade, sua representação política, por exemplo – e porque outros valores ou interesses podem ser mais ou igualmente importantes. Essa tarefa é atingida por meio de uma teoria interpretativa. Não é menos verdade para os direitos econômicos e sociais.203

O processo de determinação dos direitos é realizado, em muitas vezes, com o

processo de ponderação dele (ou em decorrência do processo de ponderação). Existe a

dificuldade para se extrair do texto constitucional o direito vindicado: até mesmo o

parâmetro para atuação judicial para a concretização dos direitos econômicos e sociais,

composto pelo binômio “razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira”

(exposto pelo Min. Celso de Mello em sua decisão da ADPF n.º 45), é deveras

indeterminado e sujeito à integração pelo aplicador da lei.

Essas duas variáveis (indefinição das normas sobre direitos sociais e necessidade

de ponderação de princípios constitucionais para sua efetivação) fazem com que a

prática jurisdicional brasileira para concretização de direitos sociais seja, ao menos no

tocante a alguns tipos de demanda, realizada de maneira confusa, casuística e insegura.

No atual momento, a luta para a efetividade dos direitos sociais pressupõe, previamente,

a definição de parâmetros claros e objetivos para a atuação judicial e para o

cumprimento das respectivas decisões jurídicas.

O problema não é exclusivo da adjudicação dos direitos sociais, mas sim da

forma de utilização dos princípios em nosso sistema jurídico, como alerta Marcelo

Neves:

Na jurisdição constitucional brasileira, problema persistente em relação ao manuseio dos princípios constitucionais, técnica da proporcionalidade e do modelo de ponderação, assim como também no emprego de outras estratégias argumentativas, reside no fato de que a decisão e os argumentos utilizados para fundamentá-las tendem a limitar-se ao caso

203 Katharine G. Young, Constituting Economic and Social Rights, p. 30. Tradução livre.

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concreto sub judice, mas não oferecem critérios para que se reduza o “valor surpresa” das decisões de futuros casos em que haja identidade jurídica dos fatos subjacentes. Dessa maneira, começa a história, novamente, a cada caso, ao sabor das novidades metodológicas e doutrinárias. Não se sedimenta uma jurisprudência que construa precedentes orientadores de futuros julgamentos. Relacionado a esse problema, ocorre, não raramente, uma deficiente clareza no verdadeiro fundamento da decisão. [...]

A principiologia e o modelo de sopesamento, se adotados de forma muito maleável e tecnicamente imprecisa, atuam como um estimulante de um “casuísmo” descomprometido com a força normativa da constituição e a autoconsistência constitucional do sistema jurídico.204

O casuísmo das decisões judiciais, em muitas situações, acaba por não permitir o

surgimento e a consagração de uma efetiva técnica jurídica que clarifique quais os

direitos sociais adjudicáveis individualmente. Mais grave, por se tratar de recursos

escassos, o casuísmo pode criar posições de vantagem para os que buscam a via judicial

em detrimento dos que aguardam voluntariamente a atuação do Poder Público, em

manifesta violação da isonomia e descompasso com o objetivo de alcançar a igualdade

real.

A falta de padrão para as decisões judiciais se revela especialmente verdadeira

no tocante a demandas vinculadas ao direito à saúde, considerado “uma das mais

tormentosas submetidas a julgamento na Seção de Direito Público desta Corte

(TJSP)”.205 Essencialmente porque essas demandas revolvem diretamente conceitos

jurídicos complexos como o direito à vida, direito à dignidade humana, direito à saúde,

direito à isonomia, a reserva do possível e outros.

Como problema adicional, as ações que versam sobre direito à saúde usualmente

são originárias de demandas individuais (o que acarreta os problemas apontados

concernentes ao direito à educação), usualmente em busca de um tratamento, ou

medicamento, específico e particular. Novamente, a solução dos problemas particulares

em nada auxilia (na verdade, atrapalha) a solução do problema coletivo.

204 Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal

do sistema jurídico, p. 199-201. 205 Acórdão TJSP n.º 0012944-20.2013.8.26.0506.

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Além disso, por se tratar de decisões usualmente relacionadas a situações

particulares – aliado a práticas de julgamento levianas, que debatem extensamente o

direito em tese sem fazer o contraponto com o direito efetivamente questionado em

juízo206 –, não se formam parâmetros de julgamento. É o que ocorreu, por exemplo, em

decisão que determina ao Estado o fornecimento de máscara nasal, sem criar nenhum

parâmetro efetivo para julgamentos futuros e sem aprofundar-se efetivamente no caso

concreto.207

Em decorrência, muitas das decisões judiciais que determinam o fornecimento

de tratamento médico específico, ainda que dotadas de boas intenções, vão além do

previsto como obrigação nuclear pela Recomendação n.º 14 do Comitê, o que – a priori

206 Marcelo Neves explicita essa crítica ao comentar o julgamento da ADPF n.º 54 (Anencefalia): “A

primeira manifestação da Procuradoria-Geral da República sobre o caso [...] implica uma imersão em um tipo de principialismo que permite a introdução de qualquer valoração moral e religiosa, sem limites, na argumentação constitucional. Fonteles faz inicialmente, em grande parte de seu Parecer, com base na obra de Rui Medeiros, uma crítica ao emprego da interpretação conforme a Constituição por Barroso. Essa ilação doutrinária conduz, de certa maneira, ao desvio do foco da questão. Em seguida, Fonteles invoca genericamente o art. 5.º da Constituição Federal (‘inviolabilidade do direito à vida’), o art. 2.º do Código Civil (proteção do direito do nascituro), art. 4.1. da Convenção Americana sobre direitos humanos (proteção do direito à vida a partir da concepção) e o preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança (proteção especial da criança por falta de maturidade física e mental, antes e depois do nascimento), sem desenvolver argumentos mais específicos a partir desses pontos, permanecendo nas generalidades. Por fim, Fonteles invoca retoricamente o ‘jurídico princípio da proporcionalidade’ e ponderação de bens, para afirmar a precedência do ‘direito à vida’ perante o ‘direito da gestante não sentir dor’ (de dar continuidade compulsória à gravidez). Apresenta-se, assim, um modelo ad hoc de ponderação, sem contornos definitórios, que se presta muito mais a uma decisão em torno das preferências particulares de indivíduos e grupos do que a uma argumentação normativa no plano constitucional de uma sociedade hipercomplexa, na qual as preferências valorativas variam de grupo para grupo” (Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico, p. 217-218. Grifo nosso).

207 “Pois bem. No caso concreto, o paciente é portador de síndrome de apneia obstrutiva do sono grave (SAOS) (CID 10 G47.3), sendo-lhe prescrito, por médico da rede particular, a utilização de Máscara Nasal para Aparelho CPAP, cujo fornecimento foi negado pelo réu, ao fundamento de que não se encontra nos programas de assistência farmacêutica da rede pública de saúde (fls. 06/18).

Ocorre que os parâmetros oficiais não são absolutos, de modo que as próprias políticas públicas admitem ou devem admitir, em circunstâncias excepcionais, alguma adaptação às particularidades do paciente, quando os tratamentos ou medicamentos previstos nos programas oficiais não se mostram eficazes ou recomendados pelo médico que o acompanha. Do contrário, negar-se-ia o direito ao serviço de saúde (a tantos outros assegurado) àqueles que, por motivos alheios à sua vontade, não se enquadram na padronização oficial.

Cabe ao Estado, portanto, a responsabilidade de prover ao cidadão o tratamento adequado prescrito por profissional de saúde cuja conduta, pautada pelo Código de Ética Médica, impõe a fixação do melhor tratamento ao paciente, ou daquele que assegure a recuperação da sua saúde.

Ponderadas todas essas circunstâncias, forçoso reconhecer a prevalência do direito à vida e à saúde frente aos parâmetros formais de dispensação de medicamentos, conquanto, em princípio, sejam eles legítimos e igualmente necessários” (TJSP, Acórdão autos n.º 0012944-20.2013.8.26.0506).

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e considerando as dificuldades financeiras do País – aparenta ser equivocado em termos

de política pública.

Nos termos da Recomendação n.º 14, as obrigações nucleares relacionadas ao

direito à saúde seriam: (i) garantir o acesso de todos, sem discriminação, aos serviços

médicos, que devem ser distribuídos de modo justo; (ii) eliminar a fome e garantir

saneamento básico; (iii) garantir acesso a medicamentos básicos; (iv) adotar uma

política pública consistente; (v) garantir tratamento às grávidas e crianças; (vi) garantir

imunização contra as principais doenças; (vii) assegurar tratamento contra doenças

epidêmicas; (viii) prover educação e informações sobre os principais riscos à saúde; e

(ix) prover treinamento adequado para os profissionais de saúde.208

A prática brasileira, todavia, se afasta das obrigações nucleares: é comum ser

deferido judicialmente o custeio pelo Estado de tratamento específico para um

208 No original: “43. […]

(a) To ensure the right of access to health facilities, goods and services on a non discriminatory basis, especially for vulnerable or marginalized groups;

(b) To ensure access to the minimum essential food which is nutritionally adequate and safe, to ensure freedom from hunger to everyone;

(c) To ensure access to basic shelter, housing and sanitation, and an adequate supply of safe and potable water;

(d) To provide essential drugs, as from time to time defined under the WHO Action Programme on Essential Drugs;

(e) To ensure equitable distribution of all health facilities, goods and services;

(f) To adopt and implement a national public health strategy and plan of action, on the basis of epidemiological evidence, addressing the health concerns of the whole population; the strategy and plan of action shall be devised, and periodically reviewed, on the basis of a participatory and transparent process; they shall include methods, such as right to health indicators and benchmarks, by which progress can be closely monitored; the process by which the strategy and plan of action are devised, as well as their content, shall give particular attention to all vulnerable or marginalized groups.

44. The Committee also confirms that the following are obligations of comparable priority:

(a) To ensure reproductive, maternal (pre-natal as well as post-natal) and child health care;

(b) To provide immunization against the major infectious diseases occurring in the community;

(c) To take measures to prevent, treat and control epidemic and endemic diseases;

(d) To provide education and access to information concerning the main health problems in the community, including methods of preventing and controlling them;

(e) To provide appropriate training for health personnel, including education on health and human rights” (Recomendação Geral n.º 14).

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particular209 (às vezes de eficácia duvidosa ou custoso em excesso), ao mesmo tempo

em que pouco se investe em saneamento básico, como agente preventivo.210 Ambas as

situações contrariam a visão coletiva prevista na Recomendação n.º 14 do Comitê.

Mais grave, essa visão não muito acertada sobre a extensão do direito à saúde

apenas reitera a falta de cultura jurídica de nossos Tribunais quanto aos precedentes e

jurisprudências dos órgãos internacionais.

Sobre os parâmetros para fornecimento de medicamentos e prestação de ações

de saúde, entendemos que o caminho para uma possível solução é a busca por

parâmetros gerais e voltados para um conceito de macrojustiça, em vez de resolução de

problemas individuais. Ainda, quanto aos problemas de saúde individuais, o julgamento

deverá ser realizado de modo aprofundado sobre o bem da vida pleiteado (medicamento

ou tratamento), de modo a permitir a construção de uma jurisprudência sobre quais

tutelas efetivamente são essenciais e prioritárias (e, consequentemente, quais não são

prioritárias).

Por fim, lembramos que o propósito deste capítulo jamais foi apontar de

imediato uma solução simples e eficiente para a judicialização das demandas sobre

direitos sociais, pois isso seria impossível. O que podemos concluir, sem equívocos, é

que o Poder Judiciário brasileiro ainda não encontrou uma solução adequada para as

questões complexas que lhes são endereçadas diariamente versando sobre direitos

econômicos e sociais.

A solução possível passa, ao mesmo tempo, pela melhora na fundamentação das

decisões sobre esses direitos (para permitir a criação de uma autêntica jurisprudência),

pela tentativa de “julgamento coletivo” das lides individuais (seja por mecanismos

209 Por exemplo: “Agravo de instrumento com pedido de tutela antecipada. Fornecimento de

medicamento. Portadora de osteoporose. Relatório médico que comprova a urgência no fornecimento do medicamento Forteo. Artigo 196 da Constituição Federal. Agravo provido para fornecimento do medicamento pleiteado até o julgamento final da ação principal” (TJSP, Recurso n.º 0180949-05.2012.8.26.0000).

210 Por exemplo, no ano de 2007 o Estado do Rio de Janeiro gastou duas vezes mais com o fornecimento de medicamentos do que com saneamento básico (Luis Roberto Barroso, Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial, p. 178).

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processuais, tais quais conexão e prevenção, seja pela priorização da efetividade das

ações coletivas) e pela “criação” (na verdade, verificação de compatibilidade e maior

eficiência) de novos meios processuais para essas lides (por exemplo, como fez o TJSP

ao realizar audiência de conciliação e audiência pública antes de julgar demanda que

obrigava a Prefeitura de São Paulo a criar 150 mil vagas em creches).211

Os direitos econômicos e sociais passaram por uma grande evolução doutrinária

e jurisprudencial em sua concepção, especialmente ao longo da última década. Todavia,

a prática, jurídica e política, necessária para sua concretização ainda está em construção.

211 Disponível em:

<http://www.tjsp.jus.br/Institucional/CanaisComunicacao/Noticias/Noticia.aspx?Id=20683>. Acesso em: 5 jun. 2014.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A visão dicotômica que distinguia os direitos fundamentais de 1.ª e 2.ª dimensão

perdeu seu lastro político e filosófico a partir do fim da Guerra Fria, permitindo uma

reaproximação de ambos, em busca da efetiva consagração da indivisibilidade dos

direitos fundamentais. Nessa reaproximação, a impossibilidade de exigibilidade

imediata, tradicionalmente vista como um dos traços distintivos dos direitos sociais,

igualmente perdeu sua força.

A mais direta consequência dessa reaproximação é o fim do antigo estigma que

pregava uma firme distinção entre obrigações positivas e negativas, específicas para

cada espécie de direito. Pelo contrário, temos claro que ambas as dimensões de direitos

fundamentais exigem condutas positivas e negativas, ainda que em graus variados. Da

mesma forma, resta evidente que nem sempre o adimplemento de um direito de

natureza social demanda a utilização de recursos públicos.

No plano interno, a positivação de uma constituição “cidadã”, pautada na defesa

dos direitos fundamentais, não impediu que a insinceridade de nossos governantes e

políticos deixasse de dar cumprimento às normas básicas de defesa da população, por

meio da inação estatal, tanto no plano normativo como na concretização de serviços

públicos.

Ante a reiterada e injustificada inércia do Poder Público, o STF assumiu o papel

de efetivo defensor do texto constitucional, tendo como ponto de virada os julgamentos

da ADPF n.º 45, por meio do qual o Min. Celso de Mello sedimentou entendimento em

prol da possibilidade de utilização da via judicial para concretização de direitos sociais,

e pelo MI n.º 670, pelo qual o STF deu efeitos concretos e criou uma norma jurídica

positiva como decorrência de decisão judicial que reconheceu a mora legislativa em

regulamentar direitos sociais constitucionalmente assegurados.

Ambas as decisões foram paradigmáticas para a defesa dos direitos econômicos

e sociais, cada uma em sua medida: para as situações sociais já devidamente reguladas

por legislação infraconstitucional, como é o caso da saúde e educação, a ADPF n.º 45

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permitiu tornar concretas as prestações materiais previstas em lei; já para as situações

sociais não reguladas por lei, como é o caso de diversos direitos trabalhistas, o MI n.º

670 cristalizou a possibilidade de regulamentação das situações diretamente pelo Poder

Judiciário, ainda que precariamente.

No tocante à edição de normas pelo Poder Judiciário, as soluções para os

problemas enfrentado têm sido razoáveis e eficazes para, em alguns casos, pressionar o

Poder Legislativo a agir. Por sua vez, no que concerne aos pleitos de prestações

materiais realizados nas mais diversas instâncias, vemos que existem problemas de

natureza operacional e de interpretação de normas, o que nos leva a uma situação de

falta de parâmetros para atuação judicial, que é pautada por uma dose elevada de

casuísmo.

Não são problemas de fácil resolução, mas é necessário que haja melhora na

fundamentação das decisões sobre direitos sociais, uma forma mais eficaz de

“julgamento coletivo” das lides (mesmo as que tratem de problemas individuais) e uma

busca de novos meios processuais e maior diálogo entre Poder Judiciário e Poder

Público.

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