Direito Processual Penal...direito penal, fornecendo os meios e o caminho para materializar a...

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2019 revista, atualizada e ampliada 14 a edição Curso de Direito Processual Penal Nestor Távora Rosmar Rodrigues Alencar

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2019

revista, atualizada e ampliada

14 a edição

Curso deDireito

Processual Penal

Nestor TávoraRosmar Rodrigues Alencar

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Cap. I • LINHAS INTRODUTÓRIAS 45

Capítulo I

Linhas introdutórias

Sumário • 1. Direito Processual Penal: 1.1. Conceito e finalidade; 1.2. Características: 1.2.1. Autonomia; 1.2.2. Instrumentalidade; 1.2.3. Normatividade; 1.3. Posição enciclopédica – 2. Entendendo O Tema: 2.1. Interesse; 2.2. Pretensão; 2.3. Lide; 2.4. Ação: 2.4.1. Noção; 2.4.2. Teorias da Ação: 2.4.2.1. Ação como vingança privada; 2.4.2.2. Ação civilista ou imanentista; 2.4.2.3. Ação como direito concreto; 2.4.2.4. Ação como direito potestativo; 2.4.2.5. Ação como direito abstrato; 2.5. Processo: 2.5.1. Procedimento (aspecto objetivo do processo); 2.5.2. Relação jurídica processual (aspecto subjetivo do processo): 2.5.2.1. Os sujeitos processuais; 2.5.2.2. O objeto da relação: 2.5.2.2.1. Aspecto material; 2.5.2.2.2. As-pecto processual; 2.5.2.3. Os pressupostos processuais: 2.5.2.3.1. Subjetivos: 2.5.2.3.1.1. Relativos ao juiz: 2.5.2.3.1.1.1. Investidura; 2.5.2.3.1.1.2. Competência; 2.5.2.3.1.1.3. Ausência de suspeição; 2.5.2.3.1.2. Relativos às partes: 2.5.2.3.1.2.1. Capacidade de ser parte; 2.5.2.3.1.2.2. Capacidade de estar em juízo “sozinho”; 2.5.2.3.1.2.3. Capacidade postulatória; 2.5.2.3.2. Objetivos: 2.5.2.3.2.1. Extrínsecos; 2.5.2.3.2.2. Intrínsecos; 2.5.3. Natureza jurídica do processo: 2.5.3.1. Processo como contrato; 2.5.3.2. Processo como quase-contrato; 2.5.3.3. Processo como serviço público; 2.5.3.4. Processo como instituição jurídica; 2.5.3.5. Processo como procedimento – 3. Sistemas Processuais: 3.1. Sistema inquisitivo; 3.2. Sistema acusatório; 3.3. Sistema misto ou acusatório formal – 4. Fontes: 4.1. Conceito; 4.2. Classificação: 4.2.1. Fonte de produção ou material; 4.2.2. Fonte formal ou de cognição: 4.2.2.1. Imediata ou direta; 4.2.2.2. Mediatas, indiretas ou supletivas: 4.2.2.2.1. Costumes: 4.2.2.2.1.1. Secundum legem; 4.2.2.2.1.2. Praeter legem; 4.2.2.2.1.3. Contra Legem; 4.2.2.2.2. Princípios gerais do direito – 5. Analogia: 5.1. Conceito; 5.2. Espécies: 5.2.1. Analogia legis; 5.2.2. Analogia juris; 5.3. Aplicação subsidiária do CPC/2015 – 6. Interpre-tação da Lei Processual: 6.1. Quanto à origem ou ao sujeito que a realiza: 6.1.1. Autêntica ou legislativa; 6.1.2. Doutrinária ou científica; 6.1.3. Judicial ou jurisprudencial; 6.2. Quanto ao modo ou aos meios empregados: 6.2.1. Literal, gramatical ou sintática; 6.2.2. Teleológica; 6.2.3. Lógica; 6.2.4. histórica; 6.2.5. Sistemática; 6.3. Quanto ao resultado: 6.3.1. Declarativa; 6.3.2. Restritiva; 6.3.3. Extensiva ou ampliativa; 6.3.4. Progressiva, adaptativa ou evolutiva – 7. A Lei Processual Penal no tempo: 7.1. Sistema da unidade processual; 7.2. Sistema das fases processuais; 7.3. Sistema do isolamento dos atos processuais – 8. A Lei Processual Penal no espaço – 9. Princípios Processuais Penais: 9.1. Princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade; 9.2. Princípio da imparcialidade do juiz; 9.3. Princípio da igualdade processual (princípio da paridade de armas e sua distinção); 9.4. Princípio do contraditório ou bilateralidade da audiência; 9.5. Princípio da ampla defesa; 9.6. Princípio da ação, demanda ou iniciativa das partes; 9.7. Princípio da oficialidade; 9.8. Princípio da oficiosidade; 9.9. Princípio da verdade real; 9.10. Princípio da obrigatoriedade; 9.11. Princípio da indisponibilidade; 9.12. Princípio do impulso oficial; 9.13. Princípio da motivação das decisões; 9.14. Princípio da publicidade; 9.15. Princípio do duplo grau de jurisdição; 9.16. Princípio do juiz natural; 9.17. Princípio do promotor natural ou do promotor legal; 9.18. Princípio do defensor natural; 9.19. Princípio do devido processo legal; 9.20. Princípio do favor rei ou favor réu; 9.21. Princípio da economia processual; 9.22. Princípio da oralidade; 9.23. Princípio da autoritariedade; 9.24. Princípio da duração razoável do processo penal; 9.25. Princípio da proporcionalidade; 9.26. Princípio da inexigibilidade de autoincriminação; 9.27. Princípio da cooperação processual – 10. Quadro Sinó-tico – 11. Súmulas Aplicáveis: 11.1. STJ; 11.2. STF – 12. Informativos Recentes: 12.1. STJ; 12.2. STF – 13. Questões de Concursos Públicos – 14. Gabarito Anotado – 15. Questões discursivas com comentários

1. DIREITO PROCESSUAL PENAL

1.1. Conceito e finalidade

O direito é um só e é constituído pela linguagem. A linguagem é a tessitura constitu-tiva do mundo, dentro de um prisma fenomenológico-existencialista1. No ponto, pode-se

1. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 5.

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anuir com Edvaldo Brito quando enfatiza que “a realidade do direito é, em si, linguagem”2. Esse modo de enxergar o direito é importantíssimo para sua aplicação contextualizada so-cialmente. É assim que o direito processual penal compreenderá a interpretação/aplicação normativa penal sem descurar da Constituição e dos fatos da atualidade.

Com essa advertência – que deve permear o estudo deste livro –, calha trazer à baila a lição de Frederico Marques, especialmente quando aduz que o direito processual penal “é o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do direito penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares”3.

As disposições constitucionais sobre matéria criminal fazem parte desse conjunto e a sua interpretação/aplicação, nas palavras de Thiago Bomfim, não pode “ser uma atividade puramente mecânica”, porém deve convergir para uma “atividade criadora, responsável por reconhecer como sendo parte integrante do sistema valores que até então se apresentavam sob uma perspectiva eminentemente filosófica, sociológica e ética”4.

Com efeito, o processo penal deve ser compreendido de sorte a conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e o caminho para materializar a aplicação da pena ao caso concreto. Deve-se ter em vista que o jus puniendi concentra-se na figura do Estado. Essa característica não se modifica quando se cuida de ação penal privada, eis que aqui o querelante passa a figurar como substituto processual.

Outrossim, estando a vingança privada banida, como regra, do estado democrático de direito, com a tipificação criminal do exercício arbitrário das próprias razões como crime contra a administração da justiça (art. 345 do CP), resta confiar ao direito processual penal a solução das demandas criminais, delineando toda a persecução penal do Estado, já que se cuida daquela “parte do direito que regula a atividade tutelar do direito penal”5.

No que tange à finalidade do direito processual penal, ela pode ser dividida em me-diata e imediata: aquela diz respeito à própria pacificação social obtida com a solução do conflito, enquanto a última está ligada ao fato de que o direito processual penal viabiliza a aplicação do direito penal, concretizando-o.

FINALIDADE DO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Mediata Imediata

alcançar a pacificação social com a solução do conflito

viabilizar a aplicação do direito pe-nal, concretizando-o

1.2. Características

A doutrina costuma discorrer sobre três características do direito processual penal. Senão vejamos.

2. BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. p. 16.3. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. Campinas: Millennium, 2003. v.1. p. 16.4. BOMFIM, Thiago. Os princípios constitucionais e sua força normativa: análise da prática jurisprudencial. Salvador:

JusPODIVM, 2008. p. 103.5. BELING, Ernst apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. v.1. p. 26.

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1.2.1. Autonomia: o direito processual não é submisso ao direito material, isto porque tem princípios e regras próprias e especializantes.

1.2.2. Instrumentalidade: é o meio para fazer atuar o direito material penal, consubstanciando o caminho a ser seguido para a obtenção de um provimento jurisdicional válido. Em outros termos, como aduz Rubens Casara, o processo penal surge “como resposta à exigência de racionalidade da aplicação do direito material”, vale dizer, como instrumento, o processo criminal é garantia de provimento penal racional.6

1.2.3. Normatividade: é uma disciplina normativa, de caráter dogmático, inclusive com codificação própria (Código de Processo Penal: Dec-Lei nº 3.689/1941).

1.3. Posição enciclopédica

Há uma crítica atual à dicotomia romana entre jus publicum et jus privatum, notadamente porque a distinção não explica perfeitamente todas as nuances de cada uma das esferas do direito. Não obstante, o direito processual penal é reconhecido como um dos ramos do direito público. O fundamento é que um dos sujeitos é o Estado e a finalidade das normas é obter a repressão dos delitos, através do exercício do jus puniendi, intrínseco àquele.

2. ENTENDENDO O TEMA

Passaremos aqui, de forma sucinta, a identificar alguns conceitos fundamentais para o estudo da matéria, levando-nos a relembrar tópicos da teoria geral do processo, enfrentados embrionariamente.

2.1. Interesse

É o desejo, a cobiça, a vontade de conquistar algo. É um conceito extrajurídico, que desperta aquilo que se quer alcançar. O interesse indica uma relação entre as necessidades humanas (que são de variadas ordens) e os bens da vida aptos a satisfazê-las.

Nas palavras de Moacyr Amaral Santos, “a razão entre o homem e os bens, ora maior, ora menor, é o que se chama interesse. Assim, aquilata-se o interesse da posição do homem, em relação a um bem, variável conforme suas necessidades. Sujeito do interesse é o homem; o bem é o seu objeto”7.

Nesse sentido, Francisco Wildo destaca que “quando existe uma necessidade que pode ser satisfeita por um determinado bem da vida, dizemos que há um interesse por esse bem. Desde Carnelutti, define-se o interesse como uma situação favorável à satisfação de uma necessidade”8.

6. CASARA, Rubens. Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 100.

7. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v.1. p. 3-4.8. DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Teoria geral do processo: jurisdição, ação (defesa), processo. 2. ed. São Paulo: Método,

2007. p. 41.

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2.2. Pretensão

É a intenção de subordinar interesse alheio ao próprio. A beleza da busca do que se pretende é o prazer da conquista, que muitas vezes envolve a submissão de um bem jurídico alheio para que prevaleça o nosso.

Pretensão, em direito processual, é conceito formado pelos seguintes elementos: (1) é intencional, vale dizer, dirige-se a um fim, de cunho teleológico, expressando a vontade do sujeito ativo em subordinar o sujeito passivo a uma satisfação de necessidade que aquele entende legítima (em direito processual penal, a pretensão punitiva estatal tem seu início deflagrado a partir do conhecimento do cometimento do crime); (2) é dotada de persistência, pois uma vez deduzida em juízo, perdura no tempo, ainda que desapareça o intento condenatório do Ministério Público, razão pela qual, ao final, o que a rigor se julga improcedente não é a pretensão, porém o pedido condenatório (é possível ao juiz, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, julgar procedente o pedido condenatório, mesmo que o Ministério Público tenha requerido absolvição); e (3) é exteriorizada pela ação penal, eis que esta veicula o jus puniendi do Estado.

2.3. Lide

Como a prevalência de nosso interesse não se faz sem resistência, e no âmbito dos conflitos penais, a resistência à pretensão punitiva do Estado é de rigor (princípio da ampla defesa, consagrado no art. 5º, inciso LV, da Carta Magna); a lide surge do conflito de interesses qualificado pela pretensão resistida9. No embate criminal, teremos, de um lado, a pretensão do Estado de fazer valer o direito material, aplicando a pena ao caso concreto, e, do outro, o status libertatis do imputado, que só pode ser apenado após o devido processo legal. Pressupõe-se, portanto, uma resistência necessária do réu, tal como consagra expressamente a Carta Magna, em seu art. 133, ao afirmar que o advogado é peça essencial à administração da justiça –, bem como a Súmula nº 523, do STF, que enfatiza que a falta de defesa constitui nulidade absoluta do processo.

É bastante controvertida a questão sobre a existência de lide no processo penal. Isso porque a presença de interesses antagônicos seria precipitada, já que a acusação e a defesa estariam em busca do mesmo interesse, que é a realização de justiça. No processo criminal a figura do Ministério Público, preocupada com o justo provimento, e não com a condenação desmedida, estaria no mesmo sentido da pretensão defensiva, buscando a adequada aplicação da lei penal10.

Ademais, na esfera penal o conflito entre as partes é irrelevante, pois o bem em jogo é indisponível, ao passo que no processo civil, de regra, há poder de disposição das partes em face dos respectivos interesses. Na seara penal há o interesse público prevalente na realização da justiça, o que é contemporizado nas ações de iniciativa privada, pois a vítima é movida

9. CARNELUTTI,Francesco. Sistema de direito processual civil. Tradução: Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: ClassicBook, 2000. v.1. p. 93.

10. BIZZOTTO, Alexandre; RODRIGUES, Andreia de Brito. Julgamento antecipado civil e penal. Goiânia: AB, 1999.p. 120. Também fazem registro, preferindo a expressão controvérsia penal: ARAÚJO CINTRA. Antonio Carlos de; GRINOVER. Ada Pellegrini; DINAMARCO. Cândido R. Teoria geral do processo. 13.ed. Malheiros: São Paulo, 1997. p. 132.

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pelos princípios da oportunidade, podendo exercer ou não a ação, e da disponibilidade, podendo desistir da demanda, seja perdoando o réu, ou através da perempção.

Gustavo Badaró apregoa que a lide não é condição essencial para o surgimento e desenvolvimento do processo. Ela pode até existir quando o acusado resiste à pretensão formulada pela acusação, mas é “absolutamente irrelevante para o desenvolvimento e a decisão do processo”. Em razão da nulla poena sine iudicio, o processo penal é ferramenta necessária e incontornável, já que os interessados têm no judiciário o órgão canalizador da aplicação do direito punitivo, e a “necessidade do contraditório como meio mais eficiente para a descoberta da verdade” acaba por ratificar a dependência processual para resolver a pretensão que nasce insatisfeita11. Por essa razão, a ação penal é uma ação necessária, quando se pensa na efetivação da pretensão punitiva.

O réu não pode voluntariamente submeter-se à pretensão acusatória, ressalvada a possibilidade da transação penal, no âmbito da justiça consensual. Da mesma maneira, se o réu confessar o crime, ou se o Ministério Público requer a absolvição, isso não é suficiente para que o processo chegue ao seu final de maneira precipitada. É necessária cognição exauriente do manancial probatório para formação do convencimento do julgador, já que estamos diante de bens jurídicos indisponíveis, e a lide deve ser vista de forma acidental, secundária, e despicienda para o exercício jurisdicional em matéria criminal. Não é outra a posição de Afrânio Silva Jardim, que entende que a lide é prescindível ao processo; o que é indispensável é “a pretensão do autor manifestada em juízo, exteriorizada pelo pedido e delimitada pela causa de pedir”12.

2.4. Ação

2.4.1. Noção

Gerindo o Estado a administração da própria justiça, evitando com isso que nós, anuentes do Pacto Social, façamos justiça com as próprias mãos, não pode aquele se omitir (non liquet). Tem o dever de agir, cabendo-nos o direito público subjetivo de obter uma decisão acerca do fato objeto do processo. Desta forma, enquanto o poder-dever de punir é do Estado, a nós cabe o direito de exigir esta punição, que é o direito à tutela jurisdicional.

Na senda da doutrina processual majoritária, José Antônio Paganella Boschi sustenta que “a ação é o direito ‘subjetivo’ público de ‘mover’ a jurisdição”, explicando que o “‘poder’ de mover a jurisdição pode ter natureza de ‘direito subjetivo público’ nas ações de iniciativa privada ou de ‘dever jurídico’ nas ações públicas”13.

Interessa anotar, todavia, a crítica de Ovídio Baptista, com a qual concordamos, consistente em enfatizar que a doutrina processual, na realidade, confunde “ação” processual com o direito subjetivo público do litigante de obter prestação jurisdicional. “Ação” (processual), dessa forma, é agir em juízo – e não direito subjetivo público –, não sendo adequado mesclar o conceito de ação, “qualquer que seja o nível em que o conceito seja

11. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 205-206.12. JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 161.13. BOSCHI, José Antonio Paganella. Ação penal: denúncia, queixa e aditamento. 3. ed. Rio de Janeiro: AIDE, 2002. p.

21-22.

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tomado, e o conceito de direito subjetivo que lhe serve de suporte”, ou mesmo confundir “direito público subjetivo de ação” com a atuação “desse direito através da ação processual”14.

2.4.2. Teorias da Ação

No curso da história da teoria da ação, várias concepções sobre sua natureza jurídica foram construídas. A diferença entre elas fica por conta de elementos relacionados ao or-denamento jurídico vigente, ao ponto de vista do teórico ou ao estado da arte do conceito. Dentre as teorias em torno da ação, podem ser alinhadas, a partir do momento em que inexistia monopólio estatal da jurisdição:

2.4.2.1. ação como vingança privada: quando o Estado não exercia jurisdição penal, cabia ao ofendido exercer a denominada vingança privada. Era o exercício direto da tutela retributiva por meio de ação material da vítima, atualmente vedada. Só excepcionalmente o Estado autoriza o atuar direto do ofendido, a exemplo dos casos de excludentes de ilicitude (art. 23, do Código Penal);

2.4.2.2. ação civilista ou imanentista: a ação manejada pelo interessado retrata o seu próprio direito. A ideia de ação decorre do direito material que a assegura, onde este caracte-riza a natureza jurídica daquela (Savigny). A partir da polêmica entre Bernhard Windscheid e Theodor Muther, teve início a distinção entre a ação material e a ação processual. Para Windscheid, a ação moderna seria o direito de exigir algo que deriva, necessariamente, do direito material. Tomava em consideração, para tanto, que a actio romana era o próprio direito. De outro lado, Muther, ação e direito são distintos, isto é, a ação como direito subjetivo público, de um lado, e, do outro, o direito subjetivo material a ser protegido15.

2.4.2.3. ação como direito concreto16: a ação, para essa concepção, é entendida como direito a uma sentença favorável, malgrado entendida como direito autônomo (Wach, Chiovenda, Bülow);

2.4.2.4. ação como direito potestativo: de acordo com a teoria de Chiovenda (incluí-do também na teoria da ação como direito concreto), a ação também se caracteriza como poder jurídico necessário à atuação da vontade da lei;

2.4.2.5. ação como direito abstrato: Liebman, nessa linha, entende a ação como di-reito subjetivo diverso daquele do direito substancial, estabelecendo as condições da ação como a espécie de ponto de tangência entre a ação e o direito material17. Nessa senda, a ação se cuida de um direito de iniciativa e impulso, através do qual se põe em movimento o exercício de uma função pública18.

14. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Direito subjetivo, pretensão de direito material e ação. In: Polêmica sobre a ação: a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Fábio Cardoso Machado; Guilherme Rizzo Amaral (orgs.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 31.

15. LOPES JÚNIOR, Aury. (Re) descobrindo as teorias acerca da natureza jurídica do processo (penal). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, nº 75, p. 102-105, dez. 2008.

16. NICOLITT, André. Manual de processo penal. 5. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 65-67.17. Idem. p. 66.18. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile: I. 4. ed. Milano: Giuffrè, 1980. p. 135.

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2.5. Processo

É o instrumento de atuação da jurisdição. É a principal ferramenta para solucionar os conflitos de interesse que se apresentam. No léxico, a palavra processo significa “ato de proceder ou de andar”. Contempla um elemento constitutivo objetivo, qual seja, o proce-dimento, que é a sequência de atos concatenados a um objetivo final, é dizer, o provimento jurisdicional, e um elemento constitutivo subjetivo, que é a relação jurídica processual entre os sujeitos que integram o processo.

= +2.5.1. Procedimento (aspecto objetivo do processo)

É a sequência de atos praticados no processo.

2.5.2. Relação jurídica processual (aspecto subjetivo do processo)

É o nexo que une e disciplina a conduta dos sujeitos processuais em suas ligações recíprocas durante o desenrolar do procedimento, sendo seus elementos identificadores:

2.5.2.1. Os sujeitos processuais: partes e magistrado.

2.5.2.2. O objeto da relação:

2.5.2.2.1. Aspecto material: bem da vida;

2.5.2.2.2. Aspecto processual: provimento jurisdicional desejado.

2.5.2.3. Os pressupostos processuais:

2.5.2.3.1. Subjetivos:

2.5.2.3.1.1. Relativos ao juiz:

2.5.2.3.1.1.1. Investidura: é a necessidade de estar investido no cargo em conformidade com a Constituição e a legislação em vigor;

2.5.2.3.1.1.2. Competência: é a medida da jurisdição. É o limite legal dentro do qual o órgão jurisdicional poderá atuar;

2.5.2.3.1.1.3. Ausência de suspeição: é a imparcialidade necessária para o exercício da jurisdição. As hipóteses que levam a suspeição e ao impedimento do magistrado estão listadas nos artigos 252, 253 e 254 do CPP.

2.5.2.3.1.2. Relativos às partes:

2.5.2.3.1.2.1. Capacidade de ser parte: é a capacidade de contrair obrigações e exercer direitos. A capacidade de ser parte refere-se a todas as pessoas, salientando-se que para haver capacidade de ser parte passiva no processo penal, é preciso que o agente tenha idade

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igual ou superior a dezoito anos, considerada à época da ocorrência dos fatos narrados na denúncia;

2.5.2.3.1.2.2. Capacidade de estar em juízo “sozinho”: refere-se à necessidade de as-sistência e representação daqueles que não gozam da plena capacidade;

2.5.2.3.1.2.3. Capacidade postulatória: necessária para o pleito judicial, afinal, como consagra a Carta Magna em seu art. 133, o advogado é peça essencial à administração da justiça.

2.5.2.3.2. Objetivos:

2.5.2.3.2.1. Extrínsecos: ausência de fatos impeditivos para o regular tramitar proce-dimental, a exemplo da inexistência de coisa julgada ou de litispendência;

2.5.2.3.2.2. Intrínsecos: regularidade formal, ou melhor, respeito à disciplina nor-mativa do processo, ao devido processo legal ou ao chamado processo tipificado, isto é, aquele previsto em lei.

2.5.3. Natureza jurídica do processo

Há intensa controvérsia doutrinária sobre a natureza jurídica do processo.

A distinção entre os aspectos objetivo (procedimento) e subjetivo (relação jurídica processual) como formadora do conceito de processo é criticada por parte da doutrina. Para esse setor, a relação jurídica processual não integra o conceito de processo, pois é somente após o processo ser deflagrado que será possível falar em algo distinto, consistente na relação

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jurídica processual. Em outros termos, o processo cria a relação jurídica processual, mas não é, ele próprio, essa relação.

De certa forma, a diferença apresentada conta com a contribuição de Oskar Von Bülow19, que passou a ver o processo não restritamente ao seu aspecto evidente (procedi-mento), mas como relação jurídica processual, entendida esta como a que se dá entre as partes e o juiz. Nasce relação jurídica quando o autor ajuíza a ação em face do Estado-juiz. Em outros termos, o juiz deve ordenar citação do réu, realizar vários atos e prestar a tutela jurisdicional. Nesse sentido, não lhe é facultado dizer o direito, sendo-lhe exigida uma resposta estatal. De outro lado, aquela relação é distinta da outra, de natureza material, decorrente da incidência de normas penais. Essa concepção, adotada em larga medida, pelo direito brasileiro, enxerga o processo (inclusive o penal) como relação de direito público, desenvolvida progressivamente com o envolvimento das partes e do órgão do Poder Judiciário.

Outros autores clássicos do direito processual apontam diversas naturezas e finalidades na tentativa de definir a função do processo.

Para James Goldschmidt, processualista alemão, “el proceso es el procedimiento cuyo fin es la constitución de la cosa juzgada”. A função de constituição de coisa julgada como finalidade do processo, retrata o modo peculiar desse procedimento. O autor vê o processo como situação jurídica necessária à constituição da imutabilidade do julgado submetido em juízo. Não se resume o processo à definição de relação jurídica, sendo antes espaço para a deflagração de um modo para exercício de ônus e expectativas20.

Partindo dessa concepção, a possibilidade de coisa julgada material, levada a efeito por meio do processo, é a nota de sua distinção relativamente ao inquérito policial. Este é procedimento administrativo, porém não tem por finalidade produzir a imutabilidade, como advertem Afrânio Silva Jardim e Pierre Souto Maior Coutinho de Amorim21.

A natureza jurídica do processo é apontada ainda como contrato, quase-contrato, serviço público, instituição jurídica e procedimento22, variando a concepção relativamente ao ordenamento em vigor ou ao ponto de vista do teórico.

2.5.3.1. Processo como contrato: atividade particular, exercida no âmbito privado, onde poderia haver a escolha de cláusulas e de juiz;

2.5.3.2. Processo como quase-contrato: em que a vontade das partes tem lugar de forma indireta, decorrendo as obrigações mais da lei do que do consenso (Savigny);

19. BÜLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. 2. ed. Campinas: LZN, 2005. p. 11-15.

20. GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del proceso: teoria general del proceso. 2. ed. Buenos Aires: EJEA, 1961. p. 37.

21. JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: Estudos e pareceres. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 560-561.

22. LOPES JÚNIOR, Aury. (Re) descobrindo as teorias acerca da natureza jurídica do processo (penal). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, nº 75, p. 101-129, dez. 2008.

Page 11: Direito Processual Penal...direito penal, fornecendo os meios e o caminho para materializar a aplicação da pena ao caso concreto. Deve-se ter em vista que o jus puniendi concentra-se

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL PENAL – Nestor Távora • Rosmar Rodrigues Alencar54

2.5.3.3. Processo como serviço público: entende a jurisdição como forma de prestação levada a cabo pelo poder público, sendo mera relação de fato; e

2.5.3.4. Processo como instituição jurídica: vê o processo como relação jurídica dis-ciplinada normativamente (Guasp), vale dizer, incluindo as teorias da norma jurídica e da relação jurídica. De acordo com o jurista espanhol, o processo não é instrumento do direito material, porém o inverso, pois é o direito material que proporciona os instrumentos necessários ao labor processual, embora isso não signifique dizer que o direito material não exista por si. Daí entender Guasp que a preponderância do direito material ou processual relativamente ao processo é questão de ponto de vista. Para que haja o enlace entre eles, indispensável é o respeito às regras de competência, de imputação, dentre outras, que ocorrem no âmbito da instituição de conexões entre as diversas disciplinas, caracterizando, assim o processo (instituição jurídica)23;

2.5.3.5. Processo como procedimento, entendendo-o como uma concatenação de atos, organizados em ordem sucessiva.

3. SISTEMAS PROCESSUAIS

A depender dos princípios que venham a informá-lo, o processo penal, na sua es-trutura, pode ser inquisitivo, acusatório e misto. É o que Tourinho Filho enquadra como tipos de processo penal24.

A principal função da estrutura processual, como aponta Geraldo Prado, é a de garantia contra o arbítrio estatal, conformando-se o processo penal à Constituição Federal, de sorte que o sistema processual penal estaria contido dentro do sistema judiciário, que por sua vez é espécie do sistema constitucional, que deriva do sistema político25.

3.1. Sistema inquisitivo

O princípio inquisitivo é caracterizado pela inexistência de contraditório e de ampla defesa, com concentração das funções de acusar, defender e julgar em uma figura única (juiz). O procedimento é escrito e sigiloso, com o início da persecução, produção da prova e prolação de decisão pelo magistrado. Esse sistema, como observa Aury Lopes Jr., “foi desacreditado – principalmente por incidir em um erro psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar”26.

No sistema inquisitivo (ou inquisitório), permeado que é pelo princípio inquisitivo, o que se vê é a mitigação dos direitos e garantias individuais, em favor de um pretenso interesse coletivo de ver o acusado punido. É justificada a pretensão punitiva estatal com lastro na necessidade de não serem outorgadas excessivas garantias fundamentais.

23. GUASP, Jaime. Derecho procesal civil: tomo primeiro [introduccion y parte general]. Madrid: IEP, 1968. p. 34.24. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. v.1. p. 88.25. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade constitucional das leis processuais penais. 4. ed. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006. p. 55.26. LOPES Jr, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional: volume I. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

p. 68.